Introduccion
Os estudos históricos sobre o trabalho indígena na América portuguesa não alcançaram até agora o mesmo grau de desenvolvimento e sistematicidade que se verifica, por exemplo, entre os investigadores do mundo hispano-americano. Por mais que alguns autores já tenham se esforçado, em maior ou menor medida, para explicitar a presença e o papel da escravidão indígena (séculos XVI-XVIII) na gênese das estruturas sociais e econômicas do Brasil, ainda é predominante a noção de que a exploração do trabalho indígena não passou de uma espécie de experiência circunstancial e, até mesmo, episódica, antecedente passageiro do fenômeno laboral maior (esse sim historicamente central e estruturante) que foi a escravidão dos africanos.
Progressivamente, no entanto, compreende-se que o emprego do trabalho forçado das populações ameríndias conviveu íntima e complementarmente, em diferentes regiões da América portuguesa, com o cativeiro negro, sem necessariamente decair ou desaparecer diante do avanço deste. Além disso, cada vez se conhece com maior profundidade as realidades regionais em que o uso sistemático do braço indígena foi corrente durante muitos séculos. Isso é particularmente claro no que se refere aos exemplos das fronteiras amazônica, a norte, e paulista, a sul. Com o objetivo de contribuir para a ampliação desse campo de pesquisa ainda em desenvolvimento na historiografia brasileira, o presente artigo se debruça especificamente sobre a região de São Paulo, lançando mão de um exame simultaneamente histórico e historiográfico do trabalho indígena, propondo novas categorias de análise e, com base nelas, sugerindo uma periodização orientada pelo critério das tensões dialéticas entre continuidade e ruptura nos padrões de exploração do braço nativo na perspectiva da longa duração.
O trabalho indígena na historiografia paulista
A tradição historiográfica nem sempre dedicou às diferentes modalidades do trabalho indígena em São Paulo colonial a atenção que a sua reconhecida dimensão e sua importância histórica merecem. Quando, entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, começou a se estabelecer, desenvolver e consolidar uma historiografia regional paulista disposta a se debruçar sobre as evidências do passado a fim de buscar respostas para certas questões de sua época, a exploração do trabalho das populações indígenas tendeu a ser compreendida como uma espécie de consequência menor da ação dos “grandes” agentes da conquista (especialmente os assim chamados “bandeirantes”, alvos de uma exaltação romântica naquele tempo).
Membros eruditos da ascendente elite intelectual, política e econômica de São Paulo, homens como Afonso d’Escragnolle Taunay, Antônio de Toledo Piza, Paulo Prado, Washington Luís, José de Alcântara Machado, Theodoro Fernandes Sampaio, Belmonte e Alfredo Ellis Jr. projetaram sobre a sociedade colonial os seus próprios valores e concepções republicanas de “ordem”, “liberdade”, “autonomia”, “bravura” e “civilidade”. Com base nessas ideias, forjaram uma identidade histórica e afirmaram-na com base em um processo de invenção de tradições no qual havia pouco espaço para a rememoração do emprego compulsório da mão de obra ameríndia. Esses homens, via de regra provenientes de influentes famílias proprietárias de terras e cabedais na região, organizavam-se em torno do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP, fundado em 1894), no qual construíram um espaço comum de poder, sociabilidade e circulação de informações, núcleo hegemônico da produção histórica e ideológica local.
Inspirados na dupla tradição metodológica empirista e positivista que vigoravam então nos principais centros acadêmicos da Europa, esses autores compartilhavam, grosso modo, uma concepção unilinear do tempo histórico e uma noção que hoje podemos classificar como monolítica acerca do estatuto epistêmico dos “fatos” do passado. Em suas produções, os assuntos políticos predominavam em detrimento de outros âmbitos da vida social, da mesma forma que se encarava o texto escrito como evidência fidedigna dos acontecimentos. Nessas condições, tais historiadores não raro assumiram de maneira imediata os discursos e as formulações ideológicas presentes na documentação que escolheram para embasar os seus escritos, sobretudo em se tratando de documentos produzidos por membros da elite colonial da qual parte deles, efetivamente, descendia1.
Como resultado, o trabalho forçado das populações indígenas do período colonial permaneceria sendo, por essa tradição historiográfica, ora ofuscado e/ou ignorado, ora relativizado e/ou justificado como instrumento necessário para a civilização e a evangelização dos grupos nativos2. Exceção notável pode ser encontrada nas poucas páginas dedicadas ao assunto em Vida e Morte do Bandeirante (1929), de Alcântara Machado, texto no qual se chegou a esboçar, talvez pela primeira vez, uma perspectiva crítica diante da experiência da escravidão nativa3.
Foi somente a partir da década de 1950 que os estudos de história regional paulista se afastaram do compromisso direto com a memória das elites tradicionais, deixando de ter como núcleo primordial os gabinetes políticos e os institutos histórico-geográficos para serem produzidos, cada vez mais, no interior dos museus e do ambiente universitário que então surgia (naquele momento, tratava-se concretamente da Universidade de São Paulo, fundada em 1934). Para a renovação, foram decisivas as influências que os historiadores brasileiros receberam das transformações historiográficas que fermentavam nas academias europeias e norte-americanas, sobretudo com as primeiras gerações dos Annales, o novo historismo alemão e a assim chamada “Economic History”.
Altamente representativos desse novo contexto intelectual foram os estudos históricos de Sérgio Buarque de Holanda, Alice Piffer Canabrava e Maria Thereza Schörer Petrone, esta última orientada por Holanda em seus estudos de pós-graduação. Especialmente a partir da década de 1950, Holanda debruçou-se sobre os métodos de produção e processamento agrícolas, os caminhos, o povoamento e a influência da cultura indígena no imaginário da população paulista4. Canabrava, por sua vez, dedicou-se a perseguir sistematicamente uma metodologia que fosse adequada para a difusão do campo da História Econômica no Brasil, preocupando-se particularmente com o caráter das fontes históricas disponíveis para as pesquisas sobre a escravidão e os níveis de riqueza ao longo da história paulista5. Já Petrone seria responsável pela produção de um estudo pioneiro sobre a economia canavieira em São Paulo6.
Pode-se dizer que tais autores, com suas investigações históricas particulares, começaram a apresentar um conjunto de conhecimentos a respeito do mundo do trabalho (e, no caso de Holanda, especificamente do trabalho indígena) na história de São Paulo, lançando luz sobre a totalidade das relações materiais que regeram a vida paulista em cada tempo, considerando tanto o âmbito da vida cotidiana quanto a escala das grandes estruturas de organização e reprodução material da sociedade. Externamente à Universidade, a mesma atenção dedicada por Sérgio Buarque de Holanda à cultura material e às antigas técnicas paulistas de produção alimentar se fez presente simultaneamente nas investigações empreendidas pelo agrônomo Carlos Borges Schmidt e por Ernani Silva Bruno, jornalista e diretor do Museu da Casa Brasileira, os quais mantiveram sempre uma estreita relação de proximidade e intercâmbio com o mundo universitário, estabelecendo com ele uma relação de mútua influência7.
Esse movimento, que se estendeu até a década de 1980, também ampliou significativamente as bases empíricas possíveis para a análise histórica sobre o mundo do trabalho em São Paulo, apresentando uma perspectiva inédita de valorização dos elementos evidenciais provenientes da cultura material (especialmente com Holanda, Schmidt e Bruno) e exploração dos arquivos locais (com Canabrava). Ainda que não tenha surgido daí uma interpretação efetivamente estrutural da sociedade paulista colonial fundamentada especificamente no problema do trabalho ameríndio e, por outro lado, que não se tenha chegado na questão dos diferentes regimes, sistemas e modalidades do trabalho indígena, não é exagero concluir que o contexto intelectual em pauta forneceu as bases e condições metodológicas necessárias para que alguém o fizesse a posteriori.
Não há dúvidas de que um resultado desse tipo se manifestaria apenas com a publicação dos trabalhos de John Manuel Monteiro - historiador norte-americano radicado no Brasil -, em especial com a sua obra máxima Negros da Terra, livro que consiste em uma versão modificada da tese com a qual o autor obtivera o seu doutoramento8. Monteiro foi quem apresentou pela primeira vez (e única, como veremos) uma interpretação estrutural (ou, por assim dizer, “total”) da sociedade colonial paulista tendo como elemento central o trabalho compulsório da população indígena local9. A obra é representativa de um momento crucial da historiografia de São Paulo, o que tanto se justifica pela qualidade intrínseca do estudo que o autor realizou quanto explica a extraordinária popularidade e difusão que rapidamente conquistou entre os historiadores e antropólogos do Brasil e do exterior.
Segundo o autor, ao contrário do que supunha a tradição historiográfica do começo do século XX, São Paulo não poderia ser considerada uma área isolada em relação ao restante da América portuguesa, pois desde o último quartel do século XVI havia se estabelecido entre o planalto de Piratininga e outras regiões (o litoral vicentino, a bacia do Rio da Prata, o Rio de Janeiro e o próprio nordeste açucareiro) um intenso fluxo de mercadorias. Isso teria sido possível graças ao desenvolvimento em São Paulo, sobretudo durante o século XVII, de uma economia mercantil de dimensão e importância consideráveis, uma economia produtora de gêneros comercializáveis como o trigo e o algodão. A base fundamental dessa estrutura e o fundamento dinâmico da sociedade que a conformava teria sido o emprego compulsório da força de trabalho da população indígena cativa, aprisionada e escravizada pelos moradores paulistas em suas entradas e assaltos ao sertão10. O autor dedicou, ademais, um capítulo inteiro ao desenvolvimento histórico de uma modalidade específica de trabalho indígena, a assim chamada “administração particular”, demonstrando ter sido ela uma forma jurídico-social complexa e determinada assumida pelo cativeiro indígena nos anos 160011.
Entre a tese original e o livro decorreram quase dez anos: a tese foi defendida na University of Chicago, em 1985; o livro foi publicado exclusivamente no Brasil, pela primeira vez, em 1994. A despeito da manutenção dos argumentos principais, as duas versões não coincidem plenamente, tendo a versão original sofrido consideráveis modificações e acréscimos antes de ser finalmente publicada. O que ocorreu entre aqueles dois momentos? Parece-nos que dois acontecimentos foram particularmente influentes: em primeiro lugar, a promulgação da Constituição de 1988, que politizou a questão indígena ao atrelar o direito dos índios a terras demarcadas à manutenção de suas culturas, memórias e identidades tradicionais. Em segundo, a publicação da coletânea História dos Índios no Brasil (1992), organizada por Manuela Carneiro da Cunha12, obra que representou o surgimento do movimento historiográfico que se convencionou chamar de “Nova História Indígena”. Os postulados gerais dessa nova tendência, até hoje em voga, consistem na afirmação positiva do protagonismo dos povos indígenas na história do Brasil, assim como na valorização de suas próprias ideias e visões sobre o processo histórico. Tanto a luta pela demarcação de terras indígenas quanto a historiografia indigenista então em ascensão foram acompanhadas por uma aliança profunda e definitiva entre a História, a Antropologia e a Arqueologia, as quais somaram esforços com vistas a ampliar e diversificar o conhecimento elaborado, ele próprio transformado em instrumento de luta social. Monteiro esteve radicalmente imerso no contexto histórico e historiográfico que determinou os dois eventos e nele desempenhou papel ativo, alcançando a posição de figura eminente da historiografia e do indigenismo brasileiro. Diferenças não poderiam deixar de ser sentidas no produto da final de sua pesquisa, traduzida por ele próprio para a língua portuguesa.
Em resumo, pode-se dizer que o livro possui uma dimensão subjetiva muito maior e mais intensa do que a tese. Se, na primeira versão, sua ênfase recaía, antes de mais nada, aos processos históricos de formação social e econômica de São Paulo, no livro a sua atenção primordial desloca-se para um dos sujeitos principais e mais diretos dessa história: a população indígena local. Uma comparação dos respectivos títulos ilustra bem a transformação: enquanto a tese intitulava-se “São Paulo no século XVII: economia e sociedade”, o livro recebeu o nome Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. Se antes se tratava de interpretar processos e estruturas econômicas e sociais de maneira integrada e processual (na esteira do que vinha sendo realizado nas historiografias de inspirações braudeliana e marxista), depois a ótica principal seria transferida da “sociedade” (enquanto complexo sistêmico em permanente movimento) para os “agentes” históricos que a constituíam.
Claro está que Negros da Terra esteve longe de abandonar completamente a ênfase colocada pela tese original sobre a função essencial do trabalho indígena no mundo colonial, mas é evidente também que abordaria sob uma nova ótica. O deslocamento de perspectiva é relativamente sutil e apenas um momento inicial da transformação maior que se verifica, primeiro, no conjunto da obra de John Monteiro (vale recordar que em seus estudos posteriores o trabalho indígena poucas vezes foi tratado de outra maneira que não fosse marginal13) e, em seguida, na historiografia indigenista brasileira que o seguiu, a qual progressivamente transferiu a sua atenção para outras dimensões da vida humana, especialmente para os âmbitos da cultura, da memória e das identidades14.
Seja como for, considerada a grande importância e valor adquiridos por esses dois trabalhos de Monteiro, a historiografia sobre São Paulo colonial tendeu a, de certa maneira, imobilizar-se neles. De um lado, essa imobilização é fruto da aceitação de Negros da Terra como obra definitiva sobre a escravidão indígena em São Paulo, fazendo com que os estudiosos de temas tangentes remetam sempre e quase obrigatoriamente a ele, dissuadidos da possibilidade de realizar pesquisas inéditas sobre o assunto. De outro, pelo fato de que a bibliografia tendeu muitas vezes a cumprir de maneira extremada o deslocamento temático apenas esboçado por Monteiro em sua obra, o que acabaria por produzir um verdadeiro “bloqueio” ou “silêncio” historiográfico sobre a escravidão e outras formas do trabalho indígena em São Paulo.
A diversificação dos estudos e temáticas históricas que se seguiram nas décadas de 1980 e 1990 foi radical. De fato, são hoje muito maiores do que há quinze ou vinte anos os conhecimentos disponíveis sobre, por exemplo, os padrões de riqueza e as redes de comércio da elite paulista e suas conexões com outras partes das Américas portuguesa e espanhola15; a legislação indigenista e os aldeamentos de índios locais16; as rotas e expedições dos paulistas rumo ao interior e o papel desempenhado pelas populações indígenas nesse processo17; as classificações étnicas e linguísticas e a ampla variedade cultural dos povos indígenas locais18; a vida cotidiana, noções de tempo, a música, a vestimenta e alimentação local19; a arquitetura e outras manifestações da produção material20; a organização espacial, administrativa e fundiária de São Paulo21; aspectos demográficos, da família e da introdução da escravidão africana22; a aplicação do Diretório pombalino na região e o governo do Morgado de Mateus23 - para mencionar apenas os eixos temáticos mais recorrentes, todos eles apenas tangentes (embora associados e conectados) ao assunto de que aqui se trata.
Nesse quadro, todavia, a escravidão indígena e as demais formas de exploração do trabalho ameríndio seguem sendo novamente ofuscadas, poucas vezes tornando-se objeto de uma análise histórica detida. Quando muito, figuram como pano de fundo para temáticas próximas e/ou são simplesmente feitas remissões exclusivas, mais uma vez, aos trabalhos de Monteiro. Sintoma desse silêncio renovado é o que encontramos, por exemplo, no conjunto de obras coletivas dedicadas à publicização de textos acadêmicos sobre história de São Paulo que foram lançadas nos últimos 35 anos: de um conjunto de doze títulos selecionados entre os que alcançaram maior circulação24, apenas três deles possuem textos dedicados especificamente à questão do trabalho indígena, sendo que em dois desses três casos se trata da republicação de um mesmo artigo de John Manuel Monteiro25.
Por outra parte, contribuições relevantes podem ser encontradas tanto no campo da demografia histórica (que já produziu um enorme acúmulo de informações sobre alguns períodos específicos do passado de São Paulo, sobretudo para os séculos XVIII e XIX)26 quanto na arqueologia histórica e nos estudos da técnica e da cultura material (cujas descobertas mais recentes têm esclarecido algumas situações antes desconhecidas de uso do braço indígena)27. Até o momento, porém, as contribuições dessas outras disciplinas não deram lugar a uma interpretação geral análoga, aprofundada e/ou alternativa à de Monteiro, que já possui mais de 30 anos de existência. Caso os seus resultados venham a ser aproveitados e incorporados de maneira profunda e efetiva pela historiografia, novas sínteses e interpretações estruturais poderão surgir, oxigenando uma vez mais o campo da história colonial paulista28.
Como qualquer produção bibliográfica, por mais numerosos e indiscutíveis que sejam os seus méritos, o livro de John Monteiro possui, também, os seus compreensíveis limites. Detenho-me aqui em destacar dois deles. Em primeiro lugar, a obra circunscreve-se ao século XVII, ainda que forneça também reflexões bastante estimulantes sobre a segunda metade do século XVI e as primeiras décadas do XVIII. Em segundo, as formas de trabalho ameríndio ali analisadas, naturalmente, não foram outras senão aquelas que predominaram durante os anos mil e seiscentos: a “administração particular” e a escravidão indígena.
Sem nenhuma pretensão de superar, em poucas páginas, as insuficiências daquilo que concretamente se conhece a respeito dos demais períodos, espera-se que as linhas a seguir contribuam como pontapé inicial para a realização de um projeto do qual a obra de John Manuel Monteiro foi apenas pioneiro: o reconhecimento e a explicação do papel estruturante que o trabalho ameríndio desempenhou ao longo de quatro séculos de história paulista, considerando-se ao mesmo tempo a sucessão e a confluência de variados sistemas, regimes e modalidades de serviço indígena, compreendendo também de que maneira cada uma dessas formas se relacionou com os modos de reprodução da sociedade local em cada época específica.
Escravidão e liberdade em cinco tempos: um problema de longa duração
I
Em carta de março de 1555 dirigida a Ignácio de Loyola, fundador e autoridade máxima da Companhia de Jesus, o missionário José de Anchieta manifestou ter concluído, com base nos resultados do seu trabalho junto à população nativa de São Paulo de Piratininga, que não havia outra forma de converter os indígenas ao cristianismo que não fosse por meio da escravidão: “Não se pode portanto esperar nem conseguir nada em toda esta terra na conversão dos gentios, sem virem para cá muitos cristãos, que conformando-se a si e a suas vidas com a vontade de Deus, sujeitem os índios ao jugo da escravidão e os obriguem a acolher-se à bandeira de Cristo” 29.
II
No dia 5 de junho de 1623, o superintendente das matérias de guerra da vila de São Paulo, Martim de Sá, compareceu à propriedade de Francisco Rodrigues Velho com a tarefa de averiguar as circunstâncias da morte do indígena “principal” Timacaúna, que poucos dias antes obtivera dele uma provisão que permitia a condução da população de sua aldeia para a mencionada vila. Caminhando junto a toda sua gente, Timacaúna foi surpreendido por uma emboscada preparada por “pombeiros” que serviam a um grupo de importantes proprietários rurais da região. O chefe indígena teria buscado defender-se do ataque exibindo a procuração que lhe havia sido expedida por Sá, mas isso foi insuficiente para deter a ação dos capatazes, que o assassinaram e repartiram todos os demais índios entre si, conduzindo cada qual a sua parte para os sítios e fazendas de seus respectivos senhores30.
III
Em 15 de julho de 1685, uma mulher indígena de nome Petronilha compareceu à Câmara municipal da vila de São Paulo alegando ser habitante do aldeamento Nossa Senhora de Pinheiros. Com isso, ela pretendia libertar-se do controle de um senhor que a detinha cativa e obrigada ao trabalho. Recorrendo às listagens populacionais que ali se dispunham do referido aldeamento, os oficiais da Câmara disseram não ter encontrado qualquer referência a ela, a sua mãe Tomásia ou a sua avó Inácia.
Frustrada a expectativa de Petronilha, o fazendeiro Sebastião de Proença, proprietário de cujo controle a índia buscava se desvencilhar, apresentou-se na Câmara afirmando que tinha direito de posse e propriedade sobre ela. Segundo ele, tratava-se de uma índia “de seu serviço”. Todavia, ao contrário do que se fez com a mulher, para Proença foi aberta a possibilidade de sustentar a sua palavra apenas com um juramento ao Santo Evangelho, sem a necessidade de qualquer prova escrita da veracidade de sua declaração. Afirmando que a mulher era sua “serva” e não possuía nenhuma ligação com qualquer aldeamento, Proença comprometeu-se a devolvê-la se acaso alguma prova fosse descoberta em favor de Petronilha. A promessa foi recebida de bom grado e os oficiais da Câmara ordenaram unânime e imediatamente a “re”incorporação de Petronilha na escravaria ameríndia daquele fazendeiro31.
IV
Entre 1753 e 1765, correu uma ação judicial movida por um índio de nome Aleixo dos Reis Pinto e sua mãe Faustina de Ramos contra o proprietário de terras e escravos Matheus da Costa Rosa, que os detinha em cativeiro numa estância na região de Paranaguá, naquele tempo pertencente à Capitania de São Paulo. Com o objetivo de recuperar a liberdade, mãe e filho recorreram não apenas à ouvidoria da comarca de Paranaguá, mas também à Mesa do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro, ao Juizado de Fora da vila de Santos e também, diretamente, ao próprio rei português D. José I.
Nenhum dos esforços de Aleixo e Faustina, porém, obteve o resultado desejado, pois tanto as suas repetidas petições quanto as evidências que eles apresentaram à Justiça - por exemplo, de que descendiam de índios guaranis e, portanto, eram juridicamente livres - foram sendo sistematicamente rejeitadas, ao passo que os argumentos expostos pelo réu e influente proprietário - que justificava-se dizendo que Faustina descendia de escravos africanos e não de indígenas - eram melhor considerados e aceitos. Ao final, a influência política e social de Costa Rosa foi determinante para que Aleixo fosse aprisionado, ficando impossibilitado de dar continuidade ao litígio. O processo foi tido por encerrado e Faustina, junto a outros de seus filhos, foi entregue novamente ao arbítrio de Matheus da Costa Rosa, em cujas terras permaneceria até o final de sua vida, na condição de escrava legítima32.
V
Em novembro de 1840, nos expedientes de um ofício relacionado à condição dos indígenas do território de Guarapuava, ocupado progressivamente pelos paulistas desde a primeira década do século XIX, o comandante Antônio da Rocha Loures alegou que a organização autônoma das terras e do trabalho dos indígenas, visando ao sustento de si próprios, era economicamente ineficiente. Ao contrário, o militar defendia que os nativos fossem postos a serviço dos proprietários particulares da região, cuja produção se adequaria melhor e mais diretamente aos interesses da província e da nação33.
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Os episódios anteriormente narrados explicitam de diferentes maneiras a instabilidade e as incertezas relacionadas à condição social da população ameríndia na região paulista ao longo de quatro séculos. Inscritos cada qual em um contexto histórico particular, tanto as proposições de Anchieta e Rocha Loures quanto os desfechos que tiveram os casos de Timacaúna, Petronilha, Aleixo e Faustina permitem-nos observar com razoável clareza a fronteira tênue e movediça que separava as situações de “liberdade” e “escravidão” em São Paulo durante os tempos da colônia e do Império.
De um lado, os três casos intermediários ilustram a facilidade com que indígenas juridicamente livres poderiam ter subtraída a sua liberdade e serem submetidos à condição de trabalhadores compulsórios sob circunstâncias, muitas vezes, arbitrárias e/ou manipuladas por agentes sociais mais poderosos e influentes. De outro, as semelhanças entre o primeiro e o último caso demonstram as permanências ideológicas e discursivas (que, como veremos, nunca estiveram descoladas da prática real) de um raciocínio básico que tendeu a ser compartilhado e reproduzido pelos diferentes setores dominantes da sociedade local: a ideia de que o trabalho indígena obrigatório seria um caminho necessário tanto para a civilização dos índios quanto para a sustentação econômica da sociedade.
Embora menos explicitamente, todos eles expressam também a existência de um complexo e multifacetado universo de situações intermediárias nas quais a liberdade e a obrigatoriedade do trabalho conviviam lado a lado, sobrepondo-se e entrecruzando-se sem que houvesse uma contradição necessária e absoluta entre esses dois espectros, algo que o ideário liberal dos séculos XX e XXI tende a fazer supor precipitadamente. Enquanto para Anchieta a libertação dos índios de seu paganismo exigia a sujeição obrigatória destes à escravidão, a liberdade oficialmente garantida aos conterrâneos de Timacaúna pela condição de índios aliados das forças portuguesas não os livrou do cativeiro que se seguiu ao bruto assassinato do cacique. Em relação a Petronilha, Aleixo e sua mãe, as justificativas que eles ofereceram à justiça encontraram sempre uma situação de desvantagem em relação à defesa e aos argumentos daqueles que os quiseram manter como suas propriedades. O raciocínio de Rocha Loures, por sua vez, mais materialista e tão pragmático quanto o do padre seiscentista, propunha impedir que índios pudessem livremente cultivar de maneira coletiva as suas terras em benefício próprio, devendo antes serem obrigados ao serviço alienado em troca, ou não, de um salário.
Nesse sentido, pode-se dizer que a existência de uma linha divisória instável e movediça entre “escravidão” e “liberdade” constitui um dos elementos de duração mais dilatada da história do planalto paulista, o que poderia valer igualmente para outras zonas fronteiriças americanas durante o mesmo intervalo cronológico34. Esse limite, se por um lado não poderia ter se mantido imune à influência das mudanças sociais ao longo de quatro séculos de história, teve as suas transformações ocorridas em ritmos lentos o suficiente para que nem sempre as alterações sejam claramente perceptíveis aos olhos do observador. Mas elas, de fato, existiram. Na interação dialética entre a regularidade e a inconstância, capta-se a historicidade e, portanto, a própria concretude das diferentes modalidades, sistemas e regimes de trabalho indígena na região.
Regimes, sistemas e modalidades de trabalho: conjunturas e cotidianidade
Embora haja entre os estudiosos do campo americanista uma tendência ao uso indiscriminado das expressões “regimes”, “sistemas” e “modalidades” de trabalho, convém atentar para algumas nuances se quisermos avançar na construção de um panorama crítico dos diferentes padrões de emprego do braço indígena ao longo da história de São Paulo.
A primeira delas refere-se ao fato de que o vocábulo “regime” está associado fundamentalmente às noções de “regra” e/ou “regulamento”, ou seja, às disposições legais que objetivam orientar as práticas humanas. Nesse sentido, a expressão “regimes de trabalho” pressupõe a existência de marcos regulatórios formais (ainda que não necessariamente escritos, podendo ser mediados também pelo costume) voltados para a ordenação dos modos práticos de realização do trabalho por membros de uma dada sociedade. Isso não significa que regimes de trabalho sejam fórmulas abstratas elaboradas externamente e apenas aplicadas de maneira mecânica à dinâmica das relações sociais, de onde os marcos regulatórios são também provenientes. Tampouco se deve imaginar que um regime seja necessariamente anterior, no tempo, às realidades que ele formaliza ou institui, pois muitas vezes suas formulações podem apenas sancionar práticas reais e efetivas que o antecedem. A escravidão indígena nas Américas, formalizada por leis que em cada região sucederam sempre o início de sua prática efetiva, talvez seja o mais claro exemplo passível de recordação35.
Essas práticas, cuja existência é autônoma em relação a suas regras (por mais influentes que estas possam ser), junto às feições particulares que o trabalho assume na dinâmica dos processos sociais, constituem aquilo que aqui designamos como “modalidades” concretas de trabalho. Trata-se de formas históricas singulares que jamais se repetem plenamente em distintos espaços e temporalidades, ainda que efetivamente suas manifestações possam apresentar analogias, semelhanças, coincidências ou então que compartilhem uma mesma origem. Em determinadas circunstâncias, as modalidades podem se converter em regimes ao serem confirmadas por algum tipo de legislação, sem por isso perderem as suas especificidades ou as características peculiares que as definem - em outras palavras, sem perderem a condição de modalidades locais e específicas de trabalho. Os contornos locais que a “administração” de índios adquire em São Paulo, como veremos, pode ser interpretada como exemplo pertencente a tal categoria.
A mais conhecida e usual expressão “sistema de trabalho”, por sua vez, mais do que ao caráter regulamentado ou singular, diz respeito às dinâmicas internas de funcionamento dos modos de trabalho e suas articulações no interior de formações históricas concretas. Nessa acepção, é possível que qualquer regime ou modalidade de trabalho possa assumir igualmente a qualidade de um “sistema”, desde que apresente mecanismos mais ou menos regulares de atividade e desempenhe um papel ativo nos metabolismos de reprodução (física, material e/ou simbólica) de uma dada sociedade. Os sistemas de trabalho, porém, não se apresentam como padrões únicos de movimento que se repetem ciclicamente (como poderiam concluir leituras superficiais do funcionalismo e/ou do estruturalismo), mas, assim como os regimes e modalidades, estão permanentemente sujeitos às transformações do tempo histórico e, por isso, devem ser interpretados a partir de sua própria historicidade. A organização rotativa da prestação de trabalhos no antigo mundo andino (a assim chamada mita) - de um lado, intimamente relacionada à configuração espacial e aos modos de distribuição da colheita; de outro, rapidamente apropriada pelos colonizadores espanhóis e transformada em uma relação historicamente nova e distinta da original - evidencia exemplarmente as características de um sistema de trabalho.
Delinear tais distinções não significa indicar a existência de “tipos” fixos e essenciais, isto é, conceitos absolutos aos quais as formas concretas de trabalho humano se enquadrariam, ou não, segundo qualidades individuais igualmente estáticas. Ao contrário, trata-se de apenas discernir os momentos (muitas vezes simultâneos) que aquelas formas podem ou não adquirir ao longo de um processo ou desenvolvimento histórico.
Não há melhor maneira de expor e demonstrar as nuances categoriais acima apresentadas do que recorrendo, concretamente, à própria História. Tomando os regimes, sistemas e modalidades de trabalho indígena em São Paulo empregados em cada época como critério de classificação, oferece-se a seguir uma distinção entre quatro períodos históricos elementares. Não havendo espaço no presente artigo para apresentar de maneira suficientemente detalhada as características internas de cada um deles, o que ainda carece de novas investigações e trabalhos históricos, limitamo-nos a expor, de maneira bastante resumida, as suas linhas fundamentais de transformação histórica.
Sociedades nativas vs. escravidão indígena
A primeira fase corresponde ao período em que a escravidão indígena começou a ser pensada e praticada em decorrência dos conflitos sociais gerados no calor das circunstâncias dos primeiros contatos entre europeus e nativos e dos esforços de estabelecimento de uma sociedade colonial de matriz europeia, tanto no litoral quanto no interior das capitanias de São Paulo e São Vicente - antes, portanto, de se tornar um regime de trabalho oficialmente reconhecido e regulado pela Coroa portuguesa36.
A economia açucareira que, a partir da década de 1530, se instalou nas proximidades dos portos de Santos e São Vicente, constituiu uma primeira experiência local de exploração do braço indígena. Os altos preços do açúcar no mercado atlântico estimularam os colonos engajados na sua produção a buscar meios de atrair trabalhadores cativos para os seus engenhos e canaviais37. Na carência de capitais suficientes para a importação em grande escala de escravos africanos, um desses meios teria sido a constituição de relações de aliança com chefaturas tupinikins do planalto interiorano, estimulando a guerra entre esse grupo e seus tradicionais inimigos tamoyos para que os cativos resultantes do conflito fossem descidos e comercializados nas propriedades litorâneas38.
Além disso, houve desde cedo a captura e escravização de índios também pelos colonizadores particulares do planalto. Embora a ocupação portuguesa da região, ao menos até aproximadamente 1580, não estivesse ainda revestida de um sentido propriamente mercantil, como no caso dos engenhos litorâneos, a incipiente prática do cativeiro indígena no interior paulista tampouco deve ser menosprezada39. Nesse caso, a escravidão do ameríndio apresentava-se como uma modalidade de trabalho surgida “espontaneamente” da pilhagem direta dos conquistadores sobre as sociedades guarani, tupinikin, maromomi e guayaná da região.
Se a escravização das populações indígenas foi praticada e disseminada inicialmente entre os colonizadores particulares que se aventuravam no sertão em busca de enriquecimentos pessoais, a sua justificação ideológica seria paralela e paulatinamente elaborada por missionários jesuítas engajados no projeto de evangelização da população indígena local. Padres como Manuel da Nóbrega e José de Anchieta que, a partir dos anos 1550, se lançaram ao sertão indígena em busca de neófitos, não demoraram muito para chegar à conclusão de que o trabalho compulsório era uma condição necessária e imprescindível para a conversão da população indígena ao catolicismo (vide a perspectiva de Anchieta, já exposta anteriormente)40. Nessa ótica, caso a missão jesuíta se concretizasse conforme o esperado, isso não apenas faria da escravidão uma “modalidade” de trabalho possível e amplamente praticada (pois isso ela, de fato, já o era), mas a alçaria à condição de um verdadeiro “sistema de trabalho”, uma vez que intrinsecamente orgânico ao modus operandi da sociedade cristã que se pretendia implementar.
Foi esse também o período de gestação de um projeto de aldeamentos jesuíticos, núcleos coloniais pretensamente autônomos de redução das populações indígenas para a sua melhor e mais fácil conversão ao cristianismo, devendo os índios viver sob a administração temporal e religiosa dos padres inacianos. Ainda que, nesse projeto encabeçado por Nóbrega, os indígenas se enquadrassem em uma nova condição que não propriamente a de “escravos” (mas sim “administrados”), isso não significava que eles ficassem livres da obrigatoriedade do trabalho para o sustento material de seus administradores e a reprodução física do espaço missional.
Tanto para colonizadores quanto para jesuítas, o principal obstáculo à disseminação e sistematização do trabalho compulsório indígena consistia no fato de que as sociedades ameríndias permaneciam ainda essencialmente estruturadas e funcionando segundo as dinâmicas do seu próprio universo social, o que incluía envolver os próprios europeus adventícios nas redes de vingança que conectavam diferentes agrupamentos sociais através da prática guerreira. A desestruturação e a fragmentação da lógica interna das referidas sociedades, para a qual o trabalho obrigatório soava incompreensível e digno de formas variadas de oposição (violência, fugas, indisciplina etc.), demoraria muitas décadas para se concretizar41.
Resultado e ponto culminante de todo esse processo, a lei de 20 de março 1570 decretaria a “liberdade” da população indígena, não apenas em São Paulo, mas em toda a América portuguesa. Todavia, os limites dessa liberdade se encerrariam no consentimento com a escravidão nos casos em que os índios fossem cativados em ações de “guerra justa” (isto é, capturados em algum enfrentamento entre portugueses e grupos indígenas hostis à dominação régia)42. Na prática, isso dava margem para uma variada gama de situações, abrindo espaço para que qualquer ação escravagista pudesse ser classificada pelos seus atores como uma ação de “guerra justa”43. Paradoxalmente, a lei da “liberdade” dos índios se tornaria um instrumento de regulamentação e oficialização da escravidão dos ameríndios, elevando essa modalidade à condição de um “regime de trabalho” propriamente dito.
Nessa primeira fase, só podemos falar em trabalho indígena propriamente “livre” aos nos referirmos às atividades ameríndias realizadas externamente à influência dos colonos e religiosos europeus, incluindo talvez aquelas - cada vez mais raras - realizadas sob a condição de aliados autônomos dos portugueses (carregamentos, curas, coleta e produção para a prática do escambo, informações sobre caminhos, captura e comercialização de inimigos etc.)44. Já no início do século seguinte, como ilustra exemplarmente o caso de Timacaúna acima exposto, essa liberdade já não era mais do que uma condição formal e extremamente vulnerável.
O “longo século” da escravidão indígena
O momento de institucionalização da escravidão indígena coincide com o início do período de formação de uma economia colonial propriamente dita no interior da capitania de São Vicente. As três últimas décadas do século XVI acompanharam uma transformação substancial da paisagem rural paulista com a proliferação de unidades produtivas agrícolas através dos caminhos percorridos pelos grandes rios que cortam o planalto. Na primeira metade do século XVII, a criação de animais e a produção mercantil de gêneros agrícolas (trigo, algodão, milho, feijão etc.) se consolidaram, valendo-se, para isso, tanto da demanda alimentícia cada vez mais ampla da população local (e de sua escravaria) quanto dos mercados consumidores de maior distância, incluindo áreas como o litoral vicentino, a bacia do Rio da Prata, o Rio de Janeiro e as capitanias do Nordeste açucareiro45.
Evidentemente, o trabalho compulsório da população indígena ocuparia a base primordial dessa estrutura, sendo este o período das mais amplas e frequentes expedições militares (também chamadas de “entradas” ou “bandeiras”) organizadas e realizadas pelos moradores do planalto que se dirigiam ao sertão indígena com o objetivo de assaltar aldeias autônomas e aldeamentos administrados por missionários jesuítas e, assim, capturar índios e conduzi-los como escravos para a lavoura46.
Nesse período, a escravidão indígena adquiriu em São Paulo todas as características necessárias para poder ser considerada, simultaneamente, como: 1) uma modalidade concreta de trabalho (à medida que efetivamente praticada e difundida na realidade social); 2) um sistema de trabalho (ao desempenhar uma função orgânica nos mecanismos de reprodução estrutural da sociedade); e 3) um regime de trabalho (uma vez que regulado por um conjunto de regras institucionais reconhecidas e compartilhadas, ao menos nos seus fundamentos elementares, pelos diferentes membros do corpo social). Em outras palavras, a escravidão indígena foi alçada, nesse “longo século” XVII, à condição de prática social de trabalho hegemônica, capaz de se manifestar nas mais imediatas e cotidianas esferas da vida social.
Em relação à primeira condição, isto é, à de modalidade concreta de trabalho disseminada socialmente, basta observar a frequência e a maneira como os indivíduos indígenas eram relacionados nos inventários e testamentos dos proprietários paulistas do período para perceber o quanto a prática da escravidão indígena era tratada com naturalidade pelo conjunto dos agentes sociais. Essa documentação expressa o quão correntemente a “gente de serviço” estava sujeita a diferentes operações de ordem econômica, de acordo com o arbítrio praticamente irrestrito de seus senhores (compra, venda, troca, empréstimo, aluguel, transmissão em herança, doação em dote etc.). Os índios eram, com frequência, arrolados junto a equipamentos rurais de produção (como moinhos, moendas, prensas e descaroçadores) e tinham o seu caráter de mercadoria humana expresso pelos preços e valores que lhes eram atribuídos47.
Embora o emprego na produção agrícola predominasse, os cativos indígenas poderiam exercer uma ampla variedade de funções: havia índios escravizados que serviam como pastores, ferreiros, carpinteiros, guias, carregadores, sapateiros, chapeleiros, trabalhadores domésticos, feitores, artesãos, curtidores, fiadores, tecelões etc. Do trabalho indígena resultava o sustento tanto da própria mão de obra, em geral, quanto dos setores sociais por assim dizer improdutivos (senhores de escravos e proprietários de terras, oficiais da burocracia colonial, padres e outros religiosos). Os excedentes agrícolas eram comercializados e se convertiam em novos capitais usados na manutenção dos mais ou menos luxuosos estilos de vida das elites locais e à organização de novas expedições de captura de braços escravos48. Em outras palavras, do braço indígena provinha todo o trabalho necessário à reprodução material da sociedade colonial paulista. Em torno dele movia-se a dinâmica da formação social em sua totalidade. Isso conferia à escravização do ameríndio a qualidade de um “sistema” orgânico e estrutural de trabalho humano.
Nessas condições, compreende-se o quão limitadas e restritas eram as possibilidades que a população indígena encontrava para, ao menos através dos meios legais e institucionais, escapar da condição do arbítrio senhorial e do trabalho compulsório (no limite, da própria escravidão). Os casos de Timacaúna e Petronilha, ambos convictos do direito que teriam a uma certa “liberdade”, viram suas expectativas frustradas tanto pela violência imposta quanto pela influência política de dois grandes proprietários de escravos. O peso da escravidão, no contexto específico do acúmulo que essa relação social atingiu no período (enquanto, simultaneamente, “regime”, “sistema” e “modalidade” hegemônica de trabalho), impunha-se fazendo com que a viabilidade de saída da escravidão fosse encontrada, pelos índios locais, muito mais na fuga e na revolta do que propriamente no acesso a uma via judicial que para eles era pouco eficaz49.
Finalmente, a condição de “regime” pode ser verificada na progressiva reafirmação dos termos da lei de 1570, com poucas nuances, até fins do século XVII50.
Na secular oposição entre jesuítas e colonos em torno do controle e administração dos aldeamentos régios e dos modos de exploração do trabalho indígena, nenhum desses dois grupos questionou jamais a existência da escravidão em si mesma; ao contrário, homens como Antônio Vieira procuraram, simplesmente, controlar o ímpeto destrutivo da exploração escravista dos proprietários particulares, tornando-a mais racional e adequada à permanência e continuidade do sistema colonial português (e mesmo nesse ponto, não houve consenso entre membros da própria Companhia de Jesus51).
Tais disputas desencadearam um complexo e multifacetado processo de debates de ordem jurídica, política e moral a respeito da questão, que culminou na formulação de um novo regime de trabalho indígena: a assim chamada “administração particular”. Embora essa expressão já fosse usada anteriormente, como uma espécie de eufemismo empregado para esconder ou atenuar práticas efetivamente escravistas, foi somente com a divulgação de duas cartas régias expedidas no ano de 1696 (as assim chamadas “Administrações do Sul”) que o novo regime se tornou oficial52. Através delas, a administração dos aldeamentos e seus habitantes passaram para o controle de proprietários particulares, para quem os índios deveriam obrigatoriamente trabalhar em troca de sustento físico e espiritual; além disso, a despeito da “liberdade” que se lhes era atribuída, os indígenas continuavam sujeitos ao mesmos castigos e operações mercantis previstas pelo regime escravista, tais quais a compra, venda, troca, doações etc.53.
Da regulamentação da “administração particular” ao fracasso das reformas pombalinas
Quando se instituiu o regime da “administração particular”, a sociedade colonial como um todo (e a sua parcela paulista em particular) sofria transformações consideráveis. As jazidas de ouro que foram sendo progressivamente descobertas na região das Gerais (ainda submetida à jurisdição paulista) passaram a atrair um fluxo cada vez maior de pessoas interessadas no enriquecimento rápido. Também os instrumentos de poder e tributação da monarquia acercaram-se de maneira inédita da região para melhor controle da atividade econômica extrativista ascendente. Progressivamente, tanto a pecuária quanto a produção agrícola paulistas passaram por um processo de mercantilização ainda mais intenso do que na fase anterior, convertendo-se em uma atividade subsidiária do regime extrativista ao fornecer-lhe parte do abastecimento alimentício básico e necessário para sua população livre e escrava54.
Os capitais gerados pela mineração que puderam permanecer nas capitanias sulinas, sem serem transferidos para a metrópole, eram a condição necessária para a importação de escravos africanos em número cada vez maior. Em três décadas, os trabalhadores indígenas deixaram de constituir a parcela dominante da mão de obra, sendo suplantados numericamente nas principais atividades produtivas e extrativistas pelos “negros da Guiné”55. Os nativos administrados continuariam sendo utilizados em atividades importantes da reprodução social (operando como transportadores, remeiros, guias, informantes, índios de ganho etc.), mas não eram mais a peça chave dessa reprodução por ela mesma, ou seja, não se tratava mais de um sistema de trabalho estruturante da dinâmica societária.
Do ponto de vista dos poderes monárquico e senhorial, conforme aproximava-se a metade do século XVIII, tanto a escravidão indígena quanto a administração particular, ainda estruturados enquanto regimes de trabalho, apareciam como modalidades cada vez menos necessárias. Afrouxando parcialmente as amarras intrínsecas da escravidão, isso permitiu que determinados indivíduos indígenas em busca de “liberdade” ou alforria conseguissem reivindicá-las com mais frequência junto às autoridades coloniais, encontrando eco maior em comparação à fase anterior56. Todavia, não há evidências empíricas suficientes que nos permitam concluir que tais sucessos ultrapassaram o nível de casos pontuais, ainda que relativamente bem documentados.
Quando as reservas de ouro das minas sinalizaram já um certo grau de esgotamento, exigindo a remodelação econômica para uma agricultura mais racionalmente organizada e controlada pelo poder metropolitano, as reformas pombalinas viriam promover uma nova transformação na condição jurídica (isto é, uma reestruturação dos “regimes de trabalho” vigentes) da população indígena.
O Diretório dos Índios (1757), formulado inicialmente para o Estado do Grão-Pará e Maranhão e estendido no ano seguinte também para o Estado do Brasil, extinguiu oficialmente os regimes de escravidão e administração (tanto particular quanto eclesiástica). Entre outras prerrogativas, o documento retirou o controle dos indígenas das mãos de missionários e particulares, tornando a tutela indígena uma prerrogativa exclusiva do Estado monárquico. A “liberdade” conferida aos ameríndios pela nova diretiva, que os transformava em vassalos do monarca luso, também os colocava sob o mando de um diretor nomeado pessoalmente pelo governador-geral, ao qual caberia zelar, por exemplo, pelos costumes morais e pelas práticas laborais dos índios. O trabalho ameríndio, cujos excedentes incentivava-se comercializar, deveria ser agora necessariamente remunerado e tributado, o que não significa que ele tenha deixado de ser forçado e obrigatório57.
O Diretório foi recebido de distintas formas e gerou impactos diferenciados em cada região da América portuguesa que buscou implementá-lo. Ainda que o governo Morgado de Mateus, de um lado, tenha dispendido esforços para colocá-lo em prática no território paulista, os resultados passaram longe de se tornarem efetivos. Pasquale Petrone classificou as ações desse governador como mero “paliativo”58, pois a expulsão dos jesuítas e a consequente transferência dos aldeamentos eclesiásticos para o controle do Estado não foram suficientes para barrar o processo de esvaziamento pelo qual esses espaços vinham passando desde 1696. Anos depois de lançado o novo regulamento continuava, ainda era possível encontrar índios empregados como trabalhadores compulsórios nas propriedades particulares dos colonos59. Em suma, embora extintas enquanto “regimes” e superadas como “sistemas de trabalho”, a escravidão e a administração particular de índios não deixaram de existir enquanto “modalidades” concretas de labor.
A nova legislação possibilitava, decerto, renovadas expectativas e estratégias para a conquista da libertação do trabalho obrigatório junto à justiça, mas os reclamantes não obtiveram necessariamente, nesses casos, o desfecho que esperavam. O caso de Aleixo e sua mãe Faustina, visto acima, exemplifica as barreiras que continuavam se impondo para a concretização da liberdade proclamada: de um lado, as maiores possibilidades de acesso às instituições formais, em comparação aos períodos anteriores, se expressam nas diferentes instâncias jurídicas e administrativas que lhes foi possível mobilizar, inclusive facultando-lhes o despacho de uma correspondência direta ao próprio rei, seu suserano; de outro, o poder dos membros da elite senhorial que reclamavam ter direitos sobre a vida e a mão de obra desses mesmos reclamantes foi determinante para que se chegasse ao desfecho histórico que casos desse tipo tenderam a encontrar (prisão de Aleixo, reescravização de sua mãe e de seus irmãos etc.). Para isso, a reconfiguração étnica e demográfica da força de trabalho (com a difusão da mão de obra escrava de origem africana em São Paulo e adjacências a partir da primeira metade do século XVIII) fornecia apenas um novo elemento a favor dos senhores locais contra a pretensão de liberdade de seus índios, pois abria-lhes a possibilidade de alegar raízes negras e não indígena para os seus cativos, justificando e legitimando o seu cativeiro. Numa sociedade etnicamente marcada pela miscigenação, esse artifício mostrava-se particularmente forte e eficaz.
O Diretório seria revogado em 1798, sem grandes êxitos na América portuguesa meridional. Às margens da lei, a secular escravidão indígena, assim como a sua derivação “administração”, permeava ainda as práticas sociais de trabalho em São Paulo, prolongando-se, inclusive, pelo século seguinte.
A sobrevivência da escravidão indígena
Como já explicitado acima, na virada para o século XIX e ao longo de sua evolução histórica, nem a escravidão indígena nem as administrações particular e eclesiástica subsistiam mais como regimes de trabalho propriamente ditos. Tampouco funcionavam como sistemas de trabalho orgânicos à dinâmica da reprodução social, suplantadas que, nesses quesitos, tais formas de trabalho já haviam sido pela escravidão dos negros africanos (que, uma vez conectada ao regime global de acumulação de capitais construído em consequência da Revolução Industrial, transformar-se-ia em uma relação quantitativa e qualitativamente nova, a assim chamada “segunda escravidão”60) e pelo trabalho livre e assalariado em paulatina expansão.
Todavia, há evidências de que o trabalho compulsório dos indígenas - e mais particularmente a escravidão de índios - continuou sendo praticado sob a condição de uma modalidade real e concreta de exploração, ainda que não mais em posição dominante ou hegemônica.
A proposta de Antônio da Rocha Loures, vista anteriormente, de restabelecer o controle senhorial sobre os índios como mão de obra, constitui um desses indícios. Sabe-se que tal perspectiva estava longe de ser um mero devaneio individual do comandante. Pelo contrário, ela refletia a própria distribuição real dos indígenas locais, pois em sua freguesia nada menos que 61 indivíduos indígenas, de um total de 99 (uma taxa maior que 60%, portanto), encontravam-se naquele período reduzidos e empregados nas moradas de senhores particulares61.
A própria legislação imperial, por vezes, respaldou essa continuidade, ainda que por um breve período. Ora, sabe-se que em 1808 alguns documentos régios reabilitaram a escravidão indígena em casos de “guerra justa”, e uma portaria de 1827, expedida apenas meia década depois da emancipação política do Império brasileiro em relação a Portugal, viria permitir mais uma vez o recrutamento forçado de indivíduos ameríndios, estabelecendo como recompensa, para quem o efetuasse, o direito ao serviço obrigatório dos cativos, ainda que declaradamente sob a forma de tutela62. A consolidação do Império brasileiro tinha como um de seus grandes efeitos sociais um deslocamento razoável na política indigenista oficial: nas palavras de Manuela Carneiro da Cunha, “para caracterizar o século como um todo, pode-se dizer que a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão de mão de obra para se tornar uma questão de terras”63. Isso, no entanto, de maneira alguma significaria a completa desaparição legal da figura do trabalhador ameríndio.
Um mapeamento do trabalho indígena no Brasil durante o século XIX foi realizado por André Roberto de Arruda Machado, baseado na legislação promulgada até o ano de 1845. Sobre São Paulo, o autor demonstra que foi somente em 1831 que deixou de valer na região o antigo condicionamento da escravidão (e formas correlatas) aos casos de guerra justa64. Sobre a realização de trabalho bruto propriamente dita, ao que tudo indica as populações indígenas continuaram sendo empregadas na região paulista em inúmeras atividades, tais como agricultura, pecuária, extração mineral, realização de obras públicas, trabalhos domésticos, militares, condução (guias) etc. Os esforços de negociação dos próprios indígenas cooptados, por remunerações e condições de trabalho condizentes com suas necessidades e expectativas, conviveram e entrecruzaram-se com práticas de compulsoriedade, castigos e até mesmo a inexistência de qualquer remuneração65.
Isso contradiz a possível (mas precipitada) conclusão de que durante o século XIX o trabalho ameríndio já teria se tornado nulo em meio à escravidão africana e ao trabalho assalariado, assim como o juízo de que os índios brasileiros haviam sido reduzidos à marginalidade absoluta e à vacância. Na verdade, o trabalho indígena forçado continuava operante e a pressão que progressivamente foi se estabelecendo (e que se estende até os nossos dias) sobre as terras de uso comum, apenas no século seguinte se desprenderia essencialmente do assédio à força de trabalho dos nativos.
Conclusão
Observando em retrospectiva nossas considerações anteriores, fica claro que durante todo o período observado a escravidão foi a forma de trabalho indígena mais comum e duradoura na região paulista. Ela não apenas existiu durante quatro séculos, mas em nenhuma época de dominação colonial foi suplantada quantitativa ou qualitativamente por nenhum outro regime, sistema ou modalidade de trabalho ameríndio. Além disso, evidencia-se a razão pela qual as demais condições de emprego do trabalho nativo (administração eclesiástica, administração particular, regime tutelar e assalariamento) foram não poucas vezes identificadas com a própria escravidão: pois, em todas elas, a despeito das nuances jurídicas ou morais que se esperava que atenuasse (ou camuflasse) a barbárie do cativeiro, as populações indígenas sujeitas a essas condições continuavam sendo recrutadas através da violência física, permaneciam sendo objetos de operações comerciais sob a condição de mercadorias humanas e o seu trabalho raramente poderia ser considerado como efetivamente voluntário.
Nesse sentido, a escravidão indígena se configurou historicamente como uma espécie de forma básica ou movimento arquetípico de caráter universal que, direta ou indiretamente, se realizou de maneira particular através de cada um dos demais regimes, sistemas e modalidades de trabalho em São Paulo. Em outras palavras, as transformações históricas da condição jurídica e social das populações indígenas entre os séculos XVI e XIX podem ser interpretadas como mudanças de forma, isto é, ajustes ou adequações conjunturais relativos às modificações gerais de sentido pelas quais a sociedade paulista passou ao longo desses quatro séculos, mas que manteve como tendência e conteúdo básico os padrões relacionais fornecidos pela prática, estrutural e de longa duração, da escravidão indígena.
Nota de autor: O presente artigo reflete a continuidade e o aprofundamento da investigação histórica realizada pelo autor durante a elaboração de sua dissertação de mestrado, cujos resultados foram publicados no formato de livro em: Velloso, Gustavo, Ociosos e Sedicionários: populações indígenas e os tempos do trabalho nos Campos de Piratininga (século XVII). Uma versão preliminar do conteúdo do texto foi apresentada oralmente no Seminário “25 anos de História dos Índios no Brasil: balanços e perspectivas da história indígena”, realizado em dezembro de 2017 na Universidade de São Paulo (USP). O autor agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP/Brasil) pelo financiamento do projeto de pesquisa (processo nº 2013/18816-7) que originou este trabalho.