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Revista latinoamericana de estudios educativos

versión On-line ISSN 2448-878Xversión impresa ISSN 0185-1284

Rev. latinoam. estud. educ. vol.53 no.3 Ciudad de México sep./dic. 2023  Epub 06-Oct-2023

https://doi.org/10.48102/rlee.2023.53.3.574 

Enclave

Por onde andam os PPPs (Projetos Políticos Pedagógicos): esticando possibilidades de transformação na Educação Escolar Indígena brasileira

Where are the PPPs (Political Pedagogical Projects): Stretching Possibilities for Transformation in Brazilian Indigenous School Education

Alexandre Herbetta* 
http://orcid.org/0000-0003-1627-2177

Eunice Pirkodi Caetano Moraes Tapuia** 
http://orcid.org/0000-0001-8829-3749

Júlio Kamer Ribeiro Apinajé*** 
http://orcid.org/0009-0007-7117-8366

*Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Sociais, Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena, Brasil. aherbetta@ufg.br

**Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Brasil. eunice.tapuia@discente.ufg.br

***Secretaria de Educação do Estado do Tocantins, Coordenação Pedagógica, Programa de Pós-Graduaçaõ em Antropologia Social, Brasil. tekator2013@gmail.com


Resumo

O texto a seguir busca refletir sobre o potencial de agenciamento de documento central para o funcionamento de escolas indígenas no Brasil, o Projeto Político Pedagógico, que indica características e perspectivas centrais para o funcionamento da instituição. Por meio da análise de documentos da criação e desenvolvimento do Curso de Especialização “Educação Intercultural e transdisciplinar; gestão pedagógica”, cujo objetivo foi o de criar coletivamente, junto a docentes indígenas, tais documentos, da análise de alguns destes documentos e do diálogo com docentes indígenas, busca-se entender a complexidade do processo de elaboração do PPP em relação ao contexto da educação escolar indígena no Brasil. Entende-se que o processo de elaboração do PPP é importante dos pontos de vista epistemológico e político, já que sistematiza conhecimentos indígenas e detona processos de mobilização comunitária.

Palavras-chave: interculturalidade; política pública; epistemologia; comunidade

Abstract

The following text seeks to reflect on the agency potency of a central document for the operation of indigenous schools in Brazil, the Pedagogical Political Project, which indicates central characteristics and important perspectives for the functioning of the institution. Through the analysis of documents from the creation and development of the “Intercultural and transdisciplinary education; pedagogical management” course, whose objective was to collectively create, together with indigenous teachers, such documents, from the analysis of some of these documents and from the dialogue with indigenous teachers, we seek to understand the complexity of the PPP elaboration process in relation to the context of indigenous school education in Brazil. It is understood that the PPP elaboration process is important from the epistemological and political points of view since it systematizes indigenous knowledge and triggers community mobilization processes.

Keywords: interculturality; public policy; epistemology; community

Resumo em panhy kaper

Kagàja na kot prĩhã Projeto Político Pedagogico xyrpê amaxpẽr. Brasil kamã Panhĩ xujahkrexà kôt amaxpẽr nẽ ho hihtỳx kaxyw Kagàja kôt kota prĩhã panhĩ xujahkre xyrpê harẽ. Kagà jahkrexà pê curso de especialização “Educação Intercultural e transdisciplinar; gestão pedagógica”, ja na amaxpẽr nẽ kot kagà ja kôt kagà pumunhjaja amaxpẽr nẽ kôt ahkre kaxyw. Nẽ xahtã kagà ja kôt amaxpẽr nẽ yrpê axpẽn mã kapẽr.

Num primeiro momento aceitamos, fomos vendo também o valor que a gente tinha, no papel. Antes o que era dito a gente estava aceitando. No momento que buscamos esta ideia, a gente quer uma diferença, a gente começou a buscar isso, o protagonismo. Palavra difícil, quer dizer nós mesmos, estamos fazendo, não é esperar os outros. O PPP tem nossa cara.

Lázaro Tapuia

Nós estamos construindo de baixo.

Apresentação dos professores Karajá

Introdução

O Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena (NTFSI) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil, existe desde 2007, sendo constituído especialmente por um curso de formação de docentes indígenas, base da política intercultural brasileira, desde de 2005, e fruto da mobilização política do movimento indígena no país desde a década de 1980, período da redemocratização nacional. O objetivo da referida política é formar docentes indígenas, que já atuam em escolas de suas comunidades, em nível superior, já que em sua maioria possuem formação de ensino médio, no chamado Magistério Indígena.

Ao longo do tempo este espaço se tornou, também, centro de produção de conhecimento no campo da interculturalidade crítica (Walsh, 2013), gerando centenas de livros e artigos, em línguas indígenas ou bilíngues, estimulando e valorizando a autoria indígena, além de uma revista referência no campo da interculturalidade crítica no país, a Revista Articulando e Construindo Saberes (RACS), inovando a política editorial da universidade.

É deste lugar, igualmente, que saem movimentos para a transformação nas dinâmicas universitárias, como a criação de política de reserva de vagas para populações indígenas e negras em todos os programas de pós-graduação da instituição, conquista que contou com o apoio de alguns outros setores universitários e é expressa na Resolução Consuni nº 07/2015 (Herbetta, 2018). A presença de cerca de 300 estudantes, que são docentes indígenas, no espaço universitário, em nível de graduação e pós-graduação, antes excludente a eles, promove estranhamentos fundamentais para uma universida-de mais democrática.

O Núcleo Takinahakỹ busca, portanto, pensar em processos de transformação no campo da educação escolar indígena e, também, no da universidade, nas relações interétnicas, em contextos políticos locais e nacionais, por meio de noções como autonomia, autogestão, interculturalidade crítica e decolonialidade e, também, por meio de conceitos como esticar e alfabecantar, categorias expressas nas situações de trabalho coletivo e intercultural, e que fazem parte de uma nova base epistêmica, como se verá (Herbetta e Socorro, 2018).

Em 2012 por meio da atuação da professora Maria do Socorro Pimentel da Silva, uma das fundadoras do NTFSI e sua grande referência, iniciou-se um curso em nível de pós-graduação, lato sensu, o Curso de Especialização “Educação Intercultural e transdisciplinar: gestão pedagógica”. O objetivo segundo a mesma professora era o de produzir, de maneira comunitária e interepistêmica, por meio de atividades na universidade e nas comunidades indígenas, documento chave para o funcionamento de escolas indígenas e não indígenas no Brasil, o PPP, Projeto Político Pedagógico (Socorro e Herbetta, 2017). O PPP, no Brasil, é o documento que estipula matriz curricular, objetivos, perfil discente e docente, atividades extra-classe, princípios, calendário, gestão, horários, tipo de avaliação e perspectiva pedagógica de cada escola.

Assim, criar projetos político-pedagógicos que avançam nas lutas contra o eurocentrismo e a dependência implica assumir, entre outros elementos, uma política curricular que visa questionar os conhecimentos hegemônicos, abstratos e deslocalizados; desnaturalizar o conhecimento científico que é apresentado como único e universal; e rejeitar essas concepções helenocêntricas, eurocêntricas e ocidentalistas, que acabam por conceber historicamente a Europa e a América do Norte como o centro e o culminar da civilização humana (Ducasse, 2015, p. 157).

O PPP tem sido entendido no âmbito da educação escolar indígena no país como a possibilidade de a escola indígena se constituir enquanto escola intercultural, bilingue e diferenciada, por meio do protagonismo indígena, assim como estipula a legislação, desde a Constituição federal de 1988. Anteriormente, as escolas indígenas no Brasil foram impostas dentro das comunidades ao longo do processo histórico de colonização. Elas eram (muitas vezes ainda são) organizadas e atuavam de maneira a desvalorizar e atacar língua e cultura originárias, assim como os processos próprios de aprendizagem e a estabelecer o conhecimento “universal” eurocentrado como base da formação de crianças e jovens indígenas.

Esta escola colonialista é entendida pelas comunidades indígenas como parte de uma grande crise vivida: ambiental, societária e cultural. Segundo anciãos e anciãs os mais jovens não estão mais apreendendo de maneira adequada os conhecimentos ancestrais, transmitidos pelos mais velhos. Desta forma não sabem mais, por exemplo, as músicas que dão a dinâmica dos rituais, não sabem mais a terapêuticas tradicionais, não respeitam mais a organização social.

Atualmente há uma crise geracional entre o Panhĩ Apinajé. Os Mẽnywjaja (os jovens) dizem que os anciãos não passam o conhecimento que detém adiante. Os anciãos, por sua vez, afirmam que os jovens não têm curiosidade ou interesse em aprender, sendo que os próprios Mẽnywjaja não discutem entre eles. Isto causa um problema muito grande para a comunidade, pois os saberes ancestrais acabam não sendo transmitidos da forma adequada às novas gerações, que seduzidas pelo universo cultural não indígena, não sabem mais como agir adequadamente. A crise tem a ver também com a diminuição da prática musical (PPP Apinajé, 2016, p. 3).

Tais situações críticas são entendidas, ademais, como uma maneira de se perder o respeito pelo planeta, pelas pessoas e pelos parentes, o que gera vergonha entre os jovens e, consequentemente, sofrimento psíquico (Herbetta e Nazareno, 2019). Tal processo de crise é acompanhado por ameaças sociolinguísticas, que fazem com que o idioma hegemônico português entre cada vez mais nos contextos socioculturais indígenas de maneira intensiva, o que gera uma variedade de cenários, desde populações que passam a deixar de falar suas línguas, outras passam a ter como preocupação central o intenso empréstimo de palavras em português, até populações que passam a criar políticas linguísticas de fortalecimento do idioma originário.

Para Davi Kopenawa, liderança, xamã e intelectual Yanomami, vivemos um momento de risco de continuidade para as populações humanas (Kopenawa e Albert, 2015). Segundo o antropólogo Bruce Albert sobre Davi, “a experiência lhe deu também um conhecimento mais preciso da obsessão predatória dos que ele chama de Povo da Mercadoria, e da ameaça que ela representa para a permanência da floresta e a sobrevivência de seu povo” (Kopenawa e Albert, 2015, p. 46).

Neste contexto, uma escola que trate de questões epistemológicas e políticas, desde a experiência das pessoas indígenas e desde as demandas do território, é entendida como uma estratégia possível para mitigar a referida crise. O PPP, no âmbito do NTFSI, assim, é um documento escrito, que por sua materialidade, busca remanejar relações de poder entre populações indígenas, a escola, a universidade e o Estado, busca colocar a comunidade como protagonista e problematiza profundamente as dinâmicas institucionais eurocentradas, já que indica outras dinâmicas, relações e lógicas de aprendizagem, como as presentes nas musicalidades, nos clãs e nos resguardos. A língua indígena pode, ainda, voltar a ser a base da formação, indicando políticas linguísticas fundamentais aos contextos sociais de cada população.

Este texto busca analisar documentos da criação e desenvolvimento do “Curso de Educação Intercultural e Transdisciplinar: gestão pedagógica”, alguns dos PPPs elaborados ao longo do processo, especialmente o PPP Apinajé e o Tapuia, assim como tomar em conta seriamente percepções e experiências de docentes indígenas que passaram pelo curso. Procura, ainda, entender o PPP como um agente (Gell, 1998; Latour, 2008), discutindo sua materialidade, já que participa de rede de agenciamentos necessários a transformações e processos de mobilização importantes para populações indígenas, criando a possibilidade real de uma educação escolar indígena diferenciada, com todas as tensões, contradições e conflitos inerentes ao processo, mas, de toda forma, como uma conquista importante e histórica.

“Construindo de baixo e com nossa cara!”

O Curso de Especialização “Educação Intercultural e Transdisciplinar: gestão pedagógica” funcionou entre 2012 e 2016 e teve duas turmas formadas, cada qual tendo trabalhado cerca de dois anos em seus PPPs, entre atividades na sede do NTFSI, em Goiânia e atividades nos territórios originários, junto as comunidades. O I Seminário da segunda turma do curso, por exemplo,

se realizou no período de 17 a 21 de novembro de 2014, no Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena, da UFG. Os temas estudados e discutidos reportaram as seguintes questões: 1) manejo do mundo; 2) eixos pedagógicos de educação intercultural e da pedagogia do diálogo e da complementaridade; 3) letramento em língua portuguesa em contextos interculturais; e 4) contextualização dos conhecimentos indígenas e da educação infantil (Socorro et al., 2019, p. 15).

Há cerca de 100 estudantes egressos, professores e professoras indígenas dos povos Krahô, Apinajé, Xambioá, Xavante, Javaé, Tapuia, Gavião, Karajá, Xerente e Tapirapé, habitantes da região dos rios Araguaia-Tocantins e com experiências escolares distintas, mas similares no processo de imposição de escolas por parte dos governos, desde os anos 1960, com o intuito de uma formação descontextualizada, vinculada às colonialidades do ser, do saber e do poder (Lander, 2005). As escolas eram entendidas como estratégias para a homogenização cultural, base das políticas indigenistas integracionistas do país.

O objetivo do curso de Especialização foi colaborar com a produção do documento chave para a gestão pedagógica e administrativa de cada escola indígena: os projetos político-pedagógicos (PPP). Os professores e professoras indígenas do curso, em conjunto com os seus parentes, intercalaram etapas de estudos na Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, e em Terras Indígenas, com suas comunidades, a fim de pensar e escrever o referido documento de forma coletiva e comunitária (Socorro et al., 2019, p. 8).

Docentes indígenas que fizeram parte do curso são em sua ampla maioria egressos do Curso de Educação Intercultural, em nível de graduação, já que a ideia foi a de justamente terem mais tempo para desenvolverem seus PPPs. Havia também estudantes que se formaram em outras universidades, como, por exemplo, na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), instituições com políticas interessantes e efetivas em inclusão.

O Curso de Especialização em Educação Intercultural e Transdisciplinar: gestão pedagógica destina-se a profissionais graduados na área de educação intercultural e áreas afins, em cursos reconhecidos pelo MEC, tendo como objetivo principal a produção de projeto político pedagógico para as escolas indígenas (Edital de chamamento, 2011, p. 1).

O projeto do curso se apoiou nas conquistas do movimento indígena brasileiro, organizado desde a década de 1980, por meio da União das Nações Indígenas (UNI) e presente na Constituição federal de 1988, como, por exemplo, no artigo 210, que estipula que escolas indígenas podem, a partir de então, ter como base seus processos próprios de aprendizagem, assim como podem usar suas línguas originárias, e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, De acordo com o Artigo 14 da Lei nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996,

os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I. participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II. participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (Congresso Nacional do Brasil, 1996).

Neste cenário, o grande desafio, entretanto, foi o de construir novos documentos baseados em epistemologias indígenas, e não em modelos já estabelecidos desde as instituições governamentais, como se faz de costume. A ideia central foi a da criação de novas práticas e não a da reprodução de referências existentes. Para a intelectual Tapuia, Eunice Pirkodi, “seguir o manual é ser o que o outro quer que você seja” (Pirkodi, 2022). O objetivo, ao contrário, foi o de ter como base outros conceitos, categorias, práticas e idiomas ou como a professora Maria do Socorro Pimentel chamava, tomar como centro o bilinguismo epistémico (Socorro, 2019), tendo ciência que linguagem e epistemologia estão intrinsecamente conectadas.

Desta forma, buscava-se não apenas reproduzir modelos de documentos já existentes, desenvolvidos nas Secretaria de Educação (SEDUCs), as quais possuem, com grande variedade, uma gestão pautada em uma escolarização ainda descontextualizada, mas criar coletivamente e desde as comunidades, novos documentos. De outra maneira o processo de criação segue nas instituições governamentais, que controla burocracias e normas, e com isso bloqueia o caráter comunitário do processo. Para o intelectual indígena Gersem Luciano Baniwa:

Para a escola indígena ser efetiva precisa colocar em prática a autonomia do povo indígena. Isso é uma decisão política muito séria e radical. A constituição não é cumprida, de fato. O que resolve são as atitudes das pessoas e comunidades. É bobagem acreditar que vivemos em democracia e que apenas participar de conselhos vai resolver os problemas indígenas. É necessário ter protagonismo no dia a dia. A luta indígena se dá com a formação escolar e universitária (Baniwa apud Socorro et al., 2019, p. 23).

A problematização do sistema racional eurocentrado, da razão científica, suas dinâmicas presentes em idiomas hegemônicos, práticas de conhecimento, métodos de investigação e categorias de entendimento de mundo foi central ao processo. Segundo Cassiano Apinajé,

observo isso na minha trajetória, na FUNAI, nos Missionários, no MEC. O ritmo de estudo é o mesmo e nada mais. O que a escola pretende com os alunos? Como pretende formar alunos? Eu posso ser doutor em literatura, mas se eu não tiver conhecimento da minha cultura como vou viver, como vou conviver em comunidade. Muitas vezes, parte da própria estrutura da escola afasta as pessoas (PPP Apinajé, 2016, p. 27).

A proposta concretamente foi, então, a de desenhar processos nos quais os PPPs fossem elaborados desde as comunidades, com protagonismo indígena, e com base nas discussões do campo da interculturalidade crítica, apropriado pelos professores indígenas em suas trajetórias acadêmicas, e não desde âmbitos institucionais.

A construção dos projetos político-pedagógicos contextualizou-se nas matrizes culturais indígenas, nas demandas comunitárias e na convivência intercultural. Muitos temas que compõem as matrizes curriculares tornaram-se transculturais graças às multiconectividades. Esta abordagem incita à necessidade de religação dos saberes para permitir a relação da parte no todo e do todo na parte (Socorro et al., 2019, p. 8).

Os PPPs foram, portanto, um processo de coconstrução comunitária e colaborativa, sendo o próprio movimento de mobilização de docentes na produção do documento importante para a garantia deste componente comunitário. É aí que se tem uma vinculação entre escola, comunidade e universidade. O documento em si é, portanto, um agente desse processo político de transformação.

Para dar conta deste desafio, tornou-se necessário a construção dos PPPs compostos de matrizes curriculares culturais, fundadas em perspectivas inovadoras de congregação de todos/as envolvidos/as nos processos de retomada de valores, saberes, e modos de vida. Fez-se necessário, também, a elaboração de novos conhecimentos que se expressam em ideias, conceitos, paradigmas e atitudes imprescindíveis à realização da educação intercultural crítica, concebida como fundamental para o enfrentamento de estruturas fechadas, governadas por concepções monolíngues, monoculturais e disciplinares e que, por isso, desconsideram as pluriepistemologias ameríndias e o manejo de mundo dos povos indígenas (Socorro et al., 2019, pp. 11-12).

Após a conclusão do curso, o resultado dos PPPs produzidos, em relação à etapa de seu desenvolvimento, variou. Há documento que não conseguiu ser propriamente finalizado e efetivado, há documento que está em diálogo com secretarias de educação, há documento que serviu de base imediata para o funcionamento das escolas indígenas, há documento ainda em discussão comunitária.

Na reunião final da primeira turma do curso, em 2014, no Núcleo Takinahakỹ, em Goiânia, a referência mais usada por docentes indígenas era a de que o PPP tinha “nossa cara” (Herbetta e Socorro, 2018, p. 181). Eles queriam dizer que, ao menos potencialmente, entendiam a escola indígena mais conectada à cultura, à organização social, aos conhecimentos de cada povo. Simultaneamente, a forte expressão marca oposição a como a educação escolar indígena era operacionalizada até o momento.

Lázaro Tapuia, professor do povo Tapuia e participante do processo, afirmou que “antes era ouvinte, só ouvia o que vinha de fora, agora fala” (Relatório Especialização, 2015, p. 28). O professor Paulo Xambioá, que participou da elaboração do projeto político-pedagógico de uma escola de seu povo explica que

hoje tá diferente, nós que vamos colocar a proposta. A preocupação com o calendário, com os ciclos de vida. É um desafio. Antes só acatava. Hoje nós participamos, nós construímos estamos juntos, estamos contribuindo nessa construção. A gente fica feliz, sente segurança. A gente sabe que não é fácil mudar a proposta (Relatório Especialização, 2015, p. 41).

A expressão reforça, ademais a noção de protagonismo na gestão da escola e mostra efetivamente como os documentos foram construídos desde as comunidades, modificando, de fato, mesmo que levemente, práticas do Estado, já que a escola enquanto instituição é vinculada a ele. Simultaneamente o documento afeta positivamente a mobilização das comunidades e a apropriação de práticas e noções importantes do campo da interculturalidade crítica.

Os professores Karajá reforçaram que “estamos construindo de baixo”, assim como para os Xerente, “chegou nossa vez de mostrar nossa cara, nossa história, nosso PPP”. Nesta direção, o professor Reginaldo Tapirapé, em seminário de avaliação do curso:

Quando se fala sobre educação para manejo de mundo hoje, é possível perceber que antes era uma educação cega, sem cultura, sem metodologia, e hoje ela é responsável por construir toda uma nova pedagogia. Não adianta ter conhecimento e não ter uma política de coletividade. É preciso que os indígenas se capacitem a cada dia. Quem fala pelos indígenas hoje são eles mesmos. SPI, FUNAI hoje já não os dominam mais. É preciso participar ativamente dessas discussões e desafiar a SEDUC e outros sistemas para que possam aderir a pedagogia própria dos indígenas (Relatório Especialização: 2º turma, 2015, p. 57).

Alfabecantar: é possível uma escola mais musical?

Uma das dimensões mais violentas do processo de colonização, observável facilmente no campo da educação, e obviamente em culturas escolares nas escolas indígenas, buscou atacar vorazmente epistemologias e ontologias outras, afetando dinâmicas de organização social, sistema de relações sociais, cosmologias, idiomas e percepções de mundo, como afirma Oyewumi (2016), Tuhiwai (2018), Cusiquanqui (2018), dentre outras. Conforme Oyewumi (2016, p. 1), “as sociedades que experimentaram a colonização sofreram muitos efeitos negativos, alguns psicológicos, alguns linguísticos e alguns intelectuais. Mas nada, talvez, tenha sido menos estudado do que como a colonização subjuga o conhecimento e marginaliza epistemes locais”.

O PPP Apinajé, intitulado “Kagà Jahkrexà Pê Mãtyk Nẽ Tekator Kôt Mẽpahte Amnhĩ Nhĩpêx Nẽ Paxàhpumunh Ho Hihtỳx (Fortalecimento da ciência e cultura pela escola Indígena Mãtyk e Tekator)” elaborado pelos professores Julio Kamêr, Cassiano Sotero e pelas professoras Maria Paxlé e Maria Kreré, entre 2014 e 2016, por meio de uma ampla pesquisa e sistematização de conhecimentos, propõe profundas transformações epistemológicas e busca tratar da violência presente no processo histórico de colonização. Para Julio Kamêr (comunicação pessoal, 2022):

Esse é o momento e a oportunidade de nós mesmos administrarmos a gestão pedagógica, segundo a nossa visão de mundo e organização social com autonomia e afirmar que somos daquele jeito com a nossa cultura e continuar como sempre fomos e compreender o mundo segundo nossos princípios para gerenciar com eficácia a nossa educação indígena Apinajé no âmbito da interculturalidade para reconstruir e fortalecer a nossa organização social. Por isso estamos procurando meios de nos prevenir contra as fatalidades que acontecem dessa maneira: como aniquilação da sabedoria indígena. A identificação do nosso conhecimento é fundamental para nossa vivência cultural.

O povo Apinajé vive no norte do Estado do Tocantins, numa região conhecida como Bico do Papagaio e pertence ao tronco linguístico macro-jê, família jê Timbira, sendo falante da língua Apina-jé/Panhy Kaper. Há 11 escolas no território, que são divididas entre a região da Aldeia Mariazinha e da São José, para as quais o PPP foi elaborado. As escolas da região da Aldeia Mariazinha são Tekator, Kagàpxi, Kõkre, Iamkak, Pepkro. As escolas que fazem parte da escola Mãtyk são Katangaah, Kaxyware, Gôhkru, Kunitik e Katàm. O PPP busca fortalecer os conhecimentos linguísticos, sociohistóricos e culturais com base em três grandes matrizes epistêmicas: a musicalidade, a língua indígena e as histórias de origem.

Como se pode notar o próprio título do documento indica noções interessantes sobre conhecimento, relacionando-o a uma ideia de ciência, apontando para uma discussão sobre pluriepistemologia e violência epistêmica, e sobre a relação entre esta ciência e uma percepção sobre cultura. Segundo Gilberto Katan Apinajé,

a função da escola indígena atual em relação a globalização é de se trabalhar com o conhecimento das duas realidades de mundo, tanto da sociedade indígena quanto da sociedade não indígena, até porque a escola é como pátio, mas além do pátio ela participa de decisões políticas e burocráticas que envolve questões da globalização e interculturalidade (Projeto Político Pedagógico Apinajé, 2016, p. 10).

O PPP Apinajé possui em seu âmago, então, uma proposta de transformação epistêmica, já que toma como base a mitocosmologia indígena e dinâmicas centrais da organização social, para propor novas práticas pedagógicas, nova matriz curricular e novos modos de gestão das escolas em referência. Para os Apinajé, a crise mencionada é, sobretudo, um problema de convivência. Neste cenário a escola pode atuar como geradora de boas relações entre pessoas, entidades, culturas, objetos e ambiente, e deve ter respeito a organização social dualista, base da dinâmica social.

A divisão entre metades por sua vez abrange o casamento e a entrega de enfeites. Das metades Kooti e Koore, por exemplo, é realizado a organização social no enfeite e no casamento. Em termos gerais de organização social que é Katàm e Wanhmẽ (os grandes partidos para a organização social) (Projeto Político Pedagógico Apinajé, 2016, p. 14).

Outros PPPs tem como base a organização social dualista, centrada nas dinâmicas entre dois grupos sociais. No PPP Krahô (2014), proposto pela professora Creusa Prumkwyj o calendário escolar é baseado igualmente na relação entre a organização dualista, centrada em metades (Wakmej e Katàmje) e no ciclo anual de seca e chuva, interrelacionados aos grupos sociais. Assim propõe atividades ligadas às festas culturais para o período seco, coordenadas pela metade Wakmej, entre abril e setembro, e atividades em sala de aula, no período de chuva, coordenadas pela metade Katàmje, entre outubro e fevereiro.

Uma das práticas centrais nestes calendários, que se realiza em cerimônias e momentos cotidianos é me increr, a complexa musicalidade indígena. Para o professor Krahô, Gregório Huhte, “as músicas são da natureza e devem ser cantadas de maneira exata para a sustentabilidade. Aprendemos a cantar pelos pássaros, árvores, rio, céu e outras espécies, não tem música inventada. Sempre é o mesmo ritmo de cantar, dançar, pular” (Huhte, 2014).

Alguns outros PPPs seguem o mesmo processo. O PPP Gavião (2016) da Escola Indígena Crỹ’tohmre Cahohwpor da Aldeia Governador, elaborado pelo líder Jonas Polino Gavião, por exemplo, tem centro na musicalidade que é base de festas tradicionais. Para o PPP, as festas Gavião são musicais, sendo cada uma baseada em um conjunto de músicas me ẽhncre caprẽh (músicas lentas) e me ẽhncre pajpax (músicas animadas) (PPP Gavião, 2016, p. 15).

No caso Apinajé, a musicalidade enquanto conhecimento vem sendo pensada por Julio Kamêr, por meio do conceito alfabecantar, que propõe o letramento musical das crianças, já que a musicalida-de Panhy é conhecimento. Esta reflexão vem desde seu trabalho de conclusão do Curso de Educação Intercultural, intitulado “Xahtã mẽ pahte amnhĩ nhĩpêx ho hihtỳx (Sustentabilidade): relações entre queimadas e cantorias no território Apinajé” (PPP Apinajé, 2016). Neste trabalho, Júlio relaciona o conhecimento e a prática da referida musicalidade com a sustentabilidade do mundo indígena. Para ele “para se proteger o território Apinajé das queimadas e, assim, manter seus recursos naturais protegidos e garantir sua sustentabilidade, é preciso cantar as músicas tradicionais” (PPP Apinajé, 2016, p. 25), evidenciando o caráter relacional presente no pensamento indígena, que concebe domínios e elementos interligados, como em uma teia. A musicalidade Apinajé é parte do território.

A partir daí, o PPP indica:

Conhecer a sua leitura significado e importância. Algumas músicas não estão sendo mais realizadas. Com esse objeto para mostrar para os jovens para poder fortalecer. Se o ancião - e são poucos que sabem - se o jovem não tiver interesse em perguntar o que o ancião sabe não vai multiplicar. Primeiro era trazer o ancião para a escola. O cântico eu transcrevia. E líamos e entendíamos o que estava escrito. E depois treina o que está sendo falado. Antigamente não é praticado com frequência. Ensaiamos a escrita da música. Depois como se estivesse cantando e depois fomos para o pátio com os alunos. Praticar. Dentro desse período nós fom os treinando os jovens com maracá. Nesse período de 2014 dois alunos se identificaram. Aprimorou, aprendeu. Treinou no pátio. Depois a gente cortou a tora para correr (Projeto Político Pedagógico Apinajé, 2016, p. 29).

A música Apinajé não é, então, apenas um recurso pedagógico, um instrumento que auxilia a compreensão de algum outro conteúdo, ela é fundamental para a constituição dos sujeitos e para a sustentabilidade do mundo.

Ela é importante em si, o que se dá a partir de uma série de princípios. Em primeiro lugar, pode-se destacar que o uso da música em sala de aula tem como função acessar a memória coletiva do grupo. Desta forma, ela pode (re) estabelecer relações intergeracionais entre os anciãos e os jovens, já que os mais antigos são os conhecedores da teoria musical nativa e são eles que são chamados a participar destas aulas e projetos. estas musicalidades parecem registrar ou codificar um conjunto de saberes e informações que apontam para a relação de cada população com o mundo. Nestes cantos há personagens marcantes, histórias relevantes, lugares especiais, práticas e condutas adequadas, assim como percepções do universo. Em seguida deve-se notar, especialmente, que a prática pedagógica musical traz implícitas noções particulares de cada epistemologia indígena (Herbetta, 2016, p. 19).

Para o PPP os jovens devem: Ler perfeitamente em Panhy, Conhecer o repertório musical, Conhecer e praticar os rituais, Conhecer sua história e posição social, Conhecer a localização do krin e do território, Dominar a língua portuguesa, Saber se expressar em público, Ser uma pessoa crítica, Dominar a escrita, Dominar as formas de convivência tradicionais. Segundo o documento, portanto, as escolas devem ser mais musicais (Projeto Político Pedagógico Apinajé, 2016, pp. 10-11).

Neste sentido, a possibilidade de haver uma matriz curricular mais musical rompe com pressupostos etnocêntricos em relação ao currículo. A música em algumas escolas indígenas aponta, então, para o campo do que se pode chamar pedagogias decoloniais, no sentido de Walsh (2013, pp. 2-48), pois busca refundar outras possibilidades de entendimento e produção do mundo, problematizando e transformando categorias eurocêntricas convencionais.

São pedagogias que traçam caminhos para ler criticamente o mundo e intervir na reinvenção da sociedade, como apontou Freire, mas pedagogias que ao mesmo tempo avivam a desordem absoluta da descolonização ao contribuir com uma nova humanidade, como apontou Frantz Fanon (Walsh, 2013, p. 10).

O PPP Panhi Apinajé não foi finalizado no período do curso, mas estimulou a pesquisa, registro e sistematização de conhecimentos indígenas e serve atualmente de base para as discussões internas entre escola indígena e SEDUC, seguindo sua trajetória, em prol do fortalecimento da cultura, da língua e da história, componentes importantes para o processo de escolarização indígena. Por meio da relação do documento com outros agentes, os conceitos básicos da educação Panhi orientam a educação escolar indígena, estando em consonância com a comunidade, que participa do envolvimento escolar.

Neste processo comunitário no qual a escola se vincula a comunidade Apinajé, reforçando aspectos centrais da epistemologia indígena, presentes, por exemplo, na educação musical, a comunidade indígena se mobilizou sobre a situação da educação escolar indígena, fortaleceu o papel dos professores indígenas na gestão da escola, realizou pesquisas sobre temas centrais na cosmovisão indígena, como me increr, e produziu material didático para as novas práticas pedagógicas. O PPP orientou, ainda, lideranças e docentes no sentido de problematizarem a educação escolar que estava sendo oferecida, e, simultaneamente, refletissem sobre qual educação escolar queriam. Para Júlio Kamêr “este é o ponto crucial a ser pensado para conduzir essa perspectiva na formação social do ser Panhĩ/Apinajé, contemplando a cosmovisão de sua ciência, o modo de como as coisas são. Só assim começa a ter sentido a educação que queremos” (Kamêr, 2012).

Processos de mobilização e agenciamentos

Os processos estabelecidos por meio das atividades do curso de especialização, na universidade e nas comunidades, buscaram (re)conectar uma série de relações entre distintos agentes: docentes indígenas, documentos, comunidade escolar, lideranças indígenas, outros membros da comunidade, servidores das Secretarias de Educação (SEDUC) e professores da universidade. Normalmente, tais relações são entendidas como distantes.

Em um seminário do curso:

A Professora Rita Potiguara afirmou que existe dificuldade com relação à participação dos membros da comunidade na elaboração do projeto, mas que há também uma dificuldade maior com os sistemas de ensino pertencentes às redes municipal e estadual, pois o projeto é criado não só para o educador, mas para o gestor, líderes da comunidade e todos os membros. Há a secretaria de educação que deve receber esses PPPs e acompanhar as escolas na implementação dos mesmos. Os PPPs vão garantir a autonomia dos indígenas conforme as leis, decretos e portarias que regem a educação escolar indígena específica e diferenciada. Mais do que isso, atendem às demandas comunitárias. É a partir do projeto político apresentado pelas escolas indígenas que há o reconhecimento e a regularização dessas escolas (Relatório Especialização, 2015, p. 12).

A vinculação comunitária entre universidade e comunidade indígena, por exemplo, é entendida como ruim, principalmente pela comunidade, assim como a escola indígena muitas vezes é vista como desconectada das demandas territoriais. Para Eunice Pirkodi, “a gente vê sempre, muitas das coisas, e o quanto o estado, o quanto as universidades, às vezes não têm conseguido nos contemplar” (Pirkodi, 2022). Fazer com que o PPP da escola seja a “cara do povo da comunidade indígena”, como mencionado, é um desafio e ao mesmo tempo um grande desejo, pois a escola é imposta dentro da comunidade, pressionando, igualmente, o uso da escrita, que vem de fora, mas, ao mesmo tempo, é tão necessária como ferramenta poderosa na luta por direitos.

Desta forma, o próprio movimento de envolver as pessoas, como visto no PPP Apinajé, mobilizar a comunidade, realizar as reuniões, as assembleias, desenvolver pesquisas com base na revalorização dos saberes dos mais velhos, fortalecer valores comunitários são tão importantes quanto a própria finalização do documento, e, também, quanto a própria operacionalização burocrática dos documentos, via secretarias de educação.

Como mencionado o resultado das duas turmas do curso de especialização gerou documentos em distintos níveis de finalização. Todos eles, entretanto, geraram processos de agenciamentos muito importantes, reaproximando agentes fundamentais. Nota-se igualmente uma dificuldade grande em as secretarias de educação entenderem e oficializarem transformações estruturais propostas nos documentos.

O Projeto Político Pedagógico Tapuia vinculado a Escola Estadual Indígena Cacique José Borges, é muito interessante, dentre outras coisas, também, no que se refere a seu processo de coconstrução comunitária/universitária. Ele teve por finalidade propor um projeto de escola indígena que atendia às demandas educacionais da comunidade Tapuia do Carretão, considerando sua realidade socio-cultural, sociolinguística e ambiental. A comunidade Tapuia do Carretão tem sua história iniciada no século XVIII, durante o processo histórico de colonização da então Província de Goiás, no decorrer das políticas de construção de aldeamentos indígenas, os quais desterritorializavam populações originárias diversas e as reuniam em um mesmo espaço, gerenciado pela Coroa portuguesa.

O povo indígena Tapuia do Carretão é um povo que se originou, portanto, da relação entre distintos povos que foram aldeados e desde sempre precisou lutar pelo seu território, pela sua identidade e pela sua língua. A escola foi fruto da luta política do grupo, que logo após ter parte do seu território retomado, viram aumentar a violência contra seus estudantes por parte dos filhos dos exposseiros, que utilizavam o mesmo transporte da prefeitura de Rubiataba para chegarem até a escola do distrito que os atendia. Por conta desta situação conflituosa, começaram a lutar por uma escola dentro da comunidade. Foram escolhidos como professores, então, os estudantes que estavam finalizando o ensino médio e, portanto, precisavam de formação para uma escola de qualidade, que valorizasse a cultura e a identidade do povo.

Nesse momento elaborou-se um primeiro PPP, que não contou, entretanto, com a participação ativa da comunidade. O primeiro PPP que foi baseado no modelo das escolas não indígenas, seguia os referenciais das secretarias de educação existentes. Nada precisava ser transformado estruturalmente, simultaneamente reproduzia-se dinâmicas coloniais existentes.

Nós tínhamos o PPP que foi construído quando a escola também foi construída e esse PPP foi feito com a comunidade? Se a gente for ver a fala, realmente foi. Foi construído com a comunidade, com os professores, com as lideranças. Porém, esses professores e essas lideranças, que construíram esse PPP, na verdade, não participaram ativamente da construção, porque não tinham conhecimento do que era realmente um PPP, o que precisava ali estar contemplado, porque a escola ainda estava em formação (Pirkodi, 2022).

A participação ativa mudou depois que alguns professores indígenas participaram do curso de especialização.

Esses professores, que tinham acabado de sair do ensino médio, que estavam participando da construção desse primeiro PPP, não tinham conhecimento do que era realmente um PPP. Esse curso da especialização propôs isso, a construção desse PPP intercultural, que levasse em consideração os saberes tradicionais, a demanda da comunidade, que fosse construído coletivamente com a comunida-de, o que fortaleceu muito e veio muito ao encontro com o que a comunidade desejava. Mas mais que isso, deu a oportunidade de que esses professores e de que essa comunidade se voltasse para si e buscasse dentro da própria comunidade a sua forma de fazer e de construir e de transmitir conhecimento (Pirkodi, 2022).

A educação escolar na comunidade Tapuia do Carretão é, assim, um projeto político emancipatório, cujos eixos sustentadores são: diversidade e sustentabilidade. A missão da escola, segundo o PPP, é:

Ter conhecimento para poder analisar criticamente. Ter conhecimento para poder se posicionar. Ter conhecimento para ir atrás daquilo que está nos diminuindo. Essa também é outra importante missão da escola e que precisa, deve estar contemplada nos PPPs. É isso. Essa também é uma missão da escola. Conhecer a legislação também está lá inserido no PPP, porque a comunidade quis (Pirkodi, 2022).

Todo o processo de mobilização e elaboração do documento foi em si importante para a população tomar consciência de questões próprias, da situação política de colonialidade e dos direitos indígenas conquistados, assim como de questões identitárias importantes para a mobilização. Tal afirmação se aproxima do que Freire, já dissera. Segundo ele: “é preciso que (o sujeito) seja capaz de, estando no mundo, saber-se nele. Saber que, se a forma pela qual está no mundo condiciona sua consciência deste estar, é capaz sem dúvida, de ter consciência desta consciência condicionada” (Freire, 1983, p. 7).

Neste sentido houve uma reapropriação da escola, de um objeto imposto de fora que pode ser, então, estratégia de luta. Pode, inclusive, ser usada para fortalecer as demandas de cada população.

Foi muito trabalhoso, porque, como eu disse, dada a formação sócio-histórica do povo indígena Tapuia do Carretão, precisava-se levar em consideração as diferenças intraculturais, porque o povo indígena Tapuia do Carretão é um povo indígena que nasceu de vários povos. Então, tem coisas que há muitas diferenças de um tronco para o outro. Tem coisas que um tronco faz de uma maneira e o outro tronco faz de outra maneira. Logo, esse PPP precisava levar em consideração essas diferenças intraculturais e também as diferenças interculturais. A maneira de ser nossa, aqui dentro, e a maneira de ser de fora (Pirkodi, 2022).

O documento precisou dar atenção para a complexidade do processo de formação histórica Tapuia, assim como para sua organização social, baseada em troncos, cada qual, como mencionado, com suas particularidades culturais. Ao mesmo tempo, precisou tomar em conta as demandas relacionadas aos conhecimentos universalizados. Por fim, o PPP afirma e ressalta a formação de um cidadão crítico, que tenha consciência dos processos históricos e políticos subjacentes a situação contemporânea indígena. Para Eunice,

a escola indígena Tapuia do Carretão, o que ela quer é formar cidadãos Tapuias conscientes, capazes de analisar criticamente os dois mundos, o mundo tapuia e o mundo universal. É saber transitar. Saber que há coisas que ela vai ser diferente, que ela vai pensar diferente, vai fazer diferente, mas que esse diferente não é ser menos. É apenas ser diferente. Isso é a interculturalidade e isso está contemplado no nosso PPP (Pirkodi, 2022).

O documento elaborado questiona, assim, e enfrenta o eurocentrismo presente nas políticas educativas governamentais convencionais, pautadas na valorização única dos saberes ditos universais, imputando menor valor aos saberes locais, ao propor e ter como base, investigações sobre os conhecimentos Tapuia, que passaram a ser registrados na escrita, sendo também base de material didático. Para Eunice,

nossos saberes também são ciência. De início, quando começamos as aulas, a comunidade queria muito que os saberes tradicionais fossem ensinados nas escolas e as aulas tinham duração de 45 minutos. O que fazer com 45 minutos? Uma peneira? Buscar algo na mata? Não dava. Então, trabalhar com o tempo foi algo que nós precisamos discutir, foi algo que nós precisamos adequar. Como é o tempo do Tapuia e como é o tempo de fora? E como é o tempo da escola? O que a lei permite que a gente possa fazer? (Pirkodi, 2022)

Atualmente vive-se ademais uma situação interessante, pois apesar de o documento estar burocraticamente pronto, sendo operacionalizado na referida escola, há uma percepção de que o PPP não possui propriamente fim, já que deve ser regularmente discutido. Há assim uma ideia da dinamicidade do processo em comentário, que passa pela elaboração de um documento chave para a gestão escolar indígena, mas que em si, é importante para a mobilização política do grupo. Mobilização que deve seguir ativa e efetiva. Nesta direção para a Professora Valdirene Karajá, em seminário de curso de especialização, “não se pode terminar o PPP e cruzar os braços. A luta vem depois, pois é preciso o estado aceitar e agir a favor da proposta indígena (Relatório Especialização, 2015, p. 9).

A comunidade se diz satisfeita com o resultado de coconstrução do segundo PPP, porque se sentiu contemplada e valorizada. Agora, sim, a comunidade foi participativa, porque tem consciência da situação política e histórica contemporânea.

Hoje, qualquer pai, qualquer aluno pode cobrar, porque ele vai dizer “isso está no PPP”, porque ele participou, ele ajudou a construir. Então, é por isso que eu também digo que o que a comunidade quer que os nossos alunos saiam quando eles terminarem, ao final do ensino médio, que ele saia da escola para ir para cursar a universidade, para ir trabalhar, é que ele saia um cidadão tapuia consciente. É que ele saiba analisar criticamente o mundo indígena e não indígena, é isso, porque se você tiver conhecimento das leis, se você tem conhecimento do que é você e do que é o outro, você pode correr atrás dos seus direitos (Pirkodi, 2022).

Considerações: esticando e entrelaçando no campo da educação escolar indígena

Como observado, o PPP proposto no Núcleo Takinahaky, por meio do curso de especialização, baseado em coconstrução comunitária e universitária, com foco em demandas territoriais e com uma política linguística adequada aos contextos socioculturais particulares, se mostrou importante para a transformação de escolas indígenas, em direção ao que diz a legislação e a mobilização do movimento indígena, especialmente no que se refere ao respeito aos conhecimentos indígenas, duramente atacados na escolarização integracionista anterior. Ao mesmo tempo foi importante para reconectar agentes deste mesmo processo.

Construir projetos políticos pedagógicos interculturais implica romper com a epistemologia totalitária linear, verticalizada e assimilacionista, pautada na transmissão de informações a partir de um olhar monocultural e construir um diálogo a partir de um olhar excedente, fundado na epistemologia solidária de respeito à condição humana, reconhecendo o outro enquanto produtor de conhecimento (PP do curso Especialização, 2014, p. 1).

Os novos PPPs elaborados apontam para boa participação comunitária e indicam efetivamente novas concepções acerca da educação, novas metodologias e dinâmicas pedagógicas. A música, o sonho, a caçada, a língua materna, o rio, o cerrado, as narrativas orais, por exemplo, podem ser espaços epistêmicos de aprendizagem. A dinâmica disciplinar pode ser problematizada e o calendario socionatural de cada população pode passar a ser respeitado. Ademais emergem novas bases epistêmicas, que apresentam outras categorias de entendimento de mundo, como alfabecantar e esticar.

As reflexões feitas e os conhecimentos produzidos durante o curso de Especialização, uma experiência inédita de articulação de saberes na qual emerge um novo repertório conceitual para se pensar a escola indígena, forneceram as bases políticas e pedagógicas para a construção da proposta do curso de mestrado em Educação Intercultural e Transdisciplinar, em andamento na UFG (Socorro et al., 2019, p.13).

Isto ocorre pois estes documentos apresentam propostas pautadas em outras epistemologias e relações sociais, como a organização social dualista de alguns povos indígenas, como os Krahô e Apinajé, que se entendem em metades, possuindo um calendário anual baseado nas dinâmicas entre elas e suas variações, como também o sistema de troncos Tapuia, base da referida organização social, assim como toma como base outros regimes de conhecimento, reconhecendo, por exemplo, que a musicalidade de alguns povos indígenas é fundante para a formação dos sujeitos, como nos Apinajé e nos Gavião, pois expressam categorias e relações importantes para o entendimento de mundo.

Neste sentido os PPPs mudam o eixo principal dos documentos e da gestão da educação escolar indígena, pois sem abandonar os conhecimentos ditos universais, tomam como base conteúdos epistemológicos, ontológicos e axiológicos comunitários. A proposição é realmente de uma escola comunitária, desde uma perspectiva epistemológica e política. Para Txiarawa Karajá, “por isso que a escola é uma parceira da comunidade, é ali onde guardamos os conhecimentos dos anciãos e anciãs e serve para registrar nossos saberes, nossos conhecimentos, como a história, mitos e outros” (Relatório Especialização, 2013, p. 18).

Note-se que falar de música e saber cantar, então, pode ser garantir a sustentabilidade do mundo, aprender a cantar sendo algo próximo da educação ambiental no modelo eurocentrado. Nesta direção, a ideia não é afirmar e reificar práticas classificadas enquanto tradicionais e eliminar condutas ditas não-indígenas. A dinâmica proposta é a de rearticulação de saberes, realizada com base nos saberes indígenas, mas que leve em consideração outros modos de se pensar e produzir o mundo, no mesmo sentido, como postula Luciano Baniwa quando fala do manejo de mundos da escola Baniwa (2014).

Deve-se lembrar então que se trata de um rearranjo entre os conhecimentos, já que nem tudo pode ir para a escola. Além disso, a natureza complexa da educação intercultural pede, cada vez mais, referências capazes de reconhecer os conhecimentos construídos em outras lógicas, em outras matrizes, com outros registros. São os saberes pertencentes ao mundo da oralidade. Muitos deles perdem substância quando transferidos para a escrita. Ou seja, eles não precisam da escrita alfabética para sobreviver, nem tão pouco da qualificação científica para validálos. Seu verdadeiro registro se dá no fazer, no movimentar e na transmissão de geração a geração. Revelam conexões governadas por outras racionalidades (Socorro e Herbetta, 2018, p.13).

Note-se, também, que o processo de elaboração e consequentemente, de institucionalização do documento, apresentou amarras coloniais que dificultam e travam as transformações estruturais como o uso de outros calendários, práticas pedagógicas, espaços de aprendizagem, modos de gestão e avaliação e o uso de distintas categorias de conhecimento. Tais embates se dão desde, às vezes, em conflitos intracomunitários, até como, muitas vezes, na aceitação por parte da instituição de proposições que possuem como base outras epistemologias. É tão difícil para algumas pessoas da comunidade entenderem que a escola pode ser diferente da imposta desde décadas, quanto para as secretarias de educação perceberem que acessar a musicalidade indígena, por exemplo, é falar de sustentabilidade.

Este processo é, portanto, também eminentemente político, pois problematiza dinâmicas da colonialidade, sendo em si uma alternativa concreta a uma escola colonizada que serve de estratégia integracionista. Os PPPs passam a ser, então, estratégias de controle cultural, no sentido de Bonfil Batalla, para a valorização de língua e cultura, percebidos como fundamentais para a autonomia, o bemestar e a dignidade das pessoas.

A questão inevitável é: como chegamos ao ponto em que nos encontramos? Torna-se claro que a esquizofrenia em torno do debate sobre a cultura nacional é a expressão atual de um longo processo histórico, cuja origem reside na instalação do regime colonial há quase 500 anos. A partir desse momento, um sistema de controle cultural foi posto em prática, limitando as capacidades de decisão dos povos colonizados e lhes tirando o controle sobre muitos dos seus elementos culturais que, em dado momento, eram de interesse para a sociedade dominante (Bonfil Batalla, 2019, p. 153).

A materialidade do documento é, portanto, essencial pois tem base em pesquisa, registro e sistematização de outros conhecimentos, e no papel, indica outras práticas e culturas escolares. Muitas vezes, inclusive, o documento é acionado pela comunidade por meio da afirmação: “Está no PPP”, legitimando outras práticas pedagógicas, presentes na pesca, na caçada, na cantoria, por exemplo. Nestes casos, normalmente, há uma resistência institucional à inovação pedagógica.

A partir das matrizes específicas do Curso de Licenciatura Intercultural de Formação Superior de Professores Indígenas, os alunos deparamse com o desafio de construir junto com seu Comitê Orientador, composto por professores do curso e por sábios/sábias das comunidades indígenas, bases de conhecimento que indiquem reais possibilidades de como fazer educação baseada na autonomia e na emancipação da diversidade intelectual indígena (Programa Seminário da Especialização, 2012, p. 1).

Da mesma forma, o objeto em si, o PPP, é também processo. É por meio de um amplo processo de mobilização, que conecta lideranças, professores, pessoas indígenas e não indígenas, a escola e a comunidade, o território, a universidade e a Secretaria de Educação, que se gera consciência sociopolítica, se aciona regimes identitários, e se produz novas categorias, reafirmando e apropriando conquistas históricas, como a prevista no artigo 210 da Constituição federal, como mencionado. Ademais se fortalecem valores comunitários e a noção de coletivo, no sentido de “comunalidad”, do intelectual indígena mixe, Floriberto Diaz Gomes. Para o autor, a noção de comunalidad,

expressa princípios e verdades universais em relação à sociedade indígena, que devem ser entendidos desde o início, não como algo oposto, mas como diferente da sociedade ocidental. Para compreender cada um de seus elementos, certas noções devem ser levadas em consideração: o comunitário, o coletivo, o complementar e o integral. Sem ter em mente o significado comum e integral de cada parte que tentamos compreender e explicar, nosso conhecimento será sempre limitado (Hernández e Jimánez, 2014, p. 36).

O PPP não é, portanto, apenas a materialidade do documento, que toma como base outras epistemologias, mas também, simultaneamente, processo de mobilização, que relaciona pessoas, objetos e espaços. Ele é, assim, agente, já que estabelece conexões entre diversos elementos, formando uma rede de atuação, como afirma Latour, por meio da teoria atorrede, na qual sujeitos e objetos, em relação, agenciam situações. O autor dá especial atenção à potencialidade de redes constituídas por sujeitos e objetos, nas quais a agência se distribui pelos elementos. Com Latour, entretanto, está ainda presente, mesmo que diminuída, a dicotomia sujeito e objeto, o objeto -PPP- fazendo parte da cadeia de relações que constituem uma rede, que sustenta a produção dos documentos e das situações em referência. Simultaneamente, quando coloca o foco nas relações e conexões, deixa de lado o movimento, a criação imprevisível e fluída do processo em tela.

As situações sociopolíticas em referência aos PPPs estão em movimento o tempo todo, e a isto se subentende uma dinâmica que ultrapasse tempo, espaço e instituições monoculturais (Almeida et al., 2020, p. 35). Seja na apropriação comunitária da escola, nas atividades de pesquisa, na mobilização política, nas etapas de estudo na Universidade Federal de Goiás, o PPP nunca está realmente fechado, como manifesto no processo do PPP Tapuia. O processo do PPP não tem, propriamente, fim.

Ademais, se a proposta do Curso Especialização: Educação Intercultural e Transdisciplinar: gestão pedagógica, foi especialmente a de problematizar aspectos e categorias de uma matriz eurocêntrica, de outro modo não sendo possível refletir profundamente sobre os processos epistemológicos e políticos, os PPPs em referência são mais do que meros objetos, aos quais se imputa agência. Eles fazem parte de um sistema aberto e em movimento que gera novas situações no entrelaçamento dos agentes, de maneira criativa e em movimento.

Este cenário é mais próximo do que afirma Ingold quando postula que o mundo é constituído por coisas entrelaçadas e não objetos com agência (Ingold, 2012). Ele faz, assim, uma crítica ao campo de estudos da cultura material, problematizando noções como objeto e agência. Para o autor, não há objetos, “quando eu falo em um emaranhado de coisas, é num sentido preciso e literal: não uma rede de conexões, mas uma malha de linhas entrelaçadas de crescimento e movimento (Ingold, 2012, p. 27). Neste sentido, o PPP participa de um emaranhado de ações e relações que gera criação, transformação e movimento, entre pessoas, documentos e territórios.

Assim concebida, a coisa tem o caráter não de uma entidade fechada para o exterior, que se situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos fios constituintes, longe de estarem nele contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente em torno delas (Ingold, 2012, p. 29).

A complexidade presente neste movimento de entrelaçamento de linhas entre domínios da vida, em detrimento de uma epistemologia eurocêntrica que tende a reproduzir dicotomias eurocentradas, aparece também na noção de esticar. O verbo esticar é usado por muitos intelectuais indígenas do Núcleo Takinahaky. Ele aponta para a ação de entrelaçamento entre domínios, para a complexidade das situações e pela ideia da vida presente nos elementos e linhas em movimento, como quando o intelectual Kamêr entende sustentabilidade, por meio da musicalidade indígena. Para estes intelectuais a escola pode ser viva, quando ela está no movimento da cultura indígena, desvelando uma característica de epistemologias originárias (Herbetta, 2013).

O verbo esticar, portanto, traz à tona uma dinâmica em fluxo, que tem relação com a noção de movimento e parece ser o operador da ação política em referência, a qual foi a base da proposta do projeto do curso de especialização, se afastando sobremaneira das propostas eurocentradas. Esticar, no cenário, é, portanto, entrelaçar, em movimento constante, “são linhas ao longo das quais as coisas são continuamente formadas” (Herbetta, 2013, p. 27). Os PPPs, como já mencionado, não têm fim, e a cada momento podem construir e (re) construir novas situações.

O título deste texto, portanto, “Por onde andam os PPPs” não é apenas figura de linguagem, indica concretamente ação realizada na malha entremeada de pessoas, objetos, lugares, em fluxo de transformação. Os documentos, desde suas origens, ao permanecerem andando nos últimos 10 anos, seguem dando ritmos diversos a este movimento político, que se retroalimenta e segue continuamente (re) constituindo cenários. Como desejava a saudosa professora Maria do Socorro Pimentel, os PPPs Apinajé, Krahô, Tapuia, Gavião, Xambioá, Xerente, Javaé, Xavante e Tapirapé seguem seus caminhos, vivos, remodelando trajetórias, entrelaçando pessoas, coisas e lugares, propondo e construindo novas possibilidades para a educação escolar indígena no país.

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Recebido: 21 de Março de 2023; Aceito: 19 de Junho de 2023

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