Eduardo F. Coutinho no livro: Literatura comparada na América Latina, ao desenvolver uma reflexão teórica do sentido e função da literatura comparada1 como método, determina várias categorias: as chamadas “esferas do conhecimento”; os analises dos “modelos forâneos” para interpretar as questões históricas, políticas e sociais que definiram a literatura na América Latina; o conceito “transculturación” que é fundamental para compreender os processos sociais, políticos, económicos e históricos e sua relação com a literatura; o “processo de apropriação que realiza a chamada Literatura Latino-Americana” que forma um “traço de singularidade”, o que representa uma “mestiçagem étnica e cultural”; a definição da “dinâmica de um sistema” e da “tradição cultural” de um continente;2 o conceito de “heterogeneidade das literaturas nacionais” em relação com as culturas indígenas que formam parte da história das sociedades latino-americanas e o que é definido como: “O segundo nível de interação, a relação entre as literaturas nacionais no interior da América Latina” (Coutinho 2003, 25). Todos esses elementos determinam os pontos de encontro e diferenciação nos processos narrativos desenvolvidos na América Latina no transcorrer do tempo,3 mas, como é que podem dialogar com as diversas formas de representação narrativa nos países que conformam o continente Latino-americano?
Como é que pode ser entendida e compreendida a relação cultural, histórica, social e política do Brasil com os países Latino-americanos? Um dos aspectos mais importantes da pesquisa desenvolvida por Eduardo F. Coutinho estabelece um ponto de encontro e comparação entre o que o autor define como: “esfera, sentido e realidade das diversas expressões da literatura” (Coutinho 2003). O encontro e o diálogo que pode ser estabelecido entre as diversas esferas da realidade podem ser entendidos a partir dos processos literários e da interpretação que se apresenta na literatura como uma forma de explicar os fatos reais a partir da ficção que, no texto literário ou na expressão literária, se torna uma esfera da interpretação que o romancista ou o poeta transfigura a partir da sua imaginação.
Nesse sentido Antônio Candido na sua obra: Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos) e Afrânio Coutinho no livro: Conceito de Literatura Brasileira definem a interpretação das “esferas da realidade” a partir das categorias que desenvolvem em relação à literatura. Antônio Candido e Afrânio Coutinho coincidem em assinalar que, no caso de Candido, a literatura forma parte de um sistema onde os “produtores literários”, “o público” e “a língua”, estabelecem um “sistema de comunicação inter-humana” (Antônio Candido 1959)4 no qual a literatura tem uma função, que é interpretar a realidade a partir da consciência do romancista ou do poeta.
O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece, sob este ângulo, como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elemento de contato entre os homens, e de interpretação de diferentes esferas da realidade. (Candido 1959, 17).
O que é definido como uma “interpretação da realidade” segundo o autor é a maneira pela qual o poeta, ou o romancista, consegue entender e compreender a realidade que é transfigurada na obra dele. Nessa transfiguração a natureza, as questões sócias e políticas, a história e a imagem da nação representada ficam envolvidas com o que Antônio Candido define como “sistema literário” o que faz parte de cada projeto nacional nos países Latino-americanos. Em relação com isso, no caso das reflexões desenvolvidas por Afrânio Coutinho, a literatura é um fenômeno social, histórico e político que se apropria da realidade a partir da interpretação que estabelece com a maneira de entender e interpretar o mundo histórico, social, político e geográfico, conformando dessa maneira uma “alma” que caracteriza essa realidade e porem a transcende.5
Mas do que a língua, simples instrumento, o que importa à definição, à caraterização, é a experiência humana que ela transmite, é o sentimento, é a visão da realidade, todo aquilo do que a literatura não é mais do que a transfiguração, mercê de artifícios artísticos. E quando essa realidade, essa experiência, esse sentimento, são novos, a literatura que os exprime tem que ser nova, outra, diferente. (Coutinho S/D, 14).
No documento citado Afrânio Coutinho expõe três pontos importantes: primeiro que a ideia de que a originalidade faz parte de qualquer processo de interpretação a partir da literatura; segundo que nesse artifício se define um espírito que da identidade ao processo de criação e terceiro, que a descrição das questões sociais que estão envolvidas no processo da escrita, definem um sentido particular daquilo que é representado nas diversas expressões literárias.
Porém a linguagem, para os dois críticos, é uma ferramenta que forma uma identidade a partir do processo de formação de uma literatura, na qual à maneira de perceber o mundo, e de criar uma ficção narrativa ou poética, estabelece uma forma de entender as chamadas “esferas da realidade” que Eduardo F. Coutinho coloca como parte fundamental no processo metodológico para comparar as diversas expressões literárias.
As chamadas “esferas da realidade”, na expressão literária, são a conjunção histórica, social e política, representadas na ficção que o romancista desenvolve ao transfigurar a realidade6 a partir da palavra, nesse sentido o artista, que pode ser o romancista ou o poeta, estabelece o que podemos entender como uma espécie de pacto com os fatos que se transformam a partir da palavra escrita no romance, na prosa ou no poema. Agora, como é possível estabelecer um diálogo entre as esferas da realidade representadas nas diversas expressões literárias na América Latina? É possível pensar naquilo na poesia do século XIX no Brasil? Da mesma maneira que Eduardo F. Coutinho, Hans Georg-Gadamer no seu ensaio: “Poema e diálogo. Reflexões sobre um extrato textual de Ernst Meier (1988)”7 define duas esferas no processo de interpretação literária: o “poema” e o “diálogo”. O poema, para Gadamer, representa o enunciado da realidade que se forma a partir de um tecido de palavras que são transfiguradas pelo homem ou poeta; e o diálogo8 é uma forma de viver da linguagem no processo ou ato de comunicação que, da mesma maneira que no poema, estabelece um tecido que percorre a história da sua própria formação. Ambos, em concordância com Gadamer, estabelecem um ponto de encontro e “diálogo” ao ser parte de uma “atualização de sentido” o que é um encontro entre a literatura que faz parte do processo de criação artística da linguagem e do diálogo, que forma parte do instante ou do tempo no qual é desenvolvido esse processo.
Poema e diálogo são casos extremos no interior do grande âmbito das formas da linguagem. O primeiro, o poema, é um enunciado. Que outra coisa no mundo se mostra tanto como um enunciado quanto o poema - um enunciado que fala como nenhum outro em favor de si mesmo, mesmo sem um selo jurídico. Em contrapartida o diálogo é aquilo por meio do que a linguagem vive propriamente em quanto linguagem e no que ela percorre toda a história da sua formação. É somente pelo fato de os homens falarem uns com outros que há linguagem. Todavia a linguagem não aparece aqui como um material dado, palpável. Quando um diálogo se preenche com sentido ou mesmo quando ele perde o seu sentido, o que vem ao encontro da linguagem não é outra coisa senão atualização de sentido. (Gadamer 2010, 380-381).
A interpretação das esferas da realidade na literatura comparada e os conceitos: poema e diálogo desenvolvidos por Gadamer tem uma relação estreita e forte com os processos de formação de uma literatura latino-americana e com dois conceitos para compreender isso: a “Missão do romancista” e a “Missão do poeta” na literatura do século XIX. A “Missão do romancista” é um conceito desenvolvido por Jorge Ruedas de la Serna no livro: La misión del escritor. Ensayos mexicanos del siglo XIX e por Afrânio Coutinho no texto: Caminhos do pensamento crítico. Volume 1. No prólogo da obra: La misión del escritor, Jorge Ruedas define os seguintes pontos para compreender o que é a missão do romancista mexicano nos projetos nacionais do século XIX: a) o processo de “autorreflexão” do romancista em relação com a sociedade; b) a ideia da “utilidade” da literatura para melhorar os costumes e robustecer a moral pública; c) a revalorização do patrimônio geográfico e cultural e d) o fortalecimento da consciência nacional. No caso de Afrânio Coutinho na “Introdução geral. A crítica literária no Brasil” do livro: Caminhos do pensamento crítico, o autor define pontos específicos para compreender qual é a missão do romancista no caso brasileiro. O primeiro aspecto é a ideia de formar um caráter que configure uma identidade e, porém, essa configuração precisa ter as seguintes caraterísticas no processo da escrita: a ideia de uma natureza nacional; o indígena como elemento diferenciador; a descrição dos aspectos sociais; o sentimento íntimo para distinguir a essência ou o espírito de uma sociedade ou de um indivíduo (o artista), “os tipos nacionais e o seu comportamento na diferenciação literária”, a criação de uma língua e sua originalidade para expressar a “alma brasileira”, a busca de uma síntese da nacionalidade expressada na literatura a partir da definição de assuntos de caráter histórico, social, popular, nativo e paisagístico que definem uma nova civilização e que “apreendam a realidade” a partir da criação literária.9
O romancista, em concordância com Ruedas de la Serna, tem como missão particular desenvolver uma literatura útil para a sociedade, na qual se mostre os costumes que definem a identidade dos cidadãos e a moral pública de uma nova sociedade independente, e como parte fundamental, a revalorização do chamado patrimônio geográfico e cultural, representa o reconhecimento e a valorização das culturas indígenas e da natureza física que é definida como “patrimônio geográfico” por Jorge Ruedas de la Serna e no caso de Afrânio Coutinho, além de todos os elementos que estabelecem um diálogo com as categorias que Jorge de la Serna desenvolve na sua analises em relação com os projetos literários, a questão da língua é fundamental para diferenciar a expressão da “alma brasileira” nas diversas manifestações artísticas, de forma particular, na poesia a partir do que o autor define como o “sentimento íntimo”.
O romancista no século XIX transfigura a realidade para desenvolver um projeto nacional e uma identidade a partir da literatura, com um compromisso social e político que permite compreender essa “autorreflexão” (Ruedas de la Serna 2014) no processo da criação literária. Nesse sentido, da mesma maneira que o romancista, o poeta no século XIX também tem uma missão fundamental: cantar e exaltar o valor dos heróis e do que é definido como uma natureza na América Latina. Raúl Porras Barrenechea no seu ensaio “Palma romântico”,10 desenvolve uma pesquisa em relação a Ricardo Palma11 como poeta romântico ao fazer uma reflexão da carta que o romancista escreve a Guillermo Matta. De forma particular na carta citada Ricardo Palma define o seguinte:
Os seus versos meu amigo lembram-me o dever que nós temos com a nossa América aqueles que fomos favorecidos por Deus com o sentimento e a inspiração do poeta. Abençoemos a misteriosa e harmoniosa linguagem da poesia que não só serve para derramar uma gota de consolação docíssima na bile de todas as amarguras, senão que é arma nas horas de luta e transição podemos empregar para uniformar as ideias do povo. (Palma 1952, 13-75).
O poeta usa a linguagem como um canto para exaltar e valorar aquilo que Jorge Ruedas de la Serna define como o “patrimônio geográfico”, a chamada América como entidade espiritual de uma nova cidadania, que precisa ser valorada e exaltada a partir da palavra do poeta, que, segundo Afrânio Coutinho, define as caraterísticas sócias, políticas e históricas do “sentimento íntimo” de uma nação, na qual, a linguagem é ferramenta e arma nas horas de luta, no que podemos definir como a “missão do poeta” que, da mesma maneira que o romancista, exalta valores morais, éticos, civis e espirituais na formação de uma literatura e uma poesia no século XIX.
Agora é pertinente voltar nas seguintes questões: Como é que podem dialogar as diversas formas de representação narrativa nos países que conformam o continente Latino-americano? Como é que pode ser entendida e compreendida a relação cultural, histórica, social e política do Brasil com os países Latino-americanos? Domício Proença Filho na “Apresentação” do texto: A poesia dos inconfidentes faz várias reflexões importantes ao descrever o sentido da poesia na formação de uma identidade nacional no século XVIII e XIX. Primeiro o fato de que os poetas da denominada “Inconfidência Mineira”,12 se tornam “os senhores do verbo” (Proença Filho 1996) pelo fato de utilizar a poesia como uma ferramenta e um arma política e segundo porque a través da poesia se desenvolve um “imaginário social” (Proença Filho 1996) da realidade que é transfigurada a partir da linguagem e da poesia como um elemento para determinar qual é a função do poeta numa pátria recentemente nascida. De igual forma José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos, Marcello Basile (2014), no seu livro: Guerra literária. Panfletos da Independência (1820-1823)13 coincidem em que a palavra, nas diversas manifestações literárias como podem ser os panfletos ou a poesia, é fundamental para exprimir as ideias políticas e estéticas. De maneira particular o capítulo chamado: “Cartas como arma da guerra literária” define a função da palavra e das expressões narrativas que se dão a partir dela como uma ferramenta. No volume quatro titulado: Poesias, Relatos, Cisplatinas, os pesquisadores colocam as diversas manifestações poéticas dos artistas que utilizam a poesia como uma arma para expor os ideais políticos; e a língua, porém, é uma ferramenta que o poeta utiliza para mostrar seu compromisso político com a maneira de interpretar o contexto social brasileiro no século XIX. Em afinidade com essa reflexão histórica da função e o sentido da poesia e da missão do poeta Castro Alves14 nas suas obras: Espumas flutuantes15 e Os escravos desenvolve toda uma conjunção poética e política em diversas poesias. Particularmente os poemas: “O livro e a América”, “Quem dá aos pobres empresta a Deus” e “Ao dous de julho” de Espumas flutuantes e o poema “O século” de Os escravos, definem essa relação entre a missão do poeta e o nexo dos heróis latino-americanos na proposta poética dele. Em relação com isso Gadamer ao refletir sobre o poema e sua relação com o diálogo, estabelece um ponto importante: o vínculo da linguagem artística da poesia com a prosa a partir dessa ideia que determina um “tecido” (Gadamer 2010) ou trama onde a linguagem dialoga com as diversas manifestações práticas do que Gadamer define como diálogo e como poesia. Um exemplo desse tecido que se apresenta na relação entre o “diálogo” e o “poema”, se dá na obra de José de Alencar: Cartas a Confederação dos Tamoios. Na edição fac-similar feita por Maria Eunice Moreira e Luís Bueno da Universidade Federal do Paraná,16 os autores colocam a obra poética de Gonçalves de Magalhães e as cartas que José de Alencar escreveu criticando a obra dele. A partir desses documentos é possível compreender a relação entre a prosa das cartas e a crítica que faz do poema de Gonçalves Magalhães desenvolvendo um diálogo entre a narrativa de Alencar e a poesia de Magalhães o que dá como resulta uma proposta poética brasileira complexa que Alencar desenvolve a partir desse tecido e dessa crítica a partir do diálogo entre o poema e a prosa:17 “Como não escrevo um juízo crítico, mas sim as ideias que me produziu a leitura do livro, irei fazendo as minhas reflexões pela mesma ordem em que o meu espírito as formulou.” (Alencar 2007, XV), com a frase citada Alencar começa a desenvolver uma série de reflexões em relação com a poesia e aquilo que deve ser representado nela como uma composição complexa. Seguindo esta cogitação, Alencar começa descrevendo os poemas de Gonçalves Magalhães, depois, e a partir da descrição feita, o autor assinala os pontos que devem ser atingidos em relação com essa representação os quais são: a descrição da história dos indígenas, a beleza das imagens o que configura uma concepção poética, a função que o poeta tem ao descrever a natureza e a história de uma nação e como uma característica fundamental a missão que o poeta tem ao descrever, a partir da ficção poética, a natureza e a história de uma nação o que permite estabelecer, no analises desenvolvido, o diálogo específico entre o poema e a crítica que Alencar descreve para definir a missão do poeta e o diálogo entre a prosa e o poema:
Demais, o autor não aproveitou a ideia mais bela da pintura: o esboço histórico dessas raças extintas, a origem desses povos desconhecidos; as tradições primitivas dos indígenas davam por si só matéria a um grande poema, que talvez um dia alguém apresente sem ruído, sem aparato, com modesto fruto das suas vigílias. Mas deixando de parte esse tema dos Niebelungen brasileiros, que não estava no pensamento de seu poema, devia o autor ao menos tirar dele todo o recurso de um poeta épico, que procura elevar a grandeza e a majestade dos seus heróis. (Alencar 2007, XVI-XVII).
O vínculo entre o diálogo e o poema que Alencar apresenta mostra como é que se estabelece um diálogo entre o sentido artístico, o político e a criação de heróis como modelos para criar uma literatura ou poesia, complexa e de caráter nacional. Nesse sentido a obra de Castro Alves, da mesma maneira que à de Alencar, estabelece um diálogo com a prosa e as ideias dele em relação à poesia e sobre tudo em relação com a missão do poeta. Nos diversos fragmentos em prosa, Castro Alves faz ênfases na ideia de que a poesia é um “sacerdócio” (Castro Alves 1997) e, porém, o poeta tem uma missão:
Sempre o poeta derramando uma lágrima pelas desgraças do mundo. É que para chorar as dores pequenas Deus criou a afeição, para chorar a humanidade - a poesia. Quando o braço da fatalidade nivela os pórticos soberbos com a poeira humilde do chão, quando o tempo - esse Átila eterno faz debaixo das patas do seu corcel desaparecerem as nacionalidades, ouve-se um gemido triste, como triste deve ser o soluçar dos anjos e um grito melancólico se ergue entre as ruinas. E os pórticos se alevantam...E as nacionalidades surgem...Não esses pórticos, que a fúria do vendaval desbora. Não essas nacionalidades, que a morte atira ao nada, mas pórticos e nacionalidades eternos, porque o poeta desarma o tempo, com o condão de seu gênio. Quando porém, a humanidade sente-se abrasada na chama de um pensamento grande, o poeta pega da lira, que treme de entusiasmo e arrasta as turbas encantadas ao heroísmo. ( Castro Alves 1997, 667).
Antônio Candido no “Capítulo VI A Expansão do Lirismo” do livro: Formação da Literatura Brasileira (Momentos decisivos) descreve a influência da obra de Víctor Hugo e Chateaubriand na obra de Castro Alves no que Cândido define como “segunda geração romântica”.18 Essa influência tem a ver com as ideias da poesia e a função dela na sociedade a partir dos conceitos que os dois autores desenvolvem em relação com o poeta e a poética nas obras: O gênio do Cristianismo de Chateaubriand19 e o Prefacio a Cromwell de Víctor Hugo20 expondo o valor do poeta nas diversas etapas evolutivas na história do homem, porém o poeta canta o valor dos homens e dos heróis, exalta o valor do povo, mostra o nascimento das nações, apresenta o compromisso que o artista tem ao utilizar a linguagem como uma arma ou ferramenta da mesma maneira que o poeta que é definido por Ricardo Palma na reflexão desenvolvida por Raúl Porras Barrenechea e por José de Alencar nas Cartas de resposta ao poema de Gonçalves Magalhães. Agora é pertinente perguntar o seguinte: qual é a relação da prosa de Castro Alves com a poesia e a missão do poeta? No texto: “Impressões da leitura das poesias do Sr. A. A. de Mendoça” Castro Alves assinala que a poesia: “assimila a si todas as nuances das ideias das épocas, enroupa-se do manto da natureza, que a cerca.” (Castro Alves 1997, 670) E o poeta tem como missão definir o sentido social da poesia:
Hoje outro pensamento invade os crânios da humanidade; outra cruzada se arma, outra Jerusalém será liberata. Esse pensamento é a liberdade, essa cruzada é a igualdade, essa Jerusalém - a humanidade. Lembrais-vos de um esboço que a mitologia - essa mãe do maravilhoso, do estupendo, - com um cinzel ciclópico traça nos seus fastos? - É uma figura de homem, que tem os pés no infinito e que nas largas espáduas sustenta o globo impávido e inabalável, porque ele é forte e disso cônscio. Esse é o Atlante- Tirai a mitologia, voai a um mundo mais espiritual e vede. Nas épocas modernas há um novo Atlante mais forte, porque é real, mais cônscio, porque é eterno. Esse Atlante chama-se povo, e seu peso - despotismo. A poesia hoje, é, pois, Byron, Barthélemy, Lamartine, Hugo - esses Cristos humanos. (Castro Alves 1997, 671).
Os novos heróis não serão os personagens míticos de deuses afastados da terra, serão os chamados “Cristos humanos” ( Castro Alves 1997) que mostram as qualidades humanas e sociais da sociedade e do povo, serão os personagens concisos da história das nações independentes que lutam contra as invasões estrangeiras e criam, ou tentam criar, projetos nacionais novos, onde o poeta, ou o romancista tem uma missão: valorar o patrimônio, auto-refletir as questões humanas e sociais, desenvolver uma ideia da história e reconhecer as diversas geografias que definem ao continente americano e que, no caso de Castro Alves, podem dialogar com os heróis nacionais de outras terras e sociedades dessa entidade espiritual chamada América Latina.
Agora bem, uma questão fundamental do texto: “Poema e diálogo” de Gadamer é o ponto de encontro do poema com o diálogo como uma trama que define um vínculo entre a prosa e a poesia. O poema, para Gadamer, é uma entidade acentuada pela palavra escrita e o diálogo é o nexo entre a palavra que fica fora daquela entidade artística. Mas entre eles, entre o diálogo e o poema há um vínculo que determina o encontro das ideias e dos conceitos na poesia, é o que Gadamer chama de “atualização de sentido” (Gadamer 2010) entre duas formas de entender a linguagem. Em relação com o parágrafo anterior, no caso de Castro Alves, essa atualização de sentido tem a ver com o vínculo entre as ideias desenvolvidas por ele na sua prosa e a poesia que mostra um vínculo com aquelas ideias desenvolvidas por ele.21 Nos poemas: “O livro e a América” e “Quem dá aos pobres empresta a Deus” da obra: Espumas flutuantes, Castro Alves começa a desenvolver o que representa América Latina22 para ele como poeta brasileiro, particularmente, nesses poemas, podemos pensar que o poeta abre o diálogo para entender os processos históricos políticos e sociais que definiram aos países que conformam essa entidade política e espiritual a partir da arte e da literatura.
Por exemplo, no poema: “O livro e a América”, a imagem da geografia é fundamental para refletir a função do livro como símbolo de conhecimento e de identidade:
E os Andes petrificados,
Como braços levantados,
Le apontam para amplidão [...]
Filhos do sec’lo das luzes!
Filhos da Grande nação
Quando ante Deus vos mostrardes
Tereis um livro na mão:
O livro - esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro [...] (Castro Alves 1997, 76-77).
E o poema: “Quem da aos pobres empresta a Deus”, da mesma maneira que no poema citado anteriormente, à representação geográfica é importante para entender o que é América para o poeta:
Das priscas eras, que bem longe vão,
O grande NADA dos heróis, que dormem
Do vasto pampa no funéreo chão...[...]
E foram grandes teus heróis, ó pátria
- Mulher fecunda, que não cria escravos -,
Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos:
‘Parti - soldados, mas voltai-me - bravos! [...] (Castro Alves 1997, 81).
Mas o poema que conjuga essas categorias e que desenvolve a imagem de um herói mexicano do século XIX é o poema: “Ao dous de julho”, esse poema começa com uma reflexão sobre as epopeias da história do homem:
É a hora das epopeias, Das Ilíadas reais.
Ruge o vento - do passado
Pelos mares sepulcrais. (Castro Alves 1997, 91).
E depois descreve aos heróis humanos que são parte da história e da sociedade:
Sim! Quando o tempo entre os dedos
Quebra um séc’lo, uma nação... Encontra nomes tão grandes,
Que não lhe cabem na mão!...
Heróis! Como o cedro augusto
Campeia rijo e vetusto
Dos séc’los ao perpassar,
Vós sois os cedros da História,
A cuja sombra de glória
Vai-se o Brasil abrigar. (Castro Alves 1997, 91).
A relação entre a história como uma epopeia humana e o homem como ator das grandes ações que definem os processos históricos fecha, no caso desse poema, com a imagem de Juárez o presidente mexicano que no século XIX lutou contra os franceses e que fez as reformas liberais no estado mexicano:
Ai! Que lágrimas candentes
Choram órbitas sem luz! - Que idéia terá Leônidas Vendo Esparta nos pauis?!...
Alta noite, quando pena
Sobre Árcole, sobre Iena,
Bonaparte - o rei dos reis -
Que dor d’alma lhe rebenta,
Ao ver su’águia sangrenta
No sabre de Juárez!?... (Castro Alves 1997, 92).
A “atualização de sentido” (Gadamer 2010) entre as caraterísticas que definem a prosa de Castro Alves e as ideias que desenvolve na sua poesia estabelece um vínculo entre o diálogo da prosa onde o autor apresenta suas ideias políticas e estéticas com a proposta poética dele. A representação e a reflexão que o poeta faz da história do homem e da imagem de América Latina como concepção ideológica no século XIX estabelece esse pacto e ideia do que o romancista e o poeta têm em relação com uma missão, que é a de representar e exaltar o valor cultural, geográfico e humano da América Latina e que, no caso de Castro Alves fecha com a imagem de um herói nacional mexicano.
Para fechar o analise da representação dos heróis nacionais mexicanos de Castro Alves, o poema: “O século” da obra: Os escravos faz referência a dois conceitos que definem a missão do poeta. O primeiro deles é a exaltação do valor do povo como parte dessa história de epopeias humanas:
Às vezes quebra o silêncio
Ronco estrídulo, feroz.
Será o rugir das matas,
Ou da plebe a imensa voz?...
Treme a terra hirta e sombria...
São as vascas da agonia
Da liberdade no chão?...
Ou do povo o braço ousado
Que, sob montes calcado,
Abala-os como um Titão?! (Castro Alves 1997, 211).
A imagem do povo na poesia de Castro Alves desenvolve a ideia de uma nova história onde o homem participa nos grandes processos e, porém, aqueles heróis que lutam nessas epopeias humanas são homens com um compromisso político e social que defendem os valores de sociedades no processo de independência política, e, novamente, a imagem de Juárez se torna uma figura importante na representação poética de Castro Alves:
Aqui - o México ardente ,
- Vasto filho independente
Da liberdade e do sol - Jaz por terra...e lá soluça
Juárez que se debruça
E diz-lhe: ‘Espera o arrebol’! (Castro Alves 1997, 213).
Juárez, na concepção poética de Castro Alves, representa a imagem de um herói humano, que forma parte das epopeias de independência política, é o herói que representa os ideais liberais dos novos projetos políticos no século XIX, laicos, independentes do poder da igreja como instituição política e que, no caso da poesia, se torna o homem que constrói a história como uma epopeia humana afastada de deuses e divindades alheias ao homem. Nesse sentido um aspecto importante dessa representação dos heróis mexicanos na poesia brasileira tem a ver com o que Antônio Candido define como uma “interpretação mexicana” (Antônio Candido1959) na poesia de Fagundes Varela no capítulo: “Transição de Fagundes Varela” do livro: Formação da Literatura Brasileira (Momentos decisivos). Essa maneira de interpretar ou de representar aos heróis nacionais mexicanos, de forma particular, à imagem de Benito Juárez, estabelece um vínculo entre a poesia e a política para exaltar o valor de heróis de caráter nacional e latino-americano. E. Carrera Guerra no estudo introdutório que faz da poesia completa de L. N. Fagundes Varela, descreve no capítulo: “Varela e a Independência Mexicana” a importância da imagem de Juárez na poesia de Varela:
Benito Juárez, herói e chefe do movimento nacional mexicano, mereceu do poeta brasileiro seu contemporâneo, por duas vezes, celebrações entusiásticas. A primeira em Versos soltos (Cantos e fantasias, 1865), a segunda em O General Juárez (Cantos do Êrmo e da Cidade, 1869). (Carrera Guerra 1957, 52-53).
Candido como E. Carrera Guerra concordam em assinalar que a expressão poética de Castro Alves e Fagundes Varela definem uma relação entre a missão do poeta e as caraterísticas que as obras criadas, a partir dessa configuração, devem ter. Fagundes Varela, da mesma maneira que Castro Alves, exalta o valor de um herói civil. Juárez, para o poeta, simboliza a liberdade da nação mexicana e é o representante da América Latina nas poesias: “Versos soltos” e “O General Juárez”, nesse sentido a configuração de Juárez na poesia de Fagundes Varela permite-nos entender a maneira como um período histórico e um herói nacional podem ser interpretados na poesia brasileira, procurando estabelecer um modo de perceber as questões históricas e políticas na América Latina no seu processo de independência política, já que da mesma maneira Fagundes Varela descreve, a partir da poesia, o processo de independência da nação mexicana na poesia: “A sede”, porém, a imagem de um herói e a descrição de um processo histórico, são fundamentais para compreender o vínculo entre a realidade política brasileira e mexicana no século XIX a partir da interpretação dos heróis nacionais mexicanos na expressão poética de Castro Alves e, como um breve exemplo para mostrar essa complexidade, de Fagundes Varela.
Agora bem, porque é tão importante usar aquela figura histórica nas diversas expressões poéticas no Brasil do século XIX? Justo Sierra, político e intelectual mexicano do século XIX no seu livro: Evolución Política del Pueblo Mexicano, desenvolve uma reflexão de caráter positivista23 em relação aos processos históricos mais marcantes na história do México como nação; mas, um dos aspectos mais importantes da reflexão de Justo Sierra é a maneira como Juárez, como ator social e político, estabeleceu o liberalismo moderno no México. No capítulo terceiro titulado: “La intervención (1861-1867)”, Justo Sierra desenvolve uma reflexão dos fatos históricos, políticos e económicos que definiram a legitimidade de Juárez como figura política mexicana:
[...] porque para eles Juárez, o índio Juárez, era a Reforma sistemática, intransigente, implacável, fria, antipática; os pobres, influenciados pelos jovens estudantes e oficiais que predicavam nas encruzilhadas das mais quentes doutrinas socialistas de Proudhon e Lamennais e mostravam lés em toda sua grotesca repugnância ao frade franciscano conspirando e esgrimindo a faca, ao mercedário arregaçando o hábito branco maculado de pulque e molho e dançando nas festas do bairro, e ao bispo tramando a destruição da independência) ricos e pobres acreditavam vagamente que uma era paradisíaca de liberdade, de fraternidade e de bem-estar poderia abrir-se. ‘Pode ser que a Constituição seja verdade’, diziam muitos no espanhol peculiar do nosso país. (Sierra 1991, 308).
Na reflexão histórica de Justo Sierra, Juárez representa o futuro, a possibilidade de criar uma constituição moderna, que defina a independência do povo mexicano e os ideais liberais da nova política mexicana, é a imagem do herói nacional, índio, humano, rejeitado pelas elites, e quem faz as reformas políticas e económicas em benefício da sociedade, dali que Fagundes Varela e Castro Alves utilizem à imagem daquela figura histórica mexicana para desenvolver uma dialética entre a poesia e a política nas suas obras. Nesse sentido podemos estabelecer essa relação entre os textos que descrevem as ideias sociais, políticas e estéticas com as propostas artísticas dos poemas, a partir do diálogo entre o sentido dos conceitos que descrevem a função da poesia e o vínculo que ela tem com a missão do poeta e as propostas que fazem que o artista assuma uma tarefa dali que seja pertinente para os vates, colocar exemplos complexos e humanos, que vinculem as suas ações políticas com a formação de cidadãos a partir de uma exemplaridade social e política, palpável e humana.
O diálogo entre a proposta de Gadamer com as ideias de Jorge Ruedas de la Serna, Antônio Candido e Afrânio Coutinho permite nos compreender a relação entre o poema e o diálogo com a missão do poeta e as ideias políticas dele vinculadas de maneira entranhável na poesia de Castro Alves, onde se faz menção dos heróis exemplares e humanos, e na prosa, onde se descreve o que é o que poeta tem que exaltar e cantar, colocar como exemplo, assumir como um compromisso ético e moral na frente da sua sociedade e do seu contexto, porém a imagem de um herói mexicano como Juárez, consegue obter um sentido artístico na poesia e um sentido político na descrição dele como um modelo ético e humano, sustentado pelo diálogo entre a prosa e a proposta artística, ou entre o poema e o diálogo com a missão do poeta que percebe a imagem de um herói nacional mexicano como um caráter universal ou latino-americano em concordância com as questões políticas que definem a independência das novas nações independentes no século XIX.