SUMÁRIO:
I. Introdução. II. Análise dos casos encontrados. III. Notas conclusivas. IV. Bibliografia.
I. Introdução
O marco normativo da atividade portuária no Brasil foi alterado pela Lei n° 12.815/2013 que se propôs a regular a exploração dos portos, instalações portuárias e demais atividades desempenhadas pelos operadores portuários.
Para fazê-lo, conceituou o operador portuário como aquela “pessoa jurídica pré-qualificada para exercer as atividades de movimentação de passageiros ou movimentação e armazenagem de mercadorias, destinadas ou provenientes de transporte aquaviário, dentro da área do porto organizado” (artigo 2o., XIII).
Como se percebe do próprio conceito normativo, a atividade destinada ao operador portuário é bastante extensa. Se, ainda, considerarmos que sua atividade se inicia com a entrada da mercadoria “em seus armazéns, pátios ou locais outros designados para depósito” e só se encerra com a entrega efetiva no navio, por exemplo (artigo 2o. do Decreto-lei n° 116/1967), daí sim se pode dizer que se está diante de um dos mais férteis espaços para exemplos de responsabilidade civil.
Apesar disso, os Tribunais brasileiros não têm sido chamados a resolver significativo número de casos sobre tal tema. Algumas explicações parecem plausíveis: existem mecanismos contratuais que podem “incentivar” o deslocamento da discussão para o eixo contratual estabelecido entre as partes (incoterms1 e outras cláusulas de transferência de riscos seriam bons exemplos) e, além disso, no Brasil, o operador de transporte multimodal assume responsabilidade verdadeiramente ampla (a teor dos artigos 12 e 13 da Lei n° 9.611/1998), ainda que mantenha ação regressiva (artigo 12, parágrafo único).
Ainda assim, a entrada em vigor da Lei n° 12.815/2013 manteve a menção específica da responsabilização do operador portuário, ainda que tal responsabilidade pudesse ser deduzida da legislação geral, mas o faz de forma a não deixar claro em que termos esta responsabilização se dá.2
O presente trabalho, então, se propõe a investigar, com base na Jurisprudência passada, qual seria a provável orientação interpretativa para responsabilizar o operador portuário para os danos que este viesse a causar a terceiros, em sendo estes puramente particulares.
Para responder a este questionamento, buscou-se delimitar a pesquisa3 a apenas dois Tribunais: o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, justamente em razão do seu porto, Paranaguá; e ao Superior Tribunal de Justiça, uma vez que tem por função a uniformização da matéria. Para alcançar o objetivo não se limitou a busca em termos temporais, e se tratou de realizar, no Superior Tribunal de Justiça, a pesquisa com três diferentes combinações de verbetes: “operador portuario” (resultando 58 resultados); “operador portuario” e “responsabilidade civil” (resultando 0 resultados) e “operador portuario” e “responsabilidade” (resultando 8 resultados).
Os verbetes de forma proposital omitiram qualquer acentuação. Desta última combinação, foram encontrados: três casos de natureza puramente tributária; três casos de natureza puramente administrativa e apenas dois casos em que o Superior Tribunal de Justiça afirma estar diante de matéria de responsabilidade civil, mas que acaba deixando de analisar qualquer aspecto essencial (e esclarecedor) de sua fundamentação, uma vez que isso importaria reexame fático, proibido pela Súmula n° 7 da mesma Corte.
Aparentemente, portanto, o Superior Tribunal de Justiça não poderia fornecer a resposta buscada.
No Tribunal de Justiça do Paraná, a pesquisa se realizou com apenas uma combinação de verbetes: “operador portuario” (também se omitindo acentuação), mas se acrescentou um requisito: os verbetes deveriam aparecer na ementa do acórdão. Foram localizados 11 (onze) casos, sendo dois deles exclusivamente de matéria trabalhista (acidente e segurança do trabalho) e outro se referia a declaração do operador portuário para fins de prescrição. Serão, portanto, os 8 (oito) restantes julgados, que servirão de fio condutor do presente artigo.
Advirta-se, ainda, que a pesquisa se baseia quase que exclusivamente na análise jurisprudencial por dois motivos: (i) de ordem prática, busca-se entender como o intérprete “autêntico” encara a principal atividade logística do comércio internacional e, talvez, seu principal “nó”,4 e (ii) a pesquisa doutrinária revela escassos recursos não só sobre o tema portuário em si, mas igualmente sobre a temática da responsabilidade civil do operador portuário.
Ainda que a matéria seja extremamente relevante, em busca de uma resposta minimamente satisfatória, resta-nos explorar a fonte, ainda que também escassa, da jurisprudência estadual. Eis a senda se que passa a trilhar.
II. Análise dos casos encontrados
Antes da vigência da atual legislação, vigorava a Lei n° 8.630/1993 cujo artigo 115 tinha redação muito similar aquela do atual artigo 26 da Lei n° 12.815/2013.
Pode, portanto, ser muito útil compreender como foram entendidos os casos julgados e fundamentados a partir da Lei n° 8.630/1993 de modo a se concluir qual seria a tendência de interpretação da atual legislação.
Advirta-se, contudo, que este é um exercício argumentativo, na medida em que 20 (vinte) anos separam as duas legislações. Não só teses doutrinárias se desenvolveram como tendências jurisprudenciais se consolidaram. A semelhança da redação, contudo, pode indicar elementos de interpretação e, mesmo, afastar algumas dúvidas dos atuais intérpretes.
Destaque-se, por fim, que todos os oito casos localizados na jurisprudência do Tribunal paranaense, seguindo os critérios delineados na introdução deste artigo, foram jugados sob a égide da legislação revogada. Passemos a entendê-los:
2.1 O primeiro caso6 é recurso em que se discutiu a responsabilidade da Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA) em razão da queda do container (quando de sua movimentação) e consequente avaria. A seguradora, sub-rogada no crédito pretendia responsabilizar a APPA uma vez que seria seu dever realizar as operações portuárias (entre elas a operação do maquinário necessário -no caso portainer-).
O Tribunal, contudo, entendeu que a Administração do porto “não possui responsabilidade pela retirada ou pelo carregamento de navios, tão somente o depósito e armazenagem das mercadorias e containers após serem estes descarregados” e que tal descarga se daria por “empresas privadas” contratadas pelo comandante do navio e dono da mercadoria. Destaca, por fim, a Câmara que o critério para tal responsabilização seria a culpa, ou seja, estar-se-ia diante de uma hipótese de responsabilidade subjetiva.
2.2 O segundo caso7 envolvia a discussão sobre o ressarcimento por indenização paga poravarias causadas no casco do navio. O Tribunal paranaense, também utilizando o teor do artigo 11 da Lei n° 8.630/1993, atribui tal responsabilidade ao “operador portuário”. O detalhe do caso é que a responsabilidade do operador era reforçada por cláusula contratual expressa em que ele assumia, contratualmente, a responsabilidade pelas avarias ocasionadas ao navio e outros equipamentos. Neste caso o Tribunal não se refere a nenhum critério de responsabilização, além da cláusula contratual e do próprio dispositivo do artigo 11 da Lei n°8.630/1993.
2.3 O terceiro caso8 envolvia discussão sobre a avaria em carga de vidros acondicionada em contêineres sob a responsabilidade de determinado operador. Tais contêineres teriam sido retirados do navio e embarcados em um caminhão, mas no percurso (dentro do porto) a mercadoria tombou e acabou se avariando. Com isso a discussão instaurada é se a responsabilidade seria ou não do operador portuário.
O Tribunal entendeu que como as avarias não ocorreram durante as atividades de carga e descarga, o operador não poderia ser responsabilizado. Neste caso, mais uma vez, o Tribunal paranaense exigiu, expressamente, a necessidade de demonstração do elemento “culpa” para responsabilização do operador portuário.
2.4 O quarto caso envolvia9 pretensão indenizatória de empresa que teve quantidade de mercadoria entregue (desembarque) a menor do que aquela embarcada. Neste caso, o acórdão considerou que o operador portuário exerceria “serviço público federal” (a teor do artigo 1o. da Lei n°8.630/1993) e, portanto, sua responsabilidade seria objetiva.
Esta é a primeira vez em que este entendimento aparece na jurisprudência do Tribunal paranaense. Alguns dados, no entanto, são ainda mais significativos: (i) o precedente citado como fundamento do julgado é o precedente objeto do item 2.2 acima, em que nenhum parâmetro de responsabilização foi mencionado e, mais, havia cláusula contratual expressa de responsabilização; (ii) a mesma Câmara do Tribunal paranaense até então julgava os mesmos casos baseados no artigo 11 da Lei n°8.630/1993 como sendo de responsabilidade subjetiva.
2.5 No quinto caso10 discutiu-se a possibilidade de existência de responsabilidade solidária entre o transportador e o operador portuário por perda parcial da carga. O Tribunal, ao interpretar o dispositivo do artigo 11 da Lei n°8.630/1993, considerou que a responsabilidade do operador portuário estaria adstrita à operação de carga e descarga, não podendo ser estendida para eventuais danos ocorridos durante o transporte (daí porque não se poderia falar em solidariedade). Este mesmo entendimento já havia, de alguma forma, sido dado no caso descrito no item 2.3.
2.6 No sexto caso11 as mesmas partes do caso anterior estavam envolvidas, mas desta vez, a matéria versava sobre pretensão de ressarcimento securitário em razão de a operadora portuária ter indenizado cliente que teve perdas no momento do embarque da mercadoria. Em primeiro grau, se concluiu que havia nexo de causalidade entre a atividade do operador e o suposto dano sofrido, motivo pelo qual não haveria o porquê de tal ressarcimento.
O acórdão enfatiza que o operador não só teria responsabilidade objetiva (“exercício de atividade pública”) como, no caso, nãoteria conseguido demonstrar como os documentos oficiais que demonstrariam a perda da mercadoria estariam equivocados. Mais uma vez, portanto, o Tribunal retorna o fundamento (vide item 2.4) de que a responsabilidade do operador portuário seria objetiva, pois aquela da Administração.
2.7 O sétimo caso12 envolvia o pedido de reforma de decisão que condenou a operadora portuária a pagar, em regresso, a seguradora o valor da indenização que esta havia pago ao segurado em razão das perdas que este havia sofrido (desaparecimento de mercadoria no Armazém da operadora portuária). O Tribunal manteve a decisão sem, contudo, esclarecer se a responsabilidade da operadora seja objetiva ou subjetiva.
2.8 O oitavo, e último caso13 encontrado na jurisprudência paranaense, tratava-se de caso de ação indenizatória em que seguradora buscava o ressarcimento securitário em razão de indenização paga por perda parcial de mercadoria (carga declarada no porto de origem/carga desembarcada). O Tribunal considerou haver responsabilidade objetiva do operador (citando o caso relatado no item 2.4 como precedente).
Embora tenham sido poucos os casos julgados pelo Tribunal paranaense, algumas conclusões podem ser retiras. É o que faremos já em sede de encerramento deste texto.
III. Notas conclusivas
O Tribunal paranaense embora tenha revelado apenas oito casos revelou uma tendência bastante interessante: a responsabilidade do operador portuário passa de subjetiva a objetiva. Aparentemente hoje este entendimento é consolidado naquele Tribunal.
Também parece estar consolidado o entendimento de que a responsabilidade do operador portuário, na jurisprudência paranaense, é objetiva com base na responsabilidade da Administração Pública. Este entendimento, contudo, foi o fundamento de um único julgado, repetido a partir de então por mais um julgado (de forma expressa).
Então, embora se possa dizer que o Tribunal de Justiça do Paraná hoje julga a responsabilidade do operador portuário como sendo um caso de responsabilidade objetiva baseando na responsabilidade da Administração, tal justificativa é pouco fundamentada em qualquer dos acórdãos que a mencionam.
Por outro lado, a escassa doutrina acerca do tema prefere abordar a responsabilidade civil do operador portuário em termos de responsabilidade civil objetiva, mas o faz, normalmente, em razão da atividade empresarial que o operador exerce.14 Esta, aliás, parece ser a melhor opinião a respeito do tema.
Isso porque o operador portuário não exerce atividade própria da Administração, nem mesmo serviço público concedido ou delegado.15 Trata-se, nitidamente, de atividade exercida por terceiro que, gerenciando os riscos a que a atividade está sujeita, trata de obter o lucro a que a toda a atividade empresarial está voltada.16
A explicação que a responsabilidade civil dá para os danos advindos do exercício de tal atividade17 é, justamente, o “risco”, ou seja, a responsabilidade objetiva. A positivação de tal lógica encontra-se, hoje, respaldo no artigo 931 do Código Civil brasileiro.
Outros “indícios” poderiam ainda ser buscados: (i) a própria Lei n° 12.815/2013 quando quer se referir a alguma responsabilização específica, menciona o critério “culpa” (artigo 26, I, por exemplo) e (ii) tradicionalmente toda a atividade de transporte é regulada, por tradição legislativa e jurisprudencial, no Brasil, pela responsabilidade objetiva.
Ao lado da responsabilidade civil objetiva, embora por outro fundamento, a análise da jurisprudência do Tribunal paranaense revelou ainda dois outros dados: (i) em princípio a extensão da responsabilidade do operador portuário seria adstrita às operações de embarque e desembarque, mesmo que eventuais avarias acontecessem em transporte dentro do próprio porto; e (ii) não seria admitida a extensão de sua responsabilidade pela via da responsabilização solidária.
Em que pesem eventuais divergências quanto à fundamentação, a análise dos julgados do Tribunal de Justiça do Paraná revela como, diante de parcos recursos normativos e de quase inexistentes fontes doutrinárias, ainda assim os institutos do Direito Portuário alcançam algum tipo de solução judicial técnica.