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Convergencia

On-line version ISSN 2448-5799Print version ISSN 1405-1435

Convergencia vol.15 n.48 Toluca Sep./Dec. 2008

 

Ensayo

 

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e as ações voluntárias: em questão os esforços individuais e o processo de individualização

 

Maria José de Rezende

 

Universidade Estadual de Londrina, Brasil / wld@londrina.net

 

Envío a dictamen: 25 de abril de 2008.
Reenvío: 08 de julio de 2008.
Aprobación: 15 de julio de 2008.

 

Abstract

The fulfillment of the millennium goals established by United Nations has been on the agenda since 2000. There are a lot of divergences concerning the ways, actions and more adequate agents to put practices and forms of action into effect in order to achieve the MDGs. This article will deal with discussions, propositions, actions, procedures of programs (UNDP, UNV) linked to UN's concern on the role of volunteers on the expansion of actions which may increase the number of people involved with MDGs. Its purpose is to understand the social and political effects of this way of assigning the volunteers a considerable importance in a context of multiple attempts of emptying the role of the State as well as of the social struggles in this process of constructing mechanisms to fight absolute poverty and social problems.

Key words: Millennium Development Goals, individualization, voluntarism.

 

Resumen

El cumplimiento de las metas del milenio, propuestas por las Naciones Unidas, ha estado en la agenda pública desde el año 2000. Son muchas las divergencias acerca de los caminos, de las acciones y de los agentes más adecuados para que sean efectivas las prácticas y formas de actuar, que permitan alcanzar los denominados ODMs (Objetivos de Desenvolvimiento del Milenio). En este artículo serán consideradas las discusiones, las propuestas, las direcciones, los procedimientos de programas vinculados (PNUD, UNV) a la ONU, en relación con el papel del voluntariado en la expansión de acciones que eleven el número de personas involucradas en los ODMs. Se trata de comprender los efectos sociales y políticos, en este modo de atribuir al voluntariado un peso expresivo, en un contexto de múltiples tentativas de exonerar al Estado de su papel y de las luchas sociales, dentro de este proceso de construcción de mecanismos de combate a la pobreza absoluta y los males sociales.

Palabras clave: Objetivos de Desenvolvimiento del Milenio, individualización, voluntarismo.

 

Introdução

Demonstrar-se-á, neste artigo, que o Programa dos Voluntários das Nações Unidas (UNV), criado em 1970, em Assembléia Geral1, inscreve-se no âmbito de um amplo processo cuja finalidade é responsabilizar individualmente a todos pela busca de solução para os problemas gerados socialmente2 (Bauman, 2001; Beck, 1992). Este tipo de percepção acerca da importância dos esforços individuais ganhou um formato mais bem delineado na segunda metade do século XX.

Pode-se dizer que isso ocorreu em razão do aprofundamento de uma individualização que se tem imposto desde a emergência da época moderna, mas que tem adquirido novos traços a partir da década de 1950. Não se deve supor que as ações voluntárias ganharam terreno mais fértil somente no século XX, já que elas, mesmo no Brasil, surgiram muito antes. As primeiras santas casas, seguindo o modelo de Portugal, foram implantadas no país ainda no século XVI, as quais foram consideradas como a inauguração das práticas filantrópicas e voluntárias no período colonial.

Há, todavia, que se destacar que as ações voluntárias adquirem um significado absolutamente renovado desde que o Estado passou a atuar como incentivador, fiscalizador, financiador, ao menos em parte dos recursos, das denominadas práticas voluntárias. No Brasil, especificamente, isso ocorre, de forma regular e continuada, a partir de 1930. É interessante observar que, no decorrer do século XX, principalmente a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em 1948, passam a ganhar forma as associações que objetivam implantar o voluntariado no mundo todo. Afirmando ter por base a declaração de direitos firmada no pós-guerra, algumas organizações passam a dar substancialidade à idéia de que o voluntariado tinha de ser visto como um conjunto de ações que visavam a combater as mazelas sociais (fome crônica e aguda, analfabetismo, doenças, epidemias, mortalidade de crianças, falta de assistência médica, entre outras) em diversas frentes de intervenção.

Como a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, estabelecia que a igualdade de direitos deveria ser o norte da vida social, passaram a emergir, com uma força renovada e com maior respaldo do poder público, as ações voluntárias. Ocorre, então, uma impulsão de tais práticas, as quais iriam ganhar ainda mais força desde que, em 1970, a Assembléia Geral das Nações Unidas criou o UNV3. A ONU, como uma comunidade internacional organizada, ao chancelar as práticas voluntárias, reforçou a expansão dos denominados esforços individuais no combate aos problemas sociais gerados de modo sistêmico. Isso pode ser detectado, até mesmo, através de empenhos como o da International Association for volunteer Effort que, em 1990, teve a iniciativa de estabelecer alguns princípios de ações através da Declaração Universal do Voluntariado.

A Declaração Universal do Voluntariado afirma que a decisão voluntária está apoiada em motivações pessoais cujo objetivo principal é participar na vida da comunidade tendo em vista a melhora da qualidade de vida e a busca de um mundo mais justo e menos violento. Uma das formas sugeridas, pelo documento acima mencionado, para a criação de um mundo menos injusto e mais pacífico, é a atuação voluntária para incentivar um desenvolvimento econômico e social mais equilibrado. A atuação na geração de empregos e de rendas é, então, um dos objetivos principais a ser perseguido por aqueles que se engajam nas atividades voluntárias. Considere-se também que os voluntários devem "encorajar a transformação do compromisso individual em movimento coletivo" (Declaração Universal do Voluntariado, 1990).

Ressalte-se que a própria percepção de movimento coletivo, expressa na declaração do voluntariado, inscreve-se numa visão também assentada na individualização, uma vez que concebe o movimento coletivo como algo fundado na soma de compromissos individuais. Ou seja, sugere-se que a construção de espaços coletivos de luta pode ser derivada de soluções individuais que se situam, muitas vezes, muito distantes de qualquer processo formativo de qualidades públicas entre os agentes envolvidos nas práticas voluntárias (Bauman, 2001).

Resumidamente, a 'individualização' consiste em transformar a 'identidade'humana de um 'dado'em uma tarefa e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências (assim como os efeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure (independentemente de a autonomia de facto também ter sido estabelecida) (Bauman, 2001: 41).

A leitura dos esforços voluntários será feita à luz das indicações de Zygmunt Bauman (2001; 1999; 2003; 2000) sobre o fosso existente entre as queixas individuais e as necessidades coletivas. Demonstrar-se-á que os esforços individuais se processam dentro de uma lógica própria, ou seja, de maneira que não se faça necessário atacar os fundamentos das mazelas oriundas das injustiças sociais. Todavia, esse ataque não é mesmo possível de ser feito senão através da construção de espaços sociais por onde se desenvolvam formas de expressão dos interesses coletivos. À medida que se assiste, nas últimas décadas, ao enfraquecimento da causa comum e das formas de expressão política dos interesses coletivos, vão-se tornando evidentes as múltiplas formas de solução e de esforços individuais.

O crescimento das práticas voluntárias, incentivado pela ONU, inscreve-se dentro desse processo de individualização. Portanto, ele ganha tal destaque porque minguaram, nos últimos anos, as soluções públicas para as aflições coletivas (Bauman, 2001). Serão analisadas, através dos boletins diários do PNUD (Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento), as reportagens veiculadas sobre as práticas voluntárias. Verifica-se que há uma insistência, por parte dos administradores e incentivadores dos ODMs (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio), acerca da necessidade de expandir e de solidificar as ações vinculadas aos esforços individuais voltados para as metas do milênio definidas no ano 2000.

Analisando-se os diversos documentos divulgados pelo PNUD, não se nota que as ações voluntárias propostas e desenvolvidas com vistas à implementação dos ODMs, sejam minimamente capazes de formar, nas populações atingidas, quaisquer qualidades coletivas. As ações voluntárias não ultrapassam, de modo algum, a condição de esforços individuais que amenizam, em alguns acasos isolados e muito pontualmente, o drástico sofrimento social ao qual está submetido um bilhão de pessoas que vivem hoje, no mundo, com até 1 dólar por dia. A leitura dos problemas sociais a partir desta ótica individual serve como paliativo, nos melhores casos.

Nas piores situações acabam por construir, até mesmo nas populações que vivem na miséria, uma grade de leitura absolutamente equivocada. E qual seria ela? Aquela que por caminhos tortuosos e por ações não-intencionais acabam por sedimentar a idéia de que a culpa pelo sofrimento social é do próprio indivíduo que vive sob a condição de pobreza absoluta. Somente a título de exemplo, há práticas voluntárias pró-ODMs que, no intuito de encontrar algum caminho para a inserção dos indivíduos paupérrimos no mercado de trabalho, os ensinam a fazer marketing pessoal a fim de torná-los viáveis profissionalmente (PROJETO Universitários do Milênio, 2006). Em última instância, qual é o efeito de tal prática? A sedimentação da idéia de que quem não se viabiliza economicamente não o faz porque não sabe trabalhar e vender a própria imagem. Tanto individual quanto socialmente, o efeito da sedimentação de tal percepção é devastador.

Este artigo está partindo do pressuposto de que as metas socioeconômicas denominadas ODMs não têm como alcançar avanços significativos através de ações e de práticas voluntárias, uma vez que o seu cumprimento passa pelo estabelecimento de medidas e pelo desenvolvimento de ações que exigem o fortalecimento de qualidades coletivas nos indivíduos e nos grupos sociais, a expansão da democracia, o fortalecimento do espaço público, a transformação do indivíduo em cidadão, o robustecimento dos movimentos sociais e das demandas coletivas, o fortalecimento do Estado nacional, como espaço de luta para a implementação e garantia de direitos sociais, a expansão da pressão política para que o Estado assuma seu papel de desconcentrador e redistribuidor da renda, etc.

Discutindo o voluntarismo Cláudio Weber Abramo afirma: "o resultado de iniciativas que prosperam sem que sejam antes projetadas no plano da discussão política é a privatização do espaço público, o qual vai se desestruturando ao sabor de uma multiplicidade de interesses segmentados" (Abramo, 2007: 3). No artigo Voluntarismo e ação institucional, Abramo (2007) faz uma crítica aos adeptos "de uma democracia privada exercida por grupos corporativos". Ele não deixa claro, no entanto, quais seriam os grupos enquadrados em tal situação. Provavelmente, os citados acima estariam entre eles.

Parte-se da hipótese de que os ODMs não podem ser alcançados através de práticas voluntárias que reiterem a individualização. Faz-se necessário, todavia, não confundir essas últimas com as práticas sociais4 (movimentos em prol de uma economia solidária, de um mercado justo, de organizações em cooperativas dos trabalhadores empobrecidos pela exclusão do mercado de trabalho) que se apresentam como alternativas possíveis para dotar os indivíduos e grupos sociais de qualidades coletivas capazes de efetivar práticas e ações que levem ao cumprimento dos ODMs.5

O que são os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU? Eles são

metas socioeconômicas que os países componentes da Organização das Nações Unidas se comprometeram a atingir até o ano de 2015. São oito os objetivos principais; em cada um deles há meta (s) estabelecida (s) para ser(em) alcançada(s) dentro de alguns anos. São eles: 1)- erradicar a pobreza extrema e a fome; 2)- atingir o ensino básico universal; 3)- promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4)- reduzir a mortalidade infantil; 5)- melhorar a saúde materna, 6)-combater o HIV/aids, a malária, a tuberculose, entre outras doenças; 7)- Garantir sustentabilidade ambiental, 8)- estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento (UMA VISÃO a partir da América Latina e do Caribe apud Folha Informativa ODM, PNUD/CEPAL, 2005) (Rezende, 2007: 173-174).

 

O Programa Voluntários da ONU e os ODMs

O programa denominado Voluntários das Nações Unidas (UNV) é um órgão que visa subsidiar, operacionalmente, as diversas formas de cooperação para o desenvolvimento de atividades comunitárias que objetivam "influenciar as políticas, no sentido da obtenção de resultados sustentáveis" (UNV/PNUD, 2004). Isso demonstra que o UNV foi implementado 30 anos antes da Declaração do Milênio, de 2000, que fundamentou a formulação dos ODMs.

O programa intitulado Voluntários das Nações Unidas, administrado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), tem desenvolvido inúmeras atividades desde 1971. Dirk Hegmanns, coordenador do UNV no Brasil, afirma que há mais de três décadas o programa

envia especialistas e voluntários de campo profissionalmente experientes para trabalhar em projetos de cooperação nacional e internacional de desenvolvimento. Além da cooperação técnica, o núcleo de trabalho concentra-se cada vez mais em áreas de apoio humanitário, de preservação e respeito dos direitos humanos e da preparação e observação de eleições. Outra tarefa muito importante do Programa é a promoção do voluntariado entre os cidadãos para ampliar o seu engajamento voluntário em diversas áreas. Atualmente cerca de 7.500 pessoas de 150 diferentes países trabalham como voluntários internacionais das Nações Unidas. Dois terços dos voluntários trabalham nas duas principais regiões de atividades, que são a África e a Ásia"(Hegmanns, 2004: 1).

No Brasil, desde 1998, o programa de engajamento voluntário das Nações Unidas tem incentivado a formação de agrupamentos de pessoas em torno de atividades consideradas chaves para a melhoria das condições de vida das populações mais pobres. E como se dão os procedimentos voluntários? Dão-se, na maioria das vezes, através de projetos de parcerias. O coordenador do UNV no Brasil afirma:

No Brasil milhões de pessoas — o censo de 2005 constatou que há, no país, aproximadamente 19.700 voluntários — já cumprem serviços voluntários em clubes, ONGs, igrejas, escolas etc. Milhares de voluntários participam em projetos sociais de empresas privadas com o objetivo de melhorar as condições de vida ou a qualidade de ensino das escolas. Nesse sentido, o Programa UNV procura também parcerias com as empresas privadas, com universidades e fundações, pois acreditamos que uma maior participação desses atores sociais na cooperação de desenvolvimento pode trazer vantagens a todas as partes envolvidas (Hegmanns, 2004: 1).

O incentivo do PNUD às práticas voluntárias está norteado pelo objetivo de alcançar formas de cooperação no processo de implementação dos ODMs. Por isso, pode-se afirmar que tais práticas se fortaleceram, após o ano 2000, quando os ODMs foram estabelecidos. Desde então, ficou ainda mais contundente o empenho do UNV em dar visibilidade às atividades voluntárias nas diversas áreas priorizadas pelas metas do milênio. Tanto que o PNUD, órgão encarregado de administrar e coordenar ações pró-ODMs, tem procurado divulgar, o máximo possível, as práticas consideradas dotadas de êxito na efetivação de medidas que cooperem para a abertura de caminhos por onde as metas do milênio se implementem.

Fortalecer, dar visibilidade e reconhecer a participação voluntária é algo que tem sido divulgado como um dos pilares básicos da impulsão de meios para alcançar os diversos objetivos do milênio. Há técnicos da ONU que têm insistido na necessidade de dar um peso maior às ações dos governantes e dos técnicos do Estado no cumprimento dos ODMs (Munoz, 2005; Fuentes, 2005; Dervis, 2005) e há também aqueles técnicos que, mesmo não retirando completamente a responsabilidade do poder público, tendem a valorizar, essencialmente, as parcerias e os trabalhos voluntários. Basta analisar o documento intitulado Campanha com parceiros pelos ODM: um estudo do caso brasileiro (2005) e o slogan (Todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento) sugerido pelo PNUD ao Brasil, para detectar o peso que as parcerias, a cooperação e o voluntariado adquirem hoje. Há um intuito claro de criar um ambiente social favorável a uma crescente co-responsabilização dos indivíduos, nas mais diversas áreas de atividades (educacionais, culturais, profissionais). E deve-se indagar o seguinte: Exatamente o que o PNUD/UNV sugere em relação a ações efetivas? Veja-se a reportagem do Boletim diário publicado no sítio do PNUD:

Para levar o conceito ao dia-a-dia dos brasileiros, a campanha recorreu a parcerias com empresas e instituições. Um acordo com o Grupo Pão-de-Açúcar (...) levou os logotipos e os slogans para as sacolas de compra de 564 lojas em 12 estados brasileiros. Outras atividades, em parceria com o PNUD ou a partir de iniciativas das próprias empresas, incluíram eventos em aeroportos para divulgação, produção e distribuição de material escolar sobre o tema, veiculação de peças na MTV e divulgação dos Objetivos por meio de boletos bancários, contas de luz, caixa eletrônico e anúncios em revistas e outdoors. Por meio de uma parceria com a escola de samba Portela, do Rio de Janeiro, os ODMs viraram tema do enredo do Carnaval deste ano. 'Usar as tradições culturais e os hábitos sociais do país pode facilitar a campanha, aumentar o engajamento, empoderar os parceiros e render resultados maiores', afirma o relatório do PNUD (CAMPANHA dos ODM no Brasil vira modelo apud Boletim Diário do PNUD, 2005).

Que significado tem o aumento do engajamento? O que exatamente quer dizer tornar os parceiros mais poderosos? Transparece, em alguns documentos dos órgãos da ONU, que o engajamento individual e/ou grupal, em número cada vez maior, resultaria em ganhos expressivos para aqueles setores carentes de ações capazes de alargar as possibilidades de cumprir algumas metas sugeridas pelas Nações Unidas. Os objetivos relacionados à redução da pobreza absoluta, da fome, do analfabetismo, da mortalidade de crianças, dos riscos relacionados à saúde materna, das desigualdades de gênero, das doenças transmissíveis e da degradação do meio ambiente são, comumente, apresentados pelo PNUD/UNV como dependentes, em altíssimo grau, de ações voluntárias. Ou seja, as melhorias almejadas nessas diversas áreas dependem da ajuda voluntária de muitos indivíduos e grupos sociais. Todavia, é esse um engajamento que se justificaria pelas necessidades sociais dos segmentos mais pobres e também pela impossibilidade que tais segmentos teriam de, por si mesmos, percorrer os caminhos que levariam às metas do milênio.

Em muitos documentos, o PNUD afirma que os governantes, o Estado, as empresas privadas e os voluntários devem, então, agir como parceiros. Mas em outros momentos dá-se um peso expressivo às atividades voluntárias, como se elas contivessem fórmulas mágicas para alcançar os ODMs. É interessante observar que a estratégia de convencimento das pessoas para que elas se lancem neste tipo de prática se assenta, basicamente, no enaltecimento das queixas individuais que se originam da pobreza absoluta e de suas mazelas sociais.

O engajamento não significa, então, uma luta por justiça social, por desconcentração da renda e por melhor distribuição da riqueza social. Significa, sim, um chamamento para que indivíduos, totalmente descrentes de qualquer ação política fundada em interesses coletivos, ocupem-se de tarefas que venham, de alguma maneira, amainar o desespero e as aflições dos segmentos que não têm acesso às condições básicas de sobrevivência.

O envolvimento sugerido pelo UNV não significa, então, uma proposta de ação voltada para vencer o isolamento e, portanto, o desligamento de projetos coletivos. Pode-se fazer a seguinte indagação: Em que projetos coletivos estão engajados os 20 milhões de voluntários que existem no Brasil? Muitas vezes em projetos que não podem ser tidos, de fato, como coletivos, já que não conseguem desenvolver, nos agentes envolvidos, qualidades, de fato, públicas, denominadas como tais pela sua capacidade de torná-los aptos a empenhar-se por aquilo que Bauman (2003; 2000) chama de politização da esfera político-pública.

É preciso verificar até que ponto as ações individuais conseguem ultrapassar a mera condição de um agir fundado somente no descontentamento social? E até que ponto os voluntários empenhados na redução da pobreza, da fome, da mortalidade de crianças, das dificuldades educacionais, do não-acesso à saúde etc., conseguem ver os problemas sociais - que tentam atacar - como algo organicamente ligado às condições de desigualdades sociais? Muitas vezes fica claro que não. É como se a pobreza, a miserabilidade e as exclusões existissem em si mesmas, sem correlações necessárias com um dado padrão de organização social e de domínio político.

 Todavia, a análise eficaz das práticas voluntárias deve fazer distinções entre elas. Não é possível supor que todas elas tenham o mesmo perfil de ação, de intervenção e de eficácia, naquilo a que se propõem a realizar. Não se pode dizer também que todos os tipos de voluntariado se restringem somente a externar uma forma de descontentamento social, bem como não se pode dizer que haja uma decisão premeditada, dos voluntários, de desenvolver um agir que não possibilite uma politização da esfera político-pública. Projetos distintos como o Programa Regional Orçamento de gênero: dando visibilidade às contribuições voluntárias das mulheres para o desenvolvimento na América Latina (2006), o Projeto Jovem do Milênio (2005) e o Projeto Universitário do Milênio (2006), todos voltados para ajudar a implementar ações pró-ODMs, dão uma boa idéia das semelhanças e dessemelhanças que há entre as práticas voluntárias.

A análise detalhada de tais práticas chama a atenção para as diferenças entre elas. Algumas reiteram muito mais do que outras uma perspectiva que responsabiliza os próprios indivíduos mais pobres pelas suas condições. Outras não, pois procuram situar os problemas sociais atacados no âmbito de um contexto maior, tentando, assim, evitar modos de agir que se caracterizem por uma responsabilização excessiva dos indivíduos pelas circunstâncias sociais nas quais estão inseridos. É o caso, por exemplo, do projeto Programa Regional Orçamentos de gênero: dando visibilidade às contribuições voluntárias das mulheres para o desenvolvimento na América Latina, iniciado em março de 2006. Nele há uma tentativa de incentivar a participação de mulheres nos processos de luta para garantir direitos sociais e econômicos. Tais ações esperam

Promover a participação das mulheres na tomada de decisões econômicas e políticas, e seu envolvimento em processos de controle. Desenvolver ferramentas e práticas para aumentar e coordenar o monitoramento da renda e dos gastos a partir de uma perspectiva de gênero. (...) Fortalecer a capacidade dos parceiros em aplicar a análise de gênero para planejar, controlar e avaliar o impacto da renda e da atribuição do gasto nos níveis nacional, regional e local. Desenvolver e implementar estratégias para a inclusão da perspectiva de gênero no planejamento governamental e no processo orçamentário" (Programa regional orçamentos de gênero, 2006).

Este projeto, cuja área de atuação é Cuenca (Equador), Cochabamba (Bolívia), Villa El Salvador (Peru), Rosário (Argentina) e Recife (Brasil), pretende mobilizar mulheres para ações políticas que visem a encontrar meios de pressionar os governantes, os controladores de verbas públicas, os técnicos governamentais para que os seus interesses ganhem espaço nos processos orçamentários e de tomada de decisão. É ele um projeto que por si mesmo garante a geração de qualidades coletivas nos agentes envolvidos? É óbvio que não. Mas, ao tocar na necessidade de fortalecer processos participativos que levem a uma maior visibilidade dos direitos sociais e econômicos, abre-se a possibilidade de que tais práticas mobilizem forças coletivas capazes de apontar para ações de combate às múltiplas desigualdades e injustiças sociais.

Porquanto, há apenas uma indicação nesse sentido, e isso não se deve ao fato de ser esse um projeto voluntário. Todas as ações participativas têm esse caráter somente indicador. A efetividade dos caminhos que elas podem abrir depende de uma multiplicidade de ações e jogos configuracionais. Ou seja, as ações de cada agente, de cada grupo envolvido, estão sempre em dependência mútua, o que impossibilita qualquer certeza a priori sobre os resultados alcançados. Esse é um dado positivo que se visualiza nesse projeto de orçamento de gênero. Conquanto seja uma prática que se inscreve na categoria de voluntária, ela pode desaguar em processos capazes de fomentar a participação e a luta por direitos sociais capazes de levar (ou não) à formação de qualidades coletivas nos grupos envolvidos.

Há, no entanto, algumas práticas voluntárias que não se constituem como espaços nos quais pode haver esta indicação, mesmo que pequena, de uma certa politização dos problemas sociais. São ações que contribuem enormemente para uma política, conforme diz Bourdieu (2001), de despolitização, visto que ajuda a desmantelar qualquer possibilidade de surgimento de forças sociais que se oponham à lógica econômica e social em curso. São muitas as ações voluntárias endossadas pela UNV/ONU que se inscrevem numa lógica de individualização, a qual se define como tal por encarregar "os atores da responsabilidade" (Bauman, 2001: 41) de resolver por si mesmos os problemas sistêmicos em que estão mergulhados. É a busca de soluções individuais para o caos social gerado pelo processo social em curso, diz Bauman. Segundo ele, a modernidade líquida assenta-se, justamente, nesta ilusão de que os indivíduos têm em suas mãos as fórmulas para resolver, cada um por si, o caos em que estão mergulhados. Há práticas voluntárias que se inscrevem inteiramente no âmbito dessa ilusão, vendida a todo custo pelo padrão de organização social em vigor na atualidade. Pode-se dizer que os projetos Jovens do Milênio e Universitário do Milênio possuem essa característica.

O Projeto Jovem do Milênio, que foi concebido pela ONG Natal Voluntários em parceria com o PNUD e com o UNV, está voltado para a mobilização de grupos de jovens que venham a agir no interior das comunidades pobres para mobilizá-las no intuito de alcançar os objetivos do milênio. O funcionamento dá-se da seguinte maneira: os jovens escolhem uma comunidade-alvo e um objetivo do milênio a ser alcançado. Depois disso, passam a realizar ações que são concebidas como essenciais para avançar rumo às metas estabelecidas. A presidente da ONG Natal Voluntário, Mônica Macdowell, faz a sequinte afirmação:

É possível ser voluntário a qualquer hora e em qualquer lugar, e queremos incentivar as atividades locais e do dia-a-dia. Todos são responsáveis por fazer tudo o que estiver ao seu alcance para o desenvolvimento. Queremos divulgar o voluntariado em diversas frentes sociais, e a música é uma delas. Se uma banda que agrada aos jovens valoriza o trabalho voluntário, isso os incentiva a participar também" (MacDowell, 2007: 1).

Em reportagem no Boletim Diário do PNUD, os projetos Jovem do Milênio e Universitários do Milênio são descritos como preparadores de ações voltadas a contribuir para a transformação da comunidade na qual atuam. Esta transmutação seria motivada pelo envolvimento dos moradores nas ações postas em prática e também pela articulação das ações desenvolvidas nos projetos com outros segmentos sociais. Tais procedimentos visam expandir internamente e externamente as ações pró-ODMs.

Deve-se dizer que a idéia de transformação social da comunidade, em virtude dos projetos voluntários mencionados no parágrafo anterior, conforme sugere a reportagem do Boletim diário do PNUD intitulada ONG lança prêmio pró-ODM para jovens (2006), serve muito mais como um meio de capitanear credibilidade para tais ações do que para a efetivação de mudanças substantivas. Mesmo porque não há ação voluntária qualquer que consiga, através dos meios disponíveis de intervenção e de interferência, transformar uma comunidade. Seria muito mais convincente se, em vez de se falar em transformação, fossem mencionadas algumas possibilidades de alteração pontual do cotidiano dos indivíduos e grupos envolvidos.

Não se está supondo que o PNUD, o UNV e as ONGs (Organizações não-governamentais) estejam simplesmente escamoteando os fatos. As entrevistas, as reportagens e as premiações demonstram que há uma crença sedimentada, dos agentes que conduzem os ODMs, de que as ações voluntárias são mesmo capazes de transformar comunidades, grupos e pessoas. Não se discute, porém, que tais mudanças são muitas vezes pontuais e que se encerram em conquistas incapazes de fixar qualquer tipo de ação que leve, minimamente, a um questionamento da despolitização dos problemas sociais. Aparece, então, implícita nessa forma de defesa do voluntariado, feita pelos agentes envolvidos com os programas com esta característica, que a única saída cabível, nas circunstâncias atuais de concentração de renda e de expansão das desigualdades, é o engajamento das comunidades pobres na solução de seus próprios problemas. Pierre Bourdieu afirma: "Contra essa política de despolitização, é preciso restaurar a política, isto é, o pensamento e a ação políticos, e encontrar para essa ação seu ponto certo de aplicação" (Bourdieu, 2001: 60).

Somente desse modo é possível falar em redefinição das condições sociais, a qual não pode estar restrita a grupos isolados. Diversas práticas voluntárias (Jovem do Milênio e Universitários do Milênio) endossadas pelo UNV difundem a idéia de que é possível operar mudanças substantivas mesmo com ações isoladas e paliativas. Isso é, no mínimo, um equívoco, na melhor das hipóteses, porque revela uma inconsciência acerca das conseqüências de dar às ações voluntárias um caráter que elas não têm, ou seja, um caráter transformador. O Boletim do PNUD, ao comentar o lançamento de um prêmio pró-ODMs pela ONG Natal Voluntários em parceria com o UNV, faz a seguinte afirmação:

O prêmio foi elaborado para estimular os participantes a se dedicarem mais aos trabalhos, segundo a diretora da Natal Voluntários, Mônica MacDowell. 'Muitos jovens estão aderindo aos projetos6 , mas a gente quer que as ações sejam muito bem desenvolvidas. A premiação é um estímulo' (MacDowell, 2006: 1). Entre os critérios de seleção estão a contribuição para a transformação social da comunidade em que o projeto foi realizado, o envolvimento dos moradores, a articulação com outros segmentos sociais e a possibilidade de a experiência ser aplicada em outros locais pobres (ONG lança prêmio pró-ODM para jovens, 2006: 1).

Note-se que a necessidade do prêmio7 para que as ações sejam bem feitas já revela que não há engajamento substantivo em torno dos problemas sociais que supostamente se busca combater, o que somente seria possível se houvesse uma contínua politização de questões capazes de esclarecer as razões sociais que levam os indivíduos mais pobres a uma situação de extrema exclusão. Para isso, seria necessário que houvesse um engajamento não dependente de premiações, mas sim fundado em práticas sociais que redefinam continuamente as experiências coletivas relacionadas à construção de espaços públicos por onde fluam demandas coletivas favoráveis aos segmentos mais pobres.

Vejam-se, por exemplo, as atividades "que se inserem no programa Levar os Objetivos do Milênio para Comunidade, visando a envolver os universitários em ações (... ) que contribuam para o alcance dos ODMs" (Projeto Universitários do Milênio, 2006). Entre os objetivos que se buscam implementar estão: fazer levantamento de hábitos alimentares e higiênicos da comunidade, disseminar informações sobre segurança alimentar e nutricional, realizar oficinas sobre preparação de currículo, fazer horta comunitária em escola, dar apoio à busca do primeiro emprego, realizar feiras e ensinar a gerenciar pequenos negócios. Isso tudo com vistas a criar e a expandir uma cultura de voluntariado, conforme afirma Elena Carrara (2006), coordenadora do Projeto Universitários do Milênio.

Os voluntários agem, muitas vezes, tentando convencer as comunidades pobres que ações paliativas e superficiais são o caminho para resolver problemas de extrema complexidade. Há um dos objetivos do Projeto Universitários do Milênio que revela bem essa visão. Ele diz: "Realizar, a cada quatro meses, na comunidade-alvo, uma oficina de 4 horas sobre preparação de currículos, como se comportar em entrevistas de seleção, marketing pessoal e etiqueta profissional" (Projeto Universitários do Milênio, 2006).

Por melhores que sejam as intenções dos envolvidos nessa tarefa, ela é inócua, pois acaba por maquiar a situação dos indivíduos paupérrimos com promessas mirabolantes acerca de uma suposta aquisição de etiqueta profissional, como se esta fosse a solução para os seus problemas de exclusão do mercado de trabalho. Tais ações efetivam-se em razão da dificuldade, muito em voga na atualidade, de conceber soluções que não se inscrevam num âmbito puramente individual. Os agentes que coordenam e/ou implementam tais medidas provavelmente acreditam que a existência de um bairro pobre, com muita gente desempregada, se deva à inabilidade de cada um em explorar as próprias qualidades pessoais. Daí a crença de que o marketing e a etiqueta sejam caminhos plausíveis.

Os agentes voluntários têm suas ações inscritas numa percepção dos setores médios em torno das oportunidades de emprego. Eles levam para os bairros paupérrimos a mesma grade de leitura que utilizam para a sua vida pessoal e profissional. As classes médias são bombardeadas diariamente com sugestões reproduzidas pelo mercado, pela família, pela escola, pela mídia, pelas empresas e pelas agências de emprego, segundo as quais sua vida depende de uma ininterrupta prática de vender uma boa imagem para o mercado, para a família, para os amigos. As pessoas desse estrato social vivem atormentadas por essa obsessão com uma suposta arte de vender-se a si próprias. É óbvio que elas vão levar este seu entendimento do mundo para os locais em que pretendem desenvolver práticas voluntárias.

Pode-se dizer que práticas como essas de ensinar a fazer marketing pessoal e etiqueta profissional estão pautadas numa dada convicção sobre as dificuldades que acompanham aqueles que não têm lugar no mercado de trabalho. E qual seria ela? A de que os pobres podem ser, conforme diz Bauman (2005), reciclados. Ou seja, os voluntários acreditam que os excluídos podem ser ensinados a se viabilizar. Essa visão está inscrita numa perspectiva fundada em uma individualização extrema porque atribui ao próprio indivíduo a tarefa de encontrar soluções para seus problemas. Deve-se dizer, todavia, que esse entendimento tem lutado na atualidade com uma outra perspectiva, a de que não há reciclagem possível. Uma parte dos setores preponderantes advoga, então, que não há nada a ser feito pelos grupos mais empobrecidos a não ser controlá-los com mão-de-ferro. Conforme afirma Wacquant (1999, 2001; 2001a), os indivíduos devem ser controlados dentro de espaços sociogeográficos bem demarcados. Aqueles que não se ajustam às novas condições provocadas pela crescente desigualdade social devem ser removidos do convívio social. E essa remoção pode dar-se tanto pelo encarceramento quanto pelo extermínio.

As práticas voluntárias que acreditam na possibilidade de viabilizar os indivíduos com cursos sobre o marketing pessoal e etiqueta profissional são distintas das práticas que vêem todos os pobres como criminosos em potencial. Há, naquela primeira, uma crença humanitária de que, através da instrução, os indivíduos podem encontrar os seus próprios caminhos. Diferentemente, a segunda perspectiva nega firmemente que haja qualquer chance de criar mecanismos de inclusão, sejam eles quais forem, daqueles que vivem nas periferias, nas favelas, nos guetos.

Todavia, mesmo sendo duas e distintas as perspectivas acerca da vida social, do ser humano, da pobreza, da educação formal e profissional, do trabalho etc. pode-se afirmar que elas possuem algo em comum. Ou seja, as duas estão inscritas no desmantelamento de formas coletivas de ação, no esvaziamento do espaço público, na política de despolitização dos problemas sociais etc. "(...) Quando as perspectivas de reciclagem começaram a parecer remotas e incertas, e as instalações destinadas a processá-las regularmente se mostraram cada vez mais incapazes de acomodar todos os que tinham caído [da esteira produtiva] ou que nem chegaram a se erguer" (Bauman, 2005: 106), ganharam mais e mais força esses dois tipos de soluções: a reciclagem voluntária e/ou as estratégias cada vez mais draconianas de controle e de remoção dos pobres do convívio social (Wacquant, 2001; 2001a).

 

Desenvolvimento social e ação voluntária: caminho possível?

O UNV (Programa de Voluntários das Nações Unidas), por intermédio de seu coordenador no Brasil, tem insistido que é possível construir processos de desenvolvimento social por meio de práticas voluntárias. Ao discutir as estratégias, os desafios e a execução de 50 projetos brasileiros que teriam sido bem sucedidos na criação de condições para a implementação dos ODMs, os quais foram reunidos numa obra intitulada 50 Jeitos Brasileiros de Mudar o Mundo: o Brasil rumo aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, Dirk Hegmanns, editor da referida publicação, afirma que a obra

"visa divulgar e aproveitar as boas práticas para o desenvolvimento. Além disso, também auxilia na construção de uma rede entre os diferentes atores sociais, e pode ajudar a recriar iniciativas brasileiras em outros países. Com o livro, podemos estimular as pessoas que querem trabalhar com desenvolvimento social, incentivar a criação de novos projetos e ajudar organizações a melhorarem seu trabalho" (Hegmanns, 2007: 1).

A pergunta que se deve fazer é a seguinte: O que Dirk Hegmanns, coordenador do UNV, está tomando como desenvolvimento social? Há, sobre as ações voluntárias, nas diversas falas, tanto suas como de outros agentes, uma visão singular acerca de tal forma de desenvolvimento, o qual, na maioria das vezes, quer dizer melhorias individuais referentes a um aspecto específico da vivência no interior de um dado grupo social as quais se expandem para as diversas áreas, tais como educação, saúde, alimentação etc. É, então, um entendimento que não tem similaridade alguma com as perspectivas de desenvolvimento social advogadas mesmo por técnicos da ONU na década de 1950.

Examinando-se as posturas de Josué de Castro (1959; 1968) e as de Gunnar Myrdal (1960; 1967), que estiveram a serviço da ONU no decorrer do século XX, observa-se que eles defendiam ações em que tinham papel fundamental tanto a sociedade civil quanto o Estado. Eles advogavam a necessidade de um progresso social, econômico e político que beneficiasse a coletividade. O florescimento de reivindicações e de aspirações capazes de direcionar o processo social é que deveria estar na base das soluções dos problemas sociais que assolavam a vida de inúmeros grupos em diversos continentes (Rezende, 2007: 176).

Celso Furtado, que foi técnico da CEPAL/ ONU (Comissão Econômica para América Latina) na década de 1950, possuía também, assim como Josué de Castro e Gunnar Myrdal, uma visão inteiramente distinta da que aparece hoje nas falas dos defensores das práticas voluntárias acerca do desenvolvimento social. Assinale-se que há diferenças importantes entre esses pensadores no modo de conceber o desenvolvimento e a luta contra o subdesenvolvimento, o que não poderá ser detalhado no âmbito deste artigo. No livro O capitalismo global'(2001: 50-53), Celso Furtado debate os três modelos principais de superação do subdesenvolvimento. Seriam eles: a) Coletivização dos meios de produção; b) Prioridade à satisfação das necessidades básicas; c) Ganho de autonomia externa. Note-se que até mesmo os cientistas que partilham de uma mesma convicção quanto ao caminho a seguir na luta contra o subdesenvolvimento, divergem, muitas vezes, em relação aos métodos, prioridades e potencialidades.

O desenvolvimento social era apresentado por Furtado como sinônimo de desconcentração da renda, de reversão das desigualdades sociais, de organização transparente do poder, de democratização e de exacerbação das lutas e dos movimentos sociais. Assim, o desenvolvimento social só é alcançado através de um amplo processo de reconfiguração social, a qual implica "um amplo processo de mudança social, todo ele orientado para recuperar o atraso político e abrir espaço a fim de que parcelas crescentes da população (...) assumam na plenitude os direitos de cidadania" (Furtado, 1997: 35).

Note-se que, ao falar de desenvolvimento so cial, o UNV está se referindo a algo completamente distinto do que era falado pelos técnicos de órgãos da ONU em meados do século XX. Não há qualquer semelhança, porquanto é objetivamente diferente o modo como hoje se concebe, no UNV/PNUD, o próprio progresso social. É como se não houvesse mais qualquer possibilidade de imaginar ações, em prol deste último, geradas através da expansão do espaço público, do ganho de autonomia externa e da politização dos problemas sociais. O UNV, na verdade, embaraça o desenvolvimento de ações políticas capazes de trazer, para a arena pública, pressões contra o aumento das desigualdades e da concentração de renda e de poder vigente na atualidade.

Isso não significa, porém, que as ações endossadas pelo UNV não tratem de problemas atinentes à renda, a qual é um dos nortes principais das atividades voluntárias. Portanto, há uma labuta enorme para implementar formas dos grupos sociais mais empobrecidos conseguir algum recurso para a subsistência. Isso se dá pelo incentivo ao artesanato, à microempresa e ao trabalho informal. No entanto, reconhece-se que muitas dessas atividades são as únicas formas de subsistência de que dispõem muitos indivíduos e que elas podem desaguar em práticas econômicas e sociais (as cooperativas de materiais recicláveis, por exemplo) de grande importância, o que somente ocorrerá se houver uma politização dos sujeitos sociais envolvidos com questões atinentes não somente à sobrevivência imediata de pessoas e de associações, mas também à definição de uma pauta de luta que torne os indivíduos capazes, graças a uma identidade fundada no labor e em condição de pautar as ações dos demais segmentos sociais e do poder público.

Ao incentivar os projetos de geração de rendas que preservem a biodiversidade, os técnicos da ONU deixam transparecer, em suas falas, uma redefinição da idéia de desenvolvimento sustentável. Kemal Dervis, no Boletim diário do PNUD, faz a seguinte afirmação: "Essas comunidades demonstram o comprometimento com o desenvolvimento sustentável e inspiram a todos nós" (Dervis, 2006: 1). Supõe-se, em decorrência de várias manifestações, que este último ocorre quando a sociedade civil, as ONGs, as comunidades indígenas, os econegócios etc. estabelecem melhorias sociais combinadas com a preservação ambiental. Mas quando se pode dizer de fato que há desenvolvimento sustentável?

Durante três séculos a economia brasileira baseara-se na exploração extensiva de recursos em grande parte não-renováveis: da exploração florestal dos seus primórdios até a grande mineração de ferro, passando pelo uso destrutivo dos solos nos vários ciclos agrícolas. Com efeito, por muito tempo fomos um caso exemplar do que hoje se conhece como 'desenvolvimento não-sustentável'. Civilização predatória, estamos condenados a enfrentar uma imensa crise quando completássemos a destruição da base de recursos não-renováveis (ou renováveis a custos crescentes), ou quando a demanda internacional de tais recursos fosse reduzida pela incidência de fatores tecnológicos ou econômicos (Furtado, 2001: 39-40).

O desenvolvimento é social e sustentável, segundo Furtado, quando as economias periféricas conseguem cumprir alguns objetivos básicos que são:

a)- Um grau de autonomia de decisões que limite [o máximo] possível a drenagem para o exterior de potencial de investimento; b)- estruturas de poder que dificultem a absorção desse potencial pelo processo de reprodução dos padrões de consumo dos países ricos e assegurem um nível relativamente alto de investimento no fator humano, abrindo caminho à homogeneização social; c)- certo grau de descentralização de decisões empresariais requerido para a adoção de um sistema de incentivos capaz de assegurar o uso potencial produtivo; d)- estruturas sociais que abram espaço à criatividade num amplo horizonte cultural e gerem forças preventivas e corretivas nos processos de excessiva concentração de poder (Furtado, 2001: 54).

Desenvolvimento sustentável não é somente a organização de uma forma de obtenção de renda combinada com a preservação da biodiversidade, conforme querem fazer crer alguns técnicos da ONU. Ele tem um caráter de enfrentamento político em primeiro lugar, porque está relacionado a um embate acerca de múltiplos interesses, tanto internos quanto externos. Furtado está de acordo com as Nações Unidas quanto à necessidade de pensar o desenvolvimento e o equilíbrio ecológico, ao mesmo tempo. Ele diz que considera que a ação política no século XXI deve ser direcionada nesse sentido. Ou seja, é preciso romper com um padrão de consumo destrutivo e estabelecer um novo padrão de organização social, o qual deveria estar assentado na busca de "satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação concebida como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da ação solidária" (Furtado, 2001: 64-65).

Conforme foi demonstrado anteriormente, vários programas de ação voluntária referendados pelo UNV não dão qualquer indicação de que são capazes de reconhecer os pontos essencialmente definidores de um padrão econômico e social fundado na degradação da vida social. Ao enaltecerem, as atividades do Projeto Universitários do Milênio, a necessidade de um ajustamento a todo custo a ordem vigente, acabam os seus agentes por reforçar uma individualização extrema que é um dos pilares de uma expansão capitalista atual. Há algo incômodo no modo como os que estão envolvidos na exaltação das ações voluntárias justificam as suas ações e as dos demais. Fala-se muito em incorporar novos parceiros, sensibilizar novos grupos e atores, mas os argumentos não são propensos a uma politização do debate acerca do papel destes agentes no que diz respeito à criação de formas de pressão, de luta social. Há algo nas falas que indicam um mal-estar. Ou seja, elas apontam para a necessidade de mobilização; contudo, tem-se a impressão de que há uma obsessão pelo controle daqueles agentes que se mobilizam. Conforme diz Manoel Bomfim (1862-1932), toda recusa em lidar com as imprevisibilidades advindas de tais processos de mobilização guarda, claramente, traços de conservadorismo (1993).

A secretária-executiva-adjunta da ONG intitulada COEP (Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela vida) dá a seguinte informação, ao comentar o seu empenho em mobilizar a VII Semana Nacional de Mobilização pela vida: "A expectativa da Semana é incorporar novos parceiros, sensibilizar a sociedade para questões como a pobreza e fazer com que se coloque o combate à fome na pauta da sociedade em geral. Queremos envolver mais atores na promoção do desenvolvimento humano e social" (Medeiros, 2006: 1).

É absolutamente vaga, tanto a idéia de sensibilização da sociedade, no que tange à questão da pobreza, quanto a de que as atividades promovidas pela Organização Não-Governamental COEP colocarão o combate à fome na pauta da sociedade em geral. De qual sociedade ela está falando? E que pauta seria essa? Seria a organização de uma agenda pública sobre a fome? Caso sim, é obvio, como demonstrou Josué de Castro à frente da FAO/ONU8 e de outras organizações, como a ASCOFAM (Associação Mundial de Luta contra a Fome), ao longo de sua vida, que esse esforço exige o envolvimento de agentes e de organizações claramente comprometidos politicamente com a implementação e com o estabelecimento de pressões sobre governantes, organizações da sociedade civil, instituições políticas e organismos internacionais. Caso contrário, a suposta promoção do desenvolvimento humano e social fica extremamente vaga, solta.

Note-se que não se está supondo que haja, por parte destes agentes defensores de práticas voluntárias, uma intenção deliberada de escamotear as bases de um desenvolvimento sustentável, de um desenvolvimento social. Algumas falas parecem deixar claro que as ações estão tateando no escuro em busca de formas de participação e de mobilização efetivas e conseqüentes para os grupos sociais envolvidos. No entanto, diante de um desafio de tamanha monta as coisas parecem, muitas vezes, encerrar-se em práticas imediatas, pouco substantivas no que se refere à indicação de caminhos duradouros de mudança. Muitas vezes, fica patente que nem os proponentes das ações nem os envolvidos têm muita clareza acerca dos desafios que devem enfrentar para alcançar os objetivos postos pelos ODMs. Rosangela Ferreira, presidente da Mirim-Brasil, faz a seguinte afirmação:

O grupo se reúne e discute as necessidades da comunidade — como lutar pelo direito à escola, a um posto de saúde. Muitas vezes a escola tem um conselho, mas os jovens não sabem como participar e nem de que forma podem contribuir. Queremos formar pessoas que possam cobrar e participar das comunidades, que sejam formadoras de opinião (Ferreira, 2006: 1).

A fala acima traz uma apreensão, muito presente, na atualidade, quanto às dificuldades de construir caminhos de mobilização. A participação, ela diz, parece ao jovem impossível. Nesse caso, a saída é criar mecanismos indutores de ação participativa. Entre eles estão as premiações de reconhecimento9 das práticas promovidas pelas ONGs, pelos governantes, pelo PNUD, pelo UNV. Sobre as premiações, note-se a seguinte afirmação de Karla Parra Correa, assistente de programa da Unidade de Direitos Humanos do PNUD: "A idéia é criar um espaço de discussão para que essas práticas possam servir de exemplo, já que elas têm uma capacidade muito grande de serem replicadas em todo o Brasil" (Correa, 2006: 1). Sandra Diogo, Secretária-Executiva do Movimento Nacional pela Cidadania e Solidariedade diz: "As atividades acontecem o ano inteiro para divulgar os Objetivos do Milênio, mas, durante a semana, sempre existem ações-chave para que o Brasil veja as notícias e se engaje no movimento" (Diogo, 2006: 1).

É, de fato, constatável que há uma enorme dificuldade de construir processos de mobilização. Isto se deve à ausência de um espaço público formador de atitudes — entendidas como disponibilidade para agir — alicerçadas em experiências coletivas. O resultado é uma crescente despolitização da esfera político-pública. São muitas as ações divulgadas pelo PNUD/ONU como importantes para a efetivação dos ODMs que reafirmam o esvaziamento do espaço público. Elas vão desde práticas coordenadas pelos governos federais, estaduais e municipais até práticas de associações de Escoteiros e Bandeirantes. Ganham destaque, é claro, as ações promovidas pelas ONGs das mais diversas áreas e as ações vinculadas às empresas privadas. Uma melhor compreensão dessas práticas pode ser obtida através da leitura das reportagens intituladas Após escoteiros, bandeirantes apóiam ODM (2006); ODM ganham apoio de escoteiros no Brasil (2006); Empresas do RN se comprometem com ODM (2006); Prêmio estimula voluntariado na academia (2006); Em Goiás, ação pró-ODM começa com faxina (2006); Banco Real, que integra os Objetivos do Milênio as suas operações no país, é um dos vencedores de premiações sobre práticas empresariais (2006); Brasil exporta ação voluntária pró-ODM (2006); Prêmio incentiva ação empresarial pró-ODM (2006).

É visível que várias ações apoiadas pelo UNV/ONU, as quais devem ser indutoras de participação, não conseguem, muitas vezes, reverter a desertificação do espaço público. Muitas vezes ocorre uma reiteração, provavelmente não-intencional, deste esvaziamento. Observe-se a fala de Jacob Tamm, coordenador do projeto intitulado Levar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para a comunidade, criado pelo UNV em parceria com o IIDAC (Instituto Internacional para o Desenvolvimento da Cidadania). Ele diz: "Para a comunidade poder enfrentar os desafios dos ODM com suas próprias mãos de modo eficiente, o processo de preparação, gestão e acompanhamento da ação são tão importantes como a ação por si mesmo. O objetivo é o fortalecimento da comunidade, então cada passo é um treinamento"10 (Tamm, 2006: 1). Diversas ações empresariais são consideradas pelo PNUD como cumpridoras desse objetivo.

Que tipo de ação empresarial é apoiada pelo PNUD, órgão encarregado de gerenciar a implementação dos ODMs? São muitas. Mas a título de exemplo, podem-se mencionar algumas que foram recentemente premiadas no quesito práticas empresariais: Aaviskaar Índia Mitro Venture, por oferecer empréstimos a pequenas e médias empresas na Índia, África Comprehensive HIV/AIDS Partnership da Merck; Ecologic finance, por financiar a conservação ambiental em regiões vulneráveis da África e da América Latina; Patrimônio Hoy, da Cemex que ajuda a construir moradia para pessoas pobres no México; Tetra Pak Food for Development, pela distribuição de merenda a estudantes pobres. (Banco Real, que integra os Objetivos do Milênio a suas operações no país, é um dos vencedores de premiação sobre práticas empresariais, 2006).

A análise sociológica tem de estabelecer uma distinção entre a intenção que orienta as ações e os seus resultados, conforme ensinou Max Weber (1991). A intenção dos agentes indutores da participação pode estar voltada para construir práticas capazes de redefinir o perfil dos grupos envolvidos na busca de implementação dos ODMs. No entanto, os resultados podem reiterar o esvaziamento do espaço público por não levar os agentes a desenvolver qualidades, de fato, coletivas. Isto porque os agentes adentram as experiências de mobilização como indivíduos de jure (aqueles que têm ciência de seus direitos estabelecidos na lei) e delas saem nesta mesma condição, ou seja, não se transformam, como afirma Bauman (2001: 41), em indivíduos de facto, aqueles que têm, de fato e não ilusoriamente, o controle de sua vida. Muitas atividades voluntárias endossadas pelo UNV/ONU acabam por ajudar a plan tar a ilusão, discutida no livro A modernidade liquida, de que os indivíduos possuem, enquanto indivíduos de jure, as soluções para os seus problemas.

Não é possível, desse modo, alcançar o desenvolvimento sustentável e social de que tanto falam os agentes das organizações não-governamentais, os técnicos da ONU, os agentes governamentais e empresariais. Somente transformando os indivíduos de jure em indivíduos de facto, é que tal processo se faz possível. Isso porque essa transmutação depende do povoamento do espaço público por agentes dotados de características cidadãs, as quais se definem assim porque o bem-estar coletivo está sempre à frente do bem-estar individual.

 

Conclusão

Em vista do exposto até o momento, devem-se fazer as seguintes perguntas: O voluntariado tende ou não a passar a idéia de que ele substitui a sociedade civil organizada? Há como as práticas voluntárias ter um entendimento multidimensional da pobreza, das desigualdades e das ações que visam desmantelar mecanismos econômicos, sociais, políticos e culturais de reprodução das desigualdades?

Pode-se dizer que, em algumas falas de técnicos da ONU e de agentes que coordenam centenas de projetos, transparece que as experiências voluntárias são vistas como remédio contra uma desmobilização social crescente. Assim, se não há participação, se as pessoas não sabem como construir estratégias de intervenção, se estão desmotivadas social e psicologicamente, se desconhecem o seu potencial de interferência para mudar o quadro vigente, se não sabem como sair do atoleiro do desemprego em massa, se desconhecem os meandros do processo de construção de ações conjuntas, só há uma solução: a expansão até o infinito das práticas voluntárias. É isso que dizem, incessantemente, os técnicos do PNUD e do UNV e os coordenadores de projetos desenvolvidos por ONGs, governantes e setores empresariais que abraçam tais práticas como a saída possível para os problemas sociais crescentes.

Muitas vezes, evidencia-se que há uma convicção crescente de que uma sociedade civil organizada em torno da politização da esfera público-política não é mais possível. Alastra-se, assim, a tão persistente preocupação com a indução de práticas voluntárias. Assim, não há qualquer apreensão sobre a despolitização da vida social, sobre a desertificação do espaço público e o esvaziamento de projetos coletivos fundados no pertencimento de classe ou nas identidades laborais. A maioria das ações destacadas nesta análise dá como certa a impossibilidade de quaisquer outras práticas, a não ser aquelas denominadas voluntárias. Reitera-se, então, seguidamente, a individualização crescente e o encolhimento dos espaços públicos construídos às duras penas nas décadas anteriores.

Outro elemento que também se detecta nas argumentações daqueles que conduzem as práticas voluntárias é a estratégia de evitar discutir o processo de produção e de reprodução das desigualdades. Na maioria das vezes, fala-se profusamente em pobreza, miserabilidade, falta de oportunidades etc., mas quase nunca há qualquer menção à crescente disparidade social visível no mundo, hoje. É muito mais fácil situar o debate no campo de ações que amenizam a pobreza do que no âmbito do combate a um padrão de organização social que tende a concentrar renda e poder de modo gritante. As distâncias entre os mais ricos e os mais pobres têm crescido enormemente com o processo de globalização tecnológica e financeira em curso, mas isto também parece, muitas vezes, como irrelevante para os advogados da necessidade de expandir o voluntariado.

Fica patente que as desigualdades sociais são tidas como um dado incontornável. Nesse caso, restam as ações que amenizam a pobreza e as suas mazelas sociais. Observe-se que o cumprimento dos ODMs, no que diz respeito às suas diversas metas — reduzir pela metade até 2015 a proporção de pessoas que têm renda inferior a 1 dólar/dia; reduzir pela metade a proporção de pessoas que passam fome; garantir que todas as crianças terminem o ciclo básico de ensino; reduzir a mortalidade de crianças; melhorar a saúde das mães etc. — só é possível por meio de um amplo processo de desconcentração de renda que não tem como ocorrer através de práticas voluntárias. Como afirma Celso Furtado, "a repartição da renda é comandada por fatores de natureza institucional e política" (Furtado, 2001: 27). Está justamente aí a importância, conforme diz Bourdieu (2001: 60), de restaurar a política, pois somente assim é possível lutar "contra a política de despolitização" tão em voga no mundo atual.

As ações voluntárias tornam-se mais e mais dinâmicas em razão de um processo crescente de enfraquecimento da capacidade do Estado nacional de agir em favor da desconcentração da renda. Em razão da globalização financeira e tecnológica que advoga a necessidade de Estados cada vez mais esvaziados de sua tarefa de construir projetos em favor da nação como um todo, ganham formas, em várias partes do planeta, múltiplas maneiras de combate à pobreza que deixam evidenciado um abandono quase absoluto de políticas de combate às desigualdades sociais.

Em tais condições, as práticas voluntárias encontram um terreno fértil para crescer e prosperar, tanto que as próprias ações que deveriam ser realizadas como políticas públicas de Estado passam a ser executadas como programas sociais dependentes dos trabalhos voluntários. O esvaziamento da ação política do Estado passa a ser compensado com uma agenda de ações fluidas, flexíveis e instáveis, ou seja, dependentes da boa vontade de uma multiplicidade de agentes que acreditam estar fazendo a sua parte na luta contra o caos social e todo o sofrimento que ele tem produzido. Uma das conseqüências desse processo é a crescente convicção — alastrada também pela expansão do voluntariado - de que não há o que fazer em relação às desigualdades crescentes, só restando, então, amenizar alguns aspectos da pobreza, da miserabilidade, do desemprego crescente, etc.

O esvaziamento das demandas públicas - aprofundado por uma conjuntura econômica e política que desregulamenta e flexibiliza os direitos coletivos construídos pela luta social ao longo dos séculos -fornece também as bases para a expansão das ações voluntárias que florescem sobre tais condições e, ao mesmo tempo, pavimentam mais e mais o terreno no qual se intensifica a desertificação do espaço público. A desintegração das redes sociais e das ações coletivas não foi provocada pela expansão do voluntariado, mas este último cumpre o papel de mascarar os efeitos de tal processo. À medida que a "causa comum" torna-se mais e mais precária como resultado de um complexo processo de aprofundamento da individualização, tem-se cada vez menos a possibilidade de restaurar as pressões sobre os governantes para que eles respondam pelos problemas que atormentam a vida da população mais empobrecida (Rezende, 2007a).

Ao contrário do que se imagina, o voluntariado não expressa uma melhor integração da sociedade, ele é o efeito de uma profunda desintegração social. Ele tenta substituir as formas de integração baseadas nas atividades laborais e políticas por soluções individualmente construídas que passam longe de qualquer expectativa de uma luta pelo bem-estar coletivo. Pode-se dizer, sem sombra de dúvidas, que as práticas voluntárias ajudam a erguer barreiras cada vez mais altas no caminho da reconstrução de espaços públicos por onde possam fluir as demandas coletivas. Isso se deve ao fato de que o voluntariado volta-se para atender as queixas individuais, não tendo, portanto, qualquer relação com o bem estar coletivo, com as necessidades coletivas ou com a busca de uma sociedade mais justa. Conforme ensina Bauman:

Verdadeira novidade não é a necessidade de agir em condições de incerteza parcial ou mesmo tot al, mas a pressão contínua para desmantelar as defesas trabalhosamente construídas — para abolir as instituições que visam a limitar o grau de incerteza e a extensão dos danos que a incerteza desenfreada causou e para evitar ou sufocar esforços de construção de novas medidas coletivas destinadas a manter as incertezas dentro dos limites. Em vez de cerrar fileiras na guerra contra a incerteza, praticamente todos os agentes institucionalizados eficientes de ação coletiva juntam-se ao coro neoliberal para louvar como 'estado natural da humanidade' as 'forças livres do mercado' e o livre comércio, fontes primordiais da incerteza existencial, e insistem na mensagem de que deixar livres as finanças e o capital, abandonando todas as tentativas de frear ou regular os seus movimentos, não é uma opção política entre outras, mas um ditame da razão e uma necessidade. Com efeito Pierre Bourdieu definiu recentemente as teorias e práticas neoliberais essencialmente como um programa para destruir as estruturas coletivas capazes de resistir à lógica do 'mercado puro'(Bauman, 2000: 36).

 

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Notas

1 "O Programa UNV trabalha com as agências das Nações Unidas (NU) e outras organizações de desenvolvimento através das delegações nacionais do PNUD espalhadas pelo mundo" (O QUE é o UNV, UNV/PNUD, 2004).

2 Bauman (2001) considera que Ulrick Beck tem razão ao dizer que "a maneira como se vive [hoje] torna-se uma solução biográfica das contradições sistêmicas" (Beck, 1992: 137).

3 A Assembléia Geral da ONU, em 17 de dezembro de 1985, estabeleceu o dia 05 de dezembro como o dia internacional do voluntariado. O ano de 2001 foi definido pelas Nações Unidas como o ano internacional do voluntariado.

4 Boaventura de Souza Santos (2006) tem proposto uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências para compreender essas práticas sociais, seus limites e potencialidades na construção de alternativas ao processo de exclusão e de desigualdades no mundo hoje.

5 Sobre o surgimento dos ODMs (Rezende, 2007: 174-175).

6 Os projetos eram os seguintes: Universitários do Milênio e Jovem do Milênio.

7 O projeto Universitários do Milênio funciona da seguinte maneira: o grupo define uma comunidade-alvo e define um ODM a ser perseguido. Um professor supervisiona o projeto, o grupo envia relatórios à ONG Natal Voluntários, a qual acompanha os resultados do projeto. Os certificados expressam uma forma de premiação. "Broze, para o grupo que cumprir as 4 primeiras ações em um período máximo de 4 anos. Prata, para o grupo que cumprir as 6 primeiras ações em um período máximo de 8 meses. Ouro, para o grupo que cumprir as 8 primeiras ações num período máximo de 12 meses" (Projeto Universitários do Milênio, 2006).

8 Food and Agriculture Organization.

9 A premiação, no Brasil, das práticas voltadas para os ODMs, no ano de 2005, recebeu 910 inscrições. Deste total 356 concorriam pela categoria Prefeituras, 450 concorriam como iniciativas de organizações e 104 concorriam como pessoas ou entidades (Prêmio ODM Brasil recebe 910 inscrições, 2006).

10 Muitas outras falas poderiam ser listadas como exemplos de reiteração de uma individualização crescente. Isabel Portela, superintendente do Instituto Newton Rique, afirma: "É um trabalho muito bacana que está levando os Objetivos do Milênio diretamente às pessoas. Queremos que as pessoas conheçam mais e melhor as práticas de cidadania para combater a pobreza e melhorar a vida de todos" (Portela, 2006: 1).

 

Información sobre la autora

Maria José de Rezende. Investigadora-profesora de Sociología en la Universidade Estadual de Londrina, en Paraná, Brasil; doctora en Sociología por la Universidade de São Paulo. Líneas de investigación: Estado y democracia en Brasil, pensamiento social y político brasileño, política brasileña, teorías de cambio social, desigualdades y exclusiones en Brasil hoy. Actualmente desarrolla el proyecto de investigación intitulado: "A multidimensionalidade das teorias de mudança social no Brasil na segunda metade do século XX". Publicaciones recientes: A transição como forma de dominação política (1996) e Ditadura militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade (2001), ambos publicados por la editorial Eduel. Es también coautora de otros libros como: Direitos humanos e educação (2005) y Realidade brasileira: várias questões, muitos olhares (2002), editorial Humanitas.

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