SUMÁRIO: I. Introdução. II. Carl Schmitt e a corrosão do Estado de direito. III. Estado total: o necessário ataque ao individualismo liberal. IV. O Estado de direito como antípoda do totalitarismo. V. Considerações finais.
I. Introdução
Fixando o olhar nas circunstâncias presentes e sob o princípio de que as ideias não são derrotáveis, sugerimos que Bobbio cometeu equívoco ao antecipar avaliação de que o fascismo havia morrido e que, ademais, já não havia qualquer força ou meio capaz de fazê-lo reviver,1 ainda sem a ponderação das razões de aprofundamento da globalização cultural e transnacionalização econômica destacadas por Bernardo.2 A posição de Bobbio foi um equívoco que pode ter operado como elemento desmobilizador da resistência sempre necessária, mas que agora soa como alerta em face dos dias ameaçadores em que vivemos,3 para que procuremos reconstruir a trajetória argumentativa do trabalho de Benito Mussolini, que desenhou a teoria de fundo do fascismo.4 Sugerimos que este movimento inicial pode ser conectado a um texto pontual de Carl Schmitt para apresentar uma das vias de aparição histórica mais sofisticada do fascismo e, também, mais palatável, através da reconhecida erudição do jurista de Plettenberg.
É preocupante a capacidade persuasiva da tradição fascista que nestes primeiros anos deste século contraria Bobbio e sobrevive com sinais de suficiente capacidade operativa para provocar a corrosão dos alicerces do Estado democrático de direito, tão acidamente quanto o fez em seu auge no início do século XX. Sob tal perspectiva o este artigo analisa alguns dos principais elementos políticos da cultura fascista através de texto fundador, A doutrina do fascismo, de Benito Mussolini, e a análise de outro pontual e mais sofisticado, mas dotado de maior capacidade de penetração e sedução de devido a autoria de Carl Schmitt, Staat, Bewegung, Volk.5
A análise aqui desenvolvida considera o contexto histórico de recrudescimento da teoria fascista trazida à colação em seus primeiros movimentos nos anos 20 e 306 e, para tanto, focalizaremos o período de consolidação teórica do fascismo neste período, tanto na Itália como em sua versão alemã.7 Este período facilitou o movimento de convergência de diversas tradições conservadoras, antidemocráticas e antiparlamentares, e é deste que partiremos para perfilar o texto de fundo da cultura fascista do período. A partir deste movimento inicial estabeleceremos as vias de contato com o trabalho jurídico e político de Schmitt, cuja releitura em nossos dias tem sido bem recepcionada em diversos círculos mas que é aqui criticada por sua desconsideração a esta viciosa conexão de fundo com o fascismo.
O texto estabelece aproximadas linhas de sobrevivência do discurso fascista aqui representado pelo texto mussoliniano e o texto político-jurídico schmittiano, e uma das vias de interpretação é o trabalho do jusfilósofo Elías Díaz, crítico que destaca em Schmitt a presença de um elo teórico com o Estado totalitário,8 perspectiva também compartilhada, dentre outros, por Fijalkowski, Faye e Villar Borda,9 mas também qualificado como um fascista10 ou, até mesmo, não sem alguma ligeireza em sua construção, como ideólogo do regime nacional-socialista.11 Em qualquer caso a reconhecida erudição de Schmitt foi capaz de projetar o seu trabalho para muito além do campo da direita autoritária e do fascismo, e ao incidir sobre alguns dos temas candentes dos nossos dias12 observa-se como também segmentos progressistas estão conectados também hoje. Esclarecer esta relação coloca as melhores condições para análise das vias pelas quais a obra de Schmitt pode servir ao propósito de inocular o vírus de que é portadora nas discussões dos tortuosos debates sobre a crise da democracia e sua inspiração liberal contemporânea cujas tensões são notáveis.
A análise crítica do impacto da cultura fascista sobre a democracia e o Estado democrático de direito e sua doutrina parlamentar será aqui realizada a partir de sua formulação conceitual estabelecida em duas posições diversas de início de século. Por um lado, retomaremos Hermann Heller e Kelsen na defesa de posições que serão contrapostas ao fascismo13 que em sua versão sofisticada é representada pelos valores incorporados ao conceito de democracia de Schmitt. A partir desta contraposição teórica derivaremos o conteúdo real do potencial corrosivo do fascismo próximo às linhas schmittianas da pouco lida Staat, Bewegung, Volk, particularmente no que concerne ao Estado de direito (Rule of Law ou Rechtsstaat) e seus valores democráticos que vem recebendo nova leitura na contemporaneidade.
II. Carl Schmitt e a corrosão do Estado de direito
Ainda em seu período de juventude quando todavia corria o ano de 1921, Carl Schmitt publicou a sua emblemática Die Diktatur.14 A escolha do objeto não foi ocasional, pois logo na sequência analisaria o tema sob a luz do político,15 sendo este um trabalho histórico antecipador de alguns aspectos da retórica em prol da ditadura e que serviria aos seus desdobramentos na Europa nas décadas subsequentes.
Schmitt constrói um conceito de ditadura dual procurando diferencias os conceitos de Kommissarischen Diktatur (ditadura comissária) e Souveränen Diktatur (ditadura soberana),16 na qual esta seria uma criação ex nihilo, injustificada, e etérea quanto a sua fundamentação do poder espiritual da Igreja, cuja origem vinha de cima (von oben).17 Schmitt fez referência à ditadura através da conexão entre o conceito de soberania e o de segurança do Estado, e a aproximação teórica que deriva disto focaliza que a substância da imanência pré-jurídica em que se situa o poder político transcenderia todo o ordenamento jurídico,18 e aqui um dos núcleos de sua oposição a Kelsen. Aqui uma substância totalizante do poder encarnada historicamente na figura do carismático presidente alemão cujo espelhamento era o modelo soviético,19 o que concede razão a Ágnes Heller em sua interpretação do conceito de ditadura em Schmitt como um ato supremo do político,20 ainda quando reste por precisar o que dizer quanto a violação do direito democraticamente posto.
Os conceitos de ditadura e de exceção na obra de Schmitt abriram caminho a leituras díspares, algumas apostando em interpretação literal e desorientada de seu contexto, infravalorando o peso que o trabalho do autor captura da história e das forças filosóficas e políticas nele operantes com as quais interagiu. Schmitt assumiu os riscos inerentes a alta aposta de promover o solapamento da democracia parlamentar e elogiar o conceito de ditadura, resumindo sua inspiração política e de Estado voltado ao catolicismo medieval em um modelo eminentemente centralizador,21 sendo que entre as suas propostas alternativas conceituais (ditadura comissária e soberana) apresentadas como não competitivas, é a soberana, centralizadora, aquela que, por fim, triunfa.22 Neste particular é relevante mencionar que a referência ao risco sob o qual opera Schmitt deriva de nossa própria pré-compreensão sobre o valor da percepção da tradição liberal do conceito de democracia. É um risco observável em sua configuração, por exemplo, desde a tradição do socialismo liberal presente em Elías Díaz, a qual, encontra-se definida pela convergência histórica entre democracia e Estado de direito, que devem ser entendidos para além de mera concepção procedimental,23 e sim como ligação por meio de fundamento ético cuja validade radica no valor prioritário que concedemos à liberdade,24 aspecto no qual há uma ligação de seu pensamento jurídico-político com os ideais ilustrados com o qual Schmitt e seus interlocutores mantém relação marcada pela ojeriza.
Absolutamente divergente desta aproximação à democracia é a estratégia adotada por Schmitt para abordá-la e ao conceito de Rule of Law, de quem se apresenta como um inimigo mortal, tal como do liberalismo, do pluralismo, mas também do positivismo jurídico e do individualismo,25 algo impensável na formulação tanto do fascismo quanto da filosofia política schmittiana, pois em ambos não aparece o indivíduo mas a multidão como ator político que aclama subjugados a um único líder, aspecto em que tem razão Bobbio ao justificar ser inaceitável de assumir como democrática uma decisão tomada pelo “...homem massa ou massificado, próprio de um regime totalitário... [pois] é um consenso emotivo, feito também de contato físico, de exaltação momentânea, de entusiasmo efêmero, e em parte forçado”,26 e nisto a perfeita separação entre a teoria democrática liberal moderna e a doutrina do fascismo.27
Neste sentido, indubitavelmente, o conceito de democracia foge ao que viemos articulando subliminarmente até aqui e que se mostra compatível com a ideia de processo estipulado para a tomada de decisões, enquanto que para o totalitarismo nada a respeito de compartilhamento público das responsabilidades das decisões é aceitável. Para a teoria política totalitária não faz sentido estipular regras e princípios para a tomada de decisões porque estas são de cunho absolutamente individual e calçadas no puro bonapartismo. Para a teoria política totalitária não faz sentido estipular regras e princípios para a tomada de decisões, pois o seu integral compromisso precisar ser com o voluntarismo.
O conceito de democracia de Schmitt realiza movimento de compatibilização com a ditadura,28 mesmo porque se todo Estado depende de uma estrutura jurídica que lhe sustente, e se para o autor realmente “...jede Rechtsordnung nur latente oder intermittierende Diktatur ist”,29 ou seja, que todo ordenamento jurídico é simplesmente uma ditadura, latente ou intermitente, e se é mesmo assim, então, a ditadura está mesmo sempre presente, pelo menos, em algumas de suas formas. Sem embargo, toda esta é apenas uma estratégia por trás da qual subjaz uma argumentação que associa a democracia liberal com uma tradição decadente, oriunda de matriz católica inspirada na leitura medieval donosiana, e que, segundo a percepção de Nietzsche, conteria uma moral do rebanho, de servos pacíficos e voluntários (própria do cristianismo) que, segundo a crítica conservadora revolucionária alemã dos anos 20, havia contaminado o espaço político com o seu conjunto de debilidades de caráter. Era contra a democracia liberal que Schmitt apontava as suas baterias em prol de sua versão ditatorial, reconhecendo que os mais fortes deveriam dispor da posição de ordenar (governar) e que estes deveriam fazê-lo segundo uma estratégia de assimilação e identificação por parte das grandes massas com estes os modelos de triunfo e virtude para o qual apontasse a liderança.30
Esta estratégia, contudo, não foi utilizada unicamente por Schmitt. Mussolini já havia aplainado suficientemente o caminho ao insistir que a genuína democracia -se algum dia existira na história humana- era de ocorrência contemporânea e estava sendo realizada na Itália fascista,31 e este é genuinamente um conceito discrepante em sua essência daquele operado, por exemplo, por Kelsen e Heller. Ainda mais, para Mussolini a democracia é compreendida como realizável para além das fronteiras italianas, e naquela quadra da história era vista como viável também na Alemanha hitlerista, cujos termos, aliás, seriam endossados por Mussolini em discurso proferido em Berlin a 28 de setembro de 1937. Nele amplia a sua noção de democracia e passa a incluir a Alemanha nacional-socialista como outra realização histórica sua, ainda que isto ocorresse sob a ditadura de Hitler, da qual já não voltaria a distanciar-se. Desde logo, a estratégia de Schmitt de compatibilizar a democracia com a ditadura32 abre espaços para a tentativa de legitimação política de regimes fascistas como foi o caso da Itália sob Mussolini33 ou da Alemanha de Hitler, e sob os auspícios da distorsão de um conceito que, positivamente, não lhes poderia dar guarida em sua concepção clássica do tipo mantido por Kelsen, na qual é priorizado o valor liberdade (lato sensu), senão pelas vias de seu reconhecimento enquanto completa realização, pelo menos, enquanto vetorialização que discrepa de sua completa malversação conceitual como ocorre sob a alternativa fascista e schmittiana cuja derrota histórica parecia ter sido firmada definitivamente menos do que pela imposição bélica do que pela sucumbência moral.34
Este é um conceito de democracia com o qual o totalitarismo opera, e muitas vezes sob o pretexto de que a segurança e a estabilidade precisam ser os maiores alvos a ser perseguidos e garantidos pela política, sem que sejam estabelecidos mecanismos eficientes para conter um poder cuja força termina por justificar os meios atrozes pelos fins supostamente altos que são assumidos pelo Estado. Nesta tipologia de Estado a homogeneidade tende a assumir posição de relevância e a pluralidade não, a força da autoridade o reconhecimento para a garantia da ordem, e os direitos individuais e coletivos não. Sob tal contexto tem espaço a crítica schmittiana ao Estado Legislativo Parlamentar (parlamentarischer Gesetzgebungsstaat).
Do ponto de vista do fascismo a democracia é compreendida em sua virtuosa aparição enquanto homogeneidade, e deve ser caracterizada por ser “...organizada, centralizada, autoritaria”.35 Esta aproximação à democracia é substantivamente compatível com a percepção schmittiana da unidade entre governante e governados, ideia que Mussolini expressa como centralização; em Schmitt este primeiro movimento exclui de plano a noção de pluralidade, e isto para o fascismo mussoliniano pode ser descrito como a compreensão autoritária (e correta) da democracia, acaso algum vestígio de democracia pudesse restar aqui. Isto sim, quem trabalha com o conceito de unidade Hermann Heller, mas o faz desde perspectiva bastante diferente.
O argumento de Heller é de que a operatividade do critério da maioria desde o qual uma democracia pode funcionar depende de que exista prévia conformação de um quadro político que se poderia denominar unitário ou de totalidade,36 orientação que seria compreendida em forma discrepante pela ideia de totalidade fascista e schmittiana, sob a qual buscariam resumir todo o real nas instituições estatais,37 ideal de Mussolini não realizado tão intensamente na Itália quanto na Alemanha hitlerista.38
Este conjunto prévio é que permite que decisões possam ser tomadas por um grupo de modo vinculatório aos demais membros, eventualmente, dissidentes, pois, para que alguém aceite livremente reduzir a sua esfera de expectativas em face de decisões majoritárias inspiradas em valores diversos supõe-se que este sujeito encontre um bom motivo para, em caso de conflito entre o plano coletivo e o individual, ainda assim desejar a manutenção da sociedade na qual se encontra inserido, o que supõe o triunfo de seus valores e escolhas, os quais sobrepor-se-ão aos seus próprios valores pontuais do indivíduo.39 A pergunta que permanece ainda sem resposta no mundo contemporâneo é sobre qual tipo de valores últimos seriam estes capazes de articular os indivíduos.
Esta proposta de compatibilização da democracia com a ditadura é reveladora do sentido de outros aspectos ambíguos do trabalho de Schmitt. A rigor, a democracia não pode ser entendida aqui senão em absoluto sentido inverso, a saber, como um sistema cujo núcleo duro é incompatível em todos os seus termos com as instituições democráticas40 que empregam esforços no sentido de manter vigentes valores como a pluralidade, as garantias individuais e o conjunto das liberdades fundamentais. Schmitt reconhece que estes são mesmo valores próprios do Estado constitucional liberal,41 e que este é incapaz de discernir os valores centrais para o Estado totalitário,42 como, por exemplo, a lídima separação entre amigo e inimigo.43 No mesmo sentido Mussolini estabelecia os limites da possibilidade da liberdade em um Estado fascista, localizados na própria abrangência conceitual deste Estado, a saber, que ele engloba e domina toda a vida moral do homem44 e ainda mais, que é tão somente nele que existe a liberdade real do homem. Contudo, aqueles que porventura dissentissem do projeto totalitário em curso no fascismo encontravam-se com uma decidida violência estatal45 em seu caminho, supostamente justificada por não disporem de qualquer legitimação, ética ou política, para enfrentar o interesse da comunidade (Gemeinschaft)46 materializado nas ações do Estado. Quem dissente recebe o impacto da força violenta do Estado como resposta e, neste sentido, é desconsiderado enquanto pessoal moral capaz de posicionar-se axiologicamente em face da existência e à procura de emprestar-lhe algum sentido.47
O dissidente dos interesses do Estado (logo, de todo coletivo) não era apenas alguém que não converge com a política pública, mas alguém que opõe-se à estrutura hierárquica capaz de traduzir os verdadeiros interesses do povo. Hermann Heller bem descreve a situação dizer que “El adversario político del momento se trueca en enemigo absoluto, en demonio, que no tiene con nosotros ni un derecho ni un juez común, y con el cual no se puede pactar”.48 Não há discrepância de fundo desta descrição helleriana do adversário político sob o totalitarismo com a definição do inimigo realizada por Schmitt em seu Begriff des Politischen ao descrever o inimigo como alguém que pode encontrar-se em situação de eliminação.49 Heller, contudo, tem perfeito discernimento das conseqüências às quais a teoria schmittiana conduz quando este mantém a oposição entre amigo e inimigo no campo de embate à morte, pois neste âmbito “No cabe pensar en una base de discusión e inteligencia entre estos enemigos políticos. Entre ellos no cabe parlamentar, sino dictar”,50 e isso termina por representar especialmente a crença dos reacionários acerca da incapacidade parlamentar para restabelecer a ordem normal.51 Portanto, os tempos então em curso não eram de parlamentar, mas de ditar; não da classe debatedora, mas da elite dominadora. Esta é a final resposta de Schmitt aos difíceis tempos de crise, e resta a pensar se esta opção de compromisso totalitário não apenas agrava a crise que propõe-se resolver ao elevá-la para outro patamar, o da violência institucionalizada pelo Estado.
É mesmo possível assumir que para Mussolini o Estado totalitário poderia ser bem caracterizado em sua bem conhecida máxima, pronunciada em discurso na Câmara dos Deputados em 26 de maio de 1927: “Todo en el Estado, nada contra el Estado, nada fuera del Estado”.52 Este mote que de modo muito semelhante seria adotado por Salazar em Portugal: Nada contra a Nação, tudo pela Nação. Disto tampouco diverge Lenin ao não excluir o privado do âmbito da ação política do Estado, senão que lhe subordina inteiramente ao campo da ação estatal que visa (declaradamente) a defesa dos interesses da classe trabalhadora.53 Todas estas são aproximações que em sua consagração da liberdade na esfera do Estado rechaçam de plano a ética kantiana e a noção de liberdade (subjetiva) que nela subjaz. A este propósito bem reconhece Laporta que os “...propósitos y proyectos de los seres humanos bajo un poder ilimitado de estas características no sería, desde luego, muy envidiable y la dignidad del hombre entendida como autonomía individual estaría supeditada nuevamente a los excesos de un mecanismo tan veleidoso, insaciable e impredecible como el que más”,54 e se isto é problemático para uma teoria social progressista, não o era de forma alguma para a doutrina fascista de tipo mussoliniana, na qual o indivíduo é conceitualmente subsumível ao Estado.
Em seu texto reconhece Hermann Heller que este perfil desenhado acima e sintetizado na retórica de Mussolini citada acima é uma fórmula bem acabada do Estado totalitário.55 Com esta ideia converge Matthews ao dizer que este forte trecho de Mussolini é também peça fundamental tanto para o fascismo como para o nacional-socialismo assim como para qualquer outro tipo de totalitarismo56 que em Schmitt entronca com a sua concepção de soberania ilimitada segundo o modelo teológico do catolicismo romano. De fato, esta é ideia forte o suficiente para expressar o grau de controle superlativo atribuído ao Estado em detrimento do papel de qualquer outro ator social, seja ele individual ou coletivo. Em outro momento a ideia é ainda reforçada por Mussolini ao dizer que “Estamos en un Estado que controla todas las fuerzas que obran en el seno de la nación”.57 Com isto, por certo, Mussolini é suficientemente esclarecedor sobre os limites que o poder (e a violência) instaurado neste Estado pode assumir em face do dissidente. Esta é uma boa descrição daquilo que Hitler denominou de Führerstaat que a tudo e a todos domina e subjuga. Ao avanço desta discussão dedicaremos a próxima seção.
III. Estado total: o necessário ataque ao individualismo liberal
O Estado fascista evoca a intromissão na vida privada em limites impensáveis na sociedade democrática por força de que admite ser ele próprio um referencial ético superior às capacidades disponíveis para a tomada de decisões em matéria de moral atinente aos indivíduos58 e, assim, implementam-se as condições para a genuína destruição da vida privada.59 Trata-se de que o totalitarismo já não lhe basta o controle das ações, pois ambiciona ainda mais, a saber, o domínio perfeito via esfera da moralidade. O Estado é o ator que poderá empreender esta atividade, uma vez purificado tanto pelas suas instituições como, sobretudo, pela autoridade que lhe controle e ordene de modo autoritário. É esta dimensão ética (reta), que reclama como fundamento o que supostamente legitimaria o Estado fascista intervir na moralidade pública e privada e decidir adequadamente sobre o que seja o interesse público, como se por inspiração transcendente, capaz de expressar aos súditos a verdade revelada e (de modo infalível) sobre os reais interesses do Estado.
Portanto, vai restando claro como para o fascismo a liberdade do indivíduo (ou o que possa ser admitido como tal segundo tal referencial) tem a sua concepção estritamente dependente da ação do Estado. A liberdade apenas pode ser pensada dentro do Estado, pois “...para el fascista todo está en el Estado, nada humano o espiritual existe, y tanto menos valor tiene, fuera del Estado”,60 e apenas sob tal premissa estatal é que a liberdade individual pode ser pensada, e é neste sentido, admite Mussolini, que o fascismo pode ser interpretado como totalitário e, assim, o Estado fascista ser compreendido como síntese e unidade de todos os valores, capaz de desenvolver a totalidade da vida do povo.61
Esta é uma descrição bastante bem acabada do que Del Águila entende como totalitarismo, arranjo político no qual nada há que seja privado, pois absolutamente nada deve escapar à intervenção do Estado. Não há liberdade no sentido liberal, pois entende-se que “El Estado debe eliminar las bases del individualismo y absorber en su autoridad la libertad de cualquiera, así como extender lo más ampliamente posible su esfera de control”.62 Seguindo este roteiro não há qualquer sentido na manutenção dos fundamentos da democracia, pois legitima-se a transposição do limiar da vida privada, para muito além da fronteira do imaginável em matéria de controle político.
O delineamento do negativo apreço dos fascistas relativamente à cultura democrático-parlamentar e às liberdades em sentido amplo permite observar o quanto Schmitt está próximo desta cultura política que mira estabelecer por meio do Estado um controle irrestrito das atividades políticas. A república weimariana em que vive Schmitt experimentava uma crise que o autor conhecia bastante bem. Esta, assim como outras crises das democracias mantém problemas em comum. Dahl ocupa-se destas crises para mencionar que a intensidade com a qual apresentam-se, aliadas à sua duração no tempo “...aumentam as chances de que a democracia seja derrubada por líderes autoritários, que prometem encerrar os problemas com métodos ditatoriais rigorosos. É claro, esses métodos exigem que as instituições e os procedimentos essenciais da democracia sejam postos de lado”.63
Neste sentido, portanto, é absolutamente certo que a sua teoria da ditadura (comissária ou soberana) não poderia de modo algum estar orientada a prestar bons serviços ao constitucionalismo liberal weimariano em crise ou a qualquer aspecto da democracia,64 e que mantém uma aproximação ao conceito de democracia vilipendiado por Schmitt. Nossa interpretação sugere que um dos promissores ângulos para explorar os desdobramentos desta questão já na década de 1930 é o seu texto Staat, Bewegung, Volk, pois é nele que há passagem de “...um Estado de direito-liberal para uma conformação de Estado de exceção total”.65 Uma ideia que remanesce no texto de seus escritos anteriores é a de quão daninha a pluralidade para a sua perspectiva de Estado e de sociedade: “Il riconoscimento della molteplicità della vita particolare e specifica condurrebbe però subito di nuovo ad una infelice dilacerazione pluralista del popolo tedesco in confessioni, stirpi, classi, ceti, e gruppi di interessi, se uno Stato forte non ne elevasse, garantendola sopra ogni multiformità, la totalità dell´unità política”.66
Não há espaço para a pluralidade no exercício do poder, mas sim para este emergente Estado forte, pronto para impor-se sobre a pluralidade o conceito de totalidade, com o qual, de vez seria realizado o movimento derradeiro de esgotamento do representante de finada tradição liberal. Para Schmitt a estrutura do Reich após 1933 seguia este modelo e representava uma nova (e promissora) estrada.67 A rigor, a posição mantida por Schmitt sobre a relação do conceito de ditadura com a democracia enfrenta-se essencialmente ao conjunto dos termos que modernamente Elías Díaz utiliza para emprestar-lhe perfil e conteúdo de um tipo de Estado comprometido em seu âmago com a democracia e com o direito que denomina Estado democrático de direito e que caracteriza com alguns elementos teóricos básicos: a) Império da lei; b)Divisão de poderes; c)Legalidade da Administração; d)Direitos e liberdades fundamentais.68 Em suma, há aqui um conjunto de elementos que caracteriza a democracia liberal, e que explicita, ao menos nesta última variável, que encontraremos um conteúdo profundamente marcado pelas escolhas axiológicas realizadas em um determinado momento histórico.
Este conjunto de quatro princípios enunciados por Elías Díaz bem adequa-se à leitura realizada por Kelsen que, em referência a Schmitt, opõe-se incisivamente à defesa que este realiza da ditadura bem como pela idêntica estratégia adotada pelos não poucos adversários da democracia-parlamentar do período, dentre os quais o fascismo de Mussolini. Para este, a representação política do período já não mais bastava para responder aos problemas políticos,69 impossível mesmo, dado que não passariam de aduladores das massas e capazes de ignóbeis discursos sedutores. Neste sentido recordemos o que Schmitt reclama para aqueles dias é um Estado forte capaz de sobrepor-se às dilacerações sociopolíticas promovidas pelo pluralismo.70
Para Kelsen esta defesa da ditadura foi possível por parte daqueles que sustentavam uma clara “...creencia metafísico-religiosa de que el dictador... está en posesión de la verdad absoluta... Pues sólo frente a tal absoluto... puede pretenderse una obediencia silenciosa”,71 e é nisto que encontramos a essência da ditadura.72 Esta conexão detectada por Kelsen bastante bem se afirma com o desenvolvimento do mito e sua aplicação na realidade política totalitária, tanto fascista quanto nacional-socialista ou ainda comunista. O mito é criação pura, uma crença e uma paixão, e em momento algum precisa ser uma realidade. Nesta modelagem ele já cumpre singularmente bem a função que o fascismo lhe demanda que descola o homem da esfera abstrata da reflexão e da crítica para concentrá-lo na pura ação (cuja virtude é resumida em espelhar o interesse coletivo), resultado para o qual o mito possui especial adequação conforme admite Pareto em sua análise pontual do trabalho soreliano.73
Em ambas as estruturas fascistas quanto nacional-socialistas resta demonstrada a inviabilização da contraposição, da oposição, da construção de uma narrativa inversa a do poder estabelecido e, em suma, do debate, posto que o mito não admite valores opostos; para quem nele crê, é um valor constitutivo da verdade e, portanto, é inconteste em suas posições,74 mas, podemos assumir, não a verdade mesma. A presença do conceito de verdade compreendido em termos absolutos impõe-se aos argumentos e crenças liberais de fundo, algo que bem aparece delineado tanto em Vallespín como em Del Águila.75
A todos e cada um destes itens conformadores do Estado democrático de direito arrolados por Elías Díaz antepõe-se a cultura jurídico-política de Schmitt que, por sua vez, revela profundo antagonismo à descrição da ditadura realizada por Kelsen. Schmitt ocupou-se em criticar a democracia parlamentar como parte de um amplo compromisso de fundo, não explícito, com as teorias autoritárias do início da década de 1920 que, com o é o caso do fascismo, aposta em seu modelo de Estado, centralizado e autoritário, como forma de resolver o conjunto de abusos cuja comissão atribui ao parlamentarismo assim como às irresponsabilidades das Assembleias.76
O movimento teórico fascista aparece nas linhas de Mussolini como um claro antípoda do socialismo cuja proposta é profundamente antibolchevique. Trata-se de uma estratégia compreensível por força de que no marco dos anos 20 o fascismo e o socialismo eram competidores como projetos políticos para aqueles dias difíceis. Mussolini é bastante claro quanto a oposição do fascismo ao socialismo e de sua base científico-marxista: o fascismo era a sua negação absoluta.77 O fascismo seria ainda agravado quando parcialmente apropriado pela construção nacional-socialismo78 representando verdadeiramente a antítese do Estado de direito,79 entendido este como detentor de um sistema de legalidade que defende os direitos fundamentais80 e opõe-se aos abusos do Estado enquanto os totalitarismos, por definição, precisam rechaçar-lhe de plano a ambos.
IV. O Estado de direito como antípodado totalitarismo
Nesta seção argumentaremos em torno ao que consideramos um equívoco, o da retomada de Schmitt como referencial teórico para realizar a crítica à democracia. Sugerimos que a sua proposta resta obscurecida por ser ele um dos artífices da corrosão do Estado de direito e pela projeção do projeto político que viria em sua substituição.
A cultura jurídico-política democrática contemporânea está comprometida com valores incompatíveis com regimes fechados em sua radicalidade com o totalitarismo. Esta oposição é ainda mais aguda quando consideramos o propósito democrático de ampliar o seu círculo de valores, mais do que meramente mantê-los protegidos (ver Bueno, 2011b). Esta atividade tuteladora provém da ação estatal em que há um compromisso com a legalidade. Contudo, há que observar que a mera legalidade não é garantia suficiente para o desenho institucional de um Estado democrático. Para observá-lo basta considerar que todo Estado é um Estado com direito,81 e que a todo conteúdo comporta (justo, opressor, injusto, ditatorial, atroz, etc. Algo bastante distinto é falar do conceito de Estado de direito. Neste último supomos a sobrevivência essencial de compromissos democráticos, os quais supõem uma qualidade especial, qual seja, a de conduzir os seus assuntos segundo o princípio de império da lei. O Estado de direito está constituído por um ideal ético, por uma projeção normativa82 e, ainda, por juízo de dever-ser, antes do que por uma descrição do mundo do ser. O conjunto de suas escolhas principiológicas está filosoficamente orientada pelo Iluminismo, contra o qual, como é sabido, são endereçadas incisivas críticas por Schmitt83 e pelo conservadorismo revolucionário bem como rechaçada pelo núcleo duro do totalitarismo. Esta compreensão inicial e relevante, quando não vital, para discernir quais são os processos e críticas comprometidos com a democracia e quais, ainda que subrepticiamente, com o reforço ao solapamento das bases democráticas da vida comum tendo em perspectiva projetos antilibertcários de qualquer naipe ou intensidade.
Para uma perspectiva iluminista é meridianamente acatável a ideia de que o Estado de direito possa ser avaliado desde a supremacia da razão e da liberdade enquanto indefectíveis traços de suas convicções de fundo. Esta supremacia que se encontra em autores como Elías Díaz84 não logra afirmar-se senão quando o Estado encontre-se sob mínimo controle político e institucional e bem assentado do ponto de vista jurídico, e esta é, verdadeiramente, uma das mais sólidas apostas de Elías Díaz ao rechaçar firmemente o decisionismo arbitrário típico do caudilhismo fascista85 que, dentre outras aparições, ocorre no texto de Schmitt a visão de Laporta que é corroborada por Elías Díaz ao dizer que estas são características “...propias de un Estado totalitario negador de la libertad”,86 entendida esta como expressão subjetiva que ocupa espaço em um mundo plural.
A herança do Iluminismo tanto quanto o absolutismo e a arbitrariedade convivem no cenário político tensamente sob a forma do liberalismo jurídico weimariano e as forças conservadoras. Muito embora o Estado de direito alemão fosse reconhecido como uma grande conquista científica em matéria política, esta viva tensão deu suporte aos esforços em prol do fortalecimento da cultura totalitária que logo traçou rumo próprio e alçou voos políticos e foi forte e eficaz o suficiente para solapar as bases da cultura liberal weimariana. Um dos intelectuais que colaboram para tal viragem foi Schmitt, que, antes do que encaminhar a resolução dos impasses, nada mais fez do que agravar as já instáveis relações da República de Weimar, forçando-as até levá-las ao trágico desfecho. Os compromissos de Schmitt alegadamente estiveram direcionados a favorecer a reinstalação da ordem. O autor, contudo, esteve de todo distanciado em empregar esforços para a manutenção não apenas da ordem legal que não resultasse na configuração de uma ordem jurídico-política de tipo voluntarista em o único termo político que realidade contava era o da autoridade total, fora ela a do Duce ou a do Führer. Schmitt deposita uma confiança exacerbada neste único homem, como se possível fosse a algum conselheiro influenciá-lo, equívoco que o seu maestro florentino parece ter cometido.
Schmitt realiza paulatinamente a sua estratégia de corrosão da cultura do Estado democrático de direito com o qual não pode conviver ou operar, e tendo isto em conta é que deverá ocupar-se de acelerar-lhe o fim. Aqui há um embate filosófico de fundo entre uma tradição neokantiana cujo formalismo apresenta a construção do direito sem uma constituição de conteúdo previamente assumido é uma versão totalitária, e nela o direito recebe o seu conteúdo e fonte de validação última do querer de um só homem. A este respeito disse Hermann Heller que “La norma sin voluntad fué sustituída por la voluntad sin norma, y el derecho sin fuerza, por la fuerza sin derecho...”.87 Heller não poderia ser mais preciso ao identificar que o fascismo indica uma configuração política que substitui o direito, e que para cumprir a função que este exerce no Estado democrático de direito ele lança mão da pura violência como elemento supostamente destinado a estabilização das relações sociais.
Legitimado no exercício de suas funções políticas devido a livre vontade legislativa que realiza negociações políticas no âmbito do Poder Legislativo, o Estado de direito está perpassado pelo ideal de reavivar os seus compromissos, recompondo, assim, os seus déficits políticos, em suma, pela ideia de realizar as promessas que não foram cumpridas,88 ideia na qual há uma clara aproximação com a filosofia política bobbiana.89 Como recorda Hermann Heller, o Estado de direito projeta o revigoramento da esfera política por meio do fomento da ativação da autonomia cidadã endereçada a obter que ocupe o domínio público,90 ao menos em suas melhores versões. Trata-se de uma ordem política por definição refratária aos projetos de organização arbitrária do poder que estipulem a preeminência visceral do Poder Executivo sobre os demais.
A reflexão de Schmitt sobre o tema desloca-se desta perspectiva ao carregar fortemente contra o Estado de direito de tipo liberal. Esta é interpretação que nos afasta das conclusões de eruditos comentaristas sustentam que uma posição de Schmitt em sua defesa do regime constitucional weimariano,91 que em algum momento supostamente interveio para proceder à defesa de seus princípios.92 Seria imperdoavelmente naïve permitir-se desconhecer os comuns desdobramentos causados à política moderna pelo elogio à ditadura (e subseqüente concentração de poderes) em tempos de exacerbada fragilidade institucional e de alta voltagem política como aquele vivido em Weimar. Neste contexto opina Bercovici que “...Schmitt teve um papel ativo na crise final de Weimar...”,93 mas à diferença da interpretação de Sá, por exemplo, para Bercovici termina “...influenciando na escolha de saídas autoritárias para a crise, ao apoiar os gabinetes presidenciais para instrumentalizar suas ideias na direção da ditadura presidencial e da dissolução da Constituição”.94
O Estado de direito fenece sob a inspiração fascista simpática a Schmitt, e há nisto uma linha de continuidade em sua posição intelectual desde a década de 1920 até alcançar o seu auge a partir de 1933 e, então, o declarado sentido de composição textual. Elías Díaz reitera que uma boa possibilidade para a compreensão de fundo de Carl Schmitt remete à leitura de sua interpretação européia de Donoso Cortés,95 ideia com a qual convergimos integralmente,96 e nela, é bem certo, inexistem vestígios de oposição ao poder arbitrário.
A crítica schmittiana endereçada ao parlamentarismo, à democracia e ao liberalismo desemboca na elaboração teórica das condições de inviabilização do Estado de direito,97 algo que conduz-nos a algumas posições que precisam ser tocadas. Primeiramente, e em referência ao desenho do Estado de direito feita logo acima, trata-se de que Schmitt não retoma qualquer dos compromissos não executados pela democracia, senão para efeito de demonstrar quão imperioso era dar-lhe termo. Os objetivos do antiliberalismo schmittiano diferem por completo do roteiro das democracias assim como aqueles objetivos que, momento seguinte, apoiaria decididamente durante o regime nacional-socialista, que ainda mais intensamente divergem de qualquer convergência com o Estado democrático. Divergir quanto às razões de fundo não é tão problemático em Schmitt quanto a análise de que a crítica do autor está calçada em uma argumentação imprecisa, a saber, que a derrota da concepção sobre o valor do Parlamento não pode ser pensada a partir de sua contraposição ao momento histórico vivenciado, posto que, como bem recorda Dahl, não há arranjos institucionais e práticas que possam corresponder, na prática, aos objetivos de uma democracia ideal.98 O argumento antiparlamentar schmittiano aposta precisamente é em um argumento idealizado que naquele contexto histórico resultaria em más conseqüências para a análise final das possibilidades do Parlamentarismo, mas este é um resultado que sempre é obtido ao confrontar-se o real com o ideal.
Em segundo lugar, Schmitt pensa o político segundo uma lógica bastante diversa de qualquer possibilidade de participação porque não aposta em vias dialógicas, ao contrário, Schmitt pensa o político a partir do puro enfrentamento e não da interlocução e influência mútua entre os atores políticos, pois o cenário em que o seu Estado atua está marcado pela centralização de poderes, que, já ao início da década de 1920 é por ele pensada a partir da figura do Reichspräsident. Este é um dos pontos em que sobressai a marca da oposição entre o projeto do Estado democrático de direito e o do Estado ditatorial, entre um em que triunfa o império é da lei e, por outro lado, o império do soberano, cujas normas são insuscetíveis de alterações, exceto quando calçada na própria vontade do soberano. Embora ambas as realidades apontem para um cenário conflitivo, no primeiro caso os critérios que balizam a sua mediação são públicos e pré-estabelecidos conforme valores compartilhados transformados em normas jurídicas, ainda que suscetíveis a interpretações e alterações por via dos processos legislativos de criação. No segundo caso, o império do soberano é delineado pela tentativa de sufocamento das diferenças que potencializam os conflitos. Neste caso a norma não é suscetível de alterações simplesmente porque o seu sentido depende, a qualquer momento, da confirmação da vontade do soberano, critério único e irrecorrível para dirimir conflitos.
Schmitt discerniu a sua real posição quanto a estruturação da política e do Estado ao indicar em texto de 1936, intitulado La doctrina del derecho en el fascismo y en el nacionalsocialismo, que o fascismo era de grande importância para a doutrina do direito alemão, e isto precisamente devido as evidentes semelhanças do fascismo com o movimento alemão, tanto do ponto de vista de sua configuração interno (filosófico-política) quanto externo (político-jurídica).99 A proximidade do fascismo com a filosofia schmittiana também pode ser notada por meio de sua identificação com movimentos do conservadorismo revolucionário alemão do período, o qual, conforme destaca Bercovici, inspirou muitas de suas propostas no fascismo italiano.100
A este propósito é também certo dizer que o conservadorismo revolucionário alemão foi um movimento caracterizado pelo suporte ao autoritarismo por meio de uma dupla estratégia, a saber, o enfraquecimento do Parlamento e, reverso da medalha, o fortalecimento dos poderes do Presidente do Reich.101 Esta era a articulação teórica de Schmitt. O viés teórico autoritário de Schmitt com considerável gama dos pressupostos teóricos do fascismo pode ser observada desde a sua caracterização realizada por um dos liberais tomados como alvo pela crítica de Schmitt: “O fascismo, em sua essência, é a destruição de idéias e instituições liberais, no interesse daqueles que detêm os instrumentos do poder econômico”.102 A nossa convergência com Laski sobre o tema é apenas parcial, pois o liberalismo político sim, foi efetivamente defenestrado; por sua vez, o liberalismo em matéria econômica é compreendido em uma nova e moderna chave, posto que o mercado já não encontra-se sob o estrito controle dos donos do capital mas, agora, opera em co-ordenação com as forças do mercado e sob o poder do Duce (político) que não romperia com eles como tampouco o fariam os nacional-socialistas.103 A ideia de que a ditadura fascista foi também viabilizada pelo consórcio entre grandes industriais (poder financeiro) e Mussolini (poder político) é um movimento realizado pelos primeiros no sentido de assegurar que o novo regime não lhes prejudicaria os interesses.104
A crítica fascista ao liberalismo é forte marca de sua retórica e contribuição decisiva para o desenvolvimento da cultura antiparlamentar e antidemocrático, e a esta Schmitt a recepciona declaradamente. O ácido elemento que compõe o fascismo foi valioso para provocar a fadiga dos materiais republicanos e democráticos de Weimar. Portanto, o que encontrava-se sob tensão eram duas díspares concepções do poder e da estrutura do político na qual uma era uma visão policrática (democrático-parlamentar), e a outra, oposta, uma visão monocrática de modelação teológica defendida por Schmitt. Esta última exclui, por antonomásia, a pluralidade de opiniões e de partidos que as organize e congregue, e nisto também acompanha a doutrina mussoliniana ao dizer que a sociedade abrigue em um primeiro momento, e este é um movimento que é acompanhado pela doutrina mussoliniana ao recordar que o fascismo “...no fue partido político, sino todo lo contrario... fue antipartido y movimiento”.105
Este ângulo desde o qual pensar o político e o Estado discrepam dos fundamentos democráticos desde os quais opera o Estado de direito e que, portanto, inviabilizam retomar seriamente os argumentos fascistas como válidos elementos para desenvolver uma crítica consistente de democracia parlamentar contemporânea. Esta irremediável oposição a democracia parlamentar também pode ser observada pela caracterização que da doutrina fascista realiza Marcuse. Para ele o sistema é dependente do agravamento da coerção para que pudesse manter o poder,106 pois não dispunha da sólida da sólida base legitimadora, a argumentativo-persuasiva. Assim, o sistema precisa seguir inspirada e decidida trilha quanto ao fácil uso da força, algo que, certamente, inverte a lógica legitimadora de seu uso da parte do Estado democrático de direito. Mas, se é bem certo que o Estado não pode e nem deve dispensar o monopólio da coerção segundo a tradição weberiano107- kelseniana, por outro lado, o Estado democrático de direito não a toma como o calço forte e irrevogável de seu sistema de legitimação política e garantia de sua eficácia.
O Estado democrático de direito exerce o seu domínio tão somente durante o período em que coincidentemente triunfem os valores do liberalismo político e seus compromissos com eleições livres, direitos individuais, garantias políticas coletivas, instituições públicas ativas e eficientes, etc. Por outro lado, e obedecendo às óbvias variações históricas, o governo dos homens foi a marca indelével tanto do Estado absoluto pré-moderno como também a do Estado fascista e totalitário nacional-socialista. Schmitt retoma esta tradição parcialmente interrompida no século XVIII francês e elogia a figura do legislador todo-poderoso, empregando os seus esforços contra o Estado legislativo, caracterizado por fazer residir a “...expressão suprema e decisiva da vontade comum na lei, reduzindo a legitimidade (do monarca ou do povo) à legalidade”.108 Acorde com o totalitarismo está o movimento de Schmitt,109 e neste aspecto destacado por Bercovici percebe-se que Schmitt mantém a coerência com os tópicos centrais de seu trabalho e, para tanto, tem necessariamente de ser um leitor e firme apoiador desta opção histórica pela versão do governo dos homens que habitara o coração do Estado absoluto pré-moderno.
Conforme a argumentação que vem sendo apresentada Wolin é um dos comentaristas que sugere que “...Schmitt contends that in an emergency situation, the powers of the sovereign must be «unlimited»”.110 Esta ilimitação apresentada como opção jurídico-política para as circunstâncias de emergência nas quais Schmitt avaliava encontrar-se a Alemanha e que marca o seu território opcional de fuga ao governo das leis e opção pelo governo dos homens. Naquela quadra da história recrudesciam os enfrentamentos políticos, e para eles a fina análise do schmittiana apontava o caminho da radicalização (teórica e empírica), e a sua opção é pelo abandono do jurídico (ordem liberal constitucional) e pelo incremento do político (arbitrário-ditatorial). O político abandona a área teórica de compreensão em plano dialógico. Agora o político é recurso para resolver os impasses sob a inspiração da pura imposição e a medida da força necessária não apenas para o restabelecimento da ordem, conforme alegado por muitos intérpretes mas, antes, pelo estabelecimento de uma nova ordem, que o autor propõe como renovado veículo do político. Este é o momento corrosivo da ordem weimariana ao qual Schmitt não elude.
Wolin reconhece que nas situações de emergência o poder do soberano deverá estar revestido de independência e de ilimitação. Adentrando na lógica interna schmittiana, diga-se que disto não caberá esperar qualquer mal para um poder conduzido por inspiração teológica.111 Sauquilo destaca que se para Schmitt subsiste a Providência, e que se o poder terreno (e soberano) está mesmo inspirado e legitimado por ela, então, de fato, “...todo poder es bueno pues Dios está tras su ejercicio”.112 A independência absoluta do soberano em suas ações é também expressa quando desenha a posição do Führer nacional-socialista que, embora conte com um Conselho, não está constituído como organização de controle nem como uma espécie de dualismo interno no poder.113 Por conseqüência, o seu poder é ilimitado e os seus defensores assumirão que todas as conseqüências que tal opção jurídico-política supõe quanto ao regime ditatorial que dela deriva, bem encontrem-se elas explícitas ou implícitas.
V. Considerações finais
Schmitt conhece demasiado bem o campo sobre o qual opera, tanto em sua dimensão política quanto jurídica. Sobre o autor muitos equívocos podem ser cometidos, exceto o de atribuir-lhe ainda um mínimo grau de ingenuidade, em nenhum momento presente em suas análises. A ilimitação de poderes que Schmitt reclama para o governo alemão como forma de enfrentar as crises do período, conceitual e historicamente pode ser conectada com a ação voltada a proteção do regime weimariano. Contudo, quando retrocedemos às pautas que balizaram o seu trabalho desde os primeiros momentos da década de 1920, este elogio transpõe o já alto e concreto risco (historicamente comprovado) de que o mal produzido pelo suposto remédio político-jurídico representado pela ditadura. Este revela-se produtor de ainda mais intenso mal do que aquele que visava combater.
Não se trata apenas de mero repúdio à cultura liberal, mas o fato é que o texto de Schmitt mostra comprometimento com o princípio político de puro domínio e aplicação da força, seguindo linha argumentativa mais extensa exposta em outro momento.114 A leitura de Wolin desenha este Schmitt que aposta nos poderes extraordinários do soberano em face da emergência e que permite compreender que os poderes que lhe atribui Schmitt para enfrentar o inaudito são ilimitados e irrestritos de modo a comportar conseqüências que transcendem a restauração da ordem afetada. Desta intensidade de poderes reveste-se o soberano, forte o suficiente até mesmo para transformar a ordem e os alicerces de todo o regime posto em xeque. Aliado ao seu movimento deslegitimador do parlamento, este elemento mostra dois dos corrosivos ácidos aplicados por Schmitt no núcleo da cultura do Estado de direito weimariano.
A este respeito concordamos com Wolin ao chamar a atenção para que a ação deste poder ilimitado significa que “From the liberal constitutional point of view, there would be no jurisdictional competence at all; for the sovereign stands outside the normally valid legal system”.115 Esta localização mais além do mundo do direito é essencial para a compreensão da leitura de Schmitt. Ela mostra-se favorável a avaliação do papel voltado ao fortalecimento da cultura da ditadura que o soberano historicamente desempenhou, assim abrindo espaço ao totalitarismo. Sugerimos que o texto de Schmitt de fato contém uma face de Janos. Uma delas é oculta, mas com cuidado observamos que não revela-se impenetrável. Inversamente, pela via de análise holística e contextual da filosofia política schmittiana está comprometido com o alinhamento pró-ditatorial e antirrepublicano, em detrimento de qualquer espécie de variação democrático-libertária que mantivesse qualquer conexão com a cultura do Estado democrático de direito, exceto sob a guia e compromisso de estimular as condições de seu solapamento para facilitar a consolidação da ditadura.