1. Introdução
“Brazil has risen a stronger country today”.1 Essa frase -afirmação, diagnóstico, agenda, programa, projeto, desejo- abre o primeiro discurso da presidente Dilma Rousseff (2011-2016), transmitido também em inglês e espanhol, em resposta aos acontecimentos brasileiros de junho de 2013. Contém o núcleo da estratégia do governo na gestão dos protestos que invadiam as ruas de centenas de cidades do país. Aglutina a essência da tentativa de construção de equilíbrio entre os protestos, o poder estabelecido e a oposição política.
Compõe, igualmente e ao mesmo tempo, o imperativo da narrativa que envolveu a explicação oficial do fenômeno no meio internacional. “La grandeza de las manifestaciones de ayer comprueba la energía de nuestra democracia”, dizia a presidente no discurso de 18 de junho.2 “Os manifestantes”, diria a mandatária brasileira meses adiante, “não pediram a vida do passado, não pediram uma volta atrás. Pediram, sim, o avanço para um futuro de mais direitos, mais participação e mais conquistas sociais. Nós sabemos que democracia gera desejo de mais democracia. Inclusão social provoca expectativa de mais inclusão social. Qualidade de vida desperta anseio por mais qualidade de vida, por mais e melhores serviços”.3
Essa noção, que sintetiza todo o argumento da presidente na apresentação das razões dos acontecimentos de junho, propõe os protestos como expressão dos avanços e melhorias da sociedade brasileira. Lançada dessa forma e maneira, compreende, em essência, momento importante da cristalização de sofisticada estratégia de proteção do legado da gestão petista do Brasil da era Lula aos tempos Dilma. A ampliação e concretização dessa estratégia ocorrem quando a presidente passa a afirmar que o mais importante para o Brasil nos últimos tempos -entendase a partir do presidente Lula (2003-2010)- foi, por um lado, “acelerar seu crescimento e incluir” e, por outro, avançar na “produtividade da economia brasileira” que, agora, precisa avançar ainda mais para “continuar a crescer e incluir”.4
Essa complicada e complexa e consistente e abrangente arquitetura política e narrativa e argumentativa revela pouco convincente o argumento corrente que reconhece a presidente Dilma Rousseff como frágil ou ineficaz no trato da comunicação, da política e das palavras. Discorrer sobre essa arquitetura pode, por um lado, ajudar a desfazer certa má-vontade na compreensão da complexidade da atuação da presidente e, por outro lado, evidenciar a importância da rhetorical presidency para o estudo das relações internacionais. Trafegar por algumas dimensões da rhetorical presidency da presidente Dilma Rousseff, especialmente na gestão dos acontecimentos de junho de 2013, compõe o objeto e objetivo do que segue. E o que se segue vai dividido em cinco seções: 1. Ensaio de método, 2. Noites de junho, 3. Presidente Dilma, la femme d’État, 4. Da razão do estado e 5. De Camões a Mariel.
Em Ensaio de método vai apresentado o arcabouço teórico e metodológico sobre a rhetorical presidency que será aplicado na abordagem do tema (gestão político-discursiva dos protestos brasileiros de junho de 2013) e do problema (os protestos em si). Em Noites de junho são elencados elementos para a compreensão dos protestos brasileiros de junho de 2013. Em Presidente Dilma, la femme d’État vão indicadas as primeiras reações da presidente Dilma Rousseff aos protestos. Em Da razão do estado, seguindo e complementado a seção anterior, a tônica recai sobre as responsabilidades e capacidades institucionais da presidência da República na gestão político-discursiva de protestos. Em De Camões a Mariel são reconstituídos os detalhes da gestão internacional, efetuada pela presidente Dilma Rousseff, da imagem do país após os protestos.
O estudo evidencia o sucesso político-discursivo da presidente Dilma Rousseff na gestão externa da apreensão dos acontecimentos brasileiros de junho de 2013. Esse sucesso não impediria a degradação interna da governabilidade e presidenciabilidade que conduziriam ao impeachment da presidente em agosto de 2016.
Mas é importante considerar que o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o fim do ciclo político do Partido dos Trabalhadores à frente do país -malgrado sintonizado a elementos de desestabilização política e social emergidos nesses acontecimentos de junho de 2013- decorreu da aceleração da disfunção de variáveis políticas, econômicas e institucionais a partir das eleições presidenciais de 2014.5 Isto quer dizer que, conquanto contíguos no plano conjuntural, os protestos de junho de 2013 não concorreram de modo determinante para a hecatombe político-institucional vivenciada no país de outubro de 2014 (reeleição da presidente) a agosto de 2016 (impeachment da presidente). Mesmo assim, segue necessária a melhor compreensão das razões dos protestos e, sobretudo, dos movimentos de sua superação.
2. Ensaio de método
O equilíbrio entre os protestos nas ruas, o poder estabelecido e a oposição ao governo parece ter sido o fundamento da arquitetura política, narrativa e argumentativa da presidente Dilma Rousseff na gestão dos acontecimentos de junho de 2013. Essa arquitetura não representa, em si, algo original. Vale lembrar que toda administração pública política nacional, em tempos de crise ou não, envolve necessidade e capacidade de narração. Narração enquanto construção de mecanismos de imaginação nacional, regional e internacional.6 Essa narração faz parte do que se reconhece por rhetorical presidency.
The rise of the rhetorical presidency7 representou um marco -ou como se diz, um turning point- no estudo da rhetorical presidency em escala mundial. Indica que ela envolve muito mais que simples comunicação presidencial. Ela sugere timing. Timing que precisa ser bem dominado e manejado pelo presidente da república em regimes democráticos. Sobretudo em tempos como os recentes e atuais de acentuada banalização da função presidencial condicionada pela intensa profanação dos meios de comunicação.8 A Rhetorical presidency acaba sendo o instrumento contemporâneo de equilíbrio. A partir dela, o presidente consegue melhor advir efetivamente “head of the government” e “leader of the people”.9
Essa necessidade é relativamente recente no império das democracias. No caso dos Estados Unidos, até inícios do século 20, o “popular leadership” -aquele que se dirige diretamente ao povo sobre assuntos cotidianos- era tido como suspeito. A função da comunicação presidencial se restringia a reiterar a Constituição e comentar os fundamentos para o enlevo da nação. Nenhum tipo de mensagem era direcionada ao povo ou tinha o povo como objeto. O essencial da comunicação presidencial se dirigia ao Congresso. O Congresso era entendido como a genuína representação do povo e da nação.
Por isso a importância do Annual Address que os presidentes americanos fazem no Congresso. Ao longo dos séculos 18 e 19, o Annual Address era a maior manifestação narrativa pública do presidente e seu conteúdo não passava de “patriotic orations, some raised Constitutional issues, and several spoke to the conduct of war”.10 Questões domésticas de política interior jamais eram apresentadas.
O presidente Woodrow Wilson (1912-1921) fora o primeiro a romper com essa tradição herdada dos founders. Com ele, e depois com o presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), a política interna dos Estados Unidos ganhou estatuto moral para compor a conversação pública presidencial. Presidente e povo perderam o pudor em se comunicar mutuamente.11
Outra modificação importante creditada aos tempos do presidente Wilson foi a organização das campanhas eleitorais. Até então, a vinculação do candidato com os eleitores não passava em muito do tímido envio de cartas de aceitação de nominação. A partir dos inícios do século 20, no encanto das inovações da belle époque,12 o império da comunicação chegou à política, aos partidos e ao processo eleitoral.
O rádio -e depois a televisão- permitiu ao candidato falar direta e instantaneamente aos seus possíveis eleitores. Isso revolucionou a percepção dos políticos e dos partidos que, diferente dos tempos dos founders, agora pos- suem uma “national audience” concreta. Essa nova percepção impôs interação e impôs aprendizagens.13
Para além das campanhas, essa nova percepção e o próprio império da comunicação em si também modificaram o exercício do poder presidencial. O presidente da república passou a estar mais exposto. Mais em evidência. Mais demandado pelo povo e pelo governo e pela oposição. A solução presidencial foi multiplicar e diversificar seus discursos em forma e conteúdo. Por isso, o presidente da república, a partir de algum momento do século 20, passou a necessitar de uma verdadeira “assembly-line of speechwriters efficiently producing words that enable him to say something on every conceivable occasion”.14
Dito de modo direto, “a modern doctrine of presidential leadership”, “the modern mass media” e “the modern presidential campign” modificaram a essência e a natureza da comunicação presidencial.15 A complexidade dessa nova demanda e aplicação representa o substrato do que se convenciona chamar rhetorical presidency.
Mas para muito além da rhetorical presidency existe o presidente. O homem (ou a mulher) e a função. E, nesse caso, como indicam Pierre Renouvin & Jean-Baptiste Duroselle em sua notável Introduction à l’histoire de relations internationales, “chaque cas est singulier et tout homme est complexe et ambigu”.16
Emotivo, apaixonado, colérico, nervoso, fleumático, oportunista, doutrinário, idealista, cínico, rígido, imaginativo, prudente, avaro, solitário, passivo, reflexivo, ativo. L’homme d’état tende a ser a combinação disso. Ou seja, possivelmente, decisivamente, nada disso.17
Mas, de qualquer maneira, “a force de scruter les visages”, ele conhece “toutes les ruse de l’âme humaine”. E, por ser assim, independente de quem e como seja e onde esteja, ele, l’homme ou la femme d’état, segue “l’éternel écrivain du roman national et de l’épopée internationale”.18
O general de Gaulle -para ficar apenas em um dos mais notáveis da história mundial mais recente- encarnou a complexidade dessas dimensões no caso da França. O presidente Lula -para ficar apenas em um dos grandes presidentes brasileiros após a redemocratização- encarnou tudo isso no caso do Brasil.
O embaixador Rubens Ricupero foi o primeiro a fazer essa aproximação. Ao avaliar a política externa brasileira de 2003 a 2010, considerou a diplomacia do presidente Lula aos traços da diplomacia do general.19 Rubens Ricupero não fora apenas feliz na comparação. Fora preciso e fora justo.
O general de Gaulle e o presidente Lula, cada qual ao seu turno e soter- rados em suas circunstâncias, convergem absolutamente em várias áreas. Mas a principal talvez seja em sua rhetorical presidency. Ambos administraram pelo império da palavra e da personalidade. Seus países e suas conjunturas demandavam. A França do general e o Brasil do século 21 careciam de uma grande narração nacional e imaginação internacional. Construir essa narração e essa imaginação talvez tenha sido o maior legado dos dois.
La grandeur do general era imperativo necessário daquele momento após Vichy.20 A credibilidade e a urbanidade do homem do appel du 18 juin valeria de pouco ou muito menos sem uma imensa concepção da importância da exposição, da presença e da comunicação. Foi essa concepção que permitiu o soerguimento da France éternelle após a liberação e os solavancos da república do presidente Réne Coty.21 Foi essa determinação que, bem ou mal, permitiu a essa France de toujours se afirmar como espécie de troisième force de influência naquele mundo de George Kennan e sua contenção.22La grandeur do gene- ral, como entende o notável Maurice Vaïsse,23 não deixa de ser substrato da rhetorical presidency da qual fala Jeffrey Tulis.
No caso do Brasil e no caso do presidente Lula, pode se dizer o mesmo: a rhetorical presidency foi imperiosamente fundamental na condução do seus governos e na afirmação de seus êxitos. Com ela o presidente Lula conseguiu deixar sua marca na história recente do país e afirmar, sem receio que ao longo de seus anos no poder, “recuperarmos o orgulho pessoal, o orgulho próprio, a autoestima”.24
Analisando em profundidade a comunicação do presidente Lula, Ali Kamel chegou à conclusão de que o presidente possui “método” ao discursar. Simples e eficaz; mas coerente e consciente.25 Sim, evidente. Pensando de maneira mais abrangente, em verdade, todo presidente da república nos dias que correm -o que não era essencialmente o caso nos tempos do general de Gaulle- acaba possuindo um “método” consciente e racional ao discursar. Um “método” que precisa ser estudado, analisado, avaliado, compreendido. Pois, esse “método”, para o bem e seu contrário, compõe a essência da rhetorical presidency.26 Observando por esse lado, muito diferente do que se lê e ouve e se é levado a intuir, a presidente Dilma Rousseff também obviamente possui um “método” ao discursar. Possui uma “rhetorical presidency”. Da “rhetorical presidency” da presidente Dilma pouco ou nada se sabe ou quer saber. Menos ainda sobre o impacto dela no meio internacional.
Adentrar na seara de aspectos da “rhetorical presidency” da presidente Dilma Rousseff na análise, compreensão e exposição dos acontecimentos de junho de 2013 representa o fundamental do que vem a seguir.
Antes disso, porém, convém, por certo, relembrar os dias e noites de junho de 2013.
3. Noites de junho
Reduzir o preço da tarifa de transporte público foi a motivação das duas mil pessoas de segmentos médios brasileiros que se reuniram na Avenida Paulista da cidade de São Paulo no dia 6 de junho de 2013. Atiradas majo ritariamente pelas redes sociais, elas seguiam as diretivas do Movimento Passe Livre na promoção do fechamento de diversas vias por várias horas. A polícia veio ao encalço da manifestação. A dispersão foi rápida. Mas o movimento não se curvou. Convocou outro agrupamento para a segunda feira seguinte, 10 de junho. No dia 10 de junho, mais de cinco mil pessoas tomaram os principais logradouros da região da Avenida Paulista e da zona oeste da capital. A dissuasão da polícia teve êxito, mas sofrendo mais resistência que da vez anterior.
Essa resistência advinha da maior densidade e convicção que o movimento foi adquirindo nos dias e horas e minutos desde a quinta-feira, 6. Os manifestantes retornaram às ruas na terça-feira, 11. Dessa vez, portanto, muito mais decididos. Eram mais uma vez cerca de cinco mil pessoas. Diante da repressão policial, sua reação foi não ceder. Essa tensão resultou em mais tensão. Policiais excederam na contenção. Jovens moços adultos, em sua maioria estudantes universitários, excederam na obstinação. Acuados pelas forças de correção, sua reação visou extravasar seu protesto destruindo patrimônios privados e públicos. O governador Geraldo Alckmin considerou esse acinte inadmissível. Prometeu endurecer -mantendo ou perdendo a ternura- a repressão. Dois dias depois, na quinta-feira, 13, cinco, sete, onze, treze, dezoito, vinte -os números são muito desencontrados- mil pessoas avançaram pela rua da Consolação querendo avançar à Avenida Paulista rumo ao Paraíso.
Seu protesto era, diziam, pacífico. Conduziam uma simples marcha. Mas a polícia não deixou. Bloqueou o acesso. Impediu seguir. Daí teve início a exclusão da razão em nome da força. Os exageros aludiam à memória dos tempos de batalha e glória da rua Maria Antonia e tudo que veio após até o fim do regime militar no Brasil. Da glória sobrou a usp e o Mackenzie. Da batalha sobrou a incongruência da repressão que se mostrou presente nesses dias de junho de 2013.
Esse legado de inconsequência e despreparo, demonstrado nessa semana e meia de junho de 2013, ganhou atenção e solidariedade de toda a sociedade brasileira. Não demorou a demonstração dessa vinculação para além de São Paulo.
No dia 15 de junho, abertura da Copa das Confederações, o público pagante deu seu recado. Abriu vaia à presidente Dilma Rousseff. De nada adiantou Joseph Blatter, presidente da Fifa, questionar onde estaria o fair play dos brasileiros. De nada valeu lembrar do respeito e da reverência devidos à presidente da república e às instituições brasileiras. As vaias foram sem fim. O susto e a incompreensão também.
A presidente Dilma, mesmo assim, declarou aberta a competição esportiva. Afinal, não se tinha muito que fazer. Mas a partir daí também foi aberta a fase de protestos para além do Paraíso e da Consolação. Para além de São Paulo e seus fundões. Brasília, Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa, Duque de Caxias, São Gonçalo dispersaram a centralidade do movimento e multiplicaram suas demandas e reivindicações.
Nos dias 17, 18, 19 e 20 de junho as manifestações chegaram ao auge.
Envolveram mais de 350 municípios brasileiros e lançaram milhões de pessoas às ruas, avenidas, praças, bosques e alamedas.
“Copa do Mundo eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”
“Queremos hospitais padrão Fifa”
“O gigante acordou”
“Ia ixcrever augu legal, maix fautô edukssão”.
“Não é mole, não. Tem dinheiro pra estádio e cadê a educação”
“Todos contra a corrupção”
“Fora Dilma!”
“Fora Cabral!”
“Fora Alckmin”
“PT = pilantragem e traição”
“Zé Dirceu, pode esperar, tua hora vai chegar”
“Volta, Lula”.
Essas eram algumas das palavras de ordem que, por impotentes, se somaram à depredação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, do Congresso Nacional, do Itamaraty entre outros, todos símbolos do estado e da nação brasileiros.
Por esses dias, não teve jeito: o governo de São Paulo revogou o aumento do valor das tarifas do transporte público. Na mesma toada, o governo do Rio de Janeiro fez o mesmo. Adiante, dezenas, centenas de municípios seguiram os exemplos e o modelo. Isso reduziu a intensidade e fragmentou a densidade do movimento. De 21 a 30 de junho tudo foi se esmaecendo. Continuou no cotidiano dos brasileiros. Mas, essencialmente, na memória.
Seria evidentemente outra história discutir a História desse junho tão pleno em histórias.
4. Presidente Dilma, la femme d’État
Na gestão da história e da memória das noites desse junho de 2013, a presidente Dilma não utilizou mais que história e memória. História e memória traduzidas em política e comunicação. Política e comunicação depositárias de sua rhetorical presidency.
O discurso do dia 18 e o pronunciamento do dia 21 representam o cerne da estratégia da presidente na gestão de junho. No discurso fora feito o diagnóstico. No pronunciamento, o plano de superação. Em nenhum momento a presidente considerou os eventos como expressão de crise ou instabilidade ou problema ou inconveniência. Tudo que vinha se vendo e vivendo e ouvindo e sentindo da ausência de “fair play” ao “fora Dilma” foi descrito pela presidente como demonstração da “energia da nossa democracia” e do “civismo de nossa população” que, no âmago de seu mais nobre e altaneiro patriotismo, cantara o hino nacional pelas ruas e louvara o fato de ser brasileiro.27 Tudo era reconhecido pela presidente como efeito positivo. O Brasil se despertara mais forte. E, aduzia a presidente, “se aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer, melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas”.28
Vistos em distância e meditados em perspectiva, a forma e o conteúdo da mensagem da presidente demonstram imensa sofisticação de análise e noção e percepção de timing.
O mal-estar presidencial tivera início no sábado, 15 de junho, com a vaia recebida no estádio Mané Garrrincha. Domingo, 16, e segunda-feira, 17, o movimento dos “20 centavos” deixou de ser majoritariamente paulista, ganhou todas as regiões do país e anexou diversas outras pautas. O uníssono das ruas, das alamedas, dos becos e dos lamaçais no dia 17 foi ensurdecedor. A presidente -que, a rigor e por contingência da função, não comenta e não deve comentar situações, mas exerce o poder e toma decisão; c’est la femme d’état- precisava, ao menos, dizer alguma coisa.
Evidentemente que a essa altura estavam acesos todos os sinais de alerta de todos os segmentos do governo, dos aliados e da oposição. Todos os aconselhadores do aparelho de estado ou não,29 sabujos ou não, se tinham em plantão. O silêncio ia inquietando. Os minutos e as horas iam passando. O afã de comparação foi ficando irresistível. O “se fosse o Lula já teria resolvido” começou a rondar claramente o imaginário de toda entourage presidencial e partidária e dos tomadores e comentadores de decisão por toda parte. A presidente falou no lendemain. Dia 18.
No dia 18 a situação dos “20 centavos” estava praticamente solucionada. Não reside nenhum anacronismo nessa impressão. Nesse famigerado dia 18, para não dizer no próprio dia 17, desde as primeiras horas já se cogitava a revogação do aumento do preço das tarifas como forma de neutralização das manifestações. O discurso da presidente ocorre quando os “20 centavos” não eram mais o problema. Não foi ao acaso a anulação do aumento, no dia 19, por parte do prefeito Fernando Haddad, do governador Geraldo Alckmin e do governador Eduardo Paes. O discurso presidencial do dia 18 nada falava dos “20 centavos”. Mas sua apresentação abrangia eles e para além deles. Avaliava a presidente que “essas vozes das ruas precisam ser ouvidas”. Logo em seguida, argumentava “elas -as vozes das ruas- superam os mecanismos tradicionais das instituições, dos partidos políticos, das associações e dos próprios meios de comunicação”. E, por fim, arrematava, “essa mensagem das ruas é por mais cidadania, por melhores escolas, melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito de participação”.30
Ao apreender a notícia da revogação dos “20 centavos”, muitos dos manifestantes se perceberam ouvidos. Doravante os protestos começaram a se esmaecer. Por isso tem muito sentido a intuição de André Singer ao sugerir que a partir do dia 21 teve início fase da fragmentação do movimento.31 E parece ter sido na percepção antecipada dessa fragmentação que a presidente programou o seu pronunciamento de 9 minutos e 58 segundos da sexta-feira, dia 21.
Sexta-feira, 21/06/2013, 21h.
O pronunciamento ocorreu em cadeia nacional no horário nobre de acesso ao recesso semanal. A presidente preferiu trailleur tom pastel, cor não primária, portanto, menos viva e agressiva que seu costumeiro vermelho dos trajes. Mas, diferente de sua veste, sua comunicação foi viva, assertiva, ativa e altiva.
“O governo e a sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária destrua o patrimônio público e privado, ataque tempos, incendeie carros, apedreje ônibus e tente levar o caos aos nossos principais centros urbanos”.32 O governo e a sociedade não poderiam aceitar porque, em verdade, “as tarifas baixaram e as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional”, indica a presidente ao meio do pronunciamento.33
Lido no timing da rhetorical presidency da presidente, ela está a dizer que as ruas e seus arrabaldes que precisavam ser ouvidos -conforme dito no discurso do dia 18- o foram. “As tarifas baixaram”. Parte majoritária dos manifestantes voltou pra casa. Os que ainda não tinham voltado, deveria voltar. “Ganharam” a causa.
A discussão agora segue para outro patamar. Integra uma dimensão mais abstrata. Os “20 centavos”, ainda que embaraçosos, são tangíveis a todos -povo, governo e oposição. Copa do Mundo, hospitais, educação, pt, corrupção, Lula, se pode ao mínimo dizer que não ou, ou menos, menos. No discurso da quarta-feira, 18, a presidente acentuava estar “ouvindo as vozes da mudança”. E, mais que isso, indicava que seu governo estava “empenhado e comprometido com a transformação social”.34 No pronunciamento da sexta feira, 21, a presidente indicava sem titubeio: “vou convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do país para um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos”.35
Esse momento explicita efetivamente a capacidade da presidente em se colocar como “head of the government” e “leader of the people”. Demonstra a força de sua percepção de timing. Demonstra a força de sua rhetorical presidency.
Um pouco antes no próprio pronunciamento, a presidente afirmara que “como presidenta, eu tenho obrigação de ouvir a voz das ruas e dialogar com todos os segmentos”.36 Essa consideração, em verdade, afirma o que a presidente Dilma Rousseff, antes de tudo, fora outorgada para durante o período de janeiro de 2011 a dezembro de 2014 ser: “femme d’état”. Somente o presidente da república, o chefe, líder e representante maior do estado, do governo e da nação, possui esse caráter quase demiúrgico. Essa força extraordinária que, como dizia André Malraux, parece vir do fundo dos anos.
A sugestão de promover o pacto com governantes e prefeitos em nome das demandas vindas das ruas informa cabalmente que a presidente era a única pessoa com legitimidade, autoridade e austeridade moral para fazer conversar as partes. Por isso, que logo após a sugestão do pacto, a presidente afirma que vai receber “líderes das manifestações pacíficas, os representantes das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos dos trabalhadores, das associações populares”.37
O “grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos” seria discutido imediatamente na segunda-feira seguinte, dia 24. E o foi.38 No pronunciamento da sexta-feira, 21, esse pacto fora proposto como a reunião de três objetivos.
Plano Nacional de Mobilidade Urbana com ênfase em transporte coletivo.
“Destinação de cem pro cento dos recursos do petróleo para a educação”.
“Trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde, o sus”.
Esses objetivos compõem o segundo passo da presidente Dilma na definição do factível. O primeiro ficou imantado no assunto das tarifas e nos “20 centavos”. O terceiro passo representa a dimensão mais complexa da exposição da presidente, a saber, a dimensão da política.
“Brasileiras e brasileiros, precisamos oxigenar o nosso sistema político”. “Oxigenar” não aparece ao léu na frase. Indica, antes de tudo, o nível da abstração e intangibilidade do objeto. O sistema político brasileiro agoniza. Está sem ar, alude a presidente. Do ponto de vista “concreto”, vira, então, imprescindível “encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitores e, acima de tudo, mais permeáveis à influência da sociedade”.39 Mas como fazer isso? Resposta da presidente: a partir da “construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular”.40
Palavras ao vento?
Nas carreiras de tudo que se vem aqui dizendo, seria maldoso, desonesto e inconsequente dizer disso. Muito embora o vento e as palavras e as palavras ao vento também façam parte da imaginação política e, sobretudo, em sua exposição. Mas, em verdade, essa dimensão prospectiva e abstrata e imaginativa e falsa e falseável acaba por corresponder ao núcleo do império da policy demagogue que envolve toda necessidade se ser popular leader, o que também condiz com a rhetorical presidency.41
5. Da razão do estado
Outras dimensões, inclusive presidenciais, da gestão de junho podem e devem emergir. A questão essencial do argumento até aqui foi simplesmente reconhecer a centralidade da presidente Dilma Rousseff na construção da narrativa, passada e futura, do evento. “Brazil has risen a stronger country today” foi ficando cada vez mais difícil de discutir, negar ou contestar com o distanciamento dos dias 18 e 21 de junho de 2013. Sobretudo por não se saber ao certo o que quer dizer.
Do intenso debate interno que envolveu e envolve praticamente todos os intelectuais públicos brasileiros, salvo melhor avaliação, nada disso foi posto em questão ou negação. Isso se deve à grandeur da narração da presidente cotejada de imensa sofisticação no trato das palavras e das coisas. Como essas palavras e coisas referentes à leitura presidencial dos acontecimentos de junho foram apresentadas no meio internacional compreende o objeto e o objetivo do que se passa a discorrer a seguir.
Seria outro trabalho avaliar a recepção internacional das noites de junho. Dada a importância da projeção mundial brasileira contemporânea, não deve ser leviano afirmar que nenhuma chancelaria, nenhum aparelho de estado, nenhum importante organismo ou organização formador de opinião em qualquer parte do planeta ficou sem comentar os sons emitidos das ruas do Brasil daqueles dias de junho de 2013. Avançar, portanto, nessa senda de diversas e incontáveis veredas seria adentrar por picadas outros diversos vastos mundos de ventura insondável.
O propósito aqui, muito mais comedido, portanto, objetiva analisar como a presidente Dilma Rousseff apresentou e explicou junho em suas viagens ao exterior. Nesse sentido, são identificadas as excursões presidenciais ao exterior de junho de 2013 a junho de 2014. Do Junho dos protestos de junho ao junho do início de uma das razões dos protestos, a Copa do Mundo. A partir daí são observados os discursos e entrevistas da presidente. O teste final da análise visa demonstrar a validade da rhetorical presidency da presidente na exposição dos acontecimentos de junho de 2013 no exterior.
De 1 de junho de 2013 a 1 de junho de 2014, segundo o setor de comunicação do Palácio do Planalto da Presidência da República, a presidente Dilma Rousseff proclamou 116 discursos e conferiu 72 entrevistas. Foram, portanto, cerca de 190 ocorrências sem contar as emissões Café com a Presidenta e Conversa com a Presidenta e eventuais aparições não computadas pelo aparelho oficial. Uma rápida e rasa e imprecisa comparação com o padrão de ocorrência nos tempos de seu antecessor indica que a presidente talvez não esteja tão longe da média de aparições, como se costuma aludir.
Pelas contas de Ali Kamel,42 o presidente Lula teria feito 1770 discursos e entrevistas entre 1 de janeiro de 2003 e 31 de março de 2009. Portanto, 1770 ocorrências em sete anos e três meses. Uma aritmética simples transforma isso em 20.3 intervenções por mês e em aproximadamente 244 intervenções ao ano. Na comparação ficariam, então, 244 ocorrências do presidente Lula contra 188 ocorrências da presidente Dilma. Avaliando mais de cerca, a diferença de 56 ocorrências entre um e outro não informa conclusões conclusivas.
Primeiro que seria necessário apanhar momentos similares. Nos quase doze anos de governos Lula e Dilma, seria quase impossível localizar momentos similares aos doze meses após os acontecimentos de junho de 2013.43 Nada parece se igualar ao período entre Copas. Da Copa das Confederações à Copa do Mundo no Brasil. Junho de 2013-junho de 2014. Nem o período de gestão após as denúncias que geraram o dito “escândalo do mensalão” em 2005 tampouco os momentos após a quebra do Lehman Brothers em 2008 poderiam servir de parâmetro.44 São momentos de dispersa e diferenciada demanda de exposição pública. Mas, no limite, não conseguiram alterar na essência o padrão.
Segundo que, a despeito da agenda oficial dos presidentes, existe -banal dizer, mas importante lembrar- o presidente. A personalidade do homme d’état Lula é essencialmente diferente da personalidade da femme d’état Dilma Rousseff. O presidente era mais expansivo. A presidenta segue mais contida. A verborragia e o laconismo não necessariamente modificam a eficácia da mensagem.
E, por fim, um terceiro ponto seria reconhecer que realmente a quantidade não necessariamente representa diferença qualitativa essencial. As 56 ocorrências em favor do presidente Lula não necessariamente imprimem diferença substantiva entre sua comunicação e a da presidente Dilma. Caso contrário, como, então, melhor entender a razão de as taxas de aprovação popular da presidente Dilma seguirem o mesmo padrão das taxas de aprovação do presidente Lula?
Tudo isso merece e admite mais elucidação, avaliação, análise e estudo para se poder avançar na melhor compreensão desse fenômeno essencial da vida pública e política brasileira contemporânea que é a rhetorical presidency dos mandatários brasileiros.
No mesmo período de 1 de junho de 2013 a 1 de junho de 2014, a presidente Dilma Rousseff fez nove turnês ao exterior. Portugal, Uruguai, Suriname, Paraguai, Rússia, Estados Unidos da América, Peru, Suíça e Cuba. Todas com agendas densas e intensas. Afinal, a despeito do malaise ambiente que emana dos organismos brasileiros e estrangeiros formadores de opinião, a globalidade da efetividade da ascensão do Brasil como importante rising power continua sendo reconhecida e requisitada no meio decisório internacional.45
Uma viagem presidencial, desnecessário dizer, se prepara. Poucos discorreram de maneira tão bela e abrangente sobre esse assunto como mais uma vez o embaixador Rubens Ricupero em magnífico testemunho sobre a viagem presidencial do presidente Tancredo Neves em 1985 contido em seu decisivo Diário de bordo.46 Uma viagem presidencial brasileira sempre envolve muitos detalhes, muita circunstância, muito imprevisto, muita entrevista, muito discurso.47
Em suas nove viagens, de junho de 2013 a junho de 2014, a presidente Dilma Rousseff proferiu, em média, dois discursos públicos e conferiu, em média, uma entrevista.48 Desses discursos e entrevistas constam a exposição e a explicação da presidente acerca dos acontecimentos brasileiros de junho de 2013. A conjunção dessa exposição-explicação vai passada em revista a seguir.
6. De Camões a Mariel49
Passou meio despercebido no Brasil, algures e alhures, que entre 7 de setembro de 2012 e 10 de junho 2013 foram celebrados o Ano do Brasil em Portugal e o Ano de Portugal no Brasil. Uma iniciativa acordada entre os dois países em maio de 2010.50 Por essa razão, no dia 10 de junho de 2013, a presidente Dilma Rousseff brindava com seu homólogo português o “grande reencontro” do Brasil “consigo mesmo, o qual tem como desdobramento necessário o desejo de aproximação dos povos irmãos que, lamentavelmente, ainda conhecemos tão pouco”.51 10 de junho é feriado nacional do dia de Portugal e feriado das comunidades lusitanas do dia de Camões.
Um dia de festa. Festa na qual, desde 1989, se entrega o valor em dinheiro do Prêmio Camões a escritores, literatos ou críticos, de língua portuguesa dispersos pelos rastros da diáspora lusitana. Os brasileiros João Cabral de Melo Neto (1990), Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), Antonio Candido de Mello e Sousa (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012) fora agraciados com o prêmio em sessões anteriores. Os portugueses José Saramago (1995) e Antonio Lobo Antunes (2007) também receberam o gracejo antes. Em 2013 foi a vez do moçambicano Mia Couto, autor dos inesquecíveis Terra sonâmbula e A Chuva pasmada.
Neste ano de 2014, acaba de ser contemplado o memorável poeta, historiador, diplomata e embaixador brasileiro Alberto da Costa e Silva.
Na ocasião da cerimônia de entrega do prêmio em 2013, a presidente Dilma Rousseff era, de fato e direito e conveniência e contingência, convidada de honra em Portugal. Para além da amabilidade da circunstância e da urbanidade do momento, os portugueses queriam saber como o Brasil poderia ajudálos a superar a brutalidade das crises -financeira, econômica, social, política, institucional- que ganhava níveis de agudeza raramente vistos.52
Diante disso, a presente Dilma então acentua que a proposta brasileira seguiria sendo “a ênfase que damos ao estreitamento das relações entre o Mercosul e a União Europeia, entre o Brasil e a União Europeia e entre Brasil e Portugal”.53 No caso específico da relação entre os dois países, a presidente fez lembrar dos dois projetos da Embraer em Évora e dos vários investimentos do grupo Galp Energia nos campos de explicação petróleo de Lula, Cernambi, Júpiter, Caramba, todas áreas de présal na costa brasileira.54
Os protestos brasileiros estavam em seu segundo dia. Ninguém sabia da dimensão que poderiam chegar. Passaram, então, despercebidos. Como indiferença compulsória, fogo que arde e não se vê.
Da companhia da senhora Maria Carvaco da Silva, a presidente Dilma regressou ao Brasil sem nada sobre junho mencionar. Situação diferente seria vivenciada em sua passagem por Montevidéu no mês seguinte.
No dia 11 de julho de 2013, a presidente Dilma foi ao Uruguai para participar da reunião da Cúpula dos Estados Parte e Associados do Mercosul. Três semanas após seu pronunciamento de 21 de junho e uma semana depois da plena dispersão das investidas de junho.
As revelações de Edward Snowden sobre a atuação da National Security na vigilância americana e mundial e o acirramento da situação da Síria após a comprovação de que o presidente Assad ultrapassara a redline estabelecida pelo presidente Obama pautavam o grosso da discussão internacional.55 Mesmo assim, a jornalista responsável pela entrevista oficial com a presidente apresentou como essência de seu questionamento: “Como a senhora viu hoje as manifestações lá no Brasil?” Nesse dia 11 de julho, centrais sindicais estavam bloqueando rodovias Brasil afora. A presidente Dilma não titubeou em desarmar a questão e a jornalista. Respondeu em direto: “Olha, minha querida. As manifestações, em geral, sejam de quem sejam, têm que ser respeitadas como manifestações de reivindicações, de busca de mais direitos sociais [...] Querer mais é algo muito positivo na democracia [...] O Brasil é um país tão forte, em termos democráticos, que ele consegue conviver de forma positiva com as manifestações”.56
Para acentuar o local e a circunstância -América do Sul e Mercosul-, a presidente não por acaso considerou que no caso brasileiro “nós temos grandes avanços nos últimos dez anos e agora as pessoas querem mais”.57 Essa foi também para lembrar que o Brasil segue major power na região e nessa condição tem autoridade para servir de exemplo e modelo. Foram esse exemplo e modelo que transcorreram todo o seu discurso do dia seguinte onde junho de 2013 simplesmente desapareceu.58
Desapareceu também nas suas intervenções quando da posse do presidente paraguaio Horácio Cartes em 14-15 de agosto de 2013 em Assução59 e esteve muito subliminar nas aparições em São Petersburgo por da reunião do G20 entre 6 e 7 de setembro.60 O efeito Snowden davam a nota e o allegretto da discussão.
Em defesa ao presidente Evo Morales que fora humilhado na Europa ao ter seu avião impedido de passar por espaço aéreo francês no trajeto Moscou- Portugal, a presidente Dilma dizia que “nós também fomos atingidos diretamente pelas recentes denúncias que as comunicações eletrônicas e telefônicas de cidadãos e instituições de nossos países e de outros países da América Latina estão sendo objeto de espionagem por órgãos de inteligência”.61 Na longa entrevista coletiva concedida na Rússia, a presidente falou praticamente somente disso e de seu impacto sobre as relações americano-brasileiras e brasileiro-americanas.62
Corria rumores da possibilidade da presidente brasileira cancelar sua visita aos Estados Unidos no mês de outubro. As atenções estavam, portanto, direcionadas a saber como tinham sido as conversações, em pessoa, entre a presidente Dilma e o presidente Obama nos bastidores da reunião do G20. Não se sabe em essência o que em suas conversas se falou. Fato foi que à imprensa a presidente Dilma considerou que “guerra é guerra, terrorismo é terrorismo, espionagem de país democrático é espionagem” e era “incompatível com a convivência entre países amigos”, como Brasil e Estados Unidos.63
Por fim a presidente Dilma acabou de fato não indo aos Estados Unidos em outubro e o Brasil liderou o estabelecimento de um marco civil multilateral para a governança da internet que ganhou corpo e se afirmou a partir do acordo realizado no Global Multistakeholder meeting on the Future of Internet Governance em abril de 2014 em São Paulo.64 A proposta geral desse acordo foi lançada em 24 de setembro de 2013 em Nova Iorque por ocasião da Assembleia Geral das Nações Unidas. De certa maneira, o impacto do efeito Snowden abrangeu parte importante desse discurso da presidente Dilma.
Nele a presidente brasileira ainda dizia que as “recentes revelações sobre as atividades de uma rede global de espionagem eletrônica provocam indignação e repúdio em amplos setores da opinião pública mundial” e que no caso brasileiro “fizemos saber ao governo norte-americano nosso protesto, exigindo explicações, desculpas e garantias de que tais procedimentos não se repetirão”.65 Independente da repetição ou não dos atos americanos de vigilância, foi nessa ocasião que a presidente Dilma voltou a falar de junho. E dessa vez para expor de modo oficial ao mundo inteiro a sua apreciação dos acontecimentos.
A presidente disse mais do mesmo. Não teria sentido dilapidar a exposição. “As manifestações de junho, em meu país, são parte indissociável do nosso processo de construção da democracia e da mudança social. O governo não reprimiu, pelo contrário, ouviu e compreendeu a voz das ruas”.66 Pareceu importante à presidente promover uma suave modificação no tom da justificação de sua atuação enfatizando que “ouvimos e compreendemos porque nós viemos das ruas. Nós nos formamos no cotidiano das grandes lutas do Brasil. A rua é o nosso chão, a nossa base”.67
Essa mudança de tom servia simplesmente para amplificar o caráter pedagógico de sua explicação. No mesmo sentido, ela lembra aos ouvintes que “os manifestantes não pediram a volta ao passado. Os manifestantes pediram sim o avanço para um futuro de mais direitos, mais participação e mais conquistas sociais.”68 A pujança dessa explicação-exposição-narração seguiu a mesma nos demais compromissos -participação na abertura do Foro Política de Alto Nível sobre Desenvolvimento Sustentável no dia 24 de setembro e no encerramento do Seminário Empresarial “oportunidades em infraestrutura no Brasil no dia 25 de setembro- da presidente em Nova Iorque.69
Nada similar fora apresentado nas passagens da presidente Dilma pelo Paraguai em 29 de outubro de 2013 quando da inauguração da linha de 500 kV entre Villa Hayes e a subestação de energia da margem direita da Itaipu Binacional em Hernandárias nem pelo Peru em 11 de novembro quando de sua oficial ao presidente Humala. A retomada da narrativa veio nos cortejos da presidente pela Suíça e por Cuba.
Na Suíça, no dia 23 de janeiro de 2014, a presidente foi primeiro à Zurique, à sede da Fifa, “na casa do futebol”. O objetivo, transcrito na mensagem, foi reafirmar que o Brasil tem sim o fair play que requeria Joseph Blatter na abertura da Copa das Confederações e, mais que isso, iria fazer a “Copa das Copas”.70 No dia seguinte, foi a vez da presidente discursar em Davos, no Fórum Econômico. Nesse contexto e circunstância, sua leitura e exposição dos acontecimentos de junho foram implacáveis.
No momento mundial de ainda permanente agonia diante dos resguardos da crise financeira de 2008, 71a presidente apresentou junho como o modelo de exemplo que o Brasil foi, é e pode ser. Para isso, acentuou que “criamos um imenso contingente de cidadãos com melhores condições de vida, maior acesso à informação e mais consciência de seus direitos. Um cidadão de novas esperanças, novos desejos e novas demandas”.72 Esses novos desejos e novas demandas eram entendidos claramente como o fruto dos acontecimentos de junho. Demandas e desejos que emanaram do efeito concreto da criação de “um grande mercado interno de consumo de massas” e de um “um dos maiores mercados de automóveis, computadores, celulares, refrigerados, fármacos e cosméticos” do mundo. Mais que isso, enumera a presidente, mesmo assim “apenas 47% dos domicílios têm computador; 55% apenas possuem máquinas de lavar roupa automática; 17%, freezer; 8% tv plana”.73 Desse contraste, faz entender a presidente, emanou junho.
De Davos à província de Artemisa em Cuba -fazendo o caminho inverso do presidente Lula que saía do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e seguia para o Fórum Econômico Mundial de Davos74-, a presidente simplesmente reiterou a sua força de sua concepção de timing. Em Artemisa, no dia 27 de janeiro, foi inaugurar o Porto e a Zona de Desenvolvimento de Mariel com capacidade de recepção de navios de grande porte estilo aos Super Post-Panamax.75 Ambos empreendimentos contam com financiamento do bndes brasileiro. No dia seguinte, teria início em Havana a II Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos - Celac.76 A esse momento, a presidente Dilma não precisaria mais nada dizer. Os acontecimentos de junho de 2013 eram, em parte, história e memória e, em parte, desejo e convicção. Tudo já tinha sido deglutido e ruminado e deglutido novamente por essa instituição -ainda pouco estudada, pouco analisada, pouco compreendida e pouco respeitada- que é a rhetorical presidency da presidente Dilma Rousseff.