Introdução
Aformação inicial de professores é temática de discussão recorrente no Brasil e é o foco central do presente estudo, que decorre do interesse em compreender processos de desenvolvimento do pensamento docente em contextos de formação. Para tanto, identificamos possibilidades de análise por meio da epistemología de Ludwik Fleck (2010), que tem contribuído ao ampliar nossos entendimentos acerca da relação da formação do pensamento com o meio social em que o sujeito está inserido. De acordo com Fleck (2010, p. 90), "[...] a origem do pensamento não está nele, o pensamento em si, mas no meio social onde vive, na atmosfera social na qual respira, e ele não tem como pensar de outra maneira a não ser daquela que resulta necessariamente das influências do meio social que se concentram no seu cérebro"
Em seus estudos, Fleck (2010) propõe a categoria de Estilo de Pensamento (EP), que é caracterizado como "o conhecimento de uma época, de uma sociedade ou mesmo de um grupo ou organização" (p. 13), o que contribui para identificar como as ideias científicas se modificam ao longo do tempo. Ainda, Fleck (2010) acrescenta que "[...] o estilo de pensamento é constituído a partir de atividades sociais desenvolvidas por essa comunidade ou coletivo", denominado, pelo autor, de coletivo de pensamento.
Com essa perspectiva epistemológica, concentramos esforços em pesquisar processos de formação inicial de professores de Química, considerando nossa inserção em contexto formativo de professores da área. Nesse sentido, destacamos que a formação inicial de professores precisa ser entendida, conforme proposto por Schnetzler (2002, p. 15), "como tempo e espaço organizados, como momentos de reflexão, para que o futuro professor desenvolva compreensões acerca do seu fazer pedagógico, revendo numa perspectiva crítica e emancipatória, a construção e/ou reconstrução do seu saber fazer"
Para tanto, compreendemos a necessidade de garantir aos licenciandos uma formação que aborde tanto conhecimentos específicos de conteúdos científicos das Ciências/ Química como, também, conhecimentos pedagógicos que tratam dos processos de ensinar e aprender Ciências/Química na Educação Básica.
Ainda, destacamos que pesquisar a formação inicial de professores é relevante no cenário atual, considerando que no Brasil temos novas políticas de formação, que têm sido construídas e propostas, de acordo com Pereira (1999), a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n. 9.394 (1996). Tais discussões têm se intensificado com a aprovação das diretrizes curriculares nacionais em 2015, ao definirem que os cursos de formação inicial de professores devem ofertar 400 horas de práticas de ensino como componente curricular, para além da carga horária dos estágios supervisionados, estabelecida em diretrizes anteriores.
[...] 5° São princípios da Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica:
[...] V - a articulação entre a teoria e a prática no processo de formação docente, fundada no domínio dos conhecimentos científicos e didáticos, contemplando a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (Brasil, 2015, p. 4).
Dessa forma, defendemos que o conhecimento pedagógico e o específico de conteúdos químicos se complementam e contribuem para o desenvolvimento profissional docente. Conforme nos coloca Maldaner (2020, p. 18), é necessário que haja uma "interação entre universidades-escolas de educação fundamental e média, no processo de formação de professores de ciências e a criação de núcleo de estudos e pesquisas educacionais". Portanto, quanto mais interações ocorrerem entre instituições de ensino, maior será a produção do conhecimento e os professores envolvidos poderão mudar suas práticas pedagógicas, que possivelmente servirão como indicativos para os professores em formação.
Ainda, Maldaner (2020, p. 51) reforça que "a racionalidade técnica, nos currículos de formação profissional, tende, exatamente, a separar o mundo acadêmico do mundo da prática e assim, manter o monopólio da pesquisa". Por vários anos, o ensino técnico foi predominante, afastando os professores de uma formação mais pedagógica, bastando apenas saber o conteúdo. Quanto a isso, o autor nos traz que:
Os estudantes criticam, com razão, desde a falta de didática da maioria dos professores da Graduação, passando pela dicotomia das aulas práticas e teóricas, até a falta de transparência dos conteúdos de Química para o ensino secundário e elementar. [...] há um despreparo pedagógico dos professores universitários e isso afeta a formação em Química de maneira geral, não só os licenciandos (Maldaner, 2020, p. 47).
Para contornar tal situação e reforçar a importância da formação pedagógica, algumas disciplinas foram sendo inseridas nos cursos de licenciatura da área no Brasil, como "História da Ciência, Epistemologia da Ciência, Instrumentação para o Ensino de Química e Metodologia do Ensino de Química" (Maldaner, 2020, p. 48). Tais disciplinas podem contribuir com a melhoria dos cursos em formar professores mais qualificados, em que a preocupação diante do conhecimento pedagógico deva ser um dos temas centrais em quaisquer atividades dos professores em uma universidade.
Destacamos que, décadas atrás, a educação era vista apenas como um modo para se conseguir mais profissionais, tendo o mínimo de estudo necessário para exercer a profissão docente. Nesse sentido, Maldaner (2020, p. 48) afirma que, na prática, "muitos bacharéis acabaram tornando-se professores de Química por força do mercado de trabalho", isto é, estão exercendo a profissão docente sem terem tido o mínimo necessário de formação pedagógica, o que reforça a implementação de disciplinas de cunho pedagógico.
Sob essas perspectivas de formação, temos investido esforços em analisar aspectos epistemológicos que contribuem na formação de professores de Química. Assim, utilizamos como contexto de estudo o curso de Química Licenciatura da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Cerro Largo/RS. Destacamos que o referido curso propõe "uma formação científica, humanística e tecnológica considerando-se a realidade sociocultural da região de abrangência da Universidade Federal da Fronteira Sul" (UFFS, 2012, p. 18). É imprescindível traçar a linha teoria/prática, pois as práticas de ensino que perpassam nosso curso são um núcleo formativo e que se caracterizam como um elo entre os saberes específicos, tanto é que um importante objetivo a ser alcançado é "aproximar as diferentes áreas do conhecimento que integram a formação do professor de Química/Ciências no sentido de promover um trabalho pedagógico interdisciplinar" (UFFS, 2012, p. 22).
Com isso, tomamos como objetivo do presente estudo investigar o desenvolvimento de EP de professores de Química em formação inicial. Com isso, temos como questão central: Que conhecimentos acerca da atividade docente são expressos por licenciandos do curso de Química Licenciatura, e que contribuem para evidenciar o desenvolvimento de EP?
Como hipótese do estudo, apontamos que os conhecimentos específicos, que tratam dos conteúdos científicos, predominam na formação inicial do professor de Química, o que pode caracterizar o desenvolvimento de um EP com características mais tecnicistas no processo de formação inicial.
Compreendemos que identificar e analisar os EP dos licenciandos do curso de Química Licenciatura pode contribuir com a qualificação do próprio curso, compartilhando contextos expressos na formação docente e compreendendo como se instaura cada EP. Tal situação fortalece o processo de formação inicial, bem como o planejamento de ações futuras, que buscam promover o desenvolvimento da área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias (CNT) no contexto nacional.
Dessa forma, apresentamos na sequência o referencial teórico, o percurso metodológico realizado nesse estudo, os resultados identificados a partir do processo de análise e a discussão balizada pela perspectiva epistemológica de Ludwik Fleck (2010).
Referencial Teórico
A realização do presente estudo é embasada pela epistemologia de Ludwik Fleck e foi o eixo norteador da análise dos Estilos de Pensamentos (EP) dos licenciandos do curso de Química - Licenciatura da UFFS. O estilo de pensamento, de acordo com Fleck (2010), pode ser definido "como disposição para uma percepção direcionada e apropriada assimilação do que foi percebido" e que os EP se desenvolvem a partir de uma coesão histórica, pois "alguma coisa de cada estilo de pensamento permanece" (Fleck, 2010, p. 150), podendo ser alguma experiência marcante, de maneira positiva ou negativa, vivida no ensino fundamental, médio, técnico e até mesmo superior.
Entendemos que todo o caminho traçado, no qual o principal objetivo é o conhecimento, é feito por meio de experiências compartilhadas e não de forma individual. Com isso, destacamos as ideias de Fleck (2010, p. 81), ao defender que, "[...] o processo de conhecimento não é o processo individual de uma consciência em si teórica; é o resultado de uma atividade social, uma vez que o respectivo estado do saber ultrapassa os limites dados a um indivíduo". Com essa perspectiva, Lorenzetti (2008, p. 25) contribui ao afirmar que:
Um estilo de pensamento se instaura quando um problema é encarado como tal por mais de uma pessoa, por um coletivo de pensamento. [...] Uma vez instaurado o estilo de pensamento, o coletivo de pensamento esforça-se em estendê-lo a outros problemas com sucesso. Ao surgirem complicações, que são problemas que o estilo de pensamento não consegue resolver, esta passa por um processo de transformação e se instaura um novo estilo de pensamento, dando início a um novo ciclo.
Cabe destacar, que um mesmo sujeito pode participar simultaneamente de vários coletivos e se tornar multiplicador, ou não, de estilos de pensamento, o que vai depender da sua função em cada coletivo. Ainda, ressaltamos que o processo de desenvolvimento do CP ocorre por meio da circulação das ideias que ocorrem no contexto. Por meio de estudos acerca das possibilidades de análise epistemológica fleckiana, Brandão (2015, p. 69) afirma que "essa circulação de ideias representa enquanto elemento pode ter consequências na criação e transformação de estilos" e que, em outros termos, com o foco na formação docente:
[...] o professor é um dos mediadores no processo educativo escolar da apropriação pelos alunos dos(s) estilo(s) de pensamento(s) produzidos pelos coletivos de cientistas. Podemos, então, interpretar que, ao se apropriar dos conhecimentos desses estilos, o aluno estaria modificando a sua própria concepção científica (Brandão, 2015, p. 69).
No que se refere ao processo de circulação de ideias entre os EP em um contexto, destacamos o que é proposto por Fleck (2010), a saber: "não há nada fixo ou acabado. Tudo pode ser visto sob um ou outro prisma. Falta firmeza, a coação, a resistência, o solo firme dos fatos". Assim, defendemos que o EP identificado em determinado sujeito pode sofrer modificações conforme o contexto em que ele está inserido. Ou seja, um mesmo sujeito pode participar de vários coletivos ao mesmo tempo, ou ainda, por ora apresentar aspectos que o aproximam de um EP e, em outros momentos, aspectos que o caracterizam em outro EP.
Sob essa perspectiva, Slongo (2004, p. 108) afirma que "falta ao processo de conhecimento a condicionalidade proporcionada pelo estilo de pensamento, o que deixa o investigador suscetível a observações emaranhadas, a percepções confusas e à busca de soluções por tentativas", porém é a dinâmica que assegura a extensão do estilo de pensamento, aprimorando-o e legitimando-o.
Ainda, ressaltamos que os pensamentos expressos pelos sujeitos participantes de um coletivo conservam-se, de acordo com Fleck (2010), "graças a uma harmonia da ilusão, enquanto formações resistentes e rígidas". Para Delizoicov et al. (2002, p. 59), "a harmonia ocorre em um sistema de ideias relativamente eficaz que promove uma intrínseca harmonia do estilo de pensamento, adaptando o cognoscente ao conhecimento e à origem do conhecimento dentro da visão agora dominante". Dessa forma, Condé (2012), alicerçado em Fleck, reitera a importância em: "considerar a multiplicidade de estilos de pensamento coexistentes e divergentes não como um defeito ou um obstáculo, mas como um pré-requisito indispensável à prática da ciência - com todas as dificuldades de tradução resultantes" (Condé, 2012, p. 46).
Assim, podemos afirmar que o contexto é determinante no desenvolvimento do EP de um grupo ou de uma instituição, pois as vivências compartilhadas vão constituindo suas formas de pensar, marcas que caracterizam o grupo em que estão inseridos e, dessa forma, caracterizando o EP.
Metodologia
As estratégias de investigação da presente pesquisa delineiam-se em distintas etapas realizadas por meio de um estudo com natureza qualitativa. Para Zanelli (2002, p. 83), o principal objetivo da pesquisa qualitativa "é buscar entender o que as pessoas apreendem ao perceberem o que acontece em seus mundos". O autor complementa, ainda, que "é muito importante prestar atenção no entendimento que temos dos entrevistados, nas possíveis distorções e no quanto eles estão dispostos ou confiantes em partilhar suas percepções" (Zanelli, 2002, p. 83).
Tomando como base as contribuições de Lüdke e André (1986), escolhemos a realização de um estudo de caso, considerando o interesse em enfatizar entendimentos desenvolvidos em um contexto específico, no caso o curso de Química Licenciatura da UFFS, Campus Cerro Largo/RS. Conforme Lüdke e André, o estudo de um caso "se desenvolve numa situação natural, é rico em dados descritivos, tem um plano aberto e flexível e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada" (Lüdke & André, 1986, p. 20). Ainda, para Yin (2005, p. 32), "o estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real".
Nesse sentido, o contexto da presente investigação é o curso de Química Licenciatura da Universidade Federal da Fronteira Sul Campus Cerro Largo/RS, curso que está em atividade desde 2013. Cabe destacar que, de 2010 a 2013, a instituição apresentava um curso de graduação em Ciências: Biologia, Física e Química e, em 2013, o referido curso foi reestruturado em três novos cursos e os licenciandos, que estavam em formação, migraram de acordo com interesses pessoais e profissionais.
Atualmente o curso conta com noventa e um (91) licenciandos e quarenta e três (43) egressos, sendo que estão em vigor dois Planos Pedagógicos de Curso (PPC). O PPC de 2013 possui, como carga horária para a integralização do curso, um total de 3300 horas, dividido em 1800 horas teóricas, 345 horas experimentais, 915 horas de práticas de ensino, um componente curricular optativo de 30 horas e 210 horas de atividades complementares curriculares. A partir das novas diretrizes curriculares para a formação de professores em 2015, foi realizada uma reestruturação do PPC, que está em atividade aos ingressantes no curso a partir de 2018. O PPC 2018 apresenta um aumento da carga horária total do curso, passando para 3600 horas: 2655 horas teóricas, 315 horas experimentais, 420 horas de práticas como componente curricular e 210 horas como atividades complementares curriculares.
Nesse contexto de investigação, temos realizado estudos acerca do desenvolvimento de EPs desde o ano de 2017. Para tanto, utilizamos vários instrumentos ao longo dos anos, que contribuem para acenarmos marcas constitutivas dos sujeitos, que podem evidenciar o desenvolvimento de um ou mais EP no curso.
Os dados para o processo de análise foram obtidos a partir de um questionário. Todos os participantes consentiram com a participação na pesquisa por meio da assinatura em um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), considerando que o processo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFFS, por meio do parecer n° 2.250.239, de 31 de agosto de 2017. Nessa etapa da pesquisa foram obtidas 54 respostas ao questionário inicial, dos 106 licenciandos matriculados no período, o que corresponde a 51% do total do curso no momento.
As estratégias metodológicas da investigação tiveram como suporte a análise de conteúdo de Bardin (2009). Tal metodologia é constituída por três etapas: organização da análise, caracterizada por uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo dos dados, ao mesmo tempo em que aspira a um trabalho de compreensão, interpretação e interferência (Bardin, 2009). Para fins de garantir a confidencialidade e a privacidade dos participantes da pesquisa, os licenciandos são apresentados por L1, L2... e assim sucessivamente.
Para a realização do processo de categorização, utilizamos as contribuições dos estudos de Brandão (2015). A autora, em sua dissertação de mestrado, realiza um estudo que nos instigou ao processo da presente pesquisa, por investigar aspectos que podem contribuir para evidenciar a instauração, extensão e transformação de EP de professores de um curso de Física licenciatura em uma universidade pública do norte do Brasil.
No processo de análise das respostas dos licenciandos, buscamos aproximações com os EP de Brandão (2015), e adaptamos as três categorias propostas pela autora ao contexto do presente estudo, sendo elas: EP Químico, nesta se caracterizam licenciandos que buscam entender a química de uma maneira técnica, voltando sua atenção para as áreas específicas do curso; EP Educador, corresponde aos licenciandos preocupados com as questões da educação brasileira, buscando interagir de maneira afetuosa, sem o devido cuidado com os conteúdos específicos da área de conhecimento na qual pretende atuar; e EP Químico-Educador, em que estão licenciandos que buscam pela formação crítica e consciente das questões do seu cotidiano relacionados aos conceitos químicos. A organização dos EP está apresentada na Tabela 1.
Estilos de Pensamento | Sujeitos | Total |
---|---|---|
Educador | L2, L3, L4, L5, L6, L7, L9, L11, L12, L13, L14, L18, L19, L20, L21, L24, L26 | 17 |
Químico-Educador | L1, L8, L10, L16, L22, L23, L25, L27, L28, L29 | 10 |
Fonte: as autoras (2020).
Todas as respostas dos questionários foram digitalizadas no programa de planilhas do Excel e das 54 respostas obtidas entre os licenciandos, 29 foram utilizadas para a contagem e análise dos EP.
As categorias de EP acenadas pelos licenciandos do curso estão discutidas por meio do processo de análise na sequência. Cabe destacar que o EP Químico não foi identificado por meio dos instrumentos utilizados, o que não significa aferirmos que não está presente no contexto estudado.
Resultados e discussão
A investigação do desenvolvimento de EP em processos formativos têm sido nossa proposta de estudo há alguns anos no contexto em que vivenciamos. Nesse sentido, por meio do processo de análise, destacamos a maior incidência de características que evidenciam o desenvolvimento de EP Educador no curso de Química Licenciatura, totalizando dezessete (17) licenciandos. No EP Químico-Educador dez (10) licenciandos apresentaram indícios desse EP. Não houve indícios do EP Químico nos licenciandos. Porém, como afirma Fleck (2010), tais EPs não são fixos, foram evidenciados de forma mais recorrente nos discursos dos sujeitos.
Cabe destacar que as três categorias utilizadas para o processo de análise foram adaptadas dos estudos de Brandão (2015), conforme indicado anteriormente. Neste estudo utilizamos a denominação EPEducador, EPQuímico e EPQuímico-Educador. Para o EP Educador utilizamos os mesmos critérios sinalizados por Brandão (2015), sendo que os licenciandos indicam uma formação em que prevalecem aspectos gerais da área educacional, do ensino e da aprendizagem. Para o EP Químico definimos aspectos nos discursos que indicam a formação de licenciandos interessados nos conteúdos científicos relacionados a Química. Por fim, o EP Químico-Educador indicamos nos licenciandos que atentam para aspectos pedagógicos e, também, para os conhecimentos químicos.
No que se refere ao EP Educador, observamos indícios nas respostas da maioria dos licenciandos. Tais respostas apresentaram maior ênfase aos aspectos pedagógicos correspondentes às questões da educação brasileira, buscando interagir de maneira afetuosa na formação de professores da área. Salientamos que tal EP é caracterizado por apresentar mais preocupação com a questão pedagógica, não evidenciando aspectos de cuidado com os conteúdos específicos da área de conhecimento.
Dando ênfase para autores relacionados à área de ensino de Ciências e/ou Química trabalhados no decorrer dos componentes curriculares, destacamos a resposta de L6, ao ser questionado acerca das contribuições acerca das discussões teóricas proporcionadas no curso ele afirma, que proporcionam: "Ampliar o horizonte do conhecimento, olhar a mesma coisa sob perspectivas diferentes é muito bom e acabamos tendo uma visão muito mais complexa que anteriormente" e, cita, como principal referencial que utiliza no processo de formação "Vygotski. De modo geral é o mais utilizado por professores e acabam influenciando nossas escritas". Com isso, L6 reforça que as discussões teóricas são imprescindíveis para a sua formação, proporcionando uma visão diferente das situações vivenciadas ao longo do curso. Ao citar alguma referência que tem utilizado nas discussões, apresenta Vygotski, que, de acordo com o licenciando, é utilizado pelos seus professores e influencia sua escrita. Quanto a isso, destacamos, a partir da epistemologia de Fleck (2010), que no contexto está presente certa harmonia das ilusões, caracterizado pela influência dos professores nas escolhas dos licenciandos. O tipo de escolha caracteriza as marcas constitutivas do sujeito que se aproximam de uma linha de pensamento educadora.
Sob essa mesma perspectiva, L19 afirma que as leituras realizadas no curso "contribuem para a evolução do pensamento, para o desenvolvimento pessoal e preparo psicológico para atuações na área" e, também, "Ainda em processo de construção de referenciais utilizo os que mais se sobressaem durante as leituras, como Vygotski e Morin". No seu discurso, L19 reforça que as discussões teóricas levantadas durante as aulas são importantes para a formação do pensamento sobre a futura profissão, tais como as referências citadas, que são de cunho pedagógico.
Ainda, destacamos as contribuições da participação em programas de iniciação à docência pelos licenciandos, conforme apontado por L26, ao se referir aos encontros realizados nos subprojetos como marcos que auxiliam o processo de formação: "Acrescentam de modo geral à formação" e, como principal referencial, cita "Vygotski, através do PIBID e dos componentes curriculares" De forma ampla, L26, também, apresenta Vygotski como referência, como L6 e L19, e, ainda, explicita maior interesse com o cenário da educação, não expressando importância aos aspectos relacionados ao conhecimento dos conceitos químicos, pois disciplinas voltadas para a formação docente tornam os alunos críticos e autônomos (Brandão, 2015, pg. 111).
No que se refere ao EP Químico-Educador, que é caracterizado pela busca por formação crítica e consciente das questões do seu cotidiano relacionados aos conceitos químicos, temos L1 ao afirmar que o processo de formação no curso "Auxilia a organizar e melhorar nossas atitudes como professor" e cita autores relacionados ao ensino de Química e à Química específica: "Materiais de formação docente: Paulo Freire, Kuhn, Maldaner, Delizoicov, Comenuis... Materiais específicos: Vogel, Baccan, Atkins, Bruice, Russel...". Destacamos a preocupação do licenciando em trazer referências, tanto do ensino, quanto da parte específica do curso. Para L1, evidenciamos forte tendência ao EP Químico-Educador, pois demonstra compreender que "os dois conteúdos devem andar juntos para que assim, o futuro professor possa entrelaçar os conhecimentos e melhorar seu processo de ensinar em sala de aula" Enfatizando a importância das duas áreas, Brandão (2015, pg. 107) defende que o ensino de Física, assim como de Química, também, precisa ser voltado para a formação de profissionais de cunho específico, pois tais áreas se complementam ao final do percurso.
Nessa mesma perspectiva, temos L23, que respondeu as questões da seguinte maneira: "As discussões geraram momentos de reflexões, os quais foram importantes para minha constituição enquanto professora". Ao citar autores que mais utiliza no curso, cita: "Attico Chassot; Paulo Freire; Lev S. Vygotski; Miriam Krasilchik; Otavio Aloisio Maldaner. Nossas próprias professoras formadoras: Wenzel; Leite e Uhmam que também nos apresentaram esses referenciais em suas aulas e orientações". Nesse sentido, L23 reforça que as discussões teóricas foram de grande valia e proporcionaram importantes momentos de reflexão que ajudaram em sua formação inicial. Ao citar referenciais do ensino de Ciências e também da educação, devemos ter em mente a formação dos autores citados, tornando-se claro o porquê de L23 estar enquadrado em tal EP, os quais são muito utilizados ao longo do curso e, principalmente, são apresentados pelos professores de diversas disciplinas.
Seguindo esse mesmo estilo de pensar, L25 nos traz as seguintes respostas: "Ampliam nossas compreensões sobre a profissão e sobre as adversidades, conflitos e outros fatos que surgem na sala e escola" e "Galiazzi; Porlán-Martin; Jacobi; Reis; Alarção; Uhmam; Guntzel; Zanon; entre tantos outros. Através das disciplinas e principalmente da pesquisa, PET e ciclos". Para L25, as discussões teóricas ampliam as compreensões sobre a profissão durante a formação inicial, abordando assuntos que surgem em sala de aula, e mostram também que a docência é repleta de adversidades e não segue simplesmente uma rotina diária. Para ajudar nessas compreensões, são utilizados referenciais de diversas áreas da educação e também da área do ensino de Ciências, como, por exemplo, a Análise Textual Discursiva (Galiazzi), o Diário de Bordo (Porlán-Martin) e a Experimentação (Zanon), o que explicita seu pensamento voltado para tal EP, tendo contato com tais referências ao longo do curso que foram apresentadas nas disciplinas, em programas e iniciação à docência como o Programa de Educação Tutorial (PETCiências) e também nos Ciclos Formativos para o Ensino de Ciências e Matemática1. O aluno que tiver uma boa noção da Química, conseguirá fazer um bom planejamento, pois ele sabe o que o outro precisa aprender (Brandão, 2015, pg. 109). A formação do licenciado em Química deve ter como foco o desenvolvimento de conhecimentos que tratem dos processos de ensinar e aprender Química.
O processo de análise realizado evidencia maior recorrência do desenvolvimento do EP Educador no curso de Química Licenciatura em Cerro Largo/RS. Com isso, vai de encontro ao que é apresentado na Resolução n. 2 (2015), referente às práticas de ensino e estágios supervisionados. Com o aumento da carga horária de disciplinas de cunho pedagógico e por se tratar de um curso de licenciatura, torna-se evidente a maior incidência entre os licenciandos de um EP voltado à área da educação ou do ensino. Quanto a isso, defendemos que de forma alguma as disciplinas de cunho específico foram deixadas de lado, porém não é este o pensamento que predominou entre os licenciandos participantes deste estudo. Salientamos que a perspectiva do EP Educador pode ser em decorrência do incentivo realizado à participação em programas de iniciação à docência, tais como o Programa de Educação Tutorial (PET) e o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à docência (PIBID), que proporcionam um maior número de bolsas de estudo aos licenciandos, se compararmos a bolsas de pesquisa em áreas específicas.
Portanto, compreendemos a importância da formação pedagógica realizada no curso de licenciatura investigado, que prevalece nos discursos de licenciandos e egressos. Ainda, acenamos a preocupação com o desenvolvimento do conhecimento do professor de Química realizado ao longo do processo de formação inicial.
Considerações finais
A formação de professores de Química é o foco do presente artigo em que buscamos identificar aspectos relacionados ao desenvolvimento do pensamento de professores de Química, e, com isso, ressaltar a importância de abordar perspectivas epistemológicas em processos de formação de professores.
Nesse sentido, utilizamos como aporte epistemológico as categorias propostas por Ludwik Fleck, e analisamos discursos de futuros professores de Química em processo de formação. Ao se tomar Ludwik Fleck como referencial teórico, devemos levar em consideração que, para compreender o desenvolvimento de EP em diferentes contextos, estamos propondo analisar situações a partir do coletivo. Assim, com base no autor, compreendemos que o pensamento não pertence a nós e sim ao contexto em que vivemos.
No processo de estudo identificamos que os conhecimentos pedagógicos acerca da atividade docente foram expressos por licenciandos do curso de Química Licenciatura da UFFS de forma mais recorrente e contribuíram para evidenciar o desenvolvimento de um EP Educador no contexto. Nossa hipótese inicial não foi confirmada, considerando que tínhamos como expectativa o predomínio de conhecimentos específicos, que tratam dos conteúdos científicos no processo de formação inicial.
Dessa forma, tomamos como investigação o contexto do curso de Química Licenciatura do Campus Cerro Largo, em que prevalece o EP Educador entre os licenciandos.
Nesse sentido, compreendemos que discutir a formação inicial de professores da área de Ciências da Natureza é urgente e necessário, diante das mudanças constantes exigidas a partir de novas diretrizes curriculares no Brasil. Ainda, reiteramos a importância do presente estudo no contexto da UFFS, pois trata de uma instituição nova em que se faz necessário acompanhar o perfil dos professores formados.
Dessa forma, buscamos com o presente estudo identificar o desenvolvimento de EPs no curso e acenamos a instauração e o desenvolvimento de um EP Educador, que se caracterizou nos discursos dos licenciandos em fases mais iniciais do curso e um EP Químico-Educador, caracterizado em sujeitos em fases mais avançadas e nos egressos do curso. Os resultados acenam que os licenciandos, que já cursaram mais disciplinas, tanto de cunho pedagógico quanto de cunho específico, apresentam marcas que caracterizam um perfil do curso Química de acordo com o que está no proposto no PPC.
Ainda, destacamos que a instauração, desenvolvimento e transformação do EP dos licenciandos ao longo da graduação e, após ela, não é garantia de que as suas ações reflitam as perspectivas teóricas e práticas empreendidas no processo formativo, pois, ao estarem em um novo ambiente, os professores compartilham de outro coletivo e podem não ter perfil para asseverar o EP em outro contexto.
Dessa forma, cabe destacar que temos traçado um longo caminho nas temáticas de formação de professores e em estudos acerca de EP, e temos percebido potencialidades em processos de análise epistemológica, especificamente por meio da epistemologia de Fleck.
Destarte, reiteramos a importância em concentrarmos estudos que busquem investigar aspectos epistemológicos na formação de professores da área de Ciências da Natureza, visto que entendemos que a forma como os professores pensam reflete diretamente nas ações desenvolvidas em sala de aula.