Sumário: I. Introdução e premissas. II. Os motivos determinante. III. Quatro críticas à eficácia vinculante dos motivos determinantes. IV. Jurisprudência reiterada, expectativa qualificada e proteção da confiança. V. Conclusão. VI. Referências.
I. Introdução e premissas
Dentre os problemas metodológicos do Direito, certamente não um problema recente, porém inegavelmente atual, é a questão da fundamentação da decisão jurídica. Diversos autores debruçaram-se, e ainda tratam do tema, passando por clássicos como Hart, Dworkin, Alexy e MacCormick, até nomes mais afastados da literatura nacional, como Aulis Aarnio, Henry Prakken e Jaap Hage.
A virada ontológico-linguística imposta pela filosofia de Wittgenstein implicou efeitos nos mais diversos ramos do conhecimento, sendo que o Direito não permaneceu inerte ao impacto do filósofo austríaco. Brevemente, considerando que o texto é sujeito a um contexto, e assim sujeita-se à espécie de jogo de linguagem1 -sendo caracterizado por aquilo que Hart chama de textura aberta2- o texto é dotado de uma zona de indeterminação.3 Desse problema de indeterminabilidade é inegável que comandos genéricos e abstratos padecem desta “natureza”, contudo, comandos concretos também podem ser afetados -e nestes é centrada a investigação de Wittgenstein, quando o mesmo afirma que um comando, por mais concreto que possa parecer- “Platte”, “Platte!”, “Platte?” - terá seu significado dependente e variável. Hart em grande parte influenciado por Wittgenstein e von Wright, afirma:
Boa parte da teoria do direito deste século tem-se caracterizado pela tomada de consciência progressiva (e, algumas vezes, pelo exagero) do importante facto de que a distinção entre as incertezas da comunicação por exemplos dotados de autoridade (precedente) e as certezas de comunicação através da linguagem geral dotada de autoridade (legislação) é de longe menos firme do que sugere este contraste ingénuo. Mesmo quando são usadas regras gerais formuladas verbalmente, podem, em casos particulares concretos, surgir incertezas quanto à forma de comportamento exigido por elas. 4
Uma das missões da dogmática jurídica nesse cenário é promover o estabelecimento de bases metodológicas que propiciem, com o mínimo de racionalidade exigível, alguma objetividade. A busca por tais parâmetros, conforme bem aponta Humberto Ávila, implica em responder aos critérios que compõe a fundamentação da decisão jurídica: O que é feito; como é feito; com base no que é feito; porque é feito. Cada qual deve ser passível de avaliação objetiva, de modo que o intérprete, ao analisar uma decisão tenha segurança suficiente quanto ao método aplicado no caso concreto para implicar no resultado determinado, possibilitando ou contentar-se com a decisão já prestada, ou buscar reformá-la de modo a torná-la adequada.5
A reformulação da teoria da decisão, com o estabelecimento de bases metodológicas6 -efetivamente, as regras do jogo da fundamentação- leva a dois efeitos: redução da carga de trabalho nos tribunais superiores; garante maior segurança jurídica aos particulares, que não mais veriam decisões completamente discrepantes para casos semelhantes.
Deste modo, utiliza-se como premissa a concepção alternativa das normas, ao revés da concepção unívoca, de modo que uma determinada norma poderá contar com diversos sentidos possíveis.7 A textura aberta, nessa concepção alternativa, leva Hart à exposição acerca da discricionariedade,8 ou seja, a escolha entre múltiplas respostas que encontram fundamento normativo -sendo, portanto, válidas.
Ocorre que, aceita a tese de que não há de se confundir texto e norma,9 sendo que a norma jurídica é produto de um processo argumentativo racional do intérprete,10 verifica-se que há a necessidade de estabelecimento de alguns limites -já que não há grau zero de interpretação. Há uma necessária comunicação entre norma e fato, conforme aduz Jan Schapp: “o universal e o singular devem ser levados a uma correspondência recíproca”.11
Não se pode admitir a completa desvinculação do universal, não o tendo como autônomo, posição do realismo do conceito -ultrarrealismo-, quando o consideram como “plena e adequadamente cognoscível”, no dizer de Schapp.12
De outro lado certamente incorreto ignorar qualquer significado mínimo do universal, em posição puramente nominalista. O universal não é um simples conceito desvinculado e amorfo, se o fosse estaria descaracterizado o próprio sentido de lei, em sua universalidade.13
A lei é garantia de significados mínimos e de método: o universal, premissa maior, que quando confrontado ao individual -em contínua reconstrução de sentido- será aplicado às séries individuais concretas (pluralidade de casos individuais unidos por vínculo material).
É certo que o texto legal não regulará todas as situações possíveis. O legislador não é onisciente. Sempre ocorrerão situações, impulsionadas pela marcha do tempo, que não terão soluções plenamente reguladas. O legislador tem a competência e a vontade de regular, com o universal, estabelecendo um princípio geral (ou uma regra que referencia um princípio geral), mediante o qual estabelece uma solução a uma situação hipotética. Como coloca Schapp: “A exposição desta razão segue, em regra geral, de forma muito abreviada, de tal modo que a lei praticamente somente fornece balisas para uma fundamentação que o jurista deve então por sua vez desdobrar”.14
O caso individual concreto, contudo, só se materializa enquanto juridicamente apreensível na decisão judicial, conforme estabelece Schapp,15 e é essa a baliza necessária para avaliar a eficácia vinculante dos motivos determinantes: o pulo do contexto hipotético (legislativo) para o caso individual concreto (e a série individual concreta).
É com base nessas premissas adotadas da teoria do Direito que se propõe a avaliação da aplicabilidade da tese da eficácia vinculante dos motivos determinantes na atual conjuntura legislativa brasileira, perpassando pela conceituação do objeto de estudo, pelas críticas realizadas à tese, pelas pontuais respostas (ou provocações) que merecem atenção dos críticos, e, ao fim, pela aceitação da existência de um objetivo válido para a tese e pela inexistência de empecilhos plenos à adoção do modelo, considerado o atual estágio de abstrativização do controle concentrado de constitucionalidade.
II. Os motivos determinantes
A teoria da eficácia vinculante dos motivos determinantes fora emprestada do direito alemão -onde não é menos problemática-, sendo introduzida no Brasil em muito por influência do Min. Gilmar Ferreira Mendes.
Defende Mendes que efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal não é cedido apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos fundamentos determinantes que levaram à edição do dispositivo, vinculando, portanto, as cortes inferiores e administrativas à caracterização dada pela Suprema Corte, ao menos no que diz respeito ao chamado direito constitucional específico - spezifisches Verfassungsrecht, sendo a decisão oponível contra, inclusive, órgãos constitucionais.
A posição defendida pelo Bundesverassungsgericht estabelece que a interpretação da qual resulta o princípio, e sua extensão normativa, devem ser respeitados pelas Cortes e demais autoridades administrativas em casos futuros, respeitando-se assim os fundamentos determinantes da decisão,16 aplicando assim o efeito vinculante como decorrência do § 31 para. 1 da BVerGG.17,18 Portanto, pela argumentação do BVerfGG não apenas ao dispositivo se dá o efeito vinculante, pois o dispositivo não é apartado aos motivos que levaram à prolação da decisão, de modo que de nada adiantaria uma decisão -um dispositivo- sem que este pudesse ser interpretado de acordo com a matéria que fora enfrentada. Tal posição fora explicitada em BVerfGG 36, 1 [36], onde assentou-se que todos os fundamentos da decisão são necessários para o estabelecimento, compreensão e aplicação da força vinculante da decisão - dispositivo.19
O efeito vinculante, segundo Klaus Vogel, deveria abarcar o que chama de “norma decisória concreta” (konkrete Entscheidungsnorm), resultado de um processo interpretativo que leva ao estabelecimento de uma decisão com fundamento na norma - subjacente ao resultado.20 Para Vogel, portanto, o conceito de efeito vinculante alcança não apenas o dispositivo, mas a norma concreta aplicada ao caso, guardando necessária correlação ao julgado. Pela perspectiva de Vogel, não há como cindir-se o que se decidiu do porquê se decidiu, daí a lição de Streck:21 a argumentação não é simplesmente um elemento acidental que, vez encerrado, cria uma decisão que é autossustentada puxando-se pelos próprios cabelos. O entendimento de Vogel, é de que a fundamentação é algo mais do que um meio para um fim. Ela dá forma à matéria, é a estrutura na qual a decisão se firma. Uma ponte do texto à norma. Do caso individual concreto à série de casos individuais concretos.22
Nesse sentido, a eficácia vinculante dos motivos determinantes não aparenta ser muito distante da tese dos precedentes, reforçada no Brasil a partir da virada metodológica trazida com a Lei 13.105/2015, que instituiu o Novo Código de Processo Civil. Streck define, e com muito acerto, o modo de aplicação do precedente, no qual a holding -a decisão judicial em si- pode, e deve -por força do stare decisis- ser constituída de força vinculante, de modo a obrigar os demais tribunais submetidos a seguir o precedente existente. Ocorre que a holding somente se manifesta caso as particularidades do leading case forem comprovadas.23
Importante reparar, pois, que o sistema de precedentes prevê -de maneira até certo ponto inovadora, visto que hoje é um tema pacífico- a impossibilidade de total separação entre norma e fato, eis que o direito deve ser conduzido de modo a observar as situações semelhantes, sempre atento à matéria fática apresentada.
Desse ponto, portanto, necessário afirmar que uma vez que o Supremo Tribunal Federal decide acerca da inconstitucionalidade de determinado dispositivo, pois contrário à conteúdo de determinado direito fundamental, ou ainda, estabelece que em determinado caso, far-se-á modulação dos efeitos temporais da sentença, o Tribunal emite um juízo de valor, promovendo uma atribuição de significado ao direito fundamental -determinando o alcance de seu conteúdo- ou ao termo aberto previsto na legislação infraconstitucional, gerando consigo a criação de um precedente que virá a guiar decisões futuras.
Desse ponto de partida, toda decisão jurídica é fruto de um processo dialético, que deve considerar, necessariamente, os fatores de seu próprio tempo, como forma de preenchimento do conteúdo da norma legal.
A manutenção da segurança jurídica, e da coerência e integridade do ordenamento jurídico é missão desenvolvida, em último caso, pelos tribunais superiores, particularmente por seu caráter próprio de órgãos máximos de interpretação. Deste modo, o Supremo Tribunal Federal, ao aplicar uma norma determinada, com sentido determinado, a um caso determinado, acaba, inevitavelmente, gerando expectativa no particular que preencha as mesmas condições essenciais - dados de série - do caso já julgado, e que ensejou a aplicação da norma decisória, implicando em expectativa qualificada, que deve permanecer inalterada até que razões de gravidade venham a alterar o contexto normativo através das situações extratextuais.
III. Quatro críticas à eficácia vinculante dos motivos determinantes
A teoria da eficácia vinculante dos motivos determinantes certamente não é consenso. Autores relevantes, dentre os quais destacam-se Klaus Schlaich e Stefan Korioth, ou ainda Rui Medeiros e Georges Abboud, apresentam importantes questionamentos em face da tese.
Tais críticas foram apresentadas tanto na Alemanha quanto no Brasil, seguindo o mesmo destino do problema na Alemanha,24 demonstrando alguns problemas que exsurgem da tese da vinculatividade.
Georges Abboud,25 em sua dissertação de mestrado, expõe alguns problemas que considera essencialmente impeditivos em tal instituto, debruçando-se, em especial, sob os textos de Rui Medeiros.26
As críticas podem ser resumidas em quatro teses: i) que a aplicação do efeito vinculante engessaria a evolução do sistema constitucional; ii) que a atribuição desse efeito pelo STF implicaria em alteração do pedido da ação;27iii) que é difícil distinguir-se entre fundamentos determinantes e obter dicta;28 e iv) que haveria diminuição do diálogo entre cortes ordinárias e Corte Constitucional.29
1. Do suposto engessamento da evolução constitucional
Sustentam os críticos que a eficácia vinculante dos motivos determinantes violaria gravemente o princípio da independência decisória dos juízes, e o próprio princípio da jurisdição, vez que o judiciário encontrar-se-ia vinculado a comandos autômatos e rígidos.
Primeiramente, considerando que a eficácia vinculante dos tragenden Gründe, tomada a posição de Vogel, é uma decorrência direta da interpretação e estabelecimento de conteúdo de uma norma -a concretude da norma decisória- é inviável aceitar a primeira preocupação esboçada por Abboud e Rui Medeiros.
Não se trata de vincular qualquer caso à uma norma geral,30 mas sim da vinculação de um determinado conteúdo à determinado texto quando em determinada situação, um pressuposto de equidade, portanto,31 aplicável à série individual concreta -decorrência da identidade material de diversos casos individuais concretos.
Assim parece descabida a sugestão de Abboud, no ponto que empresta de Rui Medeiros,32 no sentido de que os precedentes, ao contrário dos motivos determinantes,33 não teriam aplicação mecânica e rígida. Essa observação não é verdadeira, pois leva à uma consideração lógica de que a adoção da eficácia vinculante dos motivos determinantes desonera o juiz de qualquer raciocínio acerca da incidência ou não de -para não se usar o termo holding- pressupostos de aplicação da norma decisória concreta.34 Esses pressupostos implicam naquilo que Streck chama de “busca do DNA da decisão, do caso e do direito”,35 ou como ensinam Benda e Klein como interpretação genética.36
Logo, quando Abboud afirma que o efeito vinculante, nos termos do art. 102, §2o. da Constituição da República, restringe-se ao dispositivo da decisão, não se pode concordar. Admitir isso parece implicar em uma completa separação entre dispositivo e fundamentação, o que é impraticável com o pressuposto adotado. Cumpre ressaltar que até mesmo na Alemanha, originadora da tese e da crítica, a literatura especializada parece chegar no consenso afirmando que, no caso de interpretação conforme a constituição (verfassungskonforme Auslegung), é virtualmente impossível desconsiderar-se as razões que levaram o tribunal à decisão,37 já que o texto certamente permanece o mesmo, mas o que mudou, pela interpretação do julgado, foi a norma.
Outro ponto importante é assegurar que a eficácia vinculante não se dá em face do Poder Legislativo. Ao menos não de modo absoluto, sendo meramente uma vinculação prima facie.38 Explica-se isso mediante a tese da proibição de repetição (Normwiederholungsverbot), que demonstra que caso o Legislador assim o entender plausível poderá, no exercício de sua função típica, emitir ato normativo geral e abstrato que tenha por consequência afastar a interpretação do Supremo Tribunal Federal, impondo novo texto para o qual deverá haver nova interpretação.39 Essa posição aparentemente é compartilhada por Leonardo Martins, que vê nessa vinculação prima facie uma forma de encaminhar o legislador à busca de novos meios adequados, principalmente quando frente à normas de proteção à liberdade individual.40
Por outro lado, o argumento também é enfraquecido pela possibilidade de mutação constitucional,41 vez que não sendo o texto expurgado do ordenamento, sua interpretação (a norma, propriamente) poderá ser revisada oportunamente -caso surjam motivos que apontem à alteração do estado de coisas.42
Ao fim, essa crítica somente teria mais força caso a Corte Constitucional fosse vinculada à própria decisão,43 tratando-se de tese já analisada pelo próprio Vogel.44
2. Da violação ao princípio da congruência
Sustentam os críticos que a eficácia vinculante dos motivos determinantes implicaria em violação ao princípio da congruência (princípio do pedido), que indica que o Supremo Tribunal Federal está vinculado ao pedido, não podendo invertê-lo. A expansão do efeito vinculante aos motivos determinantes implicaria em possibilidade de atuação voluntariosa (ex officio) pela Suprema Corte, afetando inclusive a tese da inércia jurisdicional.
Quanto a esse segundo argumento, relativo à violação do princípio da congruência,45 autores como Streck,46 e Gilmar Mendes47 afirmam que a Corte Suprema, ainda que se pronunciando sobre matéria sem que haja provocação específica (ex officio), não violará tal princípio. Em realidade, apesar de que por vezes esse princípio de processo civil seja afastado, entende-se que isso é “um risco que decorre do próprio sistema constitucional”.48 A jurisdição constitucional tem como característica afetar direta ou indiretamente todo o sistema jurídico,49 de modo que não é viável que o tribunal fique adstrito à causa de pedir, nem aos fundamentos das partes.50 A própria natureza abstrata do procedimento de controle de constitucionalidade reforça tal posição.
Vale também observação feita por Häberle51 no sentido de que a própria jurisprudência do Bundesverfassungsgericht leva à consideração que o “tribunal é o próprio dono do processo”, de modo que o processo constitucional não deve ser avaliado sob as mesmas diretrizes e princípios que seriam aplicáveis aos processos ordinários portanto. Apesar de não serem normativas desconexas, sob prismas diversos,52 o processo constitucional deve ser impelido de autonomia, distanciado das demais normas processuais.53
3. Quanto ao diálogo institucional
Sustentam os críticos que a eficácia vinculante dos motivos determinantes reduziria o diálogo entre os tribunais de piso, e as cortes superiores, reduzindo o âmbito de participação das cortes locais na construção e na interpretação das normas, reduzindo e automatizando seu papel -o que, no longo prazo, implicaria em redução do papel dos próprios tribunais superiores.
Trata-se de um argumento complexo. É certo que haverá certa verticalização no exercício do poder interpretativo. Contudo é certamente drástico afirmar que será promovida a completa desconexão entre as instâncias judiciais.
Situações não abarcadas, ou que sofreram alterações significativas em seu status, ainda serão devidamente analisadas pelo Supremo Tribunal em momento oportuno.
Não se afasta o sistema recursal com a adoção da eficácia vinculante dos motivos determinantes, apenas impõe um dever argumentativo qualificado. Ainda, tomando aqui a crítica nos termos de Rui Medeiros,54 em muito devida a Peter Häberle,55 há de se ressaltar que pela lógica processual, não há razão para dar azo à crítica.
Se o tribunal ordinário, ao analisar o caso concreto, afasta indevidamente o conteúdo da norma decisória concreta, então não só se estaria a violar a decisão do Supremo Tribunal, como também a noção de equidade, e ao fim seria necessariamente reformada, para que fosse mantida a coerência na jurisprudência e a uniformidade entre as decisões prolatadas aos jurisdicionados.
Não o fazer significaria reconhecer que a Suprema Corte pode decidir casos indefinidamente, sem que suas decisões tenham o mínimo de eficácia perante os tribunais ordinários,56 novamente, ignorando o juízo de equidade, ou até mesmo a unidade do direito, como coloca Castanheira Neves.57 É preciso abandonar a noção de que as instâncias ordinárias detém autonomia integral, sem se vincular aos juízos das cortes de vértice.
4. Motivos determinantes e obiter dicta
Sustentam os críticos que a eficácia vinculante dos motivos determinantes seria inviável, vez que é extremamente dificultoso distinguir-se entre ratio decidendi e obiter dicta. Isto é: é difícil estabelecer o que numa decisão determinada é relevante suficientemente a ser revestida de efeito vinculante.
Quanto a esse argumento, a crítica parece certamente exagerada. Conforme afirma Lenio Streck: “Não há direito sem história simplesmente porque não há linguagem que não seja história. Em sendo o direito linguagem, o seu componente histórico é indevassável” .58
A suposta dificuldade em definir-se e separar o que são as razões fundamentais não passa de mais do que uma dificuldade geral de interpretação do Direito, não devendo, portanto, ser considerada como um elemento por si só capaz de implicar em prejuízo à adoção do efeito vinculante dos motivos determinantes.
Não apenas isso é um problema genérico de interpretação, como também parece ainda mais agudamente quando analisada a interpretação do texto de lei puro. Os motivos determinantes, por implicarem necessariamente em correlação muito estrita para com caso concreto, acaba sendo mais facilmente analisável, e de aplicação mais igualitária, vez que apresenta requisitos mais definidos e de conteúdo menos amplo. Novamente, a norma decisória concreta só se faz quando presentes os requisitos explícitos da série de casos individuais concretos, ao passo que é contraposto ao texto de lei, que é, em si, uma norma abstrata -universal, como já apontou Schapp.
IV. Jurisprudência reiterada, expectativa qualificada e proteção da confiança
Consideradas tais circunstâncias, analisadas ainda as teses contrapostas à viabilidade da adoção da eficácia vinculante dos motivos determinantes, há de se concluir pela viabilidade da vinculação dos tribunais ordinários à interpretação do Supremo Tribunal Federal, respeitando-se o cunho da norma decisória concreta de Vogel. Trata-se de uma forma de evitar a interpretação isolada de dispositivo legal, gerando a obrigatoriedade da observação e fundamentação qualificada pelo magistrado que pretende se desviar do padrão decisório já estabelecido.
Se, como proposto, é necessária a vinculação aos motivos determinantes, há de se reconhecer que as decisões do Supremo Tribunal Federal têm a capacidade de gerar, além das duas consequências processuais tradicionais apontadas por Theodor Maunz,59 também a capacidade de impelir no particular expectativa qualificada.60
Partindo da exposição até este ponto efetuada, não é possível considerar que de um texto, por si só, infere-se uma norma. O texto nada mais é do que uma fonte analisada pelo intérprete para que este promova a determinação de sentido e alcance dessa fonte -e ele o faz de inúmeras formas, podendo se falar em interpretação extensiva, restritiva, estativa, originalista, evolutiva, declaratória, corretiva, de modo que o texto nunca conterá, por si, todas as razões necessárias a determinar-lhe finalmente o conteúdo.
Por isso a alteração de entendimento, pelo Supremo Tribunal Federal, deve ser considerada inclusive como uma hipóteses de aplicação da modulação de efeitos temporais. O particular tem o dever de observar a presunção de constitucionalidade que reveste todas as leis, partindo também de uma presunção que a interpretação do Supremo Tribunal Federal deve ser observada -isso implica também que o fenômeno de mutação constitucional61 é uma hipótese de aplicação de modulação de efeitos temporais. Ao particular somente é viável a exigência do presente, não cabendo a ele imaginar o imaginável: como norma determinada será interpretada no futuro.
Nesse tema, ainda, é necessário esclarecer que de modo algum quer-se aqui estabelecer uma vinculação plena do Supremo Tribunal Federal à sua própria jurisprudência.62 Não se afirma que um tribunal possa mudar seu entendimento. O que se afirma é que a norma decisória concreta implica em dois efeitos: primeiro, ela vincula; segundo, ela cria expectativas. Não é possível ignorar que uma decisão da Corte Suprema, expondo conteúdo normativo em diretriz jurisprudencial, gera no particular expectativas justificadas e que tem impacto direto em seu agir habitual, a isso se reputa o predicado no termo expetativa qualificada.
Expectativas qualificadas têm fundamento em uma diversidade de princípios constitucionais, como, em sentido amplo, o princípio da segurança jurídica ou, ao fim, o princípio do Estado de direito. Se uma a decisão da Corte Suprema atribui a determinado texto uma determinada norma, o Tribunal induz no particular um sentido de calculabilidade no objeto -norma aplicada de modo determinado a caso determinado com base em texto determinado- de modo que terá o dever de portar-se no sentido aquiescido sem que altere sua jurisprudência de modo arbitrário (surpresa). Ou seja, quando de um rol de sentidos possíveis a decisão fecha em um único (norma decisória concreta), cria “verdadeira expectativa normativa de comportamento para todos, integrantes do mesmo grupo de casos”,63 de modo que as decisões que se voltem contra esse sentido serão impingidas de maior carga argumentativa, para que, sob novas premissas, possa reformar o entendimento anteriormente esposado (Ávila, 2011, p. 151),64 sempre reformando o futuro, para que não se atinja o tradicional estado de coisas brasileiro, em que até o passado é incerto -como diria Stanislaw Ponte Preta.
Dois fatores devem ser observados aqui. Primeiramente, a vinculação à norma decisória concreta, a eficácia vinculante dos motivos determinantes conforme já tratado; segundo, a chamada “abstrativização do controle concreto de constitucionalidade” ou “objetivação do recurso extraordinário”,65 que torna o acesso ao Supremo Tribunal Federal um mecanismo restrito, mas, por outro lado, mais efetivo para a caracterização da norma decisória concreta. Diz-se isso pois, tomado o atual entendimento sobre o controle de constitucionalidade, não há maiores impedimentos para que a norma decisória concreta seja observável também no pronunciamento do Supremo Tribunal Federal quando da análise do recurso extraordinário66 -talvez seja caso ainda mais explícito de necessidade de vinculação, por tratar de situações concretas efetivamente.
Há inúmeras críticas à “abstrativização”, amplamente apresentadas por Lenio Streck, Marcelo Cattoni e Martonio Barreto Lima67 em análise dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, em sede de Reclamação Constitucional 4.335/AC. Em que pese tais críticas, há de se discordar em específico quando estes afirmam que, na possibilidade do Supremo Tribunal Federal julgar como positivo o cabimento de reclamações constitucionais contra suas teses, e não contra as decisões proferidas, haveria o deslocamento da “discussão jurídica para os discursos de fundamentação (Begründungsdiskurs), elaborados de forma descontextualizada. Passam a ser “conceitos sem coisas”..68
Essa a crítica não pode ser mantida diante da atual situação. O próprio conceito de norma decisória concreta, com extensão do efeito vinculante, amplamente discutido no BVerfG,69 e aqui defendido, é uma forma de inibir as tentativas de descontextualização -da usurpação da identidade do julgado. A norma decisória concreta só se demonstra aplicável quando passada por um processo hermenêutico, através da identificação das razões fundamentais que levam à aplicação da norma sob prisma “x”.
V. Conclusão
Analisando as questões metodológicas atinentes aos efeitos das decisões do Supremo Tribunal, particularmente tomando por base os conceitos de norma decisória concreta e série, vê-se que os tribunais, e as supremas cortes em especial por seu caráter próprio de órgãos máximos de interpretação constitucional, devem observar a coerência de sua jurisprudência, aplicando uniformemente o direito. Isso é uma decorrência não só do princípio da igualdade, como também da própria unidade do direito.
Deste modo, o Supremo Tribunal Federal, ao aplicar uma norma determinada, com sentido determinado, a um caso determinado, acaba, inevitavelmente, gerando expectativa no particular que preencha as mesmas condições essenciais do caso já julgado -dados de série, no conceito de Schapp. Isso enseja a aplicação da norma decisória como forma de tentativa de minorar a enchente de normas singulares desconexas. Tal conceito foi denominado de expectativa qualificada.
Desta expectativa qualificada, que se funda nos deveres de igualdade e unidade, surge o dever de resguardo da estabilidade da jurisprudência, particularmente no que concerne à norma decisória concreta. A alteração de entendimento pela mutação constitucional, não pode implicar em cooptação de situações jurídicas consolidadas, não sendo um simples ato de vontade do julgador. A norma decisória concreta deve permanecer inalterada até que razões de gravidade venham a alterar o contexto normativo através das situações extratextuais, mas mesmo tal alteração não deve ter o condão de alterar o passado, de forma que situações consolidadas devem permanecer inalteradas sob a perspectiva prévia.
A conjugação das premissas metodológicas, estabelecidas pela teoria do Direito adotada, indicam evidente aproximação entre a tese da eficácia vinculante dos motivos determinantes, e o sistema de precedentes (tipicamente atribuído aos modelos de common law), o que indica maior relevo e necessidade de avaliação no Brasil quando tomando como premissas o atual movimento de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade, e pela virada metodológica imposta pela Lei 13.105/2015, que encarta o Novo Código de Processo Civil.
Esse atual movimento de aproximação torna necessário perquirir e reavaliar as antigas teses e críticas à eficácia vinculante dos motivos determinantes, particularmente aquelas relativas à suposta violação aos princípios da jurisdição, e da independência decisória dos magistrados -argumento que, diante dos novos desenvolvimentos do ordenamento, tornam-se desprovidos da qualidade retórica de outrora.