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El periplo sustentable

versão On-line ISSN 1870-9036

El periplo sustentable  no.35 Toluca Jul./Dez. 2018

 

Artículos

Turismo rural e modos de vida no Sul do Brasil: a construção do cardápio da Fazenda Pousada do Amor

Turismo rural y formas de vida en el sur de Brasil: la construcción del menú em la Fazenda Pousada do Amor

Ana Maria Costa Beber* 

Susana de Araujo Gastal** 

Renata Menasche*** 

* Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2012), mestre em Turismo pela Universidade de Caxias do Sul - UCS (2004). Atualmente está realizando Estágio Pós doutoral pelo Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade da Universidade de Caxias do Sul. Tem experiência docente em Turismo e Hotelaria, consultoria na área de Turismo e atuação em pesquisa nos temas: desenvolvimento rural, turismo rural, patrimônio cultural, mudanças socioculturais em turismo rural e antropologia da alimentação. galaxia_ana@hotmail.com

** Professor Doutor Titular na Universidade de Caxias do Sul. Pesquisador e Orientador do Programa de Pós-Graduação em Turismo na mesma Universidade. Estágio Pós-Doutoral na Universidade Católica Portuguesa (2012-2013). Doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002).

*** Professora do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), vinculada ao Departamento de Antropologia e Arqueologia. Professora do Curso de Bacharelado em Antropologia e pesquisadora do Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais (LEAA). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt/UFPel), exercendo atualmente sua Coordenação.


Resumo:

O locus deste estudo é uma propriedade rural pluriativa e multifuncional, localizada no extremo sul do Brasil. Nela o turismo rural se apresenta como uma atividade não agrícola importante para o sustento da família proprietária, e para sua permanência no campo. O debate centra-se na interação entre visitantes e familiares, e nas mudanças nos modos de vida dos receptores, em especial nas suas práticas alimentares cotidianas. O objetivo é o de analisar a construção do cardápio, considerando-o como expressão identitária e patrimonial, atentando para possíveis mudanças motivadas pela presença de turistas. O método utilizado para coleta de dados foi a etnografia, com registro dos dados em diário de campo e entrevista semiestruturada. Como resultado tem-se que o cardápio é híbrido e plural, emergindo na análise as categorias <comida nossa> e <comida turística>, separação que parece pretender qualificar a interação com o turista, mas também preservar a identidade familiar, neste caso a comida tida como patrimônio.

Palavras-chave: Turismo rural; práticas alimentares; cardápio; São José dos Ausentes; RS; Brasil

Resumen:

El estudio se llevó a cabo en una propiedad rural pluriactiva y multifuncional en el sur de Brasil. En la misma, el turismo rural es una actividad no agrícola importante en cuanto apoyo económico para la familia de propietarios a propósito para su permanencia en la estancia. El debate tiene su centro en la interacción entre visitantes y familiares, y en los cambios en el estilo de vida de los anfitriones, especialmente en sus hábitos alimentarios cotidianos. El objetivo es analizar la elaboración del menú, al que se considera como identidad y expresión del patrimonio, señalando un posible cambio motivado por la presencia de los turistas. El método utilizado para la recolección de datos fue la etnografía, con registro en diario de campo, y entrevistas semiestructuradas. Como resultado tenemos que el menú es híbrido y plural, y que, emerge del análisis la separación entre “alimento nuestro” y “alimento de turista”, categorías que buscan, tanto calificar la interacción con los turistas como preservar la identidad de la familia, una vez que la comida se siente patrimonio personal.

Palabras clave: turismo rural; prácticas alimentarias; menú; São José dos Ausentes; RS; Brasil

Introdução

O turismo promove interações humanas e oportuniza trocas pessoais entre os que viajam e quem os recebe, inserindo sobre modos de vida e organização de cotidianos de todos os sujeitos envolvidos. Esse contexto seria mais significativo no que tange às áreas rurais do que nos espaços urbanos, pela convivência mais próxima e intimista entre visitantes e visitados. Canclini (1997), entretanto, está entre os que relativizam esta dicotomia, considerando que o rural e o urbano apresentam especificidades, mas que essas, por si só, não explicariam de modo pleno as diferenças sociais e culturais entre os dois espaços. O rural e o urbano estariam, em simultâneo, sujeitos a influenciarem-se mutuamente. Visão semelhante é apresentada em documento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015), quando busca Veltz (1999) e Haesbaert (2009) para apresentar os conceitos de território-rede, em que a centralidade urbana organiza o rural, e território-zona ou contiguo, em que predominam como dominantes os usos do espaço rural. Em ambos os casos, busca-se superar uma visão simplista de dicotomia cidade-campo.

O turismo tem sido um dos fluxos a promover a permeabilidade urbano-rural, levando a mudanças culturais e transformando modos de viver no campo, mas também afetando a cidade. O cenário contemporâneo traz a idealização romântica do passado e do rural, com destaque aos alimentos, vistos no seu preparo e consumo como ‘autênticos” e ‘puros’. Releva-se o fato de que as práticas alimentares evidenciam as mudanças sociais que as tecnologias e avanços no sistema agrícola, por exemplo, operam na vida das pessoas, urbanas ou rurais. Neste contexto, este estudo busca refletir sobre a comida, tendo como recorte o cardápio alimentar, por considera-lo significativo dos modos de vida, tantos de quem recebe em vivendas de turismo rural, como de quem ali esteja como turista. Busca-se compreender, especialmente, como uma pousada, no âmbito do turismo rural, vem adequando as comidas servidas aos turistas, ao longo dos anos.

Considera-se que as implicações da interação entre visitante e visitado é uma questão recorrente nos estudos turísticos. Deste modo, busca-se, ainda, compreender quais seriam os fatos a desencadear as mudanças e quais os efeitos decorrentes, nas comunidades rurais que têm no turismo uma fonte de desenvolvimento. Não é foco deste artigo aprofundar ou questionar o que tipo de desenvolvimento promovido, mas as falas dos entrevistados destacam os benefícios e os comprometimentos do turismo na sua propriedade, as mudanças que podem ser entendidas como positivas ou negativas, bem como as repercussões na comunidade. Saliente-se que nessa relação de interação não há sujeito passivo, o que significa dizer que há ação propositada (agência) tanto dos sujeitos rurais como dos turistas, sendo que é nesta perspectiva que a questão foi abordada.

O estudo empírico foi realizado em uma propriedade rural no extremo sul do Brasil, no município de São José dos Ausentes, parte da região conhecida como Campos de Cima da Serra, no Estado do Rio Grande do Sul (figura 1). São José dos Ausentes conta com uma população de 3.483 habitantes, com densidade demográfica de 2.80 hab/km e IDH de 0.663 (IBGE, 2015). A região integra o bioma Mata Atlântica, que ocupa 15% do território brasileiro, o que lhe outorga uma natureza exuberante, com matas de araucária e xaxins seculares, destacando-se pela biodiversidade e paisagem. Ainda, apresenta o maior agrupamento de cânions da América Latina.1

Fonte:Google Maps, adapção dos autores

Figura 1.  São José dos Ausentes 

Do início do século XX até meados da década de 1960, o município teve como principal atividade econômica a extração de madeira, acrescida da pecuária extensiva. A ‘indústria madeireira’ vinha ao encontro da necessidade de aumento da área de campo disponível para a pecuária e assegurava a compra de gado, o que aumentava a produtividade da pecuária, mas extinguia o recurso natural da madeira. Enquanto a terra tinha pouco valor de mercado, a madeira e o gado alcançavam bom preço. Este era o modelo rural local e da propriedade em estudo.

Os anos 1960 trouxeram a proibição de corte das árvores nativas, a menor produtividade da pecuária pela não introdução de novas tecnologias, além de dificuldades de inserção regional no competitivo mercado global do agronegócio, devido ao isolamento local por falta de acesso e infraestrutura. Junte-se a isso que nos anos 1960-1970 assistiram a virada do Brasil rural para um país eminentemente urbano, transformação com marcas para além dos parâmetros populacionais e legais, “mas de profunda alteração nos padrões culturais em direção a um complexo mundo urbano industrial” (IBGE, 2015: 8).

São José dos Ausentes e região passaram por um longo período de depressão econômica e social, decorrência da perda de capacidade produtiva e financeira. Apenas nos anos 1990 a gestão pública local introduziu políticas de apoio a novas culturas, como a batata, maçã, ameixa, reflorestamentos com pinus e acácia, e, com menor grau de importância, a criação de trutas e o incentivo ao turismo. Ao mesmo tempo em que se tem o turismo como uma das estratégias de desenvolvimento local, houve a expansão das monoculturas citadas, de alto impacto ambiental em termos de biodiversidade e qualidade paisagística. Segundo resultados da pesquisa realizada nas nove pousadas rurais de São José dos Ausentes sobre as influências da atividade de turismo rural, Santos, Valentini, Scherer e Ortiz (2014) identificaram que os recursos naturais foram impulsionadores da atividade turística na região, mas, atualmente, haveria uma preocupação quanto ao equilíbrio entre a utilização dos recursos naturais e sua conservação em presença do turismo, bem como a relação a sua influência sobre a cultura local e a identidade regional.

Nos anos 2000 o município passou a receber infraestrutura de acesso, como rodovias asfaltadas e melhorias nas vias rurais. Desde 1997, a Secretaria de Turismo do município incentiva atividades relacionadas ao rural em termos de artesanato e de instalação de pousadas, introdução da pesca esportiva de truta, excursões fotográficas, cavalgadas e lazeres associados ao gado [rodeios] e às trilhas ecológicas. A pousada rural em estudo aderiu à proposta governamental.

Contexto Teórico e Metodológico

Coloca-se, assim, o meio rural como um lugar de relações específicas, construídas, reproduzidas e redefinidas conforme seu espaço singular de vida. Esse espaço é socialmente construído por seus habitantes em função das relações estabelecidas nos laços de parentesco e de vizinhança, a partir de laços da vida cotidiana e dos ritmos dos acontecimentos que determinam o ciclo da vida familiar. Tais coletividades são entendidas como depositárias de uma cultura própria, que alimenta sentimentos de pertencimento. Contudo, na atualidade, tais coletividades não estão mais isoladas, mas integradas a espaços sociais mais amplos, partícipes de relações complexas, associadas ao mercado, ao turismo e à vida urbana, que agora se confunde com o rural (Wanderley, 2009).

Entende-se que as pessoas se constituem como sujeitos a partir de suas trajetórias de vida, compondo, nesse processo, sua história e cultura, esta compreendida como modos de significar o mundo (Geertz, 2009) e expressar-se material e simbolicamente. Quando há a interação com sujeitos portadores de outras bagagens e origens, se estabelece um novo momento na história e no cotidiano de todos os envolvidos em termos de práticas sociais, sendo a comida uma das expressões que sinalizam esse(s) processo(s) (Menasche, 2012). Para a autora, receitas herdadas, pratos tradicionais, produtos e ingredientes locais, práticas alimentares cotidianas ou de festa compõem a cultura relacionada à produção e consumo de alimentos.

Nesta mesma perspectiva, Contreras (2005) afirma que a forma de se alimentar gera identidade mediante a constatação da diferença de modos de vida entre grupos sociais. Algumas comidas têm valor de signo de identidade, convertendo-se em valor positivo, ou seja, uma prática cotidiana de alimentação torna-se marco de representações e significados, possibilitando o estabelecimento de categorias entre territórios, agentes e grupos sociais. É nesse contexto que o conjunto de características do meio rural torna-se atrativo para os citadinos, permitindo o desenvolvimento de outra atividade (não-agrícola), o turismo rural, gestado a partir da atração exercida por um modo de vida (Silva, 2002).

Para entender tais neoruralidades, a pesquisa debruçou-se sobre um estabelecimento de turismo rural, no município de São José dos Ausentes, aqui denominada ficticiamente como Fazenda Pousada do Amor, para apresentar suas fases de inserção turística, bem como a construção do cardápio oferecido aos hóspedes. Para dar conta desta reflexão e apreender as mudanças decorrentes das relações entre os visitados/familiares em interação com turistas a partir da perspectiva dos sujeitos locais, observou-se a alimentação presente nos cardápios da Fazenda Pousada do Amor, aqui entendida como meio de expressão de valores do grupo. Como metodologia, utiliza-se a etnografia, por tratar-se de um processo guiado preponderantemente pelo senso questionador do pesquisador etnógrafo, que cria as técnicas que melhor atendam à realidade do trabalho de campo (Matos, 2001). Daí as técnicas e instrumentos utilizados nesta pesquisa terem sido desenvolvidas a partir do contexto em que o trabalho de campo foi realizado.

Desta forma, utilizou-se a observação participante junto à família2 proprietária da Pousada, nas duas primeiras etapas da pesquisa, respectivamente no período de 2008 a 2012, com registro dos dados em diário de campo e entrevistas com os familiares do estabelecimento receptivo, que são: o casal proprietário, Nelci3 (50 anos) e José4 (50 anos); o casal de filhos Lurdes5 (24 anos) e Pedro6 (30 anos); e Celia7 (54 anos), tia de Nelci que trabalha na Pousada. As entrevistas foram transcritas e categorizadas juntamente com os dados oriundos do diário de campo, das fotografias e dos vídeos foram inseridos no NVivo 9.0.

Na terceira etapa, realizada em 2015, foram realizadas entrevistas com os familiares tendo como objetivo verificar, na percepção dos protagonistas, as mudanças ocorridas desde 2012. Para a análise, os dados foram compilados por pessoas e elencados nos seguintes itens: <trajetória da unidade produtiva>; <trajetória das pessoas>; <comida nossa>; <comida turística>.

O turismo na Pousada

A história do empreendimento inicia com o bisavô da atual proprietária, que chegou ao Brasil em 1889, vindo da Alemanha. Ele adquire as terras da fazenda neste período e seus sucessores dedicaram-se, num primeiro momento, a extração de madeira e, em meados do século XX, à pecuária extensiva e a produção artesanal de queijos. A já descrita crise regional dos anos 1960-1980 também afeta a propriedade. A Pousada Fazenda inicia as atividades turísticas em 1997, quando as práticas tradicionais deixam de sustentar a propriedade. Atualmente, a matriz econômica é caracterizada pelas práticas da pecuária extensiva e do turismo, cada uma representando 50% da renda total do empreendimento. O perfil da propriedade é a pluriatividade, mesclando práticas agrícolas e não-agrícolas, com administração familiar.

Quanto à oferta turística, esta inclui a hospedagem na casa sede, passeios a cavalo, banhos em rios e cachoeiras, acompanhamento de lides campeiras,8 observação de pássaros, pesca esportiva de truta americana, percurso de trilhas e a alimentação. A Pousada tem capacidade diária de receber vinte e nove pessoas, dispondo de cinco suítes, três quartos e, um mais, no sótão, com banheiros coletivos. A diária inclui pensão completa [all inclusive], com café da manhã, almoço, janta e lanches ao longo do dia. A demanda inclui turistas regionais, do estado vizinho de Santa Catarina e, em menor número, de outros pontos do Brasil. Trata-se de famílias e casais atraídos pela paisagem e buscando interagir com a vida do campo e a prática da pesca esportiva.

Segundo os familiares, o processo de introdução do turismo na propriedade rural passou por três fases: a da angústia em receber, a da empolgação e a fase da família. A fase da angústia em receber iniciou com a abertura da Pousada e se manteve até o ano de 2001, quando houve o retorno à propriedade dos pais de Nelci, Thereza e Avelino, que viviam na cidade, e a adaptação da casa da família para acolher visitantes. O entendimento é que o período se marca pela perda do espaço físico da família e pela angústia no convívio diário com o turista.

O segundo período, a fase da empolgação, ocorreu entre 2002 e 2007, quando houve ampliação da infraestrutura, para maior privacidade da família. Foram construídos novos quartos para todos os familiares, em uma parte da casa separada dos turistas. Na nova distribuição, a entrada, antes chamada ‘entrada das visitas’, se tornou ‘entrada dos turistas’. Outro fator que motivou os proprietários a denominar esta fase como de ‘empolgação’, foi a exposição da propriedade na mídia nacional em 2005, pois no período uma série televisiva e uma telenovela foram gravadas na região, sendo os atores hospedados na propriedade.

O terceiro período, a ‘fase da família’, inicia em 2008 e é entendido como atual. Demarca-se pela morte dos pais de Nelci, levando os proprietários a repensar a Pousada a partir do sentido atribuído a vida e ao convívio familiar. Como consequência houve reorganização do tempo e na disponibilidade dos membros da família, que passaram a não receber visitantes em períodos de festa familiares, além de criarem novos espaços domésticos restritos aos familiares, dando nova dimensão às concepções de vida, trabalho, turismo e turista.

A comida como expressão de modos de vida

Parte-se da compreensão de que em cada lugar, os alimentos são ordenados segundo um código detalhado de valores, de regras e símbolos, sendo a partir deles, em um determinado período, o modelo alimentar se organiza (Giard, 2011). É nesta perspectiva - a da dinâmica dos modelos alimentares, em consonância com a cultura de um dado momento histórico - que são analisadas as transformações ocorridas nos modos de vida da família proprietária de pousada rural, em presença de interações decorrentes do turismo.

O consumo do passado corresponde, por um lado, à proliferação de lugares especializados na incorporação do patrimônio como produto turístico e, por outro, pela assimilação de hábitos culturais. Mais ainda, para Giard (2011) , a incorporação do patrimônio cultural na oferta comercial pode estar associada a um imaginário nostálgico. A valorização do passado e da nostalgia é uma das marcas da pós-modernidade, que incorpora objetos e artefatos que possuam um toque de antiguidade, aí inclusos alimentos e receitas tradicionais, como itens importantes em tais cenários (Gastal, 2006).

Santana (2009) coloca que o estilo de vida rural vem se consolidando como atrativo turístico, fundamentado nas características culturais e ecológicas que o diferenciam dos sujeitos urbanos. Para esse autor, os produtos do turismo rural estão centrados na cultura e na natureza, tendo como inspiração o fenômeno de conscientização e reivindicação ecológica pelo qual as sociedades urbanizadas e avançadas passaram nas últimas décadas do século XX, em que o campo e o atrativo turístico são percebidos como sendo a mesma coisa. Cristóvão (2002) complementa ao defender que a emergência da busca pelo rural através do turismo está baseada no quadro das representações urbanas sobre o campo e sobre a natureza.

Quanto à comida no contexto do turismo rural, entende-se a partir Montanari (2008) , que o embora os seres humanos possam comer praticamente qualquer coisa, ele escolhe seus alimentos com critérios associados ao econômico, ao nutricional e aos valores simbólicos em que a comida se reveste. Ainda, para o autor, a comida é um elemento decisório na construção da identidade e se apresenta como um importante instrumento de comunicação. Neste contexto, o cardápio, no entendimento do autor, constitui-se de uma memória escrita da cozinha, produzindo um saber constituído através do desenvolvimento cumulativo de conhecimentos. A cozinha, escrita através do cardápio, permite a codificação do repertório, suas práticas e técnicas reconhecidas e pertencentes de um determinado grupo social. O cardápio se concretiza na mesa e, desta forma, “a mesa é a metáfora da vida, ela representa de modo direto e preciso não apenas o pertencimento a um grupo, mas também as relações que se definem neste grupo” (Montanari, 2008:160).

Na família estudada, ao longo das gerações a tarefa de escolha dos alimentos que compõem o cardápio das refeições foi responsabilidade feminina. Era função das mulheres o aprendizado da costura, o preparo de alimentos, a higiene doméstica e, também, as lidas do campo. Nelci aponta que as festas familiares e as missas na propriedade rural, que exigiam preparações de refeições, eram momentos em que se aprendia coletivamente:

A mãe sempre foi quem ensinou, pois a mãe sempre foi muito organizada. A mãe me ensinou assim... Tinha dias assim dela ficar até dez, onze horas da noite, brilhando as panelas. [...] A gente sempre foi ensinada a cozinhar, a deixar a casa organizada, a fazer a comida com amor, a fazer coisas diferentes pros mais velhos que tão doente, a cuidar das pessoas. Acho que aprendemos isso com a mãe e com a vó e com todos da nossa família. Também acho que se aprendia muito nestas festas, que era todo mundo junto e a maioria aqui em casa, então as mulheres se juntavam para preparar os banquetes, daí tinha aquela tia que era melhor numa coisa que na outra, tinha as missa nas fazendas e da nossa família todo mundo sempre se ajudou (Nelci, 2011).

O processo de aprendizado das práticas de alimentação ocorreu de maneira diversa nas distintas gerações da família. Enquanto Nelci iniciou seu aprendizado na infância, Lurdes, sua filha, o vivenciou em contexto de mudanças: a de atividade produtiva da unidade doméstica, devida ao turismo. Nelci ressalta que são as lembranças dos modos como o aprendizado ocorre que marcam a continuidade da prática de cozinhar.

[...] enquanto a mãe trabalhava eu aprendia brincando, eu fazia meu queijinho de verdade, tinha panela, fogãozinho, tudo que era coisa de menina dona de casa. Eu gostava muito, só fui crescendo e tudo foi ficando maior. Já com a Lurdes foi diferente. Quando ela tinha seis anos já estava com a pousada e ela não gostava de turista e eu tinha pouco tempo e a mãe também, depois a Lurdes já foi pra Bom Jesus estudar, daí, graças a Deus, voltou pra Fazenda, mas ela sempre foi a responsável pelas sobremesas e bolos, desde pequena. Então tu veja agora, no que ela mais gosta de fazer, bolo e sobremesas, então é como tu faz a pessoa aprender, as lembranças que fazem ela continuar ou não fazendo aquilo (Nelci, 2011).

Para além da importância da mulher nas questões que envolvem a alimentação, é pertinente destacar o papel desta nos processos turísticos, pois são elas que tem um envolvimento maior nas tarefas associadas a manutenção do lar e no cuidado afetivo dos familiares e, agora, aos visitantes (Lunardi, 2012). Os relatos apresentados podem ser pensados a partir de Giard (2011) , que entende que, para um grande número de mulheres, as atividades culinárias correspondem a um lugar de felicidade, de prazer e de invenção. Nelas há um investimento afetivo, com rituais específicos que exigem inteligência, imaginação e memória e, por tais razões, constituem-se em um dos pontos fortes da cultura.

Com relação ao processo de composição do cardápio na trajetória de desenvolvimento turístico da Pousada, até 2008 a preparação dos alimentos era tarefa da matriarca, Thereza, que tinha na alimentação uma forma de expressão de seus valores e aptidões. Após o falecimento de sua mãe, Nelci passou a exercer a função, apropriando-se dos conhecimentos maternos: “Era uma preocupação que eu não tinha, a mãe entendia a comida e entendia o que eles (os turistas) gostavam de comer” (Nelci, 2010).

Segundo relatado por Nelci, sua mãe mantinha uma ligação afetiva com as práticas de alimentação, estando contidos nesse saber-fazer os valores culturais em que a família está inserida. Esse elemento nos remete à noção de cultura apontada por Gonçalves (2005) , que a toma como expressão da alma coletiva, herdada por outro e que pode ser entendida como um trabalho consciente e constante de reprodução. A comida, nesse caso, coloca em evidência a cultura. O patrimônio, para o referido autor, expressa a mediação entre os elementos da cultura classificados como herdados e aqueles adquiridos ou reconstruídos, que resultam do esforço contínuo de aperfeiçoamento individual e coletivo. Essas mediações podem ser percebidas no depoimento de Nelci:

Prefiro fazer pão e bolo e bolacha. Queijo, a prima do José que faz, terceirizamos e circula dinheiro. Queijos, nós produzíamos, mas era muito desgastante. Lembro daquela época que a gente optou por fazer bem algumas coisas e que agora compramos o queijo de uma prima, que é um queijo como o nosso, de casa (Nelci, 2010).

Nesse relato, Nelci faz referência à trajetória familiar e às redes em que se insere. O abandono da produção de queijo se deu na fase da angústia, tendo como razão o tempo de produção e o baixo preço praticado pelo mercado. Quando da adesão ao turismo, deu-se a construção de uma rede local de circulação de alimentos tidos como “alimentos nossos, de casa”. Tais alimentos encontram ressonância na família e, por essa razão, são mantidos e incorporados aos pratos turísticos, produzindo novos significados a partir de novos usos. A ressonância é entendida por Greenblatt (1991 apud Gonçalves, 2005:19) como tendo “o poder de evocar no expectador as forças culturais mais complexas e dinâmicas de onde eles emergiram”. Com isso, tais alimentos passam a ser compreendidos pelos familiares como tendo ressonância, dada pelo valor de pertencimento contido nos modos de saber-fazer, nas receitas, na origem dos alimentos, nas técnicas de preparo, ou seja, os alimentos expressam a cultura familiar.

No caso em foco, a alimentação corresponde a um traço da cultura do grupo social estudado. Mas esse traço cultural passa pelo olhar e aceitação do estrangeiro, o turista, para ser ativado e aceito como patrimônio. Assim, para que a alimentação se torne patrimônio, necessita de ressonância junto ao público, estabelecendo-se, conforme salienta Gonçalves (2005) , como forma de comunicação criativa realizada essencialmente no corpo e na alma de seus proprietários. Pode-se entender, igualmente, que o queijo, de certo modo, marca uma monetarização da racionalidade da família, pois quando o produto passa a não ser mais fabricado na propriedade, deixa também de ser oferecido em todas as refeições. Observa-se essa nova forma de concepção do produto a partir do cardápio da Pousada, em que o queijo torna-se acompanhamento eventual.

A grande maioria do pessoal põe o queijo pra comer com todas as refeições, nós usava. Se usa comer queijo com quase todos os tipos de comida, então põe queijo no feijão e come, queijo com feijão arroz e come, [...] eu boto queijo na mesa, o queijo ralado pra comer com massa quando tem, eventualmente. Na comadre Celia [prima], a casa dela tem sempre queijo na mesa, que nem nós tinha, porque eles têm o hábito de comer queijo, não importa se eles vão comer um, dois queijos por semana, eles põe. Tem que comer queijo... Eles não pensam a longo prazo, eles pensam no dia porque se tu for ver, tudo tem um custo, é produzido no local, mas tem custo, a vaca te oferece uma série de possibilidades (Nelci, 2011).

Para Nelci, a vaca oferta produtos matérias e outros, simbólicos, constituindo-se em referência do campo, e nesta condição, parte da paisagem, e da alimentação, através da carne, do leite e de seus derivados. Nesse sentido, o animal poderia ser entendido como um objeto, conforme explicam Silveira e Lima Filho (2005:3) , já que o objeto fala de um lugar, “porque está ligado à experiência dos sujeitos com e no mundo, posto que ele representa uma porção significativa da paisagem”.

Mas a gente sempre tem leite de caixa, porque tem hóspede que não se adapta com este leite, diz que é forte, então sempre tem de caixinha, mas o nosso leite, usamos para toda comida, por dia usamos quatro litros de leite, todo daqui: do leite se faz sobremesa, molho branco, bolo, coisas de comer que são nossas (Nelci, 2010).

Ainda sobre o gado, José entende que a presença dos animais na fazenda é uma atração para os visitantes:

Temos a vaca, a carne e ainda tem e o leite que é servido é produzido aqui, uma beleza [...] As pessoas gostam de ver o gado. No meu modo de pensar, o gado no campo é um atrativo pro turista; os turistas não participam das lidas, mas querem ver que tem o bicho aqui, tu convida, eles não vão pro campo, é pesado, é trabalho, mas pra ver, eles gostam, acham bonito, é só pra bonito pra eles (José, 2011).

A fala de José nos remete a Santana (2009) e Barretto (2007) , que afirmam que um grande número de turistas não busca estabelecer contato direto e pleno com a comunidade visitada, mas, sim, conhecer o lugar e desfrutar do bem-estar proporcionado pelo destino turístico.

Quanto à composição do cardápio na Pousada, identifica-se a interferência dos homens da família. José escolhe a carne que será servida em cada uma das refeições, enquanto Nelci seleciona os demais pratos. Em relação ao fato de a carne ser o primeiro alimento escolhido, Woortmann (2006) afirma que o conteúdo das refeições apresenta, em geral, a carne como componente central, salientando que, nas refeições cerimoniais, o alimento tem ainda maior reconhecimento; associe-se que, no extremo sul do Brasil, onde há forte presença do Churrasco, a carne está associada ao masculino. Nas palavras de Nelci (2010):

Antes ela [Thereza] definia os pratos. A mãe sempre teve criatividade na cozinha, então ela tinha uma coisa ela fazia um banquete, então era coisa assim, muito. [...] até hoje o que eu sinto dificuldade. Hoje, o José é sempre meu parceiro, ele escolhe a carne, é ele que cuida desta parte, então pra cada tipo de carne a gente já tem mais ou menos um jeito de servir, de acordo com aquilo que a gente tem na dispensa, porque tu sabe que aqui não é fácil, tem coisas que a gente encontra com facilidade e tem coisas que não encontra e a gente tem que contabilizar o custo das coisas.

Percebe-se na fala de Nelci alguns elementos apontados por Giard (2011) , como o necessário cálculo do tempo, o orçamento, a velocidade de execução e a avaliação do que é mais vantajoso em preço, preparação e sabor. Para o referido autor, cozinhar envolve uma série complexa de circunstâncias e dados objetivos, que se defrontam com as necessidades e liberdades locais. Conforme Nelci, há um cardápio básico para os turistas, aprovado por eles, composto por pratos que mantém ligação com as práticas alimentares familiares e com a disponibilidade de alimentos. Para que tal cardápio pudesse ser criado, quando da introdução do turismo, algumas regras foram firmadas, entre elas a de que seriam servidos, em média, sete pratos quentes e saladas, sendo a carne componente central para a escolha do restante dos alimentos. Esse cardápio permite que haja objetividade no momento da compra dos produtos, possibilitando, ainda, um armazenamento e estoque adequados.

Uma das estratégias de Nelci e Lurdes para conseguir preparar os alimentos e, ao mesmo tempo, dispensar atenção aos turistas e familiares, é escrever o cardápio diário na ordem em que cada prato deve ser produzido. Com isso, não há a perda de controle dos alimentos a serem preparados. O cardápio modelo para almoço e janta, seguido das sobremesas, utilizado nos momentos em que a Pousada é ocupada por sete dias consecutivos ou mais, inclui:

1º dia: Almoço: arroz à grega, strogonoff, pernil assado, lentilha, lombo decorado com cerejas, legumes, farofa com frutas, cenoura cozida, batata cozida, saladas e picles. Janta: arroz, feijão, cless9 com molho de tomate, costela na panela de ferro, lasanha, purê de batata, bolinho de arroz e saladas.

2º dia: Almoço: arroz, feijão, ervilha, brócolis com molho branco, costela de porco, abobrinha com guisado, paçoca de pinhão, tortei10 e saladas. Janta: churrasco com diferentes carnes, polenta frita, arroz, feijão, abacaxi com manga, farofa, linguiça, batata com maionese e saladas cruas.

3º dia: Almoço: arroz, feijão, massa, frango, bolo de legumes, guisado com milho, abobrinha e saladas. Janta: moranga doce, arroz, feijão, massa com manteiga, carne de panela, panqueca, purê de batata, batata frita e saladas.

4º dia: Almoço: arroz, feijão, truta com alcaparras, batata cozida, couve-flor com molho branco, rocambole de batata e requeijão, tomate com queijo, abacaxi e saladas. Janta: arroz, feijão, frango assado com batata, bolinho frito de arroz, torta de legumes, pastel, beterraba, azedinho11 e saladas.

5º dia: Almoço: arroz, feijão, frango assado, matambre,12 polenta, batata assada, espaguete, ervilha e saladas. Janta: arroz, feijão, almôndega, polenta frita, purê de batata, matambre, espaguete com tomate e saladas crias e cosidas.

6º dia: Almoço: arroz, feijão, lasanha, repolho refogado, carne de panela, purê de batatas, vagem com cenoura, moranga caramelada e saladas. Janta: arroz, feijão, língua com ervilha, massa com tomate, bolo de carne, abobrinha refogada, bolinho de arroz e saladas.

7º dia: Almoço: arroz, feijão, bife, moranga com guisado, panqueca de espinafre com guisado, torta de guisado, vagem com cenoura, batata frita, fortaia,13 tomate e brócolis. Janta: arroz, feijão, batata cozida com salame, massa com tomate seco, bolinho de arroz, frango com molho, e saladas. Sobremesas: Pudim de coco, pudim de leite condensado, salada de frutas, arroz doce, ambrosia, creme de ovos nevados, doce de leite, doce de leite cremoso, creme de ovos, sagu, compota de figo, mousse de moranga e chocolate, doce de gila.

Percebe-se que na composição do cardápio há os pratos considerados na percepção dos familiares como comida nossa - que são arroz, feijão, matambre, polenta, batata (de todas as formas), moranga caramelada, repolho refogado, cless, língua e pastel - e também os que foram incorporados pelo turismo, os quais são aqui denominados de comida turística. A comida turística é entendida como aquela que contempla a percepção da família da Pousada Fazenda sobre o gosto do turista.

Deste modo, aqui se incluem as receitas e pratos que, ao longo da trajetória turística da propriedade foram sendo acrescentadas no cardápio turístico. Uma das marcas centrais desta comida é a pouca interação que elas mantêm com os modos de vida da família. Nesta categoria, podemos ilustrar a partir da truta ou da sobremesa mousse, que foi incorporada ao cardápio, mas não está presente entre as comidas da família, ou seja, está presente no cardápio turístico, mas não no cardápio familiar. Esta comida marca, de forma mais evidente, a distinção entre os sujeitos familiares dos sujeitos turísticos, ou ainda, poderíamos dizer, entre o campo e a cidade (Costa Beber, 2012).

As comidas nossas estão na categoria de patrimônio por terem ressonância entre os familiares, já que, como afirma Gonçalves (2005) , o discurso de patrimônio se dá a partir de seu caráter ‘construído’ ou ‘inventado’, no qual cada nação, grupo ou família constituem no presente seu patrimônio, objetivando articular e expressar sua identidade e memória. A comida turística teve, ainda, a influência de turistas, como já colocado. Também o acesso à televisão teve papel importante na construção do cardápio, pois receitas de lasanha, espaguete, lombo assado com cereja, molho branco, arroz à grega, strogonoff, mousse de chocolate e morango, foram extraídas dos programas de culinária.

O cardápio pode ser analisado na perspectiva da construção da identidade local. Alfonso (2005) sustenta que as identidades locais podem difundir-se por meio do contato entre residentes e turistas, a partir de elementos patrimoniais como a alimentação, que ofertam formas de produção, de distribuição e de elaboração singulares, resultando em atrativos para determinados tipos de turista. Dessa maneira, uma parte da identidade, ligada à culinária, pode alcançar projeção turística. Ainda, para o autor, a identidade, como expressão de vida é mutante e sofre influências, o que também é identificado na composição do cardápio com comidas classificadas como comidas turísticas.

Refletindo a partir de Contreras (2005) , a cultura alimentar resulta do processo de aprendizado que se inicia no nascimento e se consolida no contexto familiar e social. As maneiras de se alimentar, os produtos escolhidos, bem como os processos de cozimento, estão relacionados com os recursos locais, o território (aí inclusas as características de clima e solo), as formas de produção, o armazenamento, o comércio e, ainda, os conhecimentos acerca das práticas culinárias. Nesse ínterim, as culturas alimentares estão inscritas no contexto socioeconômico e são percebidas como marcadores étnicos. Giard (2011) complementa afirmando que existe uma complexa geografia e uma sutil economia das opções e dos hábitos, das atrações e das repulsas. Dessa forma, o homem se nutre de alimentos culturalizados, escolhidos e preparados de acordo com leis de compatibilidade e regras de conveniência próprias a cada área cultural.

Quanto à associação entre identidade e práticas alimentares, Mintz (2001:32 ) indica que “o comportamento relativo à comida liga-se diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa identidade social, e isso parece valer para todos os seres humanos”. Cabe mencionar que, atualmente, há uma crescente demanda dos turistas por produtos identitários, o que torna a comida incluída nos cardápios um dos componentes centrais da escolha do visitante por determinado destino turístico. A comida constitui-se em expressão das identidades locais, que o turista reconhece e consome.

Considerações finais e ponderações

Quanto à perspectiva da construção do cardápio como expressão dos processos ligados aos modos de vida em contexto de interação entre familiares e turistas, e referencial para identidades e patrimônio familiar, nota-se, no caso estudado, que turismo rural foi capaz de transformar o cotidiano familiar e o significado da alimentação. Ao articular-se como produto de consumo turístico, a alimentação marca a trajetória da família, transformando-se para os familiares, em alguma medida, em elemento patrimonial. Ainda, a alimentação é uma das formas de representação daquilo que a família pretende mostrar ao turista.

O discurso que este núcleo familiar atribui à alimentação enfatiza a trajetória de vida destes sujeitos, as comidas representam a história com a terra, com os modos de viver e as maneiras de interação entre sujeitos do campo e da cidade. Entende-se que a alimentação age como uma marca de identificação, como produto turístico e como patrimônio familiar, que vive permeado de tensões, contradições e negociações, seja entre a memória familiar, a comida turística e a comida nossa, como com a própria vida. Neste sentido, as práticas alimentares são entendidas como código de reconhecimento social, exprimem modificações nos modos de vida dos familiares da Pousada em estudo.

Ainda, percebe-se que o cardápio, no contexto do turismo rural é repleto de marcas do modo de vida rural do período anterior ao turismo, bem como de todas as hibridizações que a vida e as formas de promoção de encontros desta família com a sociedade permitiu. O turismo oportuniza, assim, a cultura de encontro de forma intensa, mas não é determinante nas formas de se viver. A partir dele, verificam-se traços da cultura familiar rural, que, na interação com o turista, é reforçada entre os familiares, assim como a noção de comida como patrimônio familiar, como demarcador de identidade que se classifica, de algum modo, como restrita aos familiares (comida nossa) e também como meio de comunicar a cultura familiar com o turista no momento em quando ela passa da mesa da família para a mesa turística e é compartilhada com os visitados no viés da hospitalidade.

Verificou-se a inserção de diferentes ingredientes e pratos ao longo da trajetória do empreendimento. As comidas que compõe o cardápio são escolhidas em função daquilo que os familiares desejam mostrar e do tipo de turistas que estes desejam atrair. Com isso, percebe-se a incorporação de ingredientes e modos de fazer que refletem o mecanismo de substituição, manifestando o que Montanari (2008) aponta como uma manifestação em que os sistemas alimentares têm de mudar mas, ao mesmo tempo, reafirmam a própria identidade, regenerando-se a partir de aportes externos dados pela incorporação e assimilação.

Neste processo, os relatos evidenciam que o resgate de receitas familiares se dá em relação ao turista e que, com isso, a família criou um cardápio turístico, híbrido. Nele há permissão para servir aos turistas alguns pratos da comida nossa, que servem para alimentar o nostálgico na identidade e memória do turista. Deste modo, fica claro que na composição do cardápio há uma distinção clara entre o turista e o familiar. Ao turista se oferta um bem de consumo capaz de tematizar memórias de um passado, talvez real, mas em geral idealizado pelo sujeito urbano. Pode-se perceber que o entendimento dos familiares da Pousada em estudo é de que a comida é um produto de consumo turístico importante, com poder de representar o modo de vida rural familiar, mas que, como um discurso, pode ser modificado e reinventado.

Concluindo, o estudo relata a importância da alimentação como produto de consumo no turismo rural e como patrimônio familiar, assim como viés de estudo que leva a evidenciar os processos de mudanças nos modos de comer e viver. Os dados analisados evidenciam de maneira particular os processos de desenvolvimento rural e turístico local, cujos indicadores são apontados pelos protagonistas da atividade, os familiares. Nestes termos, julga-se importante compreender e refletir sobre os efeitos do turismo em comunidades rurais, tanto como para as práticas de planejamento como para o debate sobre o que turismo constrói, para quem e com que finalidade, em termos positivos e negativos. Construir outras perspectivas de estudo cujo diálogo esteja marcado pela percepção daqueles que vivem o turismo, em conjunto com as abordagens dos estudos culturais, permite avaliar as transformações em diferentes destinos, levando a ampliar o horizonte sobre as questões que tangem as finalidades do turismo no contexto contemporâneo de diversidade sociocultural, ambiental e de neoruralidades.

Referências

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1 A região pode ser observada no vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=p6JWg_JB6aU

2Em relação à questão ética sobre o uso dos nomes reais e fictícios dos sujeitos da pesquisa, temos um debate em Fonseca (2008). Ao examinar a interface das discussões autocríticas de Antropologia com um determinado aspecto da prática etnográfica relacionado ao uso ou a recusa, no texto final, dos nomes ‘verdadeiros’ dos interlocutores, a autora sustenta que o anonimato das personagens no texto etnográfico não implica necessariamente uma atitude politicamente omissa do pesquisador. Sob esse prisma, adota-se a perspectiva de Fonseca e utilizamos nomes fictícios para nossos interlocutores.

3Nasceu na Pousada Fazenda do Amor. Formada em magistério em Bom Jesus e lecionou durante dois anos na Escola da Vila Silveira (década de 1980). É casada com José e mãe de Pedro e Lurdes. É herdeira e sócia proprietária da pousada, sendo responsável pela recepção dos turistas, alimentação e organização geral do local e pela parte financeira.

4Nasceu em São José dos Ausentes. Estudou até a oitava série e serviu ao exército. É casado com Nelci e pai de Pedro e Lurdes. É pecuarista, sócio proprietário da pousada, responsável pela gestão dos processos ligados à pecuária, desde o planejamento até as lidas do campo, carneações, compras e preparação de churrascos;

5Nasceu na Pousada Fazenda do Amor. Formada em Farmácia na cidade de Criciúma (2013), trabalha em Criciúma e São José dos Ausentes. Nas férias e finais de semana trabalha na pousada, em atividades ligadas, principalmente, à preparação dos alimentos. Suas especialidades são as sobremesas e os bolos.

6Nasceu na Pousada Fazenda do Amor. É pós-graduado em Educação Física e professor na área (atua três dias por semana). Nos dias em que não trabalha como docente, exerce atividades na pousada, sendo responsável pelos passeios a cavalo e, juntamente com José, pela gestão da pecuária e da lida do gado.

7Nasceu na Pousada Fazenda do Amor. Formou-se no Curso Técnico em Contabilidade de Bom Jesus e voltou a residir na fazenda aos dezoito anos, com 21 anos casou-se e passou a morar numa Fazenda herdada de seu pai. Na Pousada, trabalha na limpeza e auxilia na preparação dos alimentos. Também produz Queijo Serrano.

8Atividades relacionadas ao cotidiano do trato com o gado.

9Cless é uma comida alemã, no entendimento de Nelci. A receita é preparada com ovo, queijo ralado, leite, orégano e farinha de trigo.

10Tortei: massa feita com farinha de trigo e ovos, recheada com abóbora e canela em pó.

11Azedinho apresenta folhas servidas como salada verde, sabor levemente amargo.

12Matambre é a manta de carne localizada entre a pele e as costelas do gado bovino.

13Fortaia: omelete acrescida de salame e queijo.

Recebido: 06 de Outubro de 2016; Revisado: 12 de Setembro de 2017; Aceito: 23 de Outubro de 2017

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