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Revista latinoamericana de estudios educativos

On-line version ISSN 2448-878XPrint version ISSN 0185-1284

Rev. latinoam. estud. educ. vol.53 n.1 Ciudad de México Jan./Apr. 2023  Epub Oct 02, 2023

https://doi.org/10.48102/rlee.2023.53.1.513 

Enclave

Disposições curriculares para uma agenda formativa direcionada ao comum: uma renovação pedagógica em curso?

Curriculum Provisions for an Educational Agenda Aimed at the Common: An Ongoing Pedagogical Renewal?

Roberto Rafael Dias da Silva* 
http://orcid.org/0000-0001-6927-3435

*Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil. robertods@unisinos.br


Resumo

Por meio do presente ensaio teórico, propomos a construção de uma agenda formativa para a escola direcionada ao comum. Realizamos algumas digressões históricas no pensamento educacional que predominou no século XX e destacamos a centralidade atribuída às relações entre socialização e individualização. Sob estas relações, a escolarização foi democratizada, e, paradoxalmente, este processo veio acompanhado de uma crise de sentido quanto à natureza pública da educação, particularmente no contexto de predominância das lógicas neoliberal e neoconservadora. Como alternativa crítica, apostamos no comum como um princípio político, aceitando que este conceito apresenta potencialidade para uma reinvenção da educação na atualidade. Para esta reinvenção, apresentamos quatro disposições curriculares para orientar nossas investigações e nossas práticas, quais sejam: a) ultrapassar o binômio individualização-socialização; b) redefinir a dimensão pública da tarefa educativa; c) reconstruir a atmosfera da seleção dos conhecimentos escolares; d) repactuar a sala de aula como um objeto digno.

Palavras-chave: escolarização; políticas educacionais; pedagogia crítica; comum

Abstract

Through this theoretical essay, we propose the construction of an educational agenda for the school aimed at the common. We make some historical digressions into the educational thought that prevailed in the 20th century and highlight the centrality attributed to the relations between socialization and individualization. In the face of these relationships, schooling was democratized, and, paradoxically, this process was accompanied by a crisis of meaning regarding the public nature of education, particularly in the context of the prevailing neoliberal and neoconservative logic. As a critical alternative, we bet on the common as a political principle, accepting that this concept has the potential for reinventing education today. For this reinvention, we present four curricular provisions to guide our investigations and our practices, which are the following: a) to overcome the individualization-socialization binomial; b) redefine the public dimension of the educational task; c) rebuild the atmosphere of the selection of school knowledge; d) reestablish the classroom as a worthy object.

Keywords: schooling; educational policies; critical pedagogy; common

A atividade revolucionária só voltará a ser possível quando uma reconstrução ideológica radical puder se encontrar com um movimento social real.

Cornelius Castoriadis

Experimentamos um tempo em que as possibilidades de descrever a escola do futuro e o futuro da escola adquirem ampla significação pública. Variados atores políticos - públicos e privados - ingressaram na disputa pelas narrativas capazes de redesenhar essa instituição, normalmente oferecendo os seus conceitos estruturantes como aqueles capazes de reformá-la. Nas publicações midiáticas dos últimos anos, particularmente no contexto pós-pandêmico, tem sido recorrente a presença de textos que definem as principais tendências educacionais dirigidas ao futuro. A personalização, as tecnologias digitais, o aprender a aprender, a dimensão socioemocional e as metodologias ativas são exemplares de novas bandeiras pedagógicas, reposicionadas neste início de século. Em comum a cada uma dessas tendências, poderíamos elencar seu caráter reformista, que poucas vezes vem acompanhado de uma reflexão consistente sobre os propósitos educativos e os sentidos públicos da escolarização.

Ao mesmo tempo, não faltam documentos e propostas internacionais que nos instigam a repensar a educação em nosso tempo. Considerando somente os últimos meses, valeria a pena destacar o Pacto Educativo Global, que se constitui como um grande convite do Papa Francisco para que as instituições internacionais priorizem uma educação humanista e solidária, com vistas à transformação social. Lançado em outubro de 2020, o Pacto explicita, em seus compromissos, a colocação das pessoas no centro educativo, a escuta das novas gerações e os cuidados com a casa comum, dentre outros aspectos bastante relevantes. Outra iniciativa global, lançada pela Unesco, foi a chamada Futures of Education (“Futuros da Educação”). Em novembro do último ano, a comissão internacional responsável pela iniciativa publicou um informe apresentando uma visão de futuro em que a educação e a aprendizagem precisam ser inscritas em um novo contrato social. As mudanças climáticas, as persistentes desigualdades, as novas tecnologias e a fragmentação social que hoje vivenciamos servem de contexto para ambas as iniciativas globais.

O professor António Nóvoa, reconhecido pesquisador e integrante da referida comissão da Unesco, tem argumentado que essas iniciativas não podem converter-se em um exercício futurista. Em suas palavras, “o futurismo tem três devoções principais: o digital, a inteligência artificial e o cérebro. Não devemos ignorar a importância destes três temas” (Nóvoa, 2020, p. 1). Esses temas precisariam ser tratados com cautela, talvez como pontos de partida, e, de acordo com o autor, não poderiam ser vislumbrados como a única solução possível para o futuro da educação. Este futuro passaria por uma metamorfose da escola, pela via da renovação de seus propósitos e pelo seu reposicionamento junto ao espaço público.

Ao contrário do que ocorreu ao longo do século XX, não haverá um modelo único de escola. Portanto, vale a pena falar de futuros diversos, plurais e baseados em experiências e projetos que, felizmente, já existem em todo o mundo. É na solidez destas experiências, em sua capacidade para o intercâmbio e para a inspiração mútua, onde estará o futuro da educação (Nóvoa, 2020, p. 2).

Os debates sobre os propósitos educacionais - construídos como algo comum situado em um espaço público, como define Nóvoa relendo Maxine Green -desafiam-nos a alargar nossas leituras e a buscar pela construção de novas perguntas-. Estas perguntas, faz-se importante especificar, emergem de uma consideração sobre as mudanças educativas deste tempo e da exigência de construirmos efetivamente uma “pedagogia engajada” (Hooks, 2017). Na discussão sobre os propósitos educacionais, penso ser oportuno revisitar os escritos de Bell Hooks, particularmente Ensinando a transgredir. Nesta obra importante para a pedagogia crítica estadunidense, a autora inspira-nos a recolocar em discussão as questões educativas do nosso tempo, reforçando que “cada sala de aula é diferente, que as estratégias têm de ser constantemente modificadas, inventadas e reconceitualizadas para cada experiência de ensino” (Hooks, 2017, p. 21). A pedagogia engajada de Hooks, de modo enfático, convoca o campo educacional crítico a levar a sério a sala de aula. Mais que isso, assinala que “não poderemos enfrentar a crise se os pensadores críticos e os críticos sociais progressistas agirem como se o ensino não fosse um objeto digno de sua consideração” (Hooks, 2017, p. 23).

A teoria educacional orientada ao futuro precisaria levar a sério cada experiência de ensino e, com isso, colocar sob interrogação a própria escola e seu futuro. Iniciativas internacionais, como o Pacto Educativo Global e Futures of Education, colocam-nos diante do desafio de ultrapassar a gramática reformista ainda predominante e de abrir novas fronteiras para a renovação educativa. Agregam-se a esta problematização inicial os amplos diagnósticos políticos e a luta radical pela construção do comum (Hardt e Negri, 2016; Dardot e Laval, 2017). Nas teorias sociais, este conceito tem apresentado significativo potencial heurístico para explicar as possibilidades de transformação social na atualidade e, mais que isso, nomear um novo regime de práticas coletivas que abrem horizontes para um futuro posterior ao capitalismo. Na condição de pesquisador no âmbito das teorias educacionais, com especial interesse pelas questões curriculares, objetivo mapear as disposições curriculares para uma agenda formativa direcionada ao comum.

Nas condições até aqui descritas, preciso destacar que o desafio deste estudo teórico se inscreve nesta perspectiva: que escola desejamos renovar pedagogicamente no século XXI? Que disposições curriculares são exigidas para uma agenda formativa direcionada ao comum? Ainda para fins introdutórios, cabe uma ressalva de ordem metodológica: para sinalizar os desafios conceituais para o futuro da escolarização, necessito mobilizar algumas breves digressões teóricas para examinar as ideias educacionais que, no decorrer do século XX, conformaram os debates sobre as políticas e as práticas educativas. Particularmente, as disputas teóricas entre o universalismo e o particularismo precisam ser redimensionadas para que possam emergir novas sensibilidades teóricas na direção do comum.

Enfim, sob este enquadramento teórico, organiza-se o presente texto em quatro seções. Na primeira seção, em tom genealógico, busco mapear algumas pistas para compreender o legado pedagógico do século XX, tomando como ponto de partida os debates entre os herdeiros dos pensamentos de Émile Durkheim e John Dewey. A seguir, na segunda seção, percorro as teorias educacionais contemporâneas para cartografar, compondo um breve mapa de argumentos, algumas das principais críticas atribuídas à crise de sentido da escolarização. Em um exercício sintético, inspirado na teorização social de Pierre Dardot e Christian Laval (2017), na terceira parte do texto, trato o comum como um princípio político, para, na seção final do estudo teórico, elencar possibilidades para a construção de uma renovação pedagógica. Tal como sinalizo desde a epígrafe deste texto, junto a Castoriadis no momento de suspensão da publicação de Socialisme ou Barbarie, em 1967, defenderei que somente encontraremos a escola do comum quando nossas teorias educacionais voltarem a dialogar com as insurgências educativas cotidianamente construídas em nosso continente.

Pistas para compreender o legado pedagógico do século XX

Como é de nosso conhecimento, o século XX foi caracterizado por um significativo conjunto de transformações em nossos modos de vida, particularmente no que se refere à economia, à política, à cultura e aos modos de socialização e de convivência (Arrighi, 1996; Boltanski e Chiapello, 2009). O que vivenciamos neste século, com maior ou menor ênfase, tomava a ciência, a indústria e os modos de vida democráticos como grandes desafios - desafios estes estudados por importantes pensadores -que, à sua maneira, decifravam que a prática educativa se dirigia à formação de um novo sujeito (Kilpatrick, 1978). Afinal, o reconhecimento das crianças como protagonistas, a inserção das mulheres no mundo produtivo, a inserção de novos dispositivos tecno científicos em nossas vidas ou mesmo a democratização do acesso à leitura e à escrita foram impulsionadores de importantes transformações educativas. Sobretudo em suas primeiras décadas, o século colocou em evidência novas questões teóricas e recolocou em discussão as possibilidades da escolarização para todos (Charlot, 2020). Novos contornos teóricos foram definidos, e outros cenários de renovação pedagógica foram estabelecidos, de modo plural e criativo.

A própria composição da pedagogia como um campo especializado merece destaque, uma vez que saberes e práticas diferentes foram colocados em circulação. Franco Cambi, historiador italiano, ressalta que “a teoria alimentou um processo de esclarecimento em torno dos fins e meios da educação, entregando-se a procedimentos epistêmicos variados e complexos” (Cambi, 1999, p. 512). A virada de século revelará uma riqueza de posições teóricas, uma ampliação dos estudos sobre o desenvolvimento humano e um pluralismo pedagógico. Ao mesmo tempo, de modo paradoxal, pelo forte investimento do Estado como agente financiador, “a escola passou a fazer parte de uma estrutura de massa, o sistema educacional, e serviu como modelo e centro de transmissão da cultura letrada” (Dussel e Caruso, 2003, p. 158). Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a pedagogia se torna um saber teórico cada vez mais plural, os sistemas de ensino centralizam a promoção de iniciativas homogeneizadoras. É em torno dessa questão controversa que se estabelece o debate acadêmico do século XX sobre as pedagogias. Na sequência, buscam-se algumas breves pistas para interpretar a consolidação desse saber nas primeiras décadas do século passado.

Está completando um século da publicação póstuma de Educação e Sociologia, de Émile Durkheim (2013). Na busca pelo rastro das compreensões da educação engendrada no século XX, é preciso começar essas breves digressões pela qualidade da obra, pelo seu potencial educativo e pelas definições estabelecidas. Distanciando-se das definições propostas por Stuart Mill ou Imanuel Kant, ora marcadas pelo utilitarismo, ora definidas com certo idealismo, o sociólogo francês buscava por uma definição que não esbarrasse nos aspectos universalistas ainda predominantes em seu tempo. Evitando a prerrogativa de que não há um modelo ideal de educação, Durkheim apregoa que “cada sociedade, considerada em determinado momento de seu desenvolvimento, tem um sistema de educação que se impõe aos indivíduos com uma força geralmente irresistível” (Durkheim, 2013, p. 48). Na lógica de seu pensamento, a sociedade ocupa um papel determinante na definição daquilo que somos, uma vez que todo o passado da humanidade, das gerações que nos antecederam, contribui para o processo educativo.

Em razão dessa preocupação com as relações entre indivíduo e sociedade, em tal texto, que pode ser considerado como fundante da Sociologia da Educação, Durkheim constrói a sua clássica definição de educação, qual seja: “a educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social” (Durkheim, 2013, p. 53-54). Todavia, é importante argumentar que sua definição não deixa de considerar a condição múltipla e singular do educativo; em outras palavras, descrever este processo de socialização não significa abdicar da “virtude criadora da educação” (Durkheim, 2013, p. 56). Enquanto somos modelados pelas sociedades, em suas variadas necessidades, temos condições de construir uma novidade no mundo (pois a socialização não é decorrente de um processo de tirania). Por meio desta obra de Durkheim e de outras que lhe serviram de interlocutoras, encontramos um primeiro rastro para compreender a educação no início do século XX.

Outro caminho, igualmente relevante e com ampla circulação nas teorias educacionais, é tomado por John Dewey. Em sua clássica obra Experiência e Educação, o filósofo estadunidense sistematiza a maior parte dos princípios progressivistas para compreender a escolarização e recoloca o debate educacional na direção das experiências e da aprendizagem dos estudantes. Enquanto a lógica da transmissão cultural da escola tradicional se assentava no polo da socialização - de cima para baixo e de fora para dentro -, como o texto durkheiminiano apresentou, os seus críticos das primeiras décadas do século XX defenderão outra lógica. Os movimentos escolanovistas, nos quais Dewey ocupava um lugar privilegiado, reelaboraram a reflexão educativa, distanciando-se de uma compreensão de aprendizagem centrada nos livros e na palavra dos mais velhos. De acordo com o filósofo, “a ideia fundamental da filosofia da educação mais nova e que lhe dá unidade é a de haver relação íntima e necessária entre os processos de nossa experiência real e a educação” (Dewey, 1979, p. 8). A opção por redescrever as teorias educacionais a partir das experiências pessoais dos estudantes por caminhos variados serviu como horizonte para as mudanças educativas da primeira metade do século XX.

A intenção de Dewey, na obra mencionada, recoloca a questão educacional a respeito das relações entre presente, passado e futuro. Ele explica que não se trata de abdicar dos conhecimentos acumulados pela humanidade, mas de colocá-los como meios capazes de alimentar as experiências educativas.

A solução estará na descoberta de como a familiarização com o passado poderá traduzir-se em poderosa instrumentalidade para melhor lidar efetivamente com o futuro. Rejeitando o conhecimento do passado como o fim da educação, iremos apenas dar-lhe maior importância como meio de educação. Quando assim procedemos, lançamos um problema novo no contexto educacional: Como poderá o jovem conhecer e familiarizar-se com o passado de modo tal que este conhecimento se constitua poderoso fator de sua apreciação e sentimento do presente vivo e palpitante? (Dewey, 1979, p. 11).

Ampliando o escopo desta argumentação, centrada em elaborações clássicas, poderíamos avançar até a década de 1960 e recuperar dois textos que tiveram significativa repercussão. A primeira elaboração encontramos na obra Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt, particularmente no ensaio intitulado “A crise na educação”. Tomando como alvo o contexto educacional estadunidense, a filósofa interroga-se sobre a escolarização que se desenhara a partir do progressivismo pedagógico e critica a ênfase ou o entusiasmo atribuído à novidade, que delegava aos recém-chegados a responsabilidade pelo mundo. Nos marcos da relação entre educação e política, Arendt confere visibilidade para a crise da autoridade educativa derivada do apagamento das diferenças entre adultos e crianças, entre mestres e discípulos ou entre dotados e bem-dotados de condições formativas. A crítica arendtiana tenta colocar em evidência os pressupostos educativos do progressivismo educacional nos Estados Unidos; com isso, almeja caracterizar os riscos de abandonar os estudantes às próprias escolhas. Também interessava, por esse mesmo caminho, a crítica da substituição do pensar pelo fazer.

Esta breve retomada dos escritos da filósofa auxilia-nos a colocar sob exame uma das linhas predominantes na escolarização do século XX, que se encontra na responsabilidade pedagógica, ou seja, na tarefa das gerações mais velhas para a apresentação do mundo aos recém-chegados, considerando a natureza pública da educação. Para a filósofa, esta questão justifica-se pelo fato de que “a educação, contudo, ao contrário da aprendizagem, precisa ter um final previsível” (Arendt, 2013, p. 246). A concepção arendtiana de educação supõe uma renovação do mundo que não abdica dos conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade.

Após termos percorrido a crítica arendtiana, que chama nossa atenção para a questão da responsabilidade pedagógica, neste momento, precisamos dar um passo adiante para examinar outro autor que, na década de 1960, colocou sob exame crítico a escola do século XX. Paulo Freire, educador crítico brasileiro, atribui centralidade às condições desiguais da escola brasileira e latino-americana, denunciando os limites da escola tradicional e apontando para a construção de uma educação problematizadora. Por um caminho bastante original, Freire posiciona o diálogo como a essência da educação como prática de liberdade. Considero este aspecto, dentre inúmeros outros de seu repertório conceitual, como a contribuição mais relevante do pensamento freiriano na composição para a educação do século XX.

Após denunciar a educação bancária, prática pedagógica tradicional estruturada na narração de conteúdos pelo mestre, em sua Pedagogia do oprimido, Freire (1987) propõe uma concepção de educação elaborada sobre outras bases. Educação como prática de liberdade, problematizadora e dialógica são algumas das expressões recorrentes em seu pensamento; porém, escolho priorizar a dialogicidade como traço marcante e principal contribuição para a escola de seu tempo. De acordo com o autor, a educação dialógica supõe uma pronúncia compartilhada do mundo, onde quem ensina e quem aprende não ocupem posições assimétricas. Constitui, de certo modo, uma antropologia do encontro.

Ao longo desta seção, procurei percorrer os caminhos do debate pedagógico no século XX, tomando como ponto de partida as discussões sobre as concepções de educação de Durkheim e Dewey. Cabe reiterar que será nesse contexto teórico que ocorrerão as criações das faculdades de Educação e dos cursos de formação de professores. Dessa maneira, a questão entre universalismo e particularismo (ou entre sociedade e indivíduo, ou entre ensino e aprendizagem) talvez tenha sido a principal herança que as teorias educacionais do último século nos legaram, constituindo-se como uma verdadeira aporia. Entretanto, na segunda metade do século XX, encontraremos um conjunto heterogêneo de críticas à escolarização, e, nesta seção, optei por dialogar com os escritos arendtianos e freirianos. A retomada destes autores, indo além da relevância de suas elaborações e contribuições aos marcos da educação crítica, serve de base para os questionamentos realizados no decorrer deste texto. Como abordarei posteriormente, construir um projeto sobre a escola do futuro implicará movimentos de reconceitualização das teorias educacionais.

Anotações sobre a crise da escolarização moderna: um mapa de posicionamentos

Após percorrer algumas trilhas interpretativas sobre as teorias educacionais do século XX, agora há condições para realizar um singelo mapa de posicionamentos que, de modo preliminar e sem qualquer pretensão de promover generalizações, permita compreender o debate atual no âmbito das pedagogias contemporâneas. Com Bernard Charlot, pode-se examinar a questão antropológica da educação e, por meio das discussões apresentadas na seção anterior, considerar o quanto, no século XX, ainda se resguardava uma preocupação com o futuro do humano. Seja pelo retorno dos discursos de ódio e de intolerância, seja pela expansão dos direitos a atores não humanos, a hipótese do autor é que, hodiernamente, estamos diante de uma “indeterminação crescente quanto à definição do que é um ser humano” (Charlot, 2019, p. 163). Em termos educacionais (e expandindo essa hipótese), Charlot auxilia-nos a redimensionar os debates sobre o pedagógico neste início de século.

Recuperando o debate sobre as pedagogias tradicional e nova, de modo perspicaz, Charlot argumenta que ambas traziam uma concepção de natureza humana e, em torno disso, assentavam os seus discursos teóricos. A pedagogia tradicional, em suas variadas versões, considerava que a criança era naturalmente corrupta e que a tarefa educativa era corrigir suas inclinações e discipliná-la para que buscasse por si mesma a salvação, a razão ou o progresso. Como explica o sociólogo francês, “a pedagogia tradicional é, fundamentalmente, uma pedagogia na Norma contra o Desejo - logo, contra o corpo e a emoção que são as fontes do desejo” (Charlot, 2019, p. 165). A pedagogia nova, por sua vez, tende a inverter esta fórmula, considerando que o ser humano é naturalmente inocente - com pressupostos de Rousseau - e que a educação deveria tomar como ponto de partida os seus interesses, as suas necessidades e as suas aptidões. Em outras palavras, “a pedagogia nova é uma pedagogia do Desejo contra a Norma adulta” (Charlot, 2019, p.165). A própria noção de norma adquire uma conotação democrática, uma vez que será negociada com os estudantes.

Em ambas as concepções pedagógicas, ficam explícitos os seus fundamentos antropológicos, já que, por meio da relação norma x desejo, tais pedagogias erigem as suas finalidades, as suas definições metodológicas e suas relações com os sujeitos de aprendizagem. A questão-chave destacada por Charlot, para a Contemporaneidade, encontra-se na ausência de respostas novas para a referida pergunta antropológica. Mais uma vez recorrendo ao sociólogo, “quando não há mais uma resposta à questão antropológica, ou, pior ainda, quando já não é sequer levantada, a porta está aberta para a barbárie” (Charlot, 2019, p. 166). A situação contemporânea, no campo educacional, é reposicionada mediante duas lógicas complementares, quais sejam: a bricolagem pedagógica e a lógica socioeconômica dos mercados escolares.

No que se refere ao primeiro aspecto, destaca o autor que as práticas pedagógicas contemporâneas não são mais organizadas em torno de grandes princípios ou mesmo de uma concepção antropológica. Complementarmente, deparamo-nos com um novo mercado educacional estimulando a lógica da performance e da concorrência. Neste ponto, julgo pertinente acrescentar a reflexão do filósofo Gert Biesta. Segundo o autor, de modo heterogêneo, o atual desenvolvimento das políticas educativas tem privilegiado as medições comparativas, realizadas em larga escala e com foco em exames de aproveitamento acadêmico em algumas disciplinas. Biesta descreve o advento de uma cultura de medição, induzida por modelos internacionais - dentre os quais, o PISA adquiriu evidência nas últimas décadas -, organizada em estândares e produzida por meio de classificações competitivas. “É precisamente desta maneira que este sistema contribui para a contínua normalização, harmonização e unificação da esfera educativa” (Biesta, 2014, p. 47).

Na medida em que estamos atingindo o auge desta cultura de medição, o filósofo interroga-se sobre duas noções importantes, quais sejam: a da responsabilidade e a dos propósitos educativos. No que tange ao primeiro aspecto, destaca que tem predominado a concepção de responsabilidade construída a partir de um “enfoque técnico orientado à gestão” (Biesta, 2014, p. 48), em detrimento a modelos mais democráticos. Mesmo que bem intencionadas e com ênfase na equidade, as políticas instituídas sob esta lógica mobilizam um conjunto de dados considerados como modelos desejáveis (“dever ser”); em decorrência disso, suas medições são orientadas para uma validade técnica (que assume o lugar de uma validade normativa).

A dimensão acrescentada por Biesta é a ausência de um debate público sobre as finalidades ou propósitos da educação. A cultura de mediação, que articula a validade técnica e a responsabilidade orientada à gestão, associada a um declínio do Estado de Bem-Estar Social e à consolidação do neoliberalismo, negligencia a dimensão dos propósitos. O autor sugere que precisamos ultrapassar essa visão - que reduz aprendizagem a resultados em exames - e ampliar os debates sobre outras dimensões educativas.

O ponto mais importante aqui é reconhecer que a ‘educação’ é um conceito composto. Isto se vê refletido no fato de que as práticas da educação são multifuncionais e, com frequência, as funções ocorrem de maneira simultânea. A respeito deste ponto tenho sugerido a distinção de três funções da educação, as que denomino de qualificação, socialização e subjetivação (Biesta, 2014, p. 54).

Com o diagnóstico de Bernard Charlot, deparamo-nos com um silêncio antropológico na pedagogia contemporânea; com Gert Biesta, refletimos sobre os propósitos da educação que não são considerados pela cultura de medição, predominante nas últimas décadas. Para encaminhar o argumento central desta seção, é preciso considerar a crítica epistemológica à escolarização moderna realizada por Ball e Collet (2021). De acordo com os autores, seria conveniente realizar reflexões críticas sobre as questões básicas da escola enquanto instituição e também sobre as consequências da escolarização para a vida pública. A questão proposta pelos autores é “se a escola é solução para o problema da educação ou, em vez disso, fonte constante e inevitável de problemas educacionais” (Ball e Collet, 2021, p. 2).

Revisitando a crítica engendrada nas décadas de 1960 e 1970, Ball e Collet defendem que, mesmo sendo um dos pilares para a vida na Modernidade, a escola foi “mal projetada e injusta em seus processos” (Ball e Collet, 2021, p. 2). As atuais reformas ou inovações educacionais são insuficientes para cumprir suas promessas, na maioria das vezes, assentadas em discursos redentores. A crise de sentido hoje experimentada pela escola demanda outras possibilidades de interrogação. Mais uma vez recorrendo aos autores, “salvar a escola é projeto e propósito de muitos autores e pesquisadores da educação. Não queremos destacar esse propósito e, em vez disso, sugerir que a escola consiste num nó de uma rede de instituições ‘intoleráveis’” (Ball e Collet, 2021, p. 4). Assim sendo, a crítica epistemológica proposta pelos autores direciona a uma atitude de oposição/refutação à escola.

Aqui buscamos adotar uma posição diferente em relação à escola - não ‘a favor’ da escola, mas ‘contra’ ela - e ensaiaremos sua desolação moral e espiritual, um exercício de refutação em vez de criticismo. Tomamos a instituição como intolerável e irredimível. É irreparável (Ball e Collet, 2021, p. 4).

Conforme é possível acompanhar nesta breve exposição, ao longo do século XX, predominaram teorizações educacionais que priorizavam as relações entre indivíduo e sociedade, ora apostando em pedagogias centradas na autoridade do professor, ora acreditando em propostas baseadas nas escolhas e nas atividades dos estudantes. Neste início de século XXI, mesmo que tenhamos avançado muito na democratização do acesso aos sistemas de ensino, a literatura tem assinalado uma crise de sentido da escola, particularmente no contexto de intensificação da agenda neoliberal. O silêncio antropológico (Charlot, 2019), a ausência de debates públicos sobre os propósitos educacionais (Biesta, 2014) ou mesmo a própria matriz epistemológica da escola moderna, incompatível com os ideais da inclusão e da equidade (Ball e Collet, 2021), foram os diagnósticos mobilizados nesta seção. Todavia, sigo apostando na escola como uma demanda política e, para tanto, no advento da gramática política do comum, constato um conjunto importante de alternativas, o que abordo a seguir.

O comum como um princípio político: dialogando com Dardot e Laval

A intensificação da lógica da concorrência generalizada tem conduzido a novas relações com o trabalho, com a vida social e com a nossa própria subjetividade, acompanhada pelo reposicionamento do papel do Estado e das novas relações capitalistas. Como dizem Pierre Dardot e Christian Laval (2017), “estamos na época do cosmocapitalismo, no qual, muito além da esfera do trabalho, as instituições, as atividades, os tempos da vida são submetidos a uma lógica normativa geral que os remodela e reorienta conforme os ritmos e objetivos da acumulação do capital” (Dardot e Laval, 2017, p. 12). Esta descrição das formas contemporâneas do neoliberalismo foi amplamente discutida na obra A nova razão do mundo; entretanto, em seus estudos posteriores, os autores direcionaram-se para a busca de possibilidades de resistência. Por meio de um diálogo ativo com as pautas dos movimentos políticos de nosso tempo, Dardot e Laval atribuem ênfase ao conceito de comum. Em uma entrevista publicada no Brasil, defenderam que “a emergência do ‘comum’ nas lutas abre para nós uma verdadeira saída e permite superar o dilema entre o retorno impossível à doutrina totalizante e o fatalismo impotente diante da dispersão das lutas” (Dardot e Laval, 2016, pp. 312-313). Foi sob este espírito que, originalmente na França de 2014, os autores publicaram a obra Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI.

Para iniciar estas considerações sobre o conceito de comum como um princípio político articulado com as estratégias de contestação em relação às variadas consequências derivadas da racionalidade neoliberal, vale destacar que este adquiriu uma formulação mais abrangente com as lutas contra o capitalismo e o Estado. Em linhas gerais, retomando os argumentos dos pensadores franceses, “tornou-se princípio efetivo dos combates e movimentos que há duas décadas resistem à dinâmica do capital e conduzem a formas originais de ação e discurso” (Dardot e Laval, 2017, p. 16). Ainda que não possa ser considerado como uma novidade na arena contemporânea, o comum emergiu como uma forma de luta política na contestação ao capitalismo, mas também contra as formas dominadoras do Estado. Tornou-se bandeira dos movimentos dos ecologistas e altermundialistas.

Enquanto um ponto de partida, importante frisar, foi considerado como referência o termo commons, referindo-se aos processos de cercamento dos recursos ambientais (e intelectuais) em variadas regiões do mundo. As provocativas teorizações sociais de Michael Hardt e Antonio Negri, valendo-se também dos diálogos com essas lutas, tiveram o mérito de produzir uma forma mais política para o conceito - o comum, no singular - e de aproximá-lo mais efetivamente da tradição crítica. Em linhas gerais, o comum “se tornou a designação de um regime de práticas, lutas, instituições e pesquisas que abrem as portas para um futuro não capitalista” (Dardot e Laval, 2017, p. 18).

Tal como estou argumentando, Dardot e Laval propõem-se, então, a descrever o comum como um princípio político.

Os combates pela “democracia real”, o “movimento das praças”, as novas “primaveras” dos povos, as lutas estudantis contra a universidade capitalista, as mobilizações a favor do controle popular da distribuição de água não são eventos caóticos e aleatórios, erupções acidentais e passageiras, insurreições dispersas e sem objetivos. Essas lutas políticas obedecem à racionalidade política do comum, são buscas coletivas de formas democráticas novas (Dardot e Laval, 2017, p. 19).

Considerar o comum como um princípio estruturante das lutas contemporâneas, ainda conforme os autores, implica alguns exercícios de revisão conceitual. Dardot e Laval mapeiam três sentidos predominantes. O primeiro refere-se a uma perspectiva teológica e posiciona o comum como “uma finalidade suprema das instituições políticas e religiosas” (Dardot e Laval, 2017, p. 27), isto é, como um fundamento da ação ética acerca do bem comum. O segundo sentido, por sua vez, tem uma natureza jurídica e preocupa-se em classificar os bens que poderiam ser designados como comuns. O ar, a água e os bens naturais, por exemplo, desde a Idade Média, são considerados como bens não passíveis de serem apropriados individualmente. Por fim, o terceiro sentido diz respeito a uma perspectiva filosófica que, direta ou indiretamente, sugere uma vinculação entre o comum e o universal, isto é, supõe a possibilidade de pensar os elementos comuns à espécie humana. Importante salientar que Dardot e Laval argumentam que essas tendências se aproximam do naturalismo e do essencialismo.

Ampliando esta compreensão, então, os pensadores franceses defendem que “somente a atividade prática dos homens pode tornar as coisas comuns, do mesmo modo que somente esta atividade prática pode produzir um novo sujeito de direitos” (Dardot e Laval, 2017, p. 53). O comum não seria um bem, uma virtude ou uma característica compartilhada - derivaria de atividades práticas, de pessoas engajadas “numa mesma tarefa”.

O comum não é um bem, e o plural nada muda nesse aspecto, porque ele não é um objeto ao qual deva tender a vontade, seja para possuí-lo, seja para constituí-lo. O comum é o princípio político a partir do qual devemos construir comuns e ao qual devemos nos reportar para preservá-los, ampliá-los e lhes dar vida. É, por isso mesmo, o princípio político que define um novo regime de lutas em escala mundial (Dardot e Laval, 2017, p. 54).

O comum, assim definido, direciona-se para “uma questão de instituição” (Dardot e Laval, 2016, p. 313). Na entrevista anteriormente referida, Dardot e Laval argumentam que o importante “não é aquilo que é naturalmente bom, mas o que fazemos com que seja comum por um ato político, por um ato instituinte” (Dardot e Laval, 2016, p. 313). Seu horizonte político inscreve-se no âmbito da emancipação, ou seja, nas possibilidades de construir a si mesmo por meio da liberdade e da ação coletiva. Mais que isso, a instituição do comum pode conduzir à “emancipação como um projeto” (Dardot e Laval, 2016, p. 309).

Ao procurar ultrapassar a racionalidade política neoliberal - descrita originalmente na obra A nova razão do mundo -, os pensadores franceses buscam, em “Comum - ensaio sobre a revolução no século XXI”, a possibilidade de teorizar sobre um conceito que possa servir como instrumento de luta na atualidade. Em um exercício de atualização do pensamento de Marx, os autores estabelecem significativa interlocução com as teorizações sociais e com os movimentos sociais de nosso tempo. Suas reflexões sobre a atualidade de Marx remetem à potencialidade deste pensamento, na medida em que “ele é em si mesmo ativo ao produzir efeitos de inteligibilidade sobre o nosso mundo e, correlativamente, sobre a nossa situação no mundo” (Dardot e Laval, 2016, p. 301). Em outras palavras, um de seus principais méritos é a atualização “de um pensamento como pensamento”. Na próxima seção, procuro delinear algumas disposições curriculares que possam contribuir para uma agenda formativa direcionada ao comum.

O comum como um princípio curricular: quatro disposições para uma renovação pedagógica

Conforme argumentado nas seções anteriores, ao longo do século XX, o projeto da escolarização pública foi construído em torno do binômio individualização-socialização. Por caminhos variados, atravessamos o século discutindo se deveríamos privilegiar o individual ou o coletivo, a aprendizagem ou o ensino, a natureza ou a cultura, compondo significativas aporias pedagógicas em nossas faculdades de Educação. Vale lembrar que a escolarização foi democratizada para segmentos da população que, por meio de lutas políticas intensas, conquistaram o direito a frequentar a escola. O longo caminho da democratização, paradoxalmente, veio acompanhado de uma crise de sentido sobre a escolarização, como sinalizado na segunda parte do texto. Este cenário de crise adquiriu contornos perversos com o neoliberalismo, sendo capaz de articular-se com o neoconservadorismo: as escolas ficaram atreladas à pressão pelo desempenho acadêmico de seus estudantes e à pressa por inovação educativa.

Todavia, Dardot e Laval (2017) auxiliam a pensar que este cenário não é um destino fatal. Argumentam, com bastante perspicácia, que “uma das debilidades da esquerda crítica é que se conforma demasiadamente com fórmulas pré-fabricadas, denúncias superficiais e invocações estéreis” (Dardot e Laval, 2017, p.15). O campo progressista, sob esta argumentação, precisa sofisticar suas abordagens críticas à escola neoliberal e alargar sua capacidade crítica em busca de novos princípios; disso deriva sua proposição de retomada do conceito de comum como um princípio político. Aceitando este quadro conceitual e reconhecendo o seu potencial heurístico, agora é possível traçar algumas disposições conceituais que permitam repensar a agenda formativa da escola direcionada ao comum. Nos tópicos que seguem, apresento quatro disposições, de caráter curricular, que servem de impulsionadores para seguirmos apostando na escola e em seu potencial emancipatório. Nossa intenção, como já mencionado anteriormente, não se encontra em produzir novos agenciamentos conceituais, mas elencar potencialidades heurísticas para a composição da escola direcionada para o comum.

Ultrapassar o binômio individualização-socialização

Um primeiro aspecto a problematizar refere-se à centralidade atribuída na teoria educacional do século XX ao binômio socialização-individualização. Não restam dúvidas de que se trata de uma questão importante; entretanto, para avançarmos na construção da escola do comum, precisamos reorientar nossos propósitos educacionais na direção de narrativas mais plurais e comunitárias. A forma-escola que historicamente predominou colocou-nos diante da composição de uma instituição centrada em uma missão civilizatória, e, mesmo que tenhamos produzido avanços no último século, ainda percebemos a escola no interior de uma gramática unificadora: padrões únicos de organização do tempo e do espaço, currículos padronizados voltados ao desempenho acadêmico e modelos pedagógicos ainda centrados no mestre ou em arranjos representativos. Em outras palavras, o primeiro aspecto que considero oportuno para a escola do comum é a sua reconstrução no interior de um novo léxico ou, como afirmou Collet (2020), o seu redimensionamento a partir de uma gramática plural.

Um ponto de partida para a composição deste novo léxico poderia ser o reposicionamento dos estudos e das práticas centradas nas vozes dos estudantes. No âmbito dos estudos críticos, os trabalhos do professor Michael Fielding (2011; 2018) têm sido importantes para a elaboração de outros direcionamentos. Em suas elaborações, Fielding propõe que consideremos a noção de aprendizagem intergeracional direcionada para a democracia como forma de vida. Considero que esta abordagem pode pluralizar a gramática da escolarização, traçando horizontes de transformação no que se refere às injustiças e às desigualdades e ensaios pedagógicos voltados para narrativas pessoais e comunitárias.

Redefinir a dimensão pública da tarefa educativa

Acompanhando os movimentos internacionais mobilizados por diferentes associações, precisamos traçar novos marcos conceituais para a tarefa educativa, seja em sua dimensão pública, seja em suas possibilidades de renovação pedagógica. A crise climática, as migrações internacionais, as tecnologias digitais, o neoliberalismo e, mais recentemente, a condição pandêmica trouxeram novas inquietações para o planejamento e para o estudo das questões educativas. Uma primeira dimensão, junto a Westheimer (2015), coloca-nos diante da necessidade de compreender as visões predominantes sobre a cidadania nos programas escolares. Atualmente, ainda prevalecem visões direcionadas para a o cidadão pessoalmente responsável, para o cidadão participativo e para o cidadão orientado para a justiça social. Conforme o autor, cada uma destas três visões apresenta contribuições para a sociedade; no entanto, a escola precisaria contribuir para a formação do terceiro tipo, qual seja: “indivíduos que saibam analisar criticamente perspectivas múltiplas. Conseguem examinar estruturas sociais, políticas e econômicas e explorar estratégias para mudança que abordam as causas fundamentais dos problemas” (Westheimer, 2015, p. 474).

Com Biesta, de um prisma filosófico, somos convidados a alargar as relações entre democracia, cidadania e educação, deslocando-as para além das questões da coesão social e da integração. Em busca de uma redefinição da dimensão pública da tarefa educativa, defende o autor que a crise da democracia, experimentada atualmente no Ocidente, não diz respeito à falta de qualidades cívicas dos cidadãos; antes disso, deriva da “falta de oportunidades democráticas reais em que os cidadãos podem exercer sua subjetividade democrática” (Biesta, 2016, p. 21). Assim sendo, precisamos coletivamente redefinir os contornos da educação democrática: ultrapassando as preferências individuais (de modo que possamos seguir prestigiando as liberdades individuais) e dimensionando-as em novas formas de aprendizagem compartilhada.

Reconstruir a atmosfera de seleção dos conhecimentos a serem privilegiados

Uma pergunta que pode acompanhar-nos até este momento é: o que ensinará a escola do comum? Que saberes e experiências serão privilegiados? Sob uma perspectiva curricular, torna-se valioso indagar por aquilo que será ensinado e aprendido nas escolas, sobretudo no tempo que ora vivenciamos, em que as políticas são construídas na interface entre neoliberalismo e neoconservadorismo (Diez-Gutierrez, 2022). As últimas décadas, a despeito de seus avanços nas lutas sociais, revelam o advento de políticas educativas autoritárias que “mesclam neoliberalismo, neoconservadorismo, nacionalismo primário, racismo e xenofobia, desprezo aos pobres e mulheres e islamofobia” (Diez-Gutierrez, 2022, p. 15). O mais problemático, como argumenta o sociólogo Enrique Diez-Gutierrez, é que se trata de “um entorno social cuidadosamente planejado para desalentar a mobilização e a solidariedade coletiva” (Diez-Gutierrez, 2022, p. 21). Em tais condições, na busca pela construção de uma gramática mais plural, torna-se conveniente a procura por novos modos de relação com o saber (Charlot, 2020) ou mesmo por novas arquiteturas para a seleção dos conhecimentos escolares (Pacheco, 2019). Esta temática adquire potencialidades relevantes para os estudos educacionais que ocorrem no Brasil e na América Latina, particularmente as epistemologias emergentes em cenários decoloniais.

As lutas por justiça curricular, ensaiadas preliminarmente por Connell (1997), servem de inspiração para recolocar em discussão as questões do reconhecimento, da redistribuição e da participação dos estudantes, tal como evidencia Nancy Fraser em sua concepção triádica de justiça. Poderíamos pensar em uma instituição que garanta acesso a conhecimentos relevantes a todos os estudantes, que promova espaços de reconhecimento de suas experiências culturais e onde o diálogo e a escuta de suas diferentes vozes ocupem um papel privilegiado. Recuperando as elaborações de Bell Hooks, mencionadas anteriormente, parece que a promoção de uma “pedagogia engajada” oferece a oportunidade de, de forma radical, reconfigurar a atmosfera de seleção dos conhecimentos na escola. Tal como argumentado no decorrer deste texto, é momento de renovarmos nossas perguntas e de redesenharmos nossos agenciamentos democráticos.

Repactuar a sala de aula como objeto digno

Por fim, a quarta disposição curricular que gostaria de evidenciar neste ensaio teórico refere-se a uma necessária repactuação sobre a pertinência da aula como objeto digno da reflexão pedagógica. Como explicou Bell Hooks em obra já referida neste texto, as pedagogias críticas, ainda que denunciando a dimensão bancária da escolarização moderna, atribuem pouca legitimidade para o trabalho que acontece na aula. Em outras palavras, acompanhando a reflexão de Hooks na obra mencionada, formamos gerações de hábeis intelectuais capazes de denunciar os limites políticos e as condições opressoras na escola, mas que pouco se aventuram na composição de pedagogias engajadas. Os intelectuais críticos e o campo progressista, de maneira geral, precisariam repactuar os nossos compromissos com “as necessidades de nossos alunos, para podermos devolver à educação e às salas de aula o entusiasmo pelas ideias e a vontade de aprender” (Hooks, 2017, p. 23).

Opto pelo termo repactuação reconhecendo que temos a oportunidade, neste momento de crise do neoliberalismo em que é possível a emergência do comum, de redefinirmos coletivamente os nossos propósitos e nossas possibilidades de repensar a escola. A interrogação realizada por Ball e Collet (2021), citada anteriormente, é bastante provocativa, no sentido de examinar se a escola é capaz de contribuir para as mudanças sociais ou se ela é parte do problema. Esta questão também é discutida por Dussel (2022) ao considerar que a escola para o comum precisa fortalecer aquilo que nos aproxima para a convivência em um mundo compartilhado. Relendo Berlant, aponta que a escola requer processos de reaprendizagem e de desaprendizagem. Em suas palavras, “para poder fazer mundo, faz falta des-aprender o mundo do sujeito soberano e o indivíduo possessivo e desarmar a oposição entre controle e liberdade, aprender a habitar as ambivalências” (Dussel, 2022, p. 128). A escola do comum, parafraseando Viveiros de Castro, seria capaz de abrir espaço para as políticas da multiplicidade.

Considerações finais

Ao longo do presente ensaio teórico, procurei apresentar as disposições curriculares necessárias para que possamos seguir pensando sobre a escolarização contemporânea, por meio de uma gramática mais plural e voltada ao comum. Para tanto, inicialmente, foi preciso realizar, de modo preliminar e de caráter inconcluso, algumas breves digressões históricas para compreender os debates pedagógicos que predominaram no decorrer do último século. Particularmente no contexto de criação das faculdades de Educação e dos cursos de Pedagogia, adquiriram centralidade os debates sobre a socialização e a individualização, ora conduzidos pelos marcos da escola republicana francesa, ora delineados pela busca das experiências e aptidões individuais dos estudantes. De um modo geral, somos herdeiros de um pensamento educativo em que nossas políticas e práticas se assentam na busca por uma renovação das condições educativas (à luz da ciência, do progresso e da promessa da democracia). Todavia, apesar de sua ampla democratização, neste início de século XXI, experimentamos um sentimento de crise da escola em sua dimensão pública.

Na segunda seção, em uma pequena cartografia, foram percorridas três leituras contemporâneas que oferecem elementos para a composição de um diagnóstico no momento em que as racionalidades políticas do neoliberalismo têm predominado no campo educacional. Com a leitura de Bernard Charlot, a atenção dirigiu-se para as indefinições de uma concepção antropológica. De acordo com o autor, a crise de sentido da escola equivale às nossas atuais dificuldades em definir o que conta como humano. Na companhia de Gert Biesta, por outro lado, a ausência de um debate amplo sobre os propósitos educacionais adquire relevância, uma vez que experimentamos na escolarização um predomínio de modelos centrados em certa normatividade técnica. Acrescentou-se a essa cartografia o recente ensaio de Stephen Ball e Jordi Collet, que justificam a atual crise da escolarização nas próprias origens desta instituição, uma vez que está enraizada em tecnologias disciplinares. Com esses três estudos, conseguiu-se mapear a atual crise de sentido da escolarização, ainda que de modo preliminar; porém, considerei necessário ingressar nas lutas políticas em torno da escola, especialmente no contexto em que parecem emergir condições de possibilidade para o advento de uma nova gramática política - o comum.

Na busca pela compreensão do comum como um princípio político, na terceira seção, escolhi produzir uma aproximação da leitura social de Pierre Dardot e Christian Laval. Por um lado, a leitura dos pensadores franceses oferece ferramentas analíticas interessantes para o exame crítico da neoliberalização acentuada de nossas sociedades, sendo capazes de ponderar que não se trata de um destino fatal. Dessa maneira, por outro lado, é tarefa intelectual de nosso tempo o levantamento de alternativas, novos desenhos propositivos e novos arranjos conceituais que nos permitam seguir defendendo a emancipação como princípio de atuação e modo de vida. O comum como um princípio político leva-nos a acrescentar novas combinações: liberdade individual, emancipação, proteção, justiça social e outros saberes e experiências que favoreçam a construção de um novo léxico. A questão que fica é se este novo léxico será capaz de repensar ou oferecer alternativas críticas para a escolarização, o que foi explorado na última seção.

Por fim, aceitando o horizonte advindo do comum como um princípio político, foram apresentadas quatro disposições curriculares para uma agenda formativa direcionada à construção do comum. Ultrapassar o binômio individualização-socialização, redefinir a dimensão pública da tarefa educativa, reconstruir a atmosfera da seleção dos conhecimentos escolares e repactuar a sala de aula como objeto digno para as teorias críticas são as disposições apresentadas ao longo do ensaio. Cada uma destas disposições serve como ponto de partida para novas indagações sobre a escola do futuro e o futuro da escola, tal como têm sugerido os movimentos internacionais sobre esta temática. Como sinalizado na epígrafe escolhida para a abertura deste ensaio, ainda se aposta na reconstrução crítica da escola como projeto emancipatório; porém, como aprendemos com os escritos de Castoriadis, este projeto somente voltará a ser possível quando uma reconstrução ideológica radical puder se encontrar com um movimento social real.

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Recebido: 29 de Junho de 2022; Aceito: 14 de Novembro de 2022

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