Introdução
No campo da educação científica a promoção da argumentação tem sido sugerida, tanto para auxiliar na compreensão de conteúdos teóricos, quanto no desenvolvimento de competências investigativas, epistemológicas e de tomada de decisão (Pezarini e Maciel, 2018). Nesse contexto, a abordagem de questões sociocientíficas (QSC) adquire destaque. Ao relacionar problemáticas sociais com conceitos ou procedimentos vinculados à ciência, a discussão e argumentação a respeito de QSC desempenham papel significativo no desenvolvimento moral dos educandos, bem como na formação de cidadãos que entendem a natureza da ciência (Conrado e Nunes-Neto, 2018).
Para compreendermos o desenvolvimento moral do indivíduo, nos deparamos com a ideia de raciocínio informal na perspectiva de Sadler (2004), mais especificamente, de raciocínio moral. Consoante Ineichen et al. (2017), é este o raciocínio utilizado na determinação do curso de ações a tomar frente a um problema controverso, o qual, além de elementos teóricos, mobiliza aspectos emotivos e afetivos. A seu respeito, Rest et al. (1986) elaboraram o Modelo dos Quatro Componentes que, na percepção dos autores, permite aos educadores a identificação de possíveis lacunas no desenvolvimento moral dos alunos e, consequentemente, mover esforços para o seu preenchimento. Rest et al. (1986) sugerem que este raciocínio compreende quatro componentes que apesar de funcionarem integradamente são passíveis de ser avaliados separadamente: a sensibilidade moral, o julgamento moral, o comprometimento moral e a perseverança moral.
Em concordância com Ineichen et al. (2017), se considerarmos o raciocínio moral como aquele utilizado na resolução de problemas controversos, a habilidade de reconhecer os aspectos morais das situações que permita ao indivíduo a análise crítica desse problema (sensibilidade moral) se torna preponderante e assume contornos expressivos.
Por sua vez, cabe ao professor não somente possuir uma sensibilidade moral satisfatória, como também habilidades que o auxiliem na elaboração de atividades promotoras dessa sensibilidade. A abordagem das QSC oferece tal possibilidade, ao contemplar o trato de questões emotivas e afetivas (Conrado e Nunes-Neto, 2018). Corroborando a necessidade de um trabalho mais sólido na formação desses profissionais, Pérez e Carvalho (2012) pontuam que, em geral, os professores de ciências são “treinados” para a abordagem de conceitos teóricos em disciplinas específicas, sendo pouco ou nada preparados para lidar com aspectos sociais, políticos e éticos envolvidos em assuntos públicos adjacentes ao progresso científico e tecnológico.
Frente ao exposto, identificaremos: Qual a extensão da sensibilidade moral que licenciandos em química expressam? Para tanto, foram desenvolvidas, no contexto da formação inicial de professores, atividades pautadas no exercício da argumentação diante de QSC. Este estudo no contexto da formação de professores também é corroborado pelas colocações de Rudolph e Horibe (2015), a respeito da educação científica para o engajamento cívico. Para os autores, um dos objetivos da educação científica é desenvolver nos educandos habilidades para o seu engajamento em problemáticas sociais relacionadas à Ciência.
Referenciais Teóricos
Para acessar a sensibilidade moral dos licenciandos recorremos a considerações de Bebeau (1995) em seu material Moral Reasoning in Scientific Research. Nele, ao fornecer subsídios para o exercício da argumentação e do raciocínio moral, o autor disponibiliza instrumentos, como uma grelha de aspectos morais, que permite identificar as lacunas no desenvolvimento moral dos indivíduos.
O referido material encontra-se ancorado no Modelo dos Quatro Componentes sugeridos por Rest et al. (1986), indicado anteriormente, o qual sugere que a moral compreende: a sensibilidade, o julgamento, o comprometimento e a perseverança moral. O Modelo já foi empregado em diferentes situações mediante a possiblidade do trato de cada um dos quatro aspectos separadamente. Como exemplo, o julgamento e comprometimento moral são observados por Lee et al. (2016) junto a jornalistas. Analogamente, a perseverança moral é o objeto de estudo de Bebeau e Thoma (2013) com diferentes profissionais da odontologia, medicina, direito e de carreiras militares. Em suma, o que se verifica nestes estudos concernentes à aplicação do modelo em evidência é a sua viabilidade para acessar os diferentes campos do desenvolvimento moral dos educandos.
No que diz respeito à sensibilidade moral, Bebeau (2014) identificou 37 estudos a seu respeito, dos quais 23 tinham como objetivo acessar a sensibilidade de profissionais de diferentes áreas, como odontologia, medicina e psicologia. Para tanto, são múltiplos os instrumentos empregados com esse objetivo, como o Dental Ethical Sensitivity Test (DEST) e o Racial Ethical Sensitivity Test (REST). Para Bebeau (2014), o que diferencia estes testes são os estímulos ou pistas dos problemas morais apresentados, sem necessariamente sinalizar as questões morais em destaque, ou as responsabilidades profissionais exigidas. Nessa perspectiva, ratificando seu estudo anterior (Bebeau, 1995), o autor sugere que o exercício do raciocínio moral e, consequentemente, o acesso à sensibilidade moral, pode ocorrer por meio da aplicação de estudos de caso: narrativas sobre personagens enfrentando dilemas.
Em vista disso, resgatamos o material elaborado por Bebeau (1995), no qual são apresentados seis casos que trazem em seu bojo dimensões morais. Associadas a cada narrativa são expostas grelhas que contemplam os aspectos morais relacionadas a elas. Nessas grelhas o autor divide os aspectos morais relacionados a cada caso em quatro grupos: as partes direta ou indiretamente envolvidas, as quais podem ser afetadas pelas ações; as consequências de cada uma dessas ações; as obrigações do protagonista, responsável pela tomada de decisão; e o(s) ponto(s) de conflito presente(s) na situação narrada. Um indivíduo com maior sensibilidade moral será aquele que apresentar, em resposta ao dilema em estudo, a maior composição de elementos sugeridos pelo autor.
Analogamente, no trabalho aqui proposto foram estruturados três casos que são potencialmente capazes de promover o exercício da sensibilidade moral dos licenciandos. Para cada caso, a partir de um estudo minucioso, foram desenvolvidas grelhas a eles pertinentes. Estas indicam os aspectos sugeridos por Bebeau (1995) e subsidiaram a análise dos argumentos dos licenciandos tendo em vista o estudo da sensibilidade moral por eles exibida.
Metodologia
As ações pertinentes a este trabalho foram desenvolvidas na disciplina de Química, Sociedade e Cotidiano no Curso de Licenciatura em Ciências Exatas, e conduzidas pela professora ao longo de nove encontros de aproximadamente 100 minutos cada. A disciplina visa o desenvolvimento da capacidade de investigação e análise crítica dos alunos, por meio do conhecimento, discussão e posicionamento diante de problemas relacionados ao impacto da química na sociedade. Neste estudo contamos com a participação de cinco licenciandos, sendo quatro do sexo feminino e um masculino. O grupo era bastante heterogêneo no que diz respeito à idade e formação: três alunos estavam cursando a primeira graduação; um era mestre em engenharia química; uma era doutora em química. A respeito da atuação enquanto professores, apenas um licenciando já atuava na educação básica.
Os estudos de caso foram extraídos do livro “Trinity: a história em quadrinhos da primeira bomba atômica” (Fetter-Vorm, 2013), o qual foi lido na íntegra no decorrer dos nove encontros. Sobre a história em quadrinhos (HQ), ao discorrer a respeito da construção das bombas atômicas lançadas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em meio a Segunda Guerra Mundial, ela permitia não somente a abordagem de tópicos científicos e químicos, como também de questões socialmente controversas intrínsecas ao processo de desenvolvimento da ciência.
Os três casos foram extraídos de momentos distintos da HQ, e eram estruturalmente semelhantes: narravam uma situação que culminava em um dilema moral, e diante deste conflito, o protagonista do caso adotava determinado posicionamento. O licenciando era questionado quanto à decisão tomada pelo personagem, devendo indicar, por meio de um argumento, se era favorável ou contrário a ela.
Para a dinâmica de aplicação desses casos foram adotadas quatro etapas (Figura 1). Inicialmente era entregue aos licenciandos a íntegra dos casos para leitura (1ª etapa). Feito isso, observado o posicionamento do(s) protagonista(s), um primeiro argumento era elaborado pelos educandos (2ª etapa). Na sequência, de modo a permitir a troca de opiniões e fomentar um ambiente propício à externalização das concepções dos licenciandos, uma discussão era conduzida pela professora formadora (3ª etapa). Por fim, uma nova produção escrita em resposta ao caso era solicitada (4ª etapa).
Neste estudo foram tomadas para análise as produções escritas (inicial e final) de cinco licenciandos participantes de todas as atividades, aqui identificados por nomes fictícios, ao segundo caso extraído da HQ (Quadro 1).
Extraído das páginas 60 e 61 da obra, o caso (Quadro 1) traz um dilema ao leitor envolvendo o posicionamento de Oppenheimer, responsável por coordenar cientificamente o Projeto Manhattan, frente a considerações apresentadas pelo físico dinamarquês Bohr. Para Bohr, todo sigilo imposto ao projeto não seria necessário em um cenário no qual todo mundo tivesse conhecimento do poder de destruição de um armamento nuclear. Na sua percepção, com essa noção ninguém seria tolo o suficiente para construir uma arma que poderia facilmente acabar com a humanidade. Dito isso, os aspectos morais relacionados ao caso podem ser observados no Quadro 2. Salientamos que foram pontuados pelos pesquisadores 24 aspectos, os quais estão distribuídos entre os itens sugeridos por Bebeau (1995), isto é, pontos de conflito, partes interessadas, consequências das ações, e obrigações do protagonista, no caso Oppenheimer.
Coleta e análise de dados
Diante do exposto, para análise da sensibilidade moral foram tomadas as produções escritas fornecidas pelos cinco licenciandos ao caso ilustrado no Quadro 1. Conforme explicitado na Figura 1, cada licenciando produziu dois argumentos escritos, sendo um imediatamente após a leitura do caso e outro após a discussão oral conduzida pela professora formadora. Com isso, de modo a identificar os aspectos morais presentes nos diferentes argumentos, as dez produções foram contrapostas com a grelha elaborada pelos pesquisadores (Quadro 2), a qual contempla os aspectos morais relacionados ao caso em estudo. Inicialmente cada argumento foi analisado separadamente pelos autores deste manuscrito. Após identificados individualmente os aspectos morais presentes nas produções dos educandos, os pesquisadores reuniram-se de modo a discuti-los e a verificar divergências nos resultados, tendo em vista o alcance de um consenso a respeito das análises.
Resultados e discussões
Frente ao conflito apresentado no estudo de caso, isto é, falar publicamente a respeito do poder de destruição da bomba atômica, ou manter o sigilo exigido pelo Projeto Manhattan, em um primeiro momento, quatro dos cinco licenciandos se mostraram contrários à sugestão de Bohr e à possibilidade de Oppenheimer expor o poder de destruição do armamento em construção. Esse posicionamento foi mantido após o momento de discussão realizado em sala de aula. Apenas uma licencianda assumiu posicionamento favorável à quebra de sigilo em ambos os momentos de argumentação. Na sequência são discutidos os argumentos de dois licenciandos representativos de cada um desses posicionamentos, antes e após a discussão.
Posicionamento contrário à quebra de sigilo
Com base no Quadro 2, que evidencia os aspectos morais que na perspectiva dos autores relacionam-se ao caso em estudo, analisamos os argumentos da licencianda Alice. No Quadro 3 encontra-se a resposta inicial da aluna acompanhada de sua respectiva análise. Assim sendo, podemos observar que dos 24 elementos indicados no Quadro 2, apenas sete são mencionados pela licencianda (destaques coloridos), ou seja, aproximadamente 29% dos aspectos morais propostos pelos pesquisadores.
Sendo o raciocínio moral uma modalidade do raciocínio informal, este pode apresentar, conforme Sadler e Zeidler (2005), diferentes padrões: racionalista, intuitivo ou emotivo. O racionalista é descrito como considerações baseadas nas razões, o emotivo descrito por uma perspectiva de “cuidado” em que a empatia e a preocupação pelo bem-estar dos outros guiam as decisões e o curso das ações, e o intuitivo baseado em reações imediatas ao contexto de um cenário particular, o qual não pode ser necessariamente explicitado em termos racionais. O que se observa no argumento de Alice é o predomínio de um padrão racionalista. Ou seja, embora a última frase (“Não dá para confiar na sensatez dos homens”) apresentada por Alice remeta a um padrão intuitivo, caracterizado por uma reação imediata ao contexto e que não pode ser explicitado em termos racionais, prevalece na argumentação da licencianda o padrão racionalista. Consequentemente, pautando-se em aspectos baseados fundamentalmente na razão, diferentes fatores suscitados por dilemas morais, como os emotivos e afetivos, são negligenciados.
A observação no parágrafo anterior também está alinhada com o enfoque moral predominante na resposta da aluna, e que a literatura denomina de deontológico (Costa, 2002), em contraponto a um enfoque consequencialista. Segundo Costa (2002), nesta abordagem, moldando-se em uma moral excessivamente simples e rígida, o centro do valor moral está nas regras morais, ou seja, nos princípios universais da moralidade. Com essa premissa, apesar de fazer menção a duas possíveis consequências para apresentar seu posicionamento inicial, Alice se concentra quase que exclusivamente na ideia de pacto de sigilo assumido com Groves e o governo norte-americano, e que, portanto, não deve ser quebrado.
Ainda sobre a resposta da licencianda, constatamos, conforme os aspectos morais por ela mencionados, um destaque a considerações a respeito das partes interessadas, o que também se mostrou comum na maioria das respostas dos licenciandos. Ou seja, dentre os itens propostos por Bebeau (1995), necessários em uma resposta que sinalizaria satisfatória sensibilidade moral (pontos de conflito, partes interessadas, consequências das ações e obrigações do protagonista), menções às partes interessadas ganham evidência. Esse destaque pode ser atribuído ao tipo de texto adotado em sala de aula para realização das atividades, a HQ. Diante de uma HQ o educando se depara com o retrato ou a ilustração dos diferentes personagens representativos deles mesmos, ou de instituições, como é o caso, por exemplo, do governo norte-americano retratado pela figura do então presidente Roosevelt.
Com relação ainda às partes interessadas, verificamos que a licencianda inicia a sua resposta com uma menção ao protagonista, o cientista Oppenheimer, o que pode ser atribuído à narrativa do próprio caso, que contou quase que exclusivamente com o diálogo entre Bohr e Oppenheimer. Dessa forma, a menção ao protagonista corrobora a colocação efetuada no parágrafo anterior em que, ao falar diretamente com o interlocutor, a narrativa ilustrada facilita a sua visualização como parte diretamente interessada no conflito. Além disso, a influência que o diálogo presente na HQ assume na elaboração da resposta da licencianda é evidente ao observarmos a inserção de trechos da narrativa em seu argumento, como a fala de Oppenheimer “Não dá para confiar na sensatez dos homens”.
Prosseguindo para a resposta de Alice após a discussão conduzida pela professora formadora (Quadro 4), dos 24 elementos propostos pelos pesquisadores (Quadro 2), a licencianda faz menção novamente a apenas sete deles (29%). Ou seja, a sensibilidade moral exibida pela licencianda foi mantida.
Partindo novamente de um enfoque deontológico (Costa, 2002), Alice mantém as mesmas duas consequências apresentadas inicialmente e três das quatro partes interessadas abordadas a princípio (exclusão de Groves). Podemos atribuir a redução de partes interessadas presentes na resposta da aluna à objetividade buscada no argumento. O envolvimento de Groves, mencionado no argumento anterior, pode ter ficado subentendido quando a licencianda menciona o acordo de Oppenheimer com o governo dos EUA. Dessa forma, apesar da redução numérica de menções explícitas às partes interessadas, assumimos que o personagem Groves foi contemplado de forma implícita na resposta da licencianda. Com isso, podemos sinalizar uma ligeira evolução da sensibilidade moral exibida por Alice, uma vez que identificamos a inclusão de mais uma das obrigações do protagonista, o dever de Oppenheimer enquanto cientista de divulgar a ciência e contribuir para o seu desenvolvimento.
Posicionamento favorável à quebra de sigilo
Considerando agora a licencianda que adotou posicionamento favorável à quebra de sigilo, apresentamos no Quadro 5 o argumento inicial de Bianca. Nele, diferentemente de Alice, observa-se a tendência a um enfoque consequencialista (Costa, 2002), isto é, considerando como consequência da ação a possibilidade de um acordo entre os líderes das diferentes nações envolvidas diretamente na 2ª Guerra Mundial, há menção a apenas três (13%) dos 24 elementos presentes no Quadro 2. Distanciando-se do argumento de Alice, verifica-se também que não há na resposta de Bianca um contraponto entre implicações de decisões alternativas. Logo, a licencianda se restringe à apresentação de consequências exclusivas de seu posicionamento, implicando em uma sensibilidade moral reduzida.
Outro aspecto que observamos, conforme o Quadro 5, diz respeito à omissão do protagonista na resposta de Bianca, resultando na ausência de quaisquer obrigações do mesmo e, consequentemente, inviabiliza a determinação do ponto de conflito. Ponderando apenas a respeito dos maiores interessados em informações sobre a construção de um armamento nuclear, identificamos como parte interessada no argumento da futura professora somente os líderes de potências envolvidas na guerra.
No que diz respeito aos padrões de raciocínio informal na perspectiva de Sadler e Zeidler (2005), verifica-se no argumento de Bianca uma tendência a um padrão emotivo. Para além do enfoque consequecialista esse padrão parece estar associado com o posicionamento adotado pela licencianda, bem como com a “ausência” do cientista em sua resposta. Nessa perspectiva, Bianca se distancia do campo pessoal predominante na resposta de Alice (a ação do cientista), e usa um cenário mais abrangente, envolvendo simplesmente a existência ou não da bomba para o fomento de acordos.
Quanto ao argumento fornecido por Bianca após a discussão (Quadro 6), constatamos a influência da discussão na elaboração das respostas finais por parte dos licenciandos. Assim sendo, verificamos uma ampliação, mesmo que pequena, da sensibilidade moral exibida pela aluna, a qual passou a mencionar cinco dos 24 elementos propostos pelos pesquisadores (Quadro 2). Ou seja, houve entre os diferentes momentos de aplicação do caso um aumento percentual de sete pontos, resultando em 20% na segunda etapa de argumentação. Este aumento ocorreu devido à inclusão de outras duas partes interessadas omitidas inicialmente, o governo norte-americano e a população mundial.
A inclusão de novas partes interessadas é facilmente explicada pelas possibilidades advindas da leitura do hipergênero textual HQ. No entanto, mantendo praticamente a ideia apresentada inicialmente, de que falar abertamente possibilitaria a construção de um acordo entre os países, e para permanecer com uma resposta objetiva, Bianca mais uma vez omite o protagonista do caso. Sendo assim, novamente qualquer obrigação atribuída a Oppenheimer é ignorada e, consequentemente, o ponto de conflito não é vislumbrado pela futura professora.
Análise global das respostas dos licenciandos ao estudo de caso
Nessa perspectiva, diante do que foi apresentado pelas duas licenciandas, verifica-se índices de sensibilidade moral limitados para ambas, o que também constatamos nos argumentos dos demais futuros professores, para os quais a frequência percentual de menções aos aspectos morais sugeridos pelos pesquisadores (Quadro 2) foram: licencianda Caroline - 25% (inicial) e 46% (final); licencianda Débora - 16% e 33%; licenciando Filipe - 25% e 18%. Essa baixa sensibilidade pode ser explicada por diferentes fatores, como a importância atribuída à formalidade comumente associada à prática científica, ou seja, almejando repostas objetivas e concretas, aspectos relacionados ao raciocínio moral são pouco evidentes nas respostas, principalmente nas de Bianca.
No que tange aos dois momentos de argumentação, antes e após a discussão oral conduzida pela professora formadora, observa-se que, com exceção das respostas fornecidas por Felipe, há uma evolução do que diz respeito à sensibilidade moral exibida pelos licenciandos. Essa ampliação da sensibilidade está diretamente associada ao fato de que a discussão permite o contato com outras percepções sobre o mesmo problema.
Para sistematizar a discussão, apresentamos na Figura 2 um gráfico que expressa a frequência percentual de menção a cada um dos itens sugeridos por Bebeau (1995) quanto à sensibilidade moral (partes interessadas, consequência, obrigação e ponto de conflito) em função das respostas iniciais e finais dos licenciandos.
De posse da Figura 2, a partir dos argumentos de todos os licenciandos podemos corroborar a maior facilidade na identificação de aspectos morais pertinentes as partes interessadas no conflito. Constatação que se alinha ao hipergênero textual utilizado em contexto de sala de aula, HQ. Ademais, embora a sensibilidade moral, de forma geral, tenha sido limitada, o momento de discussão permitiu ampliação considerável dessa sensibilidade, que para além de um aumento de menções às partes interessadas também contemplou, conforme gráfico esquematizado na Figura 2, um acréscimo dos demais aspectos sugeridos por Bebeau (1995).
Vale destacar que os elementos constatados antes e após a discussão variaram para cada licenciando, sendo o aspecto mais recorrente identificado apenas após a discussão, a obrigação de Oppenheimer com a ciência e a prática científica, a qual compreende, por exemplo, a comunicação aberta dos resultados. Por sua vez, foi a partir da constatação dessa obrigação que um dos pontos de conflito, “Falar abertamente sobre o poder de destruição da bomba (divulgação da ciência) vs. Manter o sigilo dado o contexto de guerra”, passou a ser vislumbrado por um dos educandos. Destacamos, assim como sugerido na Figura 2, que inicialmente nenhum ponto de conflito havia sido ponderado explicitamente nas respostas dos licenciandos.
Salientamos ainda que apesar dessa ampliação ser esperada, ela evidencia que com os momentos de discussão os licenciandos conseguem vislumbrar aspectos morais pouco comuns a eles e, consequentemente, negligenciados. Por sua vez, um trabalho contínuo dessa natureza tem potencial para contribuir com a ampliação da visão dos futuros professores a respeito de questões envolvendo dimensões morais, em especial de aspectos mais subjetivos como as obrigações dos protagonistas e até mesmo os pontos de conflito. De forma análoga, Fowler et al. (2009) sugerem que oportunidades para a negociação diante de QSC tem potencial para contribuir para o desenvolvimento da sensibilidade moral dos educandos diante de situações diversas.
Considerações finais
A partir do exposto, verificamos que os licenciandos participantes exibiram sensibilidades morais reduzidas. Apesar das limitações inerentes a este estudo, essa observação sinaliza a necessidade de maiores investigações acerca da problemática em questão na formação inicial de professores. Isto porque, tais resultados podem fornecer indícios preocupantes tendo em vista as ações dos professores em sala de aula da educação básica para o desenvolvimento moral dos seus educandos. Por sua vez, essa colocação vai ao encontro do papel do professor no que tange à promoção de uma educação científica para o engajamento cívico.
A baixa sensibilidade verificada neste estudo pode ser explicada por diferentes fatores, dentre os quais: a busca pela “pseudobjetividade” atribuída à ciência. De modo a ser objetivo, os licenciandos acabam empregando, na maioria das vezes, um padrão de raciocínio informal racionalista, no qual impera a razão, em detrimento de outros aspectos inerentes ao raciocínio moral, como os afetivos e emotivos.
Outrossim, a presença de enfoques deontológicos nas respostas dos futuros professores se alinha com a observação efetuada no parágrafo anterior. Isto porque, recorrendo a regras universais de moralidade, não se faz necessário contemplar uma série de outros aspectos que seriam relevantes para a resolução do problema, como a consequência das ações. Nessa perspectiva, a existência desse enfoque também irá refletir na ponderação a respeito dos elementos que influenciam no estabelecimento de uma sensibilidade moral satisfatória, isto é, partes interessadas, consequências, obrigações e pontos de conflito.
Com isso, reiteramos o que é afirmado por Bebeau (1995). Conforme o autor, somos treinados desde pequeno a seguir regras sem uma reflexão crítica do porquê delas. Logo, quando nos deparamos com situações que não possuem regras estabelecidas antes, encontramos dificuldades na tomada de decisão, ainda mais quando esta envolve o bem-estar de outras pessoas
Por fim, com o estudo aqui desenvolvido destacamos a validade da metodologia empregada, em especial do momento de discussão estabelecido em sala de aula. Essa etapa da dinâmica permitiu não somente que os licenciandos pudessem contemplar aspectos negligenciados em suas respostas iniciais, ampliando sua sensibilidade, como também exibissem suas ideias e opiniões. Nesse sentido, o ambiente propiciado por essas discussões vai ao encontro das necessidades que derivam da abordagem de QSC em sala de aula, como a de fornecer um contexto que encoraja educandos a expressarem suas concepções acerca da temática abordada.