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El periplo sustentable

versión On-line ISSN 1870-9036

El periplo sustentable  no.33 Toluca jul./dic. 2017

 

Artículos

Língua e tradição: A reconstituição de uma língua própria e seu papel como diacrítico na luta dos Pataxó pela garantia de direitos

Language and Tradition: the reconstitution of one's own language and its role as a diacritic in the struggle of the Pataxo by the guarantee of rights

Sandro Campos Neves* 

* Doutor em Antropologia, PPGA/UFBA. Professor do Departamento de Turismo da Universidade Federal do Paraná, DETUR/UFPR, Brasil. Correspondencia: sandrocamposneves@yahoo.com.br.


Resumo

O presente artigo tematiza a tentativa de reconstituição de uma língua própria entre os Pataxó de Coroa Vermelha, concebendo-a como parte de um processo de realinhamento político, nos moldes tradicionais dos movimentos étnicos, da comunidade indígena no município de Santa Cruz Cabrália-BA em direção a um projeto de indianidade. Procuro ressaltar a forma como a língua própria exerce papel fundamental tanto nas cogitações Pataxó, quanto na visão que deles constroem os diversos outros com os quais lidam cotidianamente. O uso que se faz desta preponderância dada à língua e o investimento político em sua rearticulação se mostram nexos pulsantes da organização da socialidade Pataxó na região e na constituição de suas fronteiras. Procuro, ao longo do artigo, evidenciar o atual estágio de articulação do ensino e utilização da língua, apontando para seus limites e potencialidades como ferramenta política.

Palabras claves: Língua; Tradição; Pataxó; Coroa Vermelha

Abstract

This paper thematizes the attempt to reconstitute its own language among the Pataxó of Coroa Vermelha, conceiving it as part of a process of political realignment, following traditional patterns of ethnic movements, of the indigenous community in the municipality of Santa Cruz Cabrália-BA towards an Indianness project. Seeking to highlight how the language itself plays a fundamental role both in Pataxó cogitations, as in the vision of them build by the several others they handle daily. The use made of this preponderance given to the language and the political investment in it re-articulation shows itself as pulsating links of the organization of Pataxó sociality in the region and the recognition of its borders. I Look, over the article, to show the current stage of education and use of language, pointing to its limits and potential as a political tool.

Keywords: Language; Tradition; Pataxó; Coroa Vermelha

Introducción

Os conflitos acerca da demarcação de Terras Indígenas (T.I.´s), bem como do reconhecimento da própria existência de povos indígenas no Brasil só tem feito se complexificar desde aos menos os anos 1960, que marcaram uma reorientação das ações da política indigenista oficial. No contexto de tais conflitos a região Nordeste do país se destaca por apresentar situação digna de nota para os estudos da antropologia política, o chamado “ressurgimento étnico”. Ressurgimento, reemergência, ressemantização da etnicidade, são diversos os nomes e definições que se atribui ao fenômeno. A maior parte deles, no entanto, se identifica com a perspectiva da teoria da etnogênese (Gallagher, 1974; Goldstein, 1975; Oliveira, 2004). De acordo com tal perspectiva a denominação e identificação étnica têm enfatizado seu caráter político, constituindo-se como um elemento das lutas pela di-visão do mundo social (Bourdieu, 2004). Assim, boa parte da teoria a respeito da etnologia do Nordeste tem se debruçado sobre eventos desse processo de ressurgimento étnico.

No caso dos Pataxó de Coroa Vermelha, objeto de minha análise, a dominação interétnica confrontou os índios com as contradições do ir e vir de uma discussão da sociedade envolvente a respeito da tradição. Em determinados momentos, para efeitos de dominação étnica, obrigou-se a silenciar as línguas indígenas para dar lugar à incorporação do idioma do colonizador. Em meados do século XX, por outro lado, passou-se a entender, sob a égide de uma nova orientação do SPI e depois da FUNAI, a permanência de uma língua própria como índice de tradicionalidade, que serviria como prova a atestar a indianidade1 de certo grupo.

No contexto destas transformações do entendimento que os brancos possuem do que é ser índio, os povos do Nordeste, aqueles submetidos à mais longa e violenta colonização, são pegos de roldão por um processo de procura da tradição perdida, que faz mais sentido para os colonizadores. Esta discussão, obviamente, terá impacto determinante no processo de demarcação de terras e garantia de demais direitos aos povos indígenas e dará caso a acusações, de diversos matizes, de utilização instrumental, por parte dos índios, de elementos de sua tradição como forma de garantir o que se passou a entender como privilégios.

No presente artigo apresento resultados de uma pesquisa de campo etnográfica empreendida entre os Pataxó meridionais desde o ano de 2005. A pesquisa foi desenvolvida em incursões intercaladas ao campo entre os anos de 2008 e 2012, totalizando um período de oito meses. Nestes períodos desenvolvi a observação participante, bem como a aplicação de entrevistas semi-estruturadas, realizadas em profundidade a respeito dos diversos temas, entre os quais os de que trata o artigo. Importa destacar que apresento, aqui, resultado de pesquisa de doutoramento concluída em 2012 e que, portanto, analiso, de maneira ampliada em relação à tese, o material de campo concernente à questão da língua, objetivando dar-lhe rendimento etnológico mais aprofundado. A partir da pesquisa observei diversas fases do processo de inserção da atividade turística no modo de vida da comunidade Pataxó. Apresento a seguir alguns de seus desdobramentos mais relevantes no que diz respeito ao processo de rearticulação de uma língua indígena.

A Aldeia de Coroa Vermelha

Neste trabalho, discuto o processo de tentativa de reconstituição entre os Pataxó de uma língua própria em relação com a politização da etnicidade, tendo como pano de fundo o contexto turístico que envolve os índios no sul da Bahia. A aldeia pataxó de Coroa Vermelha se localiza a aproximadamente 17 km do centro do município de Porto Seguro e faz parte do município de Santa Cruz Cabrália, do centro do qual dista cerca de 8 km. Inicialmente considerada apenas um bairro de Santa Cruz Cabrália, a região foi reconhecida e demarcada como Terra Indígena em 1997. A partir dessa data, a Terra Indígena Coroa Vermelha passou a se constituir de uma área de 1.420 hectares às margens da BR 367, na praia de Coroa Vermelha, denominada Gleba B, e uma área de 72 hectares, distante cerca de 7 km da praia de Coroa Vermelha em direção à Mata, denominada Gleba A (Sampaio, 1996).

Nessas duas áreas é desenvolvido o turismo que envolve os Pataxó na região. Na gleba B, a da praia de Coroa Vermelha propriamente dita, se desenvolve um comércio de artesanato indígena para turistas que se baseia, em grande medida, na visitação massiva ao marco do descobrimento do Brasil, construído ali no contexto das comemorações dos “500 anos de descobrimento do Brasil”. Na gleba A, por outro lado, se desenvolve outro tipo de turismo, baseado na construção de uma estrutura e de atrativos próprios pelos Pataxó, que visa possibilitar outro tipo de experiência turística, tanto para índios quanto para turistas. Essa experiência se estabelece nos marcos do Projeto Pataxó de Ecoturismo da Reserva Jaqueira, nome dado à gleba A da demarcação. Para os índios, a experiência é diversa, pois lhes permite autonomia para criar produtos, estruturas, atrativos e discursos a respeito de si próprios. Para os turistas a diversidade se encontra na oportunidade de experienciar um contato mais detido com os índios, o que o tipo de turismo que se realiza na região de praia não permite.

A ocupação da região pelos Pataxó se inicia na década de 1970 e tem relação com a função de entreposto comercial exercida pela área já naquele período. Os Pataxó, de acordo com relatos dos índios, bem como da bibliografia disponível (Carvalho, 1977; Sampaio, 1996; Grunewald, 1999), se dirigiram para região interessados nas possibilidades de melhoria de vida oferecidas pelo comércio na região. Itambé, o primeiro Pataxó de que se tem registro nessa nova ocupação da região,2 relata ter se estabelecido inicialmente como comerciante de “secos e molhados” na região e, posteriormente, vislumbrando o interesse dos turistas, se tornado produtor e comerciante de artesanato. A idéia inicial parece ter sido a de que o comércio regional seria favorecido pelo seu papel de entreposto, ocasionado pela conclusão da pavimentação da BR 367 e da BR 101 na região nos anos 1970. No entanto, terminada a construção desses trechos de estradas federais, elas ocasionaram também a chegada massiva de turistas à região. Desde então o comércio de artesanato tornou-se uma das principais atividades econômicas dos Pataxó e, provavelmente, a mais lucrativa, considerando-se sua sazonalidade.

Na aldeia existe, desde o ano de 2000, um centro de artesanato, um estacionamento e o símbolo da cruz, conhecido, entre os índios, como “o cruzeiro”, que representa o local tido por ser o da celebração da mítica primeira missa em solo brasileiro. Essas referências já existiam antes, no entanto, no marco das comemorações dos 500 anos do Descobrimento, o governo federal, em parceria com o estadual, construiu uma nova estrutura. Reformulou-se o centro de artesanato, antes composto por barracas de praia, transformado agora em uma bela construção de madeira e palha de estilo rústico e alusões à estética indígena. O estacionamento teve o chão de terra cimentado e recebeu uma guarita para fiscalização de entradas e saídas. Foram construídos também um novo símbolo da cruz da primeira missa e um museu indígena, o que terminou por criar um conjunto de edificações, estabelecendo um complexo indígena na região. É a esse complexo que os Pataxó denominam Parque Indígena.

Nesse processo a atividade turística se torna decisiva para a sobrevivência Pataxó em Coroa Vermelha e é continuamente integrada ao modo de vida local. No entanto, na perspectiva que proponho esse processo de integração não se dá como um solapamento gradual do modo de vida nativo à maneira dos chamados processos de aculturação. Antes, proponho a interpretação de que tal integração ao sistema turístico acontece nos marcos do que chamo de indianização do turismo ou apropriação Pataxó do turismo.3

Chamei esse processo de indianização do turismo, no mesmo sentido em que Sahlins (1997:53) se refere à indigenização da modernidade, como projeto de visão reflexiva sobre a inclusão das culturas indígenas no “sistema mundial”. Na perspectiva que defendo, a integração indígena na atividade turística se dá como um processo de apropriação pela cultura nativa do turismo, e do conjunto simbólico-conceitual que o acompanha, a partir dos entendimentos propostos por sua própria cosmologia.

À luz deste contexto é que pretendo discutir o processo de reconstituição de uma língua própria, urdido dialeticamente em relação com um processo de apropriação nativa do turismo e no contexto de uma situação de pressão interétnica. O desejo de reconstituição de uma língua própria é um processo movido entre os Pataxó por um anseio mais amplo de rearticulação de sua tradição. Tal demanda dialoga com a pressão interétnica na medida em que se passou a entender o domínio de uma língua própria como indicador de “autenticidade” das tradições indígenas. Neste sentido, o desejo dos Pataxó passava pela vontade de se afirmar como povo diferenciado, depositário justo de regime de direitos que inclui garantias tais como a posse e usufruto de porção de terra.

A reconstituição de uma língua própria: o diacrítico e seus usos

Os atuais Pataxó são, em termos de constituição étnica e demográfica, descendentes de contingentes distintos, compulsoriamente reunidos em um só aldeamento, ou aldeamentos próximos, no século XIX. Além dessa primeira mistura, forçada pelo aldeamento, aportam à formação populacional Pataxó diversas outras sortes de mistura com a sociedade envolvente. Por razões exaustivamente expostas em Carvalho (1977), Grunewald (1999), Oliveira (2004) e Peres (2004), entre outros, é possível perceber que nos processos de aldeamento indígena ocorridos em diversas áreas do nordeste, e mesmo no restante do Brasil, o uso de uma língua própria entre os índios foi intensamente reprimido como parte do processo de consolidação da dominação colonial. Assim, para os Pataxó, como para várias outras populações indígenas do nordeste, desde finais do século XIX até meados do século XX, a manutenção de uma língua própria significava risco iminente de aniquilação.

Por outro lado, como demonstra Peres (2004), ao longo dos processos de demarcação de terras que caracterizaram a atuação indigenista através do SPI, desde a década de 1960, o uso das línguas indígenas foi intensamente utilizado como sinal distintivo na identificação das populações indígenas. O Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) visava tanto à proteção e integração dos índios quanto à criação de colônias agrícolas (Decreto nº. 8.072, de 20 de junho de 1910). A idéia subjacente era que o 'Índio' era um ser em estado transitório, que se tornaria trabalhador rural ou proletário urbano. Em 1918 o SPI foi separado da Localização de Trabalhadores Nacionais (Decreto-Lei nº. 3.454, de 6 de janeiro de 1918), mas a premissa da integração continuou baseando a atuação do órgão.

Assim, no início da fase contemporânea da política indigenista oficial, o uso de uma língua própria passou a ser exigido de populações indígenas que, pouco tempo antes, testemunhavam esse mesmo uso ser intensamente reprimido, como é o caso, na Bahia, dos Índios estabelecidos na Reserva Caramuru-Paraguaçu (Pataxó Setentrionais ou Hãhãhãe), cujo contato com segmentos da sociedade regional ocorreu na primeira metade do século XIX. Em outros casos, os ascendentes dos atuais povos do Nordeste experimentaram, notadamente ao longo do Diretório Pombalino (1755-1798), a substituição compulsória das línguas indígenas pela língua dominante.

Com a tentativa, pelo SPI, de elaboração de um modelo oficial de índio, passível de ser percebido no inicio da atuação desse órgão, passou a vigorar no pensamento do senso comum sobre indígenas a idéia de que os índios “de verdade” deveriam falar uma língua própria. Como é possível demonstrar através de boa parte da literatura sobre a etnologia do nordeste indígena, essa situação deu causa à reconstituição ou tentativa de reconstituição -como instrumento da luta pela terra e pela afirmação étnica- de línguas indígenas para as diversas populações do nordeste.

Não se pode negar, por outro lado, que os processos de tentativa de reconstituição da língua foram alvo de alguns dos melhores investimentos indígenas no fortalecimento da tradição em muitos dos casos retratados na literatura etnológica do nordeste. Esse investimento na língua não é, necessariamente, representado como um investimento apenas político. Boa parte dos povos, como é o caso dos Pataxó, o vivenciam e representam como um processo de busca da tradição, simbolizando através da língua própria não apenas a continuidade de um passado do qual se tem orgulho, mas a celebração de uma ligação direta com ele. Assim é que a língua própria é instrumento privilegiado da fala com os “encantados” (diversos tipos de entidades espirituais encontráveis na mata).

Entre os Pataxó, esse tipo de tentativa demonstra, de maneira inequívoca, essa situação. É possível localizar essa demanda, por parte dos Pataxó, no inicio dos anos 1990 (Cf. Grunewald, 1999). Antes que motivada meramente pela necessidade de conquista de terras, ocorreu, internamente, como um movimento de busca de uma tradição que se dava por perdida. Passados muitos anos da demarcação da TI Coroa Vermelha, em 1997, os Pataxó continuam, presentemente, a envidar diversos esforços para a reconstituição da língua indígena.

Desde o inicio dos anos 1990, os Pataxó despertaram para a necessidade de constituição de um discurso sobre a identidade e tradição local que, entre outros aspectos, apontava para a reconstituição da língua. Grunewald (1999) ressalta a relação desse processo de constituição da tradição com a necessidade de articulação de um discurso diferenciador na arena turística, onde passaria a funcionar como incremento da atratividade indígena para a atividade e, portanto, como diferencial de mercado. Embora não deixe de considerar a validade prática dessa afirmação, bem como a boa sustentação empírica e teórica das afirmações do autor, pretendo, ao longo desta seção, apresentar outros aspectos desse processo. Objetivo demonstrar como, na interpretação que evoco do processo, a chamada invenção da cultura Pataxó (Id) se constitui como uma tentativa de articulação de um sentimento de continuidade com o passado, ainda que este seja passível de contestação do ponto de vista da historiografia local.

Gostaria, preliminarmente, de diferenciar o uso que faço, aqui, dos conceitos de invenção e reinvenção cultural, no mesmo sentido que lhes atribui Wagner (2006:40), i.e., não como meros elementos da criatividade cultural mais ou menos presentes na formulação da cultura de cada grupo social. Considero invenção, como em Wagner (2006:40), elemento imprescindível da formulação de qualquer cultura, bem como da interação entre indivíduos pertencentes a culturas diferentes. Assim, a invenção é elemento fundamental também da inteligibilidade das culturas e da interpretação que fazemos da cultura do outro.

Desde que iniciei o trabalho de campo entre os Pataxó, tenho ouvido considerações a respeito da reconstituição da sua língua, sendo ressaltado seu imenso valor para a afirmação da indianidade Pataxó. As evidências historiográficas, tais como os relatos de Wied-Neuwid (1989), demonstram que os Pataxó encontrados pelo autor falavam uma língua indígena, da qual ele efetuou um registro relativamente extenso. Essa língua é comumente tratada na literatura apenas pelo etnônimo atribuído ao próprio povo, Pataxó.

No entanto, o processo de aldeamento -como evidenciam Carvalho (1977), Grunewald (1999) e Cancela (2007) -fez perder-se, no uso cotidiano, a língua própria, misturada que foi com os falares de origem Tupi, apropriados da relação com os povos Tupi aldeados com os Pataxó no século XIX, e também com a apropriação intensa do português pelos índios desde antes do aldeamento. Assim, após mais de meio século de isolamento, entre o aldeamento no final do século XIX e a “redescoberta” dos índios na década de 1960, o uso de uma língua própria havia desaparecido. É assim que se registra o achamento de um povo que se denominava Pataxó, mas que não falava a língua indígena, mas a portuguesa, ainda que se tratasse de uma apropriação singular dessa última. No entanto, conforme relata Grunewald (1999), ainda na década de 1990 era possível encontrar, entre os mais velhos, alguns que se lembravam, confusamente, do uso de uma língua própria, que misturava vocábulos de uma língua Jê com o Tupi. Há também extensos registros, conforme coligidos por Grunewald (1999: 233-235), de viagens dos Pataxó aos Maxacali que resultaram em aprendizado dessa língua, ressaltadas as relações entre as línguas e entre as próprias populações Pataxó e Maxacali.

É nessa mesma década de 1990 que são mobilizados, de maneira mais eficiente, esforços para a reconstituição da língua. Esse trabalho, tal como retratado por Grunewald (1999: 233-235), nasce a partir de um grupo de jovens que estava empenhado no realinhamento da tradição étnica, bem como na articulação da atividade turística em Coroa Vermelha.

Esse grupo de índios, que se organizava em torno do então Projeto Jaqueira de Ecoturismo, afirmava desenvolver, tanto no projeto turístico quanto na tentativa de recuperação da língua indígena e de outros distintivos étnicos, um processo de reafirmação cultural e da indianidade Pataxó, face à intensa desvalorização e descrédito dessa indianidade, na região e alhures. A essa nova língua, que se buscava recuperar diretamente do léxico registrado por viajantes e outras fontes chamou-se Patxohã que, numa livre associação de palavras recolhidas tanto do relato de Wied-Neuwied quanto dos mais velhos, significaria ‘a linguagem do guerreiro’.4 A escolha desse nome, resultante já de alguma apropriação e construção sobre o vocabulário Pataxó recuperado, fora motivada, justamente, pelo caráter de resistência que se pretendeu conferir à articulação de um discurso sobre a indianidade Pataxó, da qual a língua fazia parte. Dito de outra forma, esse nome simbolizava um conjunto discursivo sobre a identidade, que tinha na manutenção da distinção um traço da resistência cultural protagonizada pelo grupo.

Esse processo de reconstituição, ainda em curso atualmente, conta com os esforços do grupo em duas frentes. Em primeiro lugar, trata-se de identificar palavras, cujo registro tenha algum eco na memória dos mais velhos, sobre uma língua que, segundo relatos dos próprios, se falava desde o tempo do aldeamento. Após esse primeiro momento de recolha das palavras, o vocabulário reunido é passado pelo filtro dos professores indígenas, sobretudo aqueles mais diretamente vinculados à questão da pesquisa sobre a língua - o que, por vezes, os vincula também ao projeto turístico indígena -, para que se possa proceder à organização do material encontrado, e assim sucessivamente.

Vale notar que essa pesquisa vem sendo realizada entre os mais velhos de todas as aldeias Pataxó desde os anos 1990, conforme o que a literatura etnológica da região tem registrado. Ainda durante o período em que estive em campo era possível verificar a ocorrência de viagens ocasionais desse grupo de pesquisadores indígenas pelas diversas aldeias, em busca de vocábulos e também da difícil reconstituição da estrutura gramatical. É fato que a procura pelas palavras parece ter surtido efeito muito maior do que a procura pela estrutura gramatical, havendo atualmente um número considerável de palavras registradas. Não é possível, de minha parte, precisar exatamente o número de vocábulos -embora já esteja próximo de 1500, de acordo com os relatos dos Pataxó- em função do processo constante de pesquisa, bem como da seleção pela qual passam as palavras, que passarei a discutir.

Conforme me foi dito em Coroa Vermelha, o processo de “procura da língua” é um dos “segredos dos índios” que não deveria “ser passado” para os brancos. Essa situação tem relação com uma preocupação constante dos Pataxó atuais a respeito da grande desconfiança com que a língua foi tratada pela literatura etnológica local. Tive a oportunidade de presenciar, em 2005, por ocasião da realização da XXVII Reunião Brasileira de Antropologia em Porto Seguro, a execução do Simpósio Especial Pataxó, organizado pelos professores Maria Rosário Gonçalves de Carvalho e Gabriele Grossi, onde ocorreram intensos debates, contando com a presença dos Pataxó, a respeito das características e peculiaridades da língua recuperada pelos Pataxó meridionais.

Nessa discussão podia-se perceber o incômodo evidente dos índios diante da caracterização da sua língua, pela professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, entre outras pessoas, como um dialeto. Essa caracterização, sob todos os pontos de vista linguísticos correta, pois afinal emitida por eminente lingüista, como é o caso da professora Rosa Virgínia, pesava muito fortemente sobre a reivindicação Pataxó de uma língua própria e apontava para a suposta insuficiência do trabalho de registro realizado. Haveria razões, por outro lado, para se especular até que ponto os arrazoados propostos pela lingüística não refletem do ponto de vista político, em última instância, uma visão etnocêntrica hierarquizante a respeito das línguas, sobretudo aquelas não-ocidentais.

Aquela ocasião foi, no entanto, apenas uma entre as diversas pelas quais os Pataxó têm passado desde o início do processo de reconstrução, que tem se constituído em duras provas para sua tenacidade. Assim, a preocupação com o conhecimento precoce dos brancos sobre o trabalho desenvolvido faz suspeitar que a contagem realizada até o momento, e registrada em apostilas, das quais pude contabilizar mais de 500 vocábulos, possa estar subestimada pela necessidade dos Pataxó de esconder suas descobertas recentes. Tal atitude, se procedente, estaria relacionada a duas outras razões concernentes à constituição da língua. Como já mencionado, o trabalho realizado não tem sido apenas de descoberta de vocábulos, mas de tentativa de descoberta da estrutura gramatical, o que requer que, antes de vir à luz através das apostilas de Patxohã, haja um trabalho de seleção sobre o que será difundido e ensinado. Nesse ponto, pode-se afirmar que os Pataxó estejam investindo intensamente na reinvenção de uma língua própria.

Para os Pataxó, há princípios básicos para os quais a constituição da língua própria deverá atentar. Bem ou mal informados a respeito da literatura etnológica Pataxó, sabem que o tronco linguístico ao qual pertence sua língua ‘original’ é o Macro-Jê, cuja estrutura pode apresentar certa similaridade com a da família Maxacali. Além disso, sabe-se que houve intensa mistura, no falar dos mais velhos, com falantes do tronco Tupi, bem como mistura com a língua geral e, mais tarde, com o português. Toda essa sorte de misturas, quando redescobertas pelas memórias dos mais velhos e nos momentos em que foi descoberta, imediatamente, pelos Pataxó, os expôs à pecha de ignorantes, tal como relata Sahlins (2004:510). Segundo o autor, há determinadas situações em que tais apresentações dos nativos através de uma caracterização funcionalista pobre de espírito os retrata como sujeitos incapazes de diferenciar os efeitos do imperialismo (nesse caso, a mistura de línguas) e suas tradições (nesse caso, a língua original).

Assim, os Pataxó, na tentativa de evitar ser confundidos com ignorantes a respeito de sua própria tradição étnica, têm adotado como estratégia fazê-la passar pelo filtro da tradição lingüística. Consideram que a tradição está relacionada principalmente ao tronco Macro-Jê. Tem sido realizado, recentemente, um processo de filtragem e dos vocábulos de origem Tupi e a divulgação e ensino apenas dos vocábulos ligados ao tronco Macro-Jê. Esse processo, do qual os índios não dão mais do que pequenas pistas, tem sido conduzido, e pode ser exemplificado, através da eliminação de termos dissonantes, tal como o que Grunewald (1999:234) apresenta em seu trabalho de campo. O autor aponta uma dissonância em um dos vocábulos usados com maior constância pelos Pataxó: “Confirma que tem muitas palavras em Barra Velha que tem também em Maxacali como, por exemplo, casa, que seria em Pataxó tupavéi e em Maxacali quijeme, como falam a maioria dos Pataxó”. Atualmente é possível afirmar que essa dissonância vocabular não mais persiste, tendo sido adotado, curiosamente, o vocábulo apontado como Maxacali.

Tal assim ocorreu porque o vocábulo apontado como Pataxó, nessa discussão, tupavéi, tem origem Tupi,5 portanto, a escolha mais coerente com o pertencimento ao tronco Macro-Jê seria quijeme. Nesse processo de realinhamento da língua, todas as palavras e a própria estrutura têm passado inicialmente por esse filtro, do pertencimento ao tronco Macro-Jê. Assim, os Pataxó têm investido num processo de “limpeza” das palavras da língua, em prol da constituição de uma imagem “mais correta”, coerente com a pretensa pureza que deveria ter uma língua propriamente Pataxó.

Outro fator que motiva o segredo que eles constroem em torno da língua diz respeito à pesquisa desenvolvida ‘com os mais velhos’. Esse processo é mantido em segredo da maior parte dos brancos que passam por Coroa Vermelha. Isso porque uma das idéias que se pretende transmitir com a língua é a da espontaneidade e não exatamente de um processo de recuperação. Os Pataxó não se esforçam por tornar claro para todos que o trabalho de reconstituição da língua é um processo de reinvenção, e o esclarecimento só ocorre, em seu sentido mais amplo, quando são questionados diretamente a esse respeito. Além disso, ainda que revelem que são feitas ‘conversas com os mais velhos’ para ‘descobrir palavras’, a natureza dessa pesquisa igualmente não é tornada clara para aqueles que não interrogam mais profundamente os meandros do processo. Os Pataxó, nesse caso, não se esforçam por clarificar que realizam viagens ocasionais para as mais diversas aldeias da região, preferencialmente Monte Pascoal, Barra Velha e Boca da Mata, em busca de encontrar ainda índios que possuam alguma recordação, por mínima que seja, de uma língua indígena operacional entre eles. Essas viagens de pesquisa, e isso é outro aspecto do qual os Pataxó procuram fazer segredo, em alguns casos se estendem à aldeia Caramuru-Paraguassu e, portanto, aos Pataxó Hãhãhãe (Setentrionais) ou mesmo aos Pataxó de Carmésia e aos Maxacali, quando se tem a possibilidade de viajar em grupos maiores para a região, embora, em geral, a motivação principal da viagem não seja o aprendizado da língua.

Os Pataxó, como já referido, não gostam de tornar claras suas estratégias e, muitas vezes, assim como registrado por Grunewald (1999:233), negam visitas realizadas aos Maxacali e aos Pataxó Hãhãhãe, porque essas iniciativas, de acordo com a sua experiência passada, podem levá-los a ser acusados de ignorância a respeito de sua língua ou mesmo de estarem forjando, de maneira tosca, uma língua.

Assim eles procuram, atualmente, constituir em torno da língua própria uma estratégia de segredo, não exatamente nova para a teoria sobre os movimentos étnicos, que se relaciona com seu processo de reinvenção. Partindo de pistas iniciais, tais como o registro de Wied-Neuwied, os falares Pataxó Hãhãhãe e seu registro, as viagens aos Maxacali, realizadas desde a década de 1960, e o conhecimento dos mais velhos, um grupo formado por índios de diversas aldeias recolheu um conjunto considerável de palavras sistematizadas em um vocabulário que, como bem define Grunewald (1999), assenta-se sobre a estrutura gramatical do português. Sobre esse aspecto é interessante atentar para uma afirmação de Carneiro da Cunha (2009:237) que citarei longamente, para a ilustração de um raciocínio que, suponho, aqui se aplica:

A questão da língua é elucidativa: a língua de um povo é um sistema simbólico que organiza sua percepção do mundo, e é também um diferenciador por excelência: não é à toa que os movimentos separatistas enfatizam dialetos e os governos nacionais combatem o polilinguismo dentro de suas fronteiras. No entanto, a língua é difícil de conservar na diáspora por muitas gerações, e quando se o consegue, ela perde sua plasticidade e se petrifica, tornando-se por assim dizer uma língua fóssil, testemunha de estados anteriores. Ora, quando não se consegue conservar a língua, constrói-se muitas vezes a distinção sobre simples elementos do vocabulário, usados sobre uma sintaxe dada pela língua dominante.

A primeira questão sobre a qual gostaria de me deter, retomando o raciocínio de Carneiro da Cunha à luz do caso Pataxó, será a respeito da dificuldade de conservação da língua na diáspora. Considero, em certo sentido, que desde o início do avanço mais sistemático da colonização sobre suas terras, os Pataxó se tornaram um povo em diáspora. Se na primeira etapa dos contatos interétnicos já parecia haver uma mobilidade incomum na realização de trocas com outras sociedades indígenas, ou mesmo com a sociedade dos não índios, e a realização de longos deslocamentos para obtenção de caça como reserva protéica, tal como demonstrado, exaustivamente, por Sampaio (1996). Depois dos contatos mais intensos os deslocamentos, agora em fuga, se tornaram ainda mais extensos e só cessaram momentaneamente com o aldeamento no final do século XIX. Ainda assim, é do período do aldeamento um dos mais importantes fatos da diáspora Pataxó, i.e., o do fogo de 1951,6 que teria conduzido à atual organização socioespacial caracterizada por constantes deslocamentos de uma aldeia a outra, em busca de melhores condições de vida. Esses momentos diaspóricos certamente constituíram dura prova à tentativa de manutenção de uma língua, assim como o aldeamento forçado pelo empreendimento colonial e a mistura, ocasionada também em parte pela situação colonial, a que foram compelidos.

Assim, historicamente, se os Pataxó tivessem tido condições para tal, poderiam ter optado pela tentativa de conservar uma língua em situações de diáspora diversas que, ao longo de cada um dos casos e situações específicas, acabaria por sofrer o destino narrado por Carneiro da Cunha (2009:237), i.,e., de perda da plasticidade e petrificação até tornar-se uma língua fóssil ou deixar-se perder nas misturas com outras línguas.

Embora a situação não se tenha passado como uma escolha, por conta da imposição colonial e situação de penúria, a língua Pataxó se perdeu em meio às vicissitudes. No entanto, a língua, conforme demonstrado por Carneiro da Cunha (2009:237), não é um traço cultural dos mais marcantes exatamente pelas especificidades de cada uma, mas pela propriedade que todas possuem de organizar a percepção de mundo, por um lado, e ser elemento diferenciador, de outro.

Nesse sentido, pode-se considerar que a língua, para os Pataxó, continuou conservando, ao longo da história, suas propriedades. Por um lado, relatos de Carvalho (1977) a respeito da apropriação bastante particular do português encontrado entre os Pataxó de Barra Velha, nos anos 1970, apontam para o fato de que como sistema de organização de suas representações de mundo, a língua portuguesa em uso pelos Pataxó não passou incólume à apropriação (e, portanto, organização e expressão de percepções de mundo) por parte de uma sociedade diferente daquela na qual foi criada. Por outro lado, não deixou também de ser essa língua, elemento diferenciador. Assim, o fato de ser a língua indígena construída sobre uma “sintaxe dada pela língua dominante”, como afirma Carneiro da Cunha (2009:237), é resultante da propriedade da língua de funcionar como elemento diferenciador, agora a partir dos vocábulos e de um uso particular que abordarei a seguir, ainda que sem repetir a estrutura gramatical indígena, abandonada.

Em relação ao uso que se faz das palavras da língua Patxohã, entre os atuais Pataxó, importa destacar aspectos relevantes que contribuem para o reforço de minha hipótese quanto à aplicabilidade, ao caso Pataxó, do raciocínio proposto por Carneiro da Cunha (2009:237). Quando a autora afirma que uma das estratégias para se reforçar o discurso de distintividade étnica através da língua seria o reforço do uso de vocábulos próprios, ainda que sobre a estrutura gramatical dominante, creio ser possível encontrar situação similar no uso que se faz atualmente do Patxohã.

O uso da língua indígena é bastante reduzido tanto no cotidiano dos índios quanto no trato com os turistas, embora afirmassem a Grunewald (1999:233-240) que a língua era do agrado dos turistas e, por essa razão, usada no trato cotidiano com os mesmos. Baseando-se nessas afirmações, o autor construiu a interpretação de que as necessidades da arena turística é que teriam ensejado a reconstrução da língua indígena. Basicamente, as situações registradas, durante as etapas do trabalho de campo, em que língua indígena foi utilizada com os turistas se restringiram à utilização dos vocábulos Kaiambá (= dinheiro) e da nomeação de alguns objetos do cotidiano, tais como Tupissai (= vestimenta), Quijeme (= casa), Jokana (=mulher), Baixú (= bonita(o)), Baiká (= feia(o)), Thirry (= índio) entre outras. Além dessas, observei a utilização de palavras que são de uso corrente em conversas entre os próprios Pataxó e com os não índios, sejam eles turistas ou não, tais como Kitoko ou Kitoque (= criança/menino(a)), Minanga (= lagoa/lago), Txohã (= guerreiro), etc. Outra situação em que a língua indígena é acionada é na prática dos rituais e na criação de letras de música que estão a eles associadas, cantadas em Patxohã, mas de uso também bastante restrito.

Para além dessas situações a língua indígena é, em geral, muito pouco utilizada, o que aponta para a questão evocada por Carneiro da Cunha a respeito das perdas que a diáspora impõe a uma língua. Sem plasticidade, ainda que recuperada em extenso vocabulário, posto a funcionar sobre a sintaxe do português e ensinado na escola, o Patxohã acabaria, caso fosse, de fato, utilizado como língua corrente, restrito à situação de testemunha de estados anteriores, mais do que meio de organização do sistema local de representações do mundo.

Essa me parece ser a razão que subjaz a outra forma de utilização do Patxohã que considero relevante entre os Pataxó; como estratégia de preservação. Vivendo sob o constante exercício da fronteira étnica (contato intenso não apenas com a sociedade regional, mas com o fluxo turístico intenso), os Pataxó fazem uma utilização daquilo que aprendem na escola, e que as crianças difundem do Patxohã, como forma de colocar determinados aspectos da conversação diária fora do alcance dos não índios, sejam eles turistas ou regionais.

Antes de proceder à explicação mais aprofundada a respeito da forma como suponho que funciona esse aspecto da linguagem, gostaria ainda de tecer algumas considerações sobre sua difusão. Obviamente que o Patxohã está longe de ser um conhecimento homogeneamente distribuído entre os Pataxó. Embora na sustentação de um discurso de distintividade étnica a língua apareça como um conhecimento a que todos têm acesso, esse acesso, tanto quanto sua conseqüente utilização, estão restritos a alguns meios sociais e contam com ferramentas de difusão claramente insuficientes.

Basicamente, o ensino do Patxohã se restringe às escolas indígenas existentes em cada uma das aldeias ou a pequenos núcleos difusores. Na escola as crianças, geralmente até uma idade máxima de 12 anos, aprendem aspectos do vocabulário e a sintaxe da língua (conforme já referido, a sobreposição do vocabulário na sintaxe do português) acompanhados de parco exercício prático. Essa situação é motivadora de um uso extremamente restrito daquilo que é aprendido. Sem o exercício prático e cotidiano da utilização completa da língua como meio de comunicação, ou seja, sem o exercício das sentenças e diálogos em Patxohã, a língua se aproxima de uma espécie de código taquigráfico, mais até do que de um dialeto. O processo de aprendizagem, embora amplo na escola, como demonstram as apostilas, não é acompanhado de uma utilização igualmente ampla no cotidiano, nem mesmo no cotidiano da escola.

Por essa razão a língua fica num interstício entre o uso do português (norma culta e apropriação local) e a pretensão de recuperação de uma língua própria. As crianças, assim, ao aprenderem o Patxohã -muito embora possam ser consideradas as pessoas na aldeia que, fora do círculo dos professores indígenas, sejam as que têm maior conhecimento e fluência na língua- não aprendem ou são instadas a exercitar essa língua, dando-lhe a plasticidade de que necessitaria para ser uma língua ‘de fato’. É a essas crianças que se confia a tarefa de difusão ampla da língua, papel que efetivamente desempenham, em termos.

A ressalva que se pode fazer à difusão que as crianças fazem da língua é a de que ela seja restritiva. Se no ensino já se fica limitado a uma parte relativamente pequena do vocabulário e a um parco exercício de sua utilização, na difusão realizada pelas crianças, torna-se um conjunto extremamente limitado de vocábulos utilizados de maneira casual. Essa situação acaba por tornar a língua pouco útil como veículo de organização das representações de mundo, como já mencionei, posto que sua utilização é restrita social e linguisticamente. Assim, ela se torna um conjunto de vocábulos que faz algum efeito social para operar no eixo da distinção étnica e construção da fronteira, ou ainda, uma linguagem restrita que permite colocar a salvo conversas particulares em contextos de interação intensa.

Isso posto, gostaria de insistir na referência ao modo casual de utilização cotidiana do vocabulário descoberto para dizer que o Patxohã, na forma de sua utilização atual, funciona, em grande medida, como linguagem fugidia para o ‘de fora’, mantendo a salvo a comunicação da comunidade quando não se pretende que o outro lhe conheça o conteúdo. Seria relevante lembrar que os Pataxó que realizam contatos mais intensos com os “brancos” são, em geral, aqueles que possuem maior conhecimento sobre o Patxohã.

Essa situação se dá porque, por um lado, são os mais jovens que têm acesso tanto ao ensino da língua na escola, quanto ao trabalho cotidiano no mercado turístico, em situação mais destacada, sobretudo devido ao seu grau mais elevado de escolarização. Por outro lado, a situação ocorre porque se considera mais adequado, quando se seleciona alguém para interagir com a sociedade envolvente (sejam turistas ou regionais), que tal pessoa, na medida do possível conheça bem o Patxohã, de forma a compor uma representação que seja capaz de apresentar, com “autenticidade”, a narrativa da distinção étnica sustentada pelo projeto de indianidade Pataxó.

Assim, a língua atualmente se encontra numa situação em que pode ser considerada, a um só tempo, ampla e restrita. Por um lado, possui uma difusão ampla, se forem considerados os aspectos de sua utilização cotidiana em que há investimento simbólico no potencial diferenciador do uso de um vocabulário próprio. Por outro lado, há um conhecimento vocabular e sintático restrito, se considerada sua extensão até o momento e, mais ainda, se considerados os processos de reconstrução e reinvenção da língua, ou seja, se considerados seus operadores simbólicos. Entendo os operadores simbólicos da língua Pataxó como um conjunto destacado de sujeitos inseridos no já restrito universo dos professores indígenas que realizam pesquisas sobre a língua. Esses sujeitos operam não apenas descobrindo novos vocábulos, mas participando do processo de articulação da sintaxe, bem como na exclusão dos vocábulos de origem étnica diversa, como os Tupi, encontradiços em suas pesquisas entre os mais velhos.

Por fim, no que diz respeito à sua utilização, inúmeros foram os casos que presenciei em que os Pataxó, em determinados contextos de interação com “brancos” (turistas, regionais e, por vezes, até mesmo comigo), se utilizaram do Patxohã para conversar sigilosamente entre si, na presença de outros. Uma das situações em que tal expediente foi utilizado diz respeito ao início de minha pesquisa de campo.

Naquele momento eu tinha um conhecimento ainda mais reduzido das palavras do Patxohã do que o atual e visitava a Reserva da Jaqueira com a finalidade de produzir alguns dados iniciais a respeito dos rituais. Quando perguntei a dois dos meus interlocutores, Taquari e Txohã, sobre o papel do Pajé Itambé no exercício das funções no ritual e na cura, eles se entreolharam, balbuciaram algo como Indirry (= brancos/ não-índios)7 e gargalharam antes de me responder que Itambé era um ‘Pajé comercial’, cuja função era entreter turistas.8 Naquela situação, compartilharam, em Patxohã, uma expressão de escárnio em relação a minha pergunta, como ‘bobagens de branco’, aludindo a certa ingenuidade da minha parte, antes de me “esclarecerem” que Itambé não era Pajé ‘de verdade’. Claro que, nesse caso, a interpretação sobre o papel do Pajé Itambé era também um ponto de vista parcial e a expressão escarninha não era direcionada apenas à minha pergunta9. Para além dessa questão específica, esse é um caso cuja intenção socialmente condenável (por exemplo) de debochar do interlocutor (no caso, eu) e de outro índio (no caso Itambé) é mascarada pela utilização da língua indígena.

Em outros casos em que presenciei desacordos na presença de brancos - sobre o preço de determinado artesanato, a versão correta de determinada história (por exemplo, do início do artesanato Pataxó) ou o melhor lugar para se fazer pesca de arrasto - estes foram geralmente expressos em Patxohã (ainda que não sejam resolvidos) entre os próprios querelantes, para que não se exponha ao branco em questão (frequentemente eu, mas eventualmente turistas ou regionais) o desacordo ou sua razão de ser.

Quanto mais aprendia palavras em Patxohã, mais percebia que esses conflitos dificilmente chegavam a ser resolvidos na própria língua, pois os interlocutores raramente conheciam palavras suficientes para esgotar a discussão. O uso da língua indígena servia mais como espaço para resguardar o conflito da presença incômoda do branco, ainda que uma possível solução tivesse que ser postergada para um momento em que se pudesse falar em português.

Assim, ademais do investimento em um vocabulário que reforça o discurso diferenciador dos Pataxó na arena interétnica, em Coroa Vermelha e, de maneira mais ampla, no sul e extremo sul da Bahia, o Patxohã é também utilizado pelos Pataxó como uma linguagem cifrada. Nesses casos, teria por função manter o interlocutor branco alheio a determinado conteúdo da conversa que se pretenda esconder. Nesse sentido, a linguagem é também uma estratégia importante colocada em jogo no agenciamento da indianidade Pataxó. Quanto mais capazes sejam os sujeitos de utilizar o Patxohã, mais aptos estarão a interagir com os brancos, sendo capazes de se comunicar entre si sem ser compreendidos pelos presentes, de forma que se torne possível conspirar, construir acordos ou evitar divergências, mantendo-se o senso de coesão que se deseja transmitir.

Por fim, gostaria ainda de tratar de um aspecto em relação à utilização da língua que considero ser apropriado tomar em conta. Ao fim e ao cabo, estivemos envolvidos na discussão sobre os diacríticos, seus usos e seu papel na articulação de um discurso sobre a indianidade Pataxó. Em relação ao assunto considero providencial recorrer novamente a um excerto do texto “Etnicidade: da cultura residual, mas irredutível” de Manuela Carneiro da Cunha (2009:235-244), no qual a autora se interroga sobre a utilização do conceito politicamente operatório da etnicidade. Carneiro da Cunha (2009:237-240) afirma que:

A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste: esse novo princípio que a subentende, a do contraste, determina vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos. […] Assim, a escolha dos tipos de traços culturais que irão garantir a distinção do grupo enquanto tal depende dos outros grupos em presença e da sociedade em que se acham inseridos, já que os sinais diacríticos devem poder se opor, por definição, a outros do mesmo tipo.[…] Vimos que a questão de saber quais os traços diacríticos que serão realçados para marcar distinções depende das categorias comparáveis disponíveis na sociedade mais ampla, com as quais poderão se contrapor e organizar em sistema.[…] Mas essa dependência que limita as opções possíveis não é ainda uma determinação positiva. E tivemos de recorrer então à ideia de um “acervo cultural” do qual se retiram esses traços diacríticos, eventualmente reconstruindo-os. Novo resíduo, esse recurso à cultura, resíduo que é o quinhão de uma abordagem estruturalista, levada a invocar uma inércia, uma permanência das formas culturais. Se tais formas culturais situam-se dentro de um sistema estruturado de significantes, este sistema, embora confira seu sentido aos elementos que o compõe, por meio de oposições, correlações, etc., não determina, no entanto, inteiramente esses elementos. Ou seja, ao considerarmos essa dinâmica cultural, podemos parafrasear o que Lévi-Strauss objetou aos funcionalistas: os traços culturais selecionados por um grupo ou fração de uma sociedade não são arbitrários, embora sejam, no entanto, imprevisíveis. Resignemo-nos epistemologicamente e alegremo-nos com as surpresas que essa imponderabilidade nos reserva: a de vermos, por exemplo, instituições como a Igreja ou sociedade de amigos de bairro tomarem significações e alcance inesperados.

Assim, para a autora, a construção operatória da etnicidade não pode servir para obscurecer o fato de que o diacrítico deriva da organização e simbolização de elementos de um acervo cultural pertinente ao grupo. Esse acervo cultural seria o articulador de um senso de continuidade que funciona de forma semelhante a outros aspectos - tais como o artesanato, a territorialidade e o parentesco - como formadores de um senso de comunidade, uma socialidade, em outros termos. Dessa forma, os Pataxó enxergam na rearticulação de elementos de um acervo cultural uma volta ao mesmo, ainda que transformado. Carneiro da Cunha (2009:237-240) chama a atenção para o fato de que essa tentativa de fazer passar o outro pelo mesmo, antes que inconsciente é algo que ocorre no nível ideológico, quando o questionamento dessa operação simbólica é abortado em nome do reconhecimento mecânico de sua consistência. Esse reconhecimento é, simultaneamente, ideológico e mecânico na medida em que legitima o discurso mais amplo sobre a etnicidade.

Deste modo, para os Pataxó, a retomada da utilização de uma língua própria, que faz passar o outro (uma língua recuperada e rearticulada na sintaxe da língua dominante) pelo mesmo (uma língua original, da qual se tem poucos registros), produz um senso de continuidade que, embora não se ignore como construído, não se vê também como arbitrário, mas contínuo a um acervo cultural. A continuidade com esse acervo cultural ‘possuído’ pelo grupo é que dá a consistência que os Pataxó efetivamente atribuem à língua.

Esse processo possui profunda imbricação com a atividade turística, na medida em que, como demonstrei, a maior parte das oportunidades de exibição da língua própria se encontram circunscritas à arena do turismo. Ademais, o processo de articulação de uma língua própria está ligado ao turismo na medida em que se tornou um elemento fundamental da atratividade turística indígena. Com isso não se quer dizer que tenha sido o turismo o motivador da procura pela rearticulação de uma língua própria. Como procurei demonstrar existem outros processos que motivam a busca pela língua que tem relação com a importância de estabelecer a distintividade étnica tanto para a comunidade por razões intrínsecas, quanto como estratégia para garantir o reconhecimento do regime de direitos originários face à legislação brasileira.

Deste modo, o processo busca pela retomada da língua própria acabou sendo extremamente relevante para a atividade turística, sendo objeto de profundo interesse dos turistas que visitam a aldeia de Coroa Vermelha no município de Santa Cruz Cabrália. Nesse contexto, os turistas divertem-se em aprender palavras da língua própria, buscando adquirir conhecimentos sobre a comunidade local, ainda que se possa questionar a superficialidade com que o fazem. Ademais o reforço da fronteira étnica tem importante relação com a atividade turística e com os turistas. O reconhecimento por parte dos turistas da indianidade Pataxó é um elemento de importância substancial na região, tendo em conta a importância da atividade turística para a economia local. Sem sombra de dúvida, a importância atribuída pelos turistas aos indígenas torna-se em um importante elemento de sua estratégia de valorização e legitimação política que tem na língua e sua reconstituição um aspecto fundamental.

Conclusões

A rearticulação de uma língua própria, portanto, é um processo político, na medida em que opera com os critérios de di-visão do mundo social. Ao colocar categorias de representação do mundo social a serviço de processos de hierarquização se vive uma dialética da invenção. O movimento pendular entre a reconstrução de uma tradição até um momento irrecuperável e a invenção de novas formas de pensar a partir de um acervo cultural são elementos fundantes de um novo modo de se pensar a própria tradição. Não mais como simples continuidade imutável, ainda que eventualmente seja assim imaginada pelo grupo, mas como rearticulação e releitura da tradição no interior de um processo de afirmação política.

É no bojo deste conjunto complexo de relações que os Pataxó de Coroa Vermelha operam a tentativa de reconstituição de uma língua própria. Se em outros momentos tal demanda pôde ser corretamente atribuída às imposições coloniais, na contemporaneidade Pataxó se poderia dizer que atende a uma motivação interna. Reconstituir o senso de continuidade com o passado, como estratégia de afirmação de certo projeto de indianidade, parecer ser a ordem do dia em Coroa Vermelha. Em toda parte dessa aldeia, se procura a reafirmação do projeto de indianidade Pataxó, elemento fundamental de toda sua luta política pelo território e pela manutenção de seu modo de vida.

O processo de rearticulação da língua própria é ainda embrionário e está extremamente vinculado às injunções políticas contextuais mais imediatas, como a luta pela terra. Por essas entre outras razões é que se encontra ainda um língua com pouca plasticidade e operacionalidade, uma vez que toda a comunidade está ainda em processo de aprendizagem desta.

Ainda assim, no que diz respeito à sua função de diacrítico, o Patxohã já se encontra em franca operacionalidade entre os Pataxó, servindo como diferenciador da sociedade regional e em relação aos turistas, com os quais os índios cotidianamente convivem, fortalecendo a construção da fronteira étnica.

Acredito ter tido a ocasião de demonstrar as formas extremamente engenhosas a partir das quais os Pataxó pretendem manter o que consideram que seja sua tradição cultural face ao processo inexorável da mudança. Estas ações se passam tendo como mola mestra a capacidade de adaptação a toda prova deste povo que, desde a colonização, já teve oportunidade de demonstrar diversas vezes sua capacidade de incorporação da alteridade a partir de um regime próprio de subjetivação e apropriação do exógeno.

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1Quando me refiro à questão da indianidade, o faço, com referência a um conjunto de autores, entre os quais Viveiros de Castro (1999) e Gordon (2003), para ficar apenas em dois exemplos, que se utilizam o termo para demarcar a residual diversidade da etnicidade indígena em relação a outras, face ao problema atual de emergência do sentido político do conceito.

2Em Neves (2012) coligi a bibliografia disponível até aquele período a respeito de ocupações Pataxó anteriores na região.

3Em Neves (2012) discuto a interpretação de que tal apropriação se dá em coerência com arranjos cosmopolíticos tipicamente Jê, de apropriação e predação do exógeno (Gordon, 2003). Essa é uma das razões pelas quais advogo a tese de que a apropriação/incorporação/domesticação do turismo, antes que mera etapa do processo de modernização, representa uma linha de continuidade com a tradição Pataxó/Jê.

4Trata-se de uma livre associação, não passível de corroboração por nenhum registro a que eu tenha tido acesso, de fonte direta ou historiográfica.

5Na realidade possivelmente um junção do Tupi, Tupã, com outro vocábulo, este sim Jê, Véi.

6O chamado “Fogo de 51” refere-se a eventos dados no ano de 1951 que envolvem a entrada de brancos, com motivações tidas por criminosas, na aldeia de Barra Velha. Nesse ocasião, tais sujeitos teriam convencido um grupo de índios a ir assaltar uma venda de brancos na cidade e mais tarde ocasionado uma invasão policial à aldeia que terminou em massacre de vários índios. Esses eventos, amplamente descritos em Oliveira (2001) e em Kohler (s/d), motivaram a primeira grande evasão de Barra Velha, seguida depois por fluxos menores, mas constantes, de índios que saiam em busca de melhores condições de vida.

7Infelizmente, face ao pouco conhecimento da língua à época não fui capaz de identificar e registrar os outros vocábulos, ficando impossível rememorá-los e reconstituir o sentido exato da conversa.

8Alhures, Neves (2011; 2015) relato mais longamente a posição particular do Pajé Itambé quanto ao turismo e à função de Pajé. Para o efeito deste texto bastaria remeter ao fato de que o personagem aludido - Pajé da aldeia de Coroa Vermelha - desde o início dos anos 2000, em função de uma conversão religiosa a uma confissão neopentecostal, deixou de exercer funções de cura e reza para ater-se a um papel mais simbólico de representação pública da figura de Pajé. Essa posição é reforçada pelo fato de ter sido ele um dos mais importantes líderes da luta indígena pela terra o que lhe garante uma posição de legitimidade simbólica. Itambé possui ainda uma loja em que comercializa produtos derivados de ervas naturais e se serve largamente do papel de Pajé (embora não execute algumas tarefas classicamente consideradas como a ele pertinentes) para legitimar a produção dos artigos que comercializa. Eis aí a razão para ser chamado de Pajé comercial, às vezes com uma expressão escarninha.

Recebido: 23 de Junho de 2016; Aceito: 29 de Março de 2017

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