SUMÁRIO:
I. Introdução. II. Aspectos fundamentais do processo penal alemão e os primórdios dos espaços de oportunidade na tradição germânica. III. Dos acordos informais à regulamentação legal da barganha na justiça criminal alemã. IV. Considerações finais. V. Referências.
I. Introdução
“Uma afronta” exclamou a ex-ministra da Justiça alemã Sabine Leutheusser-Schnarrenberger,1 e “pouco a ver com justiça”, afirmou o jurista e jornalista Prof. Prantl.2 Em meados do ano 2014, em Munique, o processo penal contra Bernie Ecclestone foi encerrado sem sentença, ou seja, sem afirmação de culpa ou inocência do acusado. Tal investigação foi finalizada com o pagamento de U$ 100.000.000 (cem milhões de dólares americanos), na maior parte ao governo da Baviera.3 Assim se colocou em prática um dos diversos institutos processuais com base no principio de oportunidade que agora segue no processo penal alemão e que serão analisados introdutoriamente no presente artigo.
Inicialmente, fundamental traçar os contornos conceituais do mecanismo aqui analisado. Em que pese a complexidade da estruturação de uma definição acabada da barganha, neste trabalho definir-se-á tal mecanismo como “o instrumento processual que resulta na renúncia à defesa, por meio da aceitação (e possível colaboração) do réu à acusação, geralmente pressupondo a sua confissão, em troca de algum benefício (em regra, redução de pena), negociado e pactuado entre as partes ou somente esperado pelo acusado”.4 Nesse sentido, cumpre ressaltar que a conceituação é dificultada devido às particularidades assumidas pelo instituto em cada ordenamento jurídico.5 Entretanto, de modo abrangente, John Langbein aponta, em tom crítico, que ele se realiza “quando o promotor induz o acusado criminalmente a confessar sua culpa e a renunciar ao seu direito a um julgamento em troca de uma sanção penal mais branda da que poderia ser imposta se o acusado fosse julgado culpado ao fim do processo”.6
A barganha tem se solidificado no campo jurídico-penal alemão de um modo intrigante e instigante à análise doutrinária internacional, especialmente diante da proeminência da tradição e da influência germânica no cenário europeu.7 Na Alemanha os acordos consensuais surgiram na prática forense, sem qualquer autorização legal, desenvolvendo-se de modo informal até a consagração de sua importância na postura dos atores processuais, o que incitou o judiciário e, posteriormente, o legislativo a atuarem para sua regulação.8 Trata-se de fenômeno sem precedentes no debate jurídico mundial, ao passo que a barganha paulatinamente tornou-se rotina no direito germânico, amplamente reconhecido por seu apreço ao respeito à legalidade,9 supostamente de um modo imperceptível (ou, ao menos, não desvelado publicamente), o que Thomas Weigend descreve como “um elefante na sala”, que não era discutido ou questionado.10
II. Aspectos fundamentais do processo penal alemão e os primórdios dos espaços de oportunidade na tradição germânica
Inicialmente, importante apontar uma das principais características do processo penal alemão: a primazia do juiz na condução do procedimento. Conforme Bernd Schünemann, na instrução judicial vige o “princípio da acumulação dos poderes ou forças processuais”, em que, por exemplo, a produção probatória se pauta essencialmente pela atuação do julgador.11 Assim, o oferecimento da denúncia pelo acusador público acarreta a transferência do domínio do processo ao juiz, além de possibilitar o completo acesso deste às investigações preliminares.12 Diante de tal cenário, somado à pretensão de busca da verdade material por meio do processo,13 dois aspectos são relevantes ao desenvolvimento de mecanismos negociais: por um lado, há uma importante resistência à extinção da investigação a partir de um acordo de vontades, ou seja, a tradição jurídica alemã apresenta maiores óbices à barganha, em comparação ao ordenamento estadunidense, por exemplo.14 Além disso, superadas tais objeções, a postura ativa do juiz acarretará basilares consequências aos contornos das negociações e da realização do acordo:15 ele, em coerência com o sistema inquisitorial, pode iniciar a barganha.16
Na Alemanha, assim como nos demais países de tradição civil-continental, inexiste a figura estadunidense do guilty plea -momento inicial do processo em que o réu se declara culpado e aceita a imposição da pena sem processo-,17 ou seja, nos referidos ordenamentos o instituto da confissão é positivado como uma das demais possibilidades de prova previstas na lei, de modo que seu reconhecimento não acarreta a extinção automática do processo, visto que impõe-se a sua confirmação a partir do lastro probatório complementar para que se autorize um pronunciamento condenatório.18 Assim, questiona-se: “como alguém poderia esperar que a barganha fosse prosperar em um clima adverso como esse?”.19
Costuma-se afirmar que até a década de 70 do século passado não havia qualquer vestígio de instituto semelhante à barganha no processo penal alemão,20 o que é justificado pelo afastamento entre os atores processuais, comum à prática judiciária da época.21 Embora existam motivos para o questionamento de tal declaração,22 pode-se dizer que o desvelamento da ocorrência de acordos informais se deu em 1982 com a publicação de um artigo anônimo, momento em que iniciou-se o intenso debate doutrinário acerca desse fenômeno.23
Diversas são as causas apontadas para o aparecimento da barganha: desde a crescente dificuldade probatória,24 que, juntamente com um cenário de expansão do direito penal por meio da antecipação da tutela e abstração dos tipos,25 fomentado pela virada dos fins da pena para a prevenção geral,26 resultou em uma generalizada morosidade judicial, até o aprimoramento das possibilidades de atuação dos defensores técnicos.27 O motivo principal, porém, é visto na economia processual, ou seja, a barganha advém da sobrecarga do sistema jurídico alemão.28 Além dos acordos informais, esse panorama fomentou a introdução de hipóteses determinadas legalmente de não persecução penal, ainda que presente justa causa para tanto, o que consagrou a Alemanha como ordenamento continental precursor na regulação de hipóteses de oportunidade.29
Embora se negue qualquer aderência a influências estadunidenses,30 o principio da oportunidade se fortalece no processo penal31 e as negociações foram incentivadas, ainda que indiretamente, por tais espaços de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal32 por meio de dispositivos que foram introduzidos a partir de 1923 e consolidados em 1974.33 Por exemplo, além do arquivamento de casos de escassa importância (§ 153 do Código de Processo Penal alemão -StPO-) ou de atos cometidos por estrangeiros dentro de certas condições (§ 153c StPO), existe instituto semelhante à suspensão condicional do processo brasileiro, o arquivamento provisório sob condições (§ 153a StPO)34 -que, na verdade, inspirou o desenvolvimento do mecanismo consensual pátrio- e a ordem penal, a qual se trata de procedimento denominado monitório penal.35 Em termos estatísticos, com dados de 2003, as hipóteses de oportunidades foram aplicadas em 51,7 por cento das disposições finais do Ministério Público germânico em casos de suspeita suficiente;36 já o instituto da ordem penal chega a ser utilizado em até 80 por cento do total de processos em certas localidades.37
III. Dos acordos informais à regulamentação legal da barganha na justiça criminal alemã
Desse modo, até a edição de legislação específica em 2009, os acordos para aplicação de punição consentida pelo acusado (Absprachen)38 se realizavam de modo informal na prática judiciária alemã, sem qualquer regra escrita ou política centralizada estabelecida.39 Conforme exposto, o julgador tinha papel primordial em tal procedimento,40 ao passo que se envolvia na negociação e assumia diretamente o compromisso prometido como benefício ao réu, que não podia fixar expressamente a sanção penal, mas somente determinar um máximo que não poderia ser superado no futuro cálculo da punição.41 Em tal procedimento, embora diversos julgamentos sejam realizados por leigos juntamente com juízes profissionais,42 somente estes participavam das reuniões no momento inicial das negociações43 (panorama que permanece após a regulamentação de 2009). O “debate da situação processual” é concebido também como preparatório da barganha,44 e iniciado pela promotoria (§ 160b StPO), ou pelo tribunal (§ 202a StPO). Como esas normas se aplicam ao processo intermediário, anterior ao processo principal, o juiz leigo não participa.45 Com frequência, o acordo incluía em seus termos a renúncia do acusado a eventual recurso, em que pese não fosse considerado uma abdicação ao direito de julgamento.46
Embora a confissão consentida por meio da barganha não acarretasse a extinção imediata do processo, havia uma expressiva aceleração do procedimento, ao passo que, conforme a posição majoritária, tornava desnecessária a produção de mais provas incriminatórias se a descrição fosse detalhada e plausível.47 Assim, ainda havia um “julgamento”, embora geralmente se concretizasse somente como uma homologação formal.48
Nesse sentido, conforme apontamentos estatísticos, os acordos informais chegaram a se realizar em 30 a 50 por cento dos processo penais na Alemanha,49 com números elevados em casos de crimes econômicos.50 Além disso, em um levantamento no estado de Niedersachsen, houve a indicação do percentual de 80 em cada cem casos envolvendo criminalidade organizada.51 Percebe-se, portanto, que a barganha rompeu com o sistema legal germânico,52 supostamente se tornando uma necessidade para o funcionamento da justiça criminal, nas palavras de certos doutrinadores.53 De qualquer modo, as críticas são constantes, seja direcionadas à essência do instituto, ou à falta de regulação legal de seu procedimento, o que Bernd Schünemann descreve como “decadência da cultura jurídica”.54
Nesse panorama, em razão da renúncia ao recurso do réu, consequência prevista na maioria dos acordos realizados,55 o pronunciamento dos Tribunais superiores se mostrava obstaculizado. Contudo, algumas decisões foram paradigmáticas, ao julgarem casos específicos em que barganhas tinham ocorrido, portanto implicitamente se posicionando acerca da mesma.56 Em 1997, uma decisão57 do Supremo Tribunal de Justiça (BGH) fixou pela primeira vez importantes diretrizes para a legalidade dos acordos:58 as negociações devem ser descritas publicamente no momento do juízo oral; seu resultado deve ser gravado e incluído nos expedientes processuais; os juízes leigos e o réu devem participar e poder se pronunciar acerca da barganha (embora conversas preparatórias possam ocorrer sem a sua participação); é proibida a barganha sobre as imputações penais (charge bargaining); a Corte não pode prometer uma sanção penal específica, mas somente determinar um limite máximo; o réu não pode ser indevidamente pressionado, sem ameaças e intimidações, e sua liberdade de escolha deve ser respeitada; a punição deve refletir a gravidade do delito e a culpabilidade do autor; a confissão do acusado deve ser verificada pelo Tribunal, necessariamente precisa ser plausível e precisa de modo a confirmar os atos de investigação existentes; e, o acordo não pode incluir renúncia ao recurso.59
Posteriormente, em 2005, uma nova decisão do plenário do BGH ratificou tais pressupostos, atestando seu não cumprimento na prática judiciária e ressaltando, especialmente, a vedação de renúncia ao recurso,60 visto que sua realização impede o acesso dos casos aos tribunais superiores. 61 Por fim, tal pronunciamento do judiciário solicitou a atuação urgente do legislativo, de modo a introduzir nova legislação no ordenamento germânico para finalmente regular legalmente a realização dos acordos, pois corrigir tendências falaciosas por meio de instrumentários jurisprudenciais “nunca poderá ser alcançado de forma plena e sempre levam aos limites da produção legislativa pelo judiciário”.62
Foi assim63 que em maio de 2009 surgiu a Lei de Regulamentação dos Acordos no Processo Penal, a qual fundamentalmente adicionou um parágrafo (§ 257c)64 ao Código de Processo Penal alemão (StPO), regulando a realização de barganhas de modo semelhante ao determinado pelo BGH nas referidas decisões paradigmáticas.65 Conforme o texto aprovado, a Corte poderá, nos casos adequados,66 pactuar com os participantes do processo acerca de seu desenvolvimento e de seu resultado, fixando limites mínimos e máximos à sanção penal (proibindo, assim, os acordos sobre imputações -charge bargaining-),67 embora se mantenha o dever do magistrado de buscar de ofício a verdade nas investigações. A confissão do réu é pressuposto à barganha e sua veracidade deve ser analisada, visto que, em caso de dúvida, a Corte deverá rejeitar o acordo.68 Em casos excepcionais, os limites fixados no acordo podem não ser respeitados na sentença, se o juiz considerar que não refletem a gravidade do delito e a culpabilidade do acusado, ou se as atitudes do réu no decorrer do processo não se adequarem às previsões.69
Diversas são as objeções apontadas à barganha e aos novos dispositivos, tanto em relação ao rompimento das premissas do processo penal alemão,70 quanto da primazia de interesses economicistas às necessidades garantistas de limitação ao poder punitivo estatal.71 Além disso, a regulamentação é criticada em razão do excessivo poder discricionário fornecido aos julgadores para incentivar o acordo (pressionar e ameaçar os acusados) e, posteriormente, optar por cumprir ou não as promessas realizadas (limites da sanção penal definidos).72 Ademais, parte da doutrina germânica se mostra cética à concretização dos limites impostos pela nova legislação, ao passo que, se a barganha surgiu de modo informal, não há que se acreditar em uma possível (e repentina) vinculação da atuação dos atores do sistema criminal às previsões legais.73 Nesse sentido, estudo empírico realizado entre juízes alemães em 2011 apontou que 18% do total de casos em Cortes locais e 23% em Tribunais distritais eram resolvidos por meio de acordos, quantidade expressiva tendo-se em mente que são desconsiderados os casos de oportunidade em termos amplos e aqueles em que houve confissão em sede policial; mas, além disso, 59% dos julgadores admitiram que realizam as negociações de modo informal, sem atender aos requisitos determinados pelo recente regramento legal.74
De qualquer modo, em recente manifestação de julgamento datado de março de 2013, o Tribunal Federal Constitucional alemão (BVerfG) ana-lisou a constitucionalidade da nova legislação de 2009 acerca dos acordos no processo penal.75 Conforme a doutrina, diante do papel fundamental desempenhado pela barganha no sistema criminal germânico, uma de-claração de inconstitucionalidade era inviável, de modo que o BVerfG focou seus esforços na regulamentação de requisitos e de limitações que condicionem a validade dos pactos, afirmando a necessidade de respeito aos princípios da busca da verdade, da publicidade e da proporcionalidade das punições.76
O caso abordou três reclamações realizadas por distintos acusados condenados por meio de acordos que não atenderam aos pressupostos definidos no § 257c do StPO, sendo, portanto, inconstitucionais por no caso concreto não terem informado ao réu da possibilidade de não respeito da Corte às limitações da pena acordadas,77 não verificarem a adequação da confissão aos fatos78 e expandirem o objeto da barganha para além das consequências jurídicas (charge bargaining).79 Embora tenha aceito as impugnações nos casos concretos, o BVerfG atestou a constitucionalidade em abstrato da reforma de 2009, visto que, se atendidas na prática, as limitações previstas respeitam as garantias essenciais aos acusados e as premissas do processo penal germânico.80 Ademais, o judiciário requisitou a contínua verificação da atenção às determinações legais e, se necessário, incitou o legislativo a eventuais mudanças visando à concretização da limitações.81 Além disso, certos requisitos para a legalidade da barganha foram ressaltados: 1) a confissão precisa necessariamente ser verificada por provas complementares, de modo que por si só não pode fundamentar uma veredicto condenatório; 2) o acusado deve ser avisado de seus direitos e das consequências do acordo; e, 3) as negociações devem ser descritas publicamente e registradas nos autos do processo.82 Contudo, aponta-se que importantes aporias não foram analisadas, como certas incompatibilidades dos acordos com o sistema criminal alemão e as consequências práticas da legislação.83
IV. Considerações finais
Diante do exposto, percebe-se que a barganha se desenvolveu no campo jurídico-penal alemão de modo a paulatinamente se consolidar na prática judiciária e dominar as relações entre os atores do sistema, impregnando suas posturas e condutas na instrumentalização do poder punitivo estatal. Conforme Thomas Weigend, semelhantemente à descrição histórica estadunidense,84 os acordos se implementaram no processo penal germânico passando por fases de sigilo e ilusória negação, de reconhecimento em cortes inferiores, de debate e crítica doutrinária, até sua aceitação jurisprudencial em razão de uma suposta necessidade prática, juntamente com uma pretensa tentativa de limitação a partir da definição de requisitos legais, que hipocritamente legitimam tal instituto diante das imposições constitucionais e convencionais.85 Mesmo que haja problemas pragmáticos reais devido à evidente sobrecarga do sistema jurídico alemão,86 a tendência de negociar justiça ameaça o sistema penal como um todo. No emblemático caso descrito na introdução deste artigo, Bernie Ecclestone resolveu o problema da acusação penal a ele imputada da mesma forma que a criou: pagando muito dinheiro para um funcionário publico tomar uma decisão favorável a ele.87 Assim, evidencia-se que o sistema penal corre sério risco de perder essencialmente a sua coerência axiológica.
Portanto, a partir do exemplo alemão dos acordos no processo penal, pode-se afirmar que o fortalecimento e a generalização da barganha como mecanismo de imposição antecipada de uma sanção penal demonstra a primazia da atuação dos atores do campo jurídico-penal no incentivo à justiça negociada. Percebe-se que o mecanismo consensual adere integralmente aos interesses de juízes e promotores, ou seja, aqueles que detêm o poder na persecução penal, e, portanto, se solidifica na prática jurídica ainda que acarretando incontornáveis violações a premissas do processo penal de um Estado Democrático de Direito. O exemplo alemão, onde os acordos surgiram no sistema jurídico de modo informal, em completa desatenção às imposições normativas, representa panorama que confirma a descrição de George Fisher do “triunfo da barganha”, em que esse instituto se expande a partir do poder daqueles que são beneficiados por suas consequências, até um ponto que, conforme George Fisher, adquire poderes próprios e influencia todo o sistema de justiça criminal, fortalecendo aquilo e aqueles que a defendem e fragilizando qualquer tentativa de redução em sua atuação.88 Assim, trata-se de “uma construção dos actores processuais, algo criado por eles e para satisfazer antes de tudo interesses deles”.89