Sumário: I. Introdução. II. O caso Venezuela: contextualização fática. III. A Venezuela perante os sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos. IV. A Opinião Consultiva solicitada pela Colômbia à Corte Interamericana de Direitos Humanos. V. Do regime jurídico interamericano aplicável ao caso. VI. Backlash Theory e os atos prarticados pela Venezuela. VII. Argumentos que corroboram a ineficácia do backlash praticado pela Venezuela. VIII. Das consequências jurídicas dos atos de backlash praticados pela Venezuela. IX. Considerações finais. X. Referências bibliográficas.
I. Introdução
Os ataques às instituições internacionais motivaram a realização do estudo sobre a teoria denominada backlash e como ela influencia a estabilidade, a efetividade e a eficácia precisamente do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos.
Recentemente, na América Latina, verifica-se uma corrente de quebra da cláusula democrática nos sistemas domésticos de alguns países, o que dá ensejo ao ataque às instituições interamericanas e internacionais, com a finalidade de enfraquecer o sistema e de rechaçar a proteção internacional dos direitos humanos para a perpetuação do poder autoritário.
O trabalho seguirá o método dedutivo, com a revisão bibliográfica e jurisprudencial para defender a ideia de que os ataques às instituições democráticas internacionais refletem a prática do backlash.
Inicialmente, o artigo fará a narrativa dos fatos envolvendo a Venezuela para efeito de contextualização da teoria mencionada, a fim de demonstrar que a postura daquele País tem a finalidade de enfraquecer a legitimidade do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos com a severa contestação de sua autoridade e capacidade, o que pode ser confirmado a partir da constatação da situação da Venezuela perante os Sistemas Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos, bem como perante o Tribunal Penal Internacional.
Na sequência, o trabalho analisará a relação que existe entre a Opinião Consultiva solicitada pela Colômbia à Corte Interamericana de Direitos Humanos com a postura da Venezuela de se retirar da OEA e de denunciar a Convenção Americana de Direitos Humanos e abordará quais são as consequências jurídicas dos atos de backlash praticados pela Venezuela.
Além disso, o trabalho afirmará que existem determinadas obrigações que são inderrogáveis para os Estados por decorrerem do contexto das normas de natureza jus cogens, do direito costumeiro e da transnacionalidade das relações travadas no âmbito da globalização.
O trabalho concluirá que, em que pese o Estado tenha o direito de se retirar de uma organização internacional e de denunciar um tratado internacional, seus atos unilaterais nem sempre alcançarão o efeito de exonerá-lo do cumprimento de suas obrigações em relação aos direitos humanos, se forem praticados em desrespeito às instituições democráticas domésticas e em razão de sua universalidade.
II. O caso Venezuela: contextualização fática
Desde de abril de 2017, a Venezuela tem presenciado protestos contra o regime do presidente Nicolas Maduro, denominado de “Plano Zamorra”, após a Suprema Corte assumir os poderes da Assembleia Geral e limitar as imunidades parlamentares, o que a oposição denominou de golpe, uma vez que o governo reorganizou a divisão dos poderes e deflagrou novas eleições.
Em 1.04.2017, o presidente Nicolas Maduro anunciou que iniciaria o processo para retirar a Venezuela da Organização dos Estados Americanos, depois que membros da Organização se reunirem para discutir a situação da Venezuela. Em 1.05.2017, após o anúncio do Presidente Maduro de que instituiria uma nova Assembleia Nacional Constituinte, para elaborar uma nova Constituição, houve uma sequência de protestos seguidos do anúncio de participação das forças oficiais da polícia e militares, bem como de grupos civis armados para conter as manifestações.
A eleição para a ANC foi realizada em 30.07.2017 e o presidente Maduro obteve as 545 cadeiras na nova Assembleia, o que foi criticado pela oposição, por outros países e por organizações internacionais, pela conotação fraudulenta. Fontes anunciaram que as forças de segurança dos Estados atuaram com força excessiva para controlar os protestos, o que resultou em mortes e pessoas feridas entre abril e julho de 2017. Além disso, protestantes foram levados às cortes militares e as pessoas presas foram vítimas de abuso e de tratamento desumano.
Em 20.05.2018, novas eleições foram realizadas e Maduro foi reeleito para mais um mandato de 6 anos, resultado que foi contestado sob alegação de fraude e de irregularidades. O Grupo Lima, composto por 14 Estados Latino-Americanos e pelo Canadá, decidiu não reconhecer a legitimidade do governo Maduro sob a alegação de que o governo não respeitou os standards internacionais para um processo democrático, justo, livre e transparente.
A crise econômica, política e financeira da Venezuela tem causado a migração involuntária dos venezuelanos, sendo que mais de 3,4 milhões de nacionais daquele país migraram para outros países próximos, especialmente Brasil e Colômbia, devido ao receio de ficar sem comida, sem remédio e sem acesso aos serviços sociais básicos de seu país.1
A situação é tão grave que chamou a atenção dos Sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, conforme será analisado a seguir.
III. A Venezuela perante os sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos
A situação de degradação dos direitos humanos na Venezuela despertou a preocupação do Alto Comissariado das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, que publicou Resolução ressaltando as violações aos direitos humanos e abusos cometidos nos protestos que ocorreram na Venezuela de 01.04 a 31.07.2017.2
O Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas aprovou em 27.09.2019, em Genebra, uma Resolução para criar um órgão independente para investigar os crimes cometidos na Venezuela desde 2014, com o objetivo de documentar abusos e violações visando a responsabilização internacional do Estado.3 Consta que a missão trabalhará em cooperação com o Tribunal Penal Internacional para compartilhamento de provas, informações e documentos, uma vez que o caso já está em Investigação Preliminar perante o Tribunal Penal Internacional, desde fevereiro de 2018.4
Por sua vez, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), órgão autônomo e independente, pertencente ao sistema interamericano, elaborou o relatório sobre a situação dos direitos humanos na Venezuela, que foi aprovado em 31.12.2017, o que foi motivado pela grave deterioração dos direitos humanos no país e pela grave crise política, econômica e social que se intensificou em 2017, com a indevida ingerência do Poder Executivo nos demais poderes, com impacto no princípio da separação dos poderes.5
Ao elaborar o relatório, a CIDH analisou detalhadamente a situação dos direitos humanos no país frente ao Sistema interamericano de proteção aos direitos humanos.6 Concretamente, a CIDH centrou a sua análise nas obrigações contidas na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948 e na Carta da OEA do mesmo ano, bem como em outros tratados interamericanos, o que resultou na elaboração de algumas recomendações.7
Por outro lado, a situação de degradação dos direitos humanos na Venezuela chamou a atenção e despertou a preocupação do Alto Comissariado das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, que publicou uma Resolução8 ressaltando as violações aos direitos humanos e abusos cometidos nos protestos que ocorreram na Venezuela de 1.04 a 31.07.2017. Além disso, o Conselho Permanente da OEA concordou em não reconhecer a legitimidade do governo no período de Nicolas Maduro a partir de 10.01.2019.9
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborou, ainda, a Resolução nº 2/2018 sobre a situação da Venezuela, onde ressalta a grave e generalizada ausência de proteção do Estado e a violação dos direitos fundamentais dos cidadãos venezuelanos.10
Além disso, a situação da Venezuela já é objeto de análise pelo Tribunal Penal Internacional, como se pode verificar do Relatório de Atividades de Exames Preliminares, em exame desde fevereiro de 2018, após o Gabinete da Procuradora ter recebido 110 comunicações que pleiteiam a aplicação do artigo 15 do Estatuto de Roma de 1998 em relação aos eventos que vem ocorrendo desde abril de 2017 na Venezuela.11 É preciso ressaltar que o Tribunal Penal Internacional tem jurisdição sobre o caso uma vez que a Venezuela depositou seu instrumento de ratificação ao Estatuto de Roma em 7.6.2000.
IV. A Opinião Consultiva solicitada pela Colômbia à Corte Interamericana de Direitos Humanos
A República da Colômbia solicitou, em abril de 2019, Opinião Consultiva12 à Corte Interamericana de Direitos Humanos, com fulcro no artigo 64.1 do Pacto de San José da Costa Rica,13 uma vez que é Estado-membro da OEA e Estado-parte da Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como em conformidade com as estipulações dos parágrafos 1º e 2º do artigo 70 do Regulamento da Corte.14
A consulta se refere às obrigações em matéria de direitos humanos e aos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos existentes nos países que pretendem abandonar o sistema interamericano de direitos humanos ao denunciar a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Carta da Organização dos Estados Americanos com a tentativa de deixar de ser membros da organização internacional regional.15
A Declaração Americana é o texto que determina quais são os direitos humanos a que se referem a Carta da OEA para os Estados membros da Organização, além de constituir fonte das obrigações internacionais para estes. Por outro lado, a Convenção Americana é a fonte das obrigações para os Estados partes que não se liberam das obrigações da Declaração por serem membros da OEA.16
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos estabelece que a competência consultiva da Corte constitui um método judicial alternativo para a proteção dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, de modo que referida competência não pode resultar numa especulação puramente acadêmica sem a previsibilidade de aplicação a situações concretas que justifiquem o interesse na emissão do parecer.17
Desse modo, a situação concreta que justifica a emissão do Parecer Consultivo pela Corte Interamericana de Direitos Humanos é o movimento de países latino-americanos no sentido de se desligarem do sistema interamericano, com a denúncia da CADH, bem como da Carta da OEA, o que decorre da prática denominada backlash, conforme será demonstrado no artigo.18
O enfraquecimento da eficácia e da efetividade dos documentos interamericanos ora apontados fortalece os movimentos de contestação e de negação da legitimidade e da autoridade das instituições interamericanas. Por isso, oportuno estudar o regime jurídico interamericano aplicável ao backlash em estudo.
V. Do regime jurídico interamericano aplicável ao caso
A Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948 é o documento que rege as obrigações dos Estados pertencentes à Organização dos Estados Americanos e que estabelece seus direitos e deveres, ou seja, suas obrigações.19
O preâmbulo da Declaração preconiza o sentimento de que a finalidade principal de todas as instituições políticas e jurídicas é a proteção dos direitos essenciais do homem e a criação de circunstâncias que permitam alcançar a felicidade e que os direitos essenciais do homem não decorrem do vínculo jurídico-político que o ser humano tem com determinado Estado, mas sim de sua condição humana.
Além disso, a Resolução concilia a consagração americana dos direitos do homem com as garantias oferecidas pelos regimes domésticos como um sistema inicial de proteção aos direitos humanos, ressaltando, em seu preâmbulo, a liberdade e igualdade em direitos e dignidade de todos os seres humanos, bem como a fraternidade.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que os direitos fundamentais garantidos na Carta da OEA são todos aqueles previstos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948, que estabelece direitos e deveres para todos os Estados-membros da OEA, principalmente o dever de respeitar os direitos humanos dos seus cidadãos garantidos pela Declaração Americana.20
O artigo 1o. da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948 protege o direito à vida e a Comissão Interamericana tem aplicado o conceito de jus cogens para abranger determinados direitos previstos na Declaração, que é considerada soft law. Assim, a Comissão Interamericana pode emitir Recomendações em relação a determinado Estado e, ao constatar que um Estado violou a Declaração, deve iniciar o monitoramento.
A propósito, o artigo 1 (2) (b) do Estatuto da CIDH estabelece que o órgão tem a autoridade para administrar a Declaração Americana em relação aos Estados-membros não pertencentes à Convenção Americana, inclusive em relação aqueles que a denunciaram, caso em que os Estados continuam obrigados a certos direitos decorrentes da Declaração Americana.21
Assim, se um Estado denuncia a Convenção Americana, os direitos humanos dos cidadãos continuam protegidos pela Declaração Americana. Entretanto, necessário se faz questionar o que ocorre com os direitos humanos e com a aplicação dos standards decorrentes da Declaração Americana quando o Estado denuncia a Carta da OEA, o que será debatido em capítulo apropriado.
Outro documento interamericano a ser interpretado pela Corte no Parecer Consultivo, que compõe o regime jurídico decorrente do sistema interamericano, é a Carta da Organização dos Estados Americanos, documento que tem como objetivo fornecer ao homem uma América, terra de liberdades e ambiente favorável ao desenvolvimento de sua personalidade para o convívio em paz e com respeito à soberania, independência, igualdade e direito, com base na solidariedade americana e respeito aos direitos essenciais do homem.22
A Carta da OEA também preconiza a cooperação internacional e o bem-estar de todos, bem como a ideia de que os direitos fundamentais da pessoa humana independem de raça, nacionalidade, credo ou sexo, em decorrência do princípio da igualdade. O documento ainda prevê a liberdade dos Estados para o exercício de sua soberania, desde que com respeito aos direitos da pessoa humana e aos princípios da moral universal.
Por sua vez, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 é o documento interamericano que tem como fundamento os princípios da democracia, da liberdade pessoal, da justiça social, do respeito aos direitos essenciais do homem e da proteção internacional.23 A Convenção ainda tem fundamento no valor de que o ser humano só realiza o seu ideal se estiver livre da miséria e do temor, realidade que só se alcança com a prevalência dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos.
Além disso, a Convenção em apreço deve ser interpretada de modo a não suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades por ela reconhecidos, nem os direitos e garantias inerentes ao ser humano ou que decorram da forma democrática e representativa do governo.
O artigo 78 da Convenção Americana estabelece o direito de o Estado denunciar a Convenção, o que, no entanto, não atinge atos pretéritos ao ato unilateral. Entretanto, referida denúncia deve ser feita em atenção em consonância com os standards interpretativos da Convenção e dos demais documentos interamericanos, conforme será detalhado oportunamente.24
A prática do backlash visa enfraquecer a legitimidade do regime jurídico decorrente do sistema interamericano com o intuito de fomentar o raciocínio de que só se aplicam aos Estados as regras decorrentes da manifestação de sua vontade como decorrência de sua soberania estatal, o que não se aplica em relação aos comportamentos que estão dentro do contexto dos interesses da humanidade, o que será explicado a seguir.
VI. Backlash Theory e os atos praticados pela Venezuela
O contexto fático da Venezuela demonstra que a democracia global tem sido desafiada pela resistência dos Estados em relação às normas, procedimentos e instituições de governança global, com a ameaça dos Estados de retirada das organizações internacionais ou de denúncia dos tratados internacionais, com o non-compliance, com o desrespeito às obrigações internacionais e com a recusa em implementar os julgamentos dos sistemas regionais de direitos humanos, fenômeno que vem sendo denominado de backlash pelos doutrinadores, o que atinge os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos e os ideais de justiça global.25
Referida postura atinge não só os sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, bem como os ideais de justiça global incorporados pelos sistemas internacionais, especialmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como uma forte resistência ou reação contra a efetividade do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.26
O Dicionário Merrien Webster define backlash como “a sudden violent backward movement or reaction” e como “a strong adverse reaction (as to a recent political or social development)”. No mesmo sentido, Jane Manbridge e Shauna Shames definem backlash como “the use of coercive power to regain lost power as capacity”. 27Dessa forma, pode-se afirmar que backlash refere-se a um processo de resistência dinâmico que vai desde a objeção, passa pela contestação, pela resistência, até desembocar num forte movimento que vai além das reações ordinárias anteriormente citadas.
Pode um Estado, portanto, praticar o backlash contra uma instituição internacional, em especial contra um tribunal internacional ao questionar sua efetividade, ao não adaptar seu ordenamento doméstico à instituição, ao não observar um julgamento, ou ao contestar sua autoridade.28
No entanto, a prática do backlash não se caracteriza apenas por uma contestação ou reação, que são práticas ordinárias de crítica a um julgamento ou a uma norma em particular, mas sim através de uma resistência sistemática e intensa contra a autoridade de uma instituição internacional ou tribunal internacional. São atos que vão além da resistência e visam reduzir a autoridade, a competência e a jurisdição da Corte.29
Um Estado autoritário só respeitará um sistema internacional de proteção aos direitos humanos se o custo de sua permanência no sistema não atingir sua soberania, não atacar o seu regime e não dificultar sua adaptação, caso contrário, o estado iniciará a prática do backlash, como forma de retirar a legitimidade de uma instituição ou de um tribunal internacional, a exemplo da Rússia em relação à União Europeia, dos EUA em relação ao Tribunal Penal Internacional, no caso Afeganistão, e do Brasil em face da Corte Interamericana em relação ao caso Gomes Lund.
Assim, a Venezuela inicia a prática do backlash quando noticia a sua retirada do sistema interamericano em 28.04.2017 e quando denuncia a Convenção Americana de Direitos Humanos em 10.09.2013, uma vez que a sua permanência no sistema passou a gerar um custo além de suas expectativas, de forma a impedir que o regime autoritário se perpetuasse no poder.
Situação semelhante foi a de Trinidad & Tobago, do Perú, e da República Dominicana, mas cada qual com intensidades e propósitos diferenciados. No caso de Trinidad & Tobago, não se pode afirmar que houve a prática do backlash, uma vez que a contestação se dirigiu à aplicação de uma norma específica e não à existência da instituição. Em se tratando do Perú, pode-se afirmar que houve a prática de resistência contra a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com a denúncia da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, em razão de mudanças na política doméstica do país, na era Fujimori. Quanto à República Dominicana, é possível afirmar que ocorreu efetivamente o backlash, uma vez que a resistência ao caso da expulsão dos haitianos não ficou restrita apenas ao julgamento, mas atingiu a estrutura e a autoridade da Corte.30
Assim, importante esclarecer que o backlash diferencia-se da mera contestação por parte dos Estados a determinadas normas ou ao cumprimento de determinados julgamentos, mas avança para alcançar a autoridade das instituições internacionais, com a finalidade de atingir e reduzir a sua legitimidade, enfraquecendo, consequentemente, a concretização dos direitos humanos em determinado sistema.31
Foi exatamente o que ocorreu no caso Venezuela, em que a retirada do sistema interamericano e a denúncia à Convenção decorreram de uma postura sistemática e contumaz do Estado no sentido de atacar a autoridade do sistema para vingar o seu estado autoritário, exonerando-se da responsabilidade de proteger, observar e concretizar os direitos humanos naquele país.
Por isso, a prática do backlash pela Venezuela contra o sistema interamericano não é somente uma consequência da implantação do regime autoritário no país, mas também configura um ataque ao sistema interamericano de direitos humanos, que se viu desafiado para manter sua efetividade e autoridade perante os demais países da América Latina ainda tão frágeis na consolidação do Estado Democrático de Direito.
Logo, o backlash da Venezuela não pode ser tolerado pelo sistema interamericano de proteção aos direitos humanos sob pena de se criar um efeito dominó que se expandirá para outras democracias forjadas, conforme anunciado por José Saramago.32
Logo, os atos praticados pela Venezuela não acarretam a consequência desejada de exonerar o Estado do cumprimento das obrigações decorrentes dos direitos humanos, devido à implicação das normas jus cogens e do direito costumeiro, além da possibilidade de aplicação da tese do direito transnacional, do direito cosmopolita e do princípio da cooperação, conforme será analisado a seguir.
VII. Argumentos que corroboram a ineficácia do backlash praticado pela Venezuela
Um dos argumentos mais relevantes para corroborar a afirmação de que a Venezuela pratica backlash e que tais atos não surtem efeitos em relação aos direitos humanos é a norma de natureza jus cogens.
As normas de natureza jus cogens33 representam o new jus gentium do direito internacional da humanidade e se estendem para todo o corpus juris do direito internacional contemporâneo, projetando-se, para o direito doméstico e invalidando qualquer medida ou ato incompatível com ela. São normas que, pela sua natureza inderrogável, têm incidência sobre as fundações de um direito internacional universal, sendo a base do novo jus gentium.34
Para a proteção dos seres humanos, as normas jus cogens integram o universo conceitual do direito internacional contemporâneo e consagram a visão universalista de que as normas cogentes não derivam da vontade dos Estados, mas sim da consciência humana, ou seja, da opinio juris communis de todos os sujeitos de direito internacional, estados, organizações internacionais, seres humanos e a humanidade como um todo, o que reflete a humanização do direito internacional.35
As normas de natureza jus cogens atendem à necessidade mínima de verticalização da ordem jurídica internacional, em especial da soberania estatal para efeito de se alcançar a proteção e a concretização dos direitos humanos. Referida verticalização se dá no sentido de transcendência do direito dos tratados e das regras de responsabilização dos Estados, alcançando o direito internacional geral e os fundamentos da ordem jurídica internacional, o que ficou ressaltado no artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, na Opinião Consultiva da Corte Internacional de Justiça de 1951 e na Opinião Consultiva nº 18 da Corte Interamericana de Direitos Humanos.36
O conteúdo das normas jus cogens, portanto, não está limitado aos tratados internacionais, mas, ao contrário, está expandindo numa dimensão vertical, na interação entre as ordens legais internacional e nacional, invalidando todo e qualquer ato legislativo, administrativo ou medida judicial no âmbito do direito doméstico dos Estados que a desautorize.
Além disso, são normas que asseguram a absoluta proibição de violação dos direitos fundamentais da pessoa humana e que estão conectadas com os valores superiores compartilhados pela comunidade internacional. Por isso, o jus cogens emana da noção de ordem pública do direito internacional e da prevalência do jus necessarium sobre o jus voluntarium.37
Outro argumento relevante para confirmar a tese da ineficácia dos atos de backlash nos direitos humanos é a necessidade de os Estados realizarem o controle de convencionalidade, com a compatibilização vertical das leis ou dos atos normativos do poder público com as Constituições nacionais e com os tratados internacionais de direitos humanos, conforme se extrai da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 ao estabelecer que os Estados devem tomar todas as medidas necessárias para conferir eficácia a referidos tratados internacionais, sejam ditas medidas políticas, administrativas ou legislativas, de acordo com o princípio da boa-fé e com o dever de devida diligência.38
No mesmo sentido, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 estabelece, em seu artigo 2o., o dever de devida diligência como um dever decorrente da postura dos Estados, em todas as suas esferas, em realizar e concretizar as obrigações assumidas internacionalmente, a fim de evitar danos irreparáveis às vítimas de supostas violações de direitos humanos.39
Neste sentido, interessante ressaltar o pensamento de Gonzalo Aguilar Cavallo que define o controle de convencionalidade como o ato de controle que o juiz nacional efetua para estabelecer a conformidade da norma interna com a norma internacional, bem como com os tratados internacionais perante os quais o Estado se obrigou.40
Assim, é possível afirmar que, para alcançar a justiça da decisão, o magistrado deverá compreender a lógica da dupla compatibilidade vertical material que significa que as fontes internacionais e nacionais devem dialogar entre si para solucionar a antinomia entre o tratado e a lei interna, de modo que o direito interno não justifique o descumprimento do direito internacional.41
A aplicação do controle de convencionalidade, portanto, contribui para a criação do bloco de convencionalidade, que é composto por um conjunto de normas, regras e princípios que podem ser utilizados para a realização do controle de convencionalidade. No caso do Brasil, existe um bloco de convencionalidade que contém os elementos a serem aplicados pelo intérprete da lei ao caso concreto, como, por exemplo, tratados internacionais de direito humanos, as normas constitucionais, a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, as decisões da Corte Internacional de Justiça, dentre outros tribunais e órgãos.42
É nessa linha que se pode afirmar que os tratados internacionais de direitos humanos têm cláusulas de diálogo que condizem com a abertura dos Estados ao direito supranacional, a exemplo do que prevê a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 29, ao autorizar a intercomunicação e a retroalimentação entre o direito internacional e o interno, segundo o critério dialógico idealizado por Erik Jayme.43 Para o autor, o diálogo das fontes é um sistema que resolve os conflitos oriundos da fragmentação do direito internacional, que se intensificou com sua proliferação normativa gerando antinomias que afetaram a coerência do direito internacional.44
É nesse sentido, que o pensamento de Lauterpacht merece ser destacado no sentido de que a passagem das normas de coexistência para a cooperação e a transição de um direito internacional de base contratual para um direito de cunho objetivo, com o respeito à vontade da comunidade internacional, ensejou a necessidade de releitura do princípio do pacta sunt servanda.45
Assim, como asseverou Christian Tomuschat, as atividades estatais têm repercussão para além das fronteiras e a limitação da soberania absoluta tem base em fundamentos morais que devem ser preservados a fim de se assegurar um grau mínimo de civilização para a humanidade para a paz e a fruição dos direitos humanos, e, nesse contexto, Paul Guggenheim afirma que existem normas que não se referem à vontade dos Estados, uma vez que existem costumes internacionais, que obrigam os Estados.46
Nesse sentido, haveria um monismo necessário, que não propõe a sobreposição do direito interno sobre o internacional ou vice-versa, mas sim, que deve se conformar com a comunidade internacional atualmente imperante, de modo que as fontes dialoguem entre si, no sentido de consolidar a prevalência dos direitos humanos, com a vitória do jusnaturalismo sobre o voluntarismo.47
O direito costumeiro também poderá ser utilizado como um forte argumento para afirmar que a Venezuela não está exonerada do seu dever de cumprir e respeitar os direitos humanos, mesmo diante de sua retirada da OEA e da denúncia da Convenção Americana de Direitos Humanos, uma vez que os tratados internacionais e o direito internacional costumeiro são as duas principais fontes do direito internacional que têm força obrigatória diferenciada, enquanto os tratados obrigam os Estados parte, um costume não escrito obriga todos os Estados.48
Assim, a prática progressiva da regra prevista num tratado pode desenvolver uma regra costumeira que, pela teoria clássica, conjuga o elemento objetivo, a opinio juris dos Estados, com o elemento subjetivo, a crença na lei ou na sua necessidade e com o core right de Cassese.49
Nesse sentido, Kai Ambos explica que, de acordo com o direito consuetudinário internacional desenvolvido sobre as bases do direito de Nuremberg, uma conduta não escrita pode ser punida, se ela era punível segundo os princípios gerais de direito imperantes na comunidade internacional,50 o que conduz à compreensão de que um costume pode ser universal e obrigar os Estados com a sua interpretação conjunta com os princípios gerais de direito, que podem ser utilizados para corroborar a existência ou não de um costume internacional, de modo que referida combinação poderia consolidar a existência de uma nova regra de direito internacional.51
Assim, se for o entendimento da comunidade internacional que determinadas condutas dos Estados devem estar de acordo com o direito costumeiro internacional, por refletirem o contexto do core right do direito internacional dos direitos humanos, estará formado o direito costumeiro internacional que autoriza os tribunais internacionais a responsabilizar internacionalmente os Estados pelo seu descumprimento.
No caso da opinião consultiva em apreço, conforme já foi salientado, o Estado pode se valer de sua soberania nacional e denunciar um tratado ou se retirar de uma organização internacional regional, mas tais atos restritos ao âmbito da manifestação da vontade dos Estados não estarão aptos a gerar o efeito de exonerar o Estado do cumprimento das normas de natureza jus cogens e do costume internacional consagrado, o que pode ensejar a sua responsabilização internacional perante os tribunais internacionais competentes.
VIII. Das consequências jurídicas da prática dos atos de backlash praticados pela Venezuela
Conforme salientado, o artigo 78 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 estabelece a possibilidade de um Estado denunciar um tratado52 caso em que, as obrigações dos Estados, antes do ato unilateral de seu afastamento, persistem e geram responsabilização à data da extinção da obrigatoriedade da denúncia. Além disso, a denúncia da Convenção não atinge os efeitos de outro tratado internacional regional.
Ainda é relevante destacar que, de acordo com a Convenção Americana, a denúncia, remoção, restrição ou regulação de direitos deve estar revestida de legalidade de acordo com o interesse público, de modo que a falta de um ato legal pode fazer com que a denúncia seja negada se for revestida de manifesta violação das regras fundamentais de direito doméstico.53
Logo, se a denúncia for realizada sem a observância do processo constitucional doméstico, será manifestamente inconstitucional, por violar previsões de direito constitucional fundamentais e, se for realizada sem o compliance com a Convenção Americana de Direitos Humanos, será inconvencional e o ato unilateral do Estado não surtirá o efeito esperado.54
Além disso, a denúncia prevista no artigo 78 da Convenção Americana deve ser interpretada de acordo com o artigo 31.1 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, com o artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos, de acordo com a Opinião Consultiva nº 2 sobre os Efeitos das Reservas para a entrada em vigor da Convenção Americana de Direitos Humanos e de acordo com o artigo 62 (3) da CADH que, em conjunto, indicam que a Corte tem competência para determinar a validade da denúncia, com ou seja, no seu contexto, objeto e objetivo, vedando a interpretação no sentido de suprimir ou restringir o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção e de acordo com a prática de outros instrumentos de direito internacional de direitos humanos quando interpretam outros tratados de proteção aos direitos humanos, conferindo-se à Corte a competência para se manifestar sobre a validade da denúncia.55
Dessa forma, o artigo 78 da CADH deve ser interpretado de maneira a garantir os direitos materiais previstos na Convenção, buscando o cumprimento de seus standards, pois esta tem como objeto e propósito a proteção dos direitos individuais contra atos que os tornem inefetivos ou ilusórios. Logo, a denúncia à Convenção só pode ser válida se o Estado que a pretende, cumprir com todas as suas obrigações perante os indivíduos sob sua jurisdição para evitar que a denúncia represente uma transgressão à Convenção.56
Sobre a retirada da Organização, o artigo 143 da Carta da OEA estabelece que a Carta continuará válida após dois anos do recebimento da denúncia do Estado.57 Logo, o Estado deixará de pertencer à OEA depois de cumprir com a totalidade das obrigações oriundas da presente Carta, caso contrário, a retirada não se concretizará.58
Além dos aspectos legais envolvendo a retirada da organização e previstos na Carta da OEA, ainda é preciso acrescentar que referida retirada é difícil de ser concretizada em uma sociedade globalizada, em que os Estados atuam em cooperação internacional e, além disso, na qual os atos praticados por um Estado ultrapassam as fronteiras porosas e frágeis, gerando efeitos no território de outros Estados, a exemplo da migração.
A tese do direito transnacional contribui para a compreensão da ideia acima exposada ao defender a consideração da soberania estatal além de sua acepção tradicional e ao propor a reconsideração da compreensão tradicional do princípio da territorialidade, que não se aplica perfeitamente ao contexto transnacional, e assinala que a jurisdição de um Estado seja exercida extraterritorialmente para ensejar a responsabilização internacional do indivíduo que propagar ofensas aos direitos humanos.59
Entretanto, no âmbito transnacional, outros critérios devem ser adotados para o exercício da jurisdição por parte de um Estado e, mesmo que se tratasse apenas de direito internacional, já seria possível afirmar que o Estado não é mais absoluto e pleno no exercício de sua jurisdição, uma vez que existe o interesse internacional em prol dos direitos humanos, o que faz com que os Estados sejam persuadidos a aceitar a jurisdição de uma justiça internacional, podendo-se falar em princípio da territorialidade objetiva.60
O direito transnacional, portanto, distribui a jurisdição de maneira mais proveitosa para as necessidades e conveniências de todos os membros da comunidade internacional, ao envolver instituições de diferentes países, bem como as instituições pertencentes ao sistema jurídico internacional e aos órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos.
Além disso, o Direito Cosmopolita, também corrobora o entendimento de que a atuação de um Estado se dá de forma cooperada e que seus atos devem ser considerados e avaliados de acordo com os interesses da humanidade e independentemente de seus interesses pessoais. O direito cosmopolita se destina a proteger a emergência da sociedade civil global e tem uma acepção que é compatível com uma espécie de federação global dos Estados,61 que pressupõe a dicotomia entre a visão estatocêntrica e a visão cosmopolita, sendo que a primeira enfatiza a nação, enquanto que a segunda, tem o foco no direito global.62
Nesse sentido, para Thomas Pogge, o cosmopolitismo legal está fundado numa ordem global em que todos são cidadãos de uma república universal, com direitos e deveres equivalentes. Por sua vez, o cosmopolitismo moral implica necessariamente o respeito mútuo, na medida em que todos têm uma estatura global com uma unidade moral com princípios fundamentais de justiça.63
O direito cosmopolita, portanto, se refere a regras que reconhecem standards legais para todos igualmente, sem abolir o aspecto nacional e surge do lado de fora das fronteiras dos Estados. Assim, o contrato social cosmopolita consolida seus ideais nas obrigações de cidadania, para a cooperação social, possibilitando que as pessoas exerçam seus direitos fundamentais em qualquer lugar do mundo.64
Logo, a retirada de um Estado da OEA não se consolidará diante da tese do direito transnacional e do direito cosmopolita, pelos fundamentos acima explicitados.
IX. Considerações finais
A pesquisa ora realizada possibilitou concluir que embora um Estado denuncie a CADH, não estará exonerado do dever de respeitar os direitos humanos dos indivíduos sob sua jurisdição, em sentido amplo, devido ao contexto das normas jus cogens e ao costume internacional que considera os direitos humanos como mínimo necessário para a manutenção da dignidade humana.
Além disso, a denúncia não surtirá efeitos se a decisão do Estado em exercitar referido direito não decorrer da expressão da democracia e do respeito aos documentos interamericanos mencionados na manifestação. Assim, se a decisão de denunciar a CADH não for a verdadeira expressão da vontade de um povo, esta não operará os efeitos esperados pelo Estado denunciante.
Se o Estado que pretende se retirar da organização internacional não cumprir com as obrigações decorrentes da Carta da OEA, sua retirada não se concretizará e os demais Estados membros da OEA têm o dever de devida diligência em exigir que os Estados respeitem o paradigma interamericano para proteção e efetivação dos direitos humanos no sistema interamericano, em decorrência da tese da transnacionalidade e do direito cosmopolita.
Os atos de backlash praticados pela Venezuela não surtem o efeito esperado, uma vez que refletem a prática de simulação por aquele país com o intuito de ofuscar a ofensa e o desrespeito aos direitos humanos em seu território.
Assim, os demais países, em sistema de cooperação internacional, de acordo com o direito transnacional e cosmopolita podem exigir que outros Estados respeitem os direitos humanos e os indivíduos podem se utilizar dos mecanismos de proteção aos direitos humanos existentes nos sistemas universal e regional, como os comitês dos tratados internacionais, bem como o sistema de peticionamento individual do sistema interamericano para concretizar os direitos humanos.