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Revista latinoamericana de investigación en matemática educativa

versión On-line ISSN 2007-6819versión impresa ISSN 1665-2436

Relime vol.22 no.1 Ciudad de México mar. 2019  Epub 23-Abr-2021

https://doi.org/10.12802/relime.19.2212 

Artigos

A aprendizagem de regras do sistema matemático escolar na modelagem matemática1

The learning of rules of school mathematics system in mathematical modelling

Elizabeth Gomes Souza* 
http://orcid.org/0000-0001-7119-0348

Jonei Cerqueira Barbosa** 
http://orcid.org/0000-0002-4072-6442

* Universidade Federal do Pará, Belém - Brasil. elizabethgs@ufpa.br

** Universidade Federal da Bahia, Salvador - Brasil. jonei.cerqueira@ufba.br


Resumo

Este artigo objetiva analisar a aprendizagem matemática que se constitui na modelagem matemática em sala de aula, entendendo modelagem matemático como organização de situações empíricas. Analisamos essa temática a partir da compreensão de matemática como sistema normativo regido por regras. Trata-se de uma compreensão elaborada pelas análises das delimitações filosóficas de Ludwig Wittgenstein e dos entendimentos teóricos de Anna Sfard. Os discursos produzidos por um grupo de alunos e uma professora, durante a implementação da modelagem, foram adotados como material empírico para análise da temática e obtidos por meio do procedimento de observação. Os usos que os alunos e a professora atribuíram as palavras nos permitiram apontar que o jogo discursivo de modelagem é jogado sob as regras instituídas na forma de vida da matemática desenvolvida no contexto escolar.

Palavras chave: Modelagem matemática; Aprendizagem matemática; Sistema matemático escolar; Jogo discursivo

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar el aprendizaje de las matemáticas que se constituyen en la modelización matemática en el aula, entendiendo a la modelización matemática como la organización de situaciones empíricas. Analizamos el tema a partir de la comprensión de las matemáticas como sistema normativo regido por reglas. Se trata de una comprensión desarrollada por los análisis de las delimitaciones filosóficas de Ludwig Wittgenstein y de las interpretaciones teóricas de Anna Sfard. Los discursos producidos por un grupo de alumnos y de una profesora, obtenidos mediante la observación de situaciones empíricas, fueron utilizados como material para el análisis del tema. Los usos que los alumnos y la profesora atribuyeron a las palabras nos permitieron identificar que el juego discursivo de modelización es jugado bajo las reglas instituidas en la forma de vida de las matemáticas desarrolladas en el contexto escolar.

Palabras clave: Modelización matemática; Aprendizaje matemático; Sistema matemático escolar; Juego discursivo

Abstract

This article aims to analyze of what mathematics learning is constituted in mathematical modelling from the understanding of modeling as an organization of empirical situations. This issue has been analyzed based on the understanding of mathematics as a normative rule governed system. This view of mathematics is based on Ludwing Wittgenstein’s analysis of philosophical delimitations as well as Anna Sfard’s theoretical understanding about it. The discourses produced by a group of students and a teacher during the implementation of the modelling have been adopted as empirical material for the analysis of the theme. These data have been collected through observation method. The uses that the students and the teacher attributed the words allowed us to point out that the discursive modeling game is played under the rules instituted in the mathematical way of life developed in the school context.

Key words: Mathematical modelling; Mathematics learning; Mathematics system school; Discoursive game

Résumé

Cet article vise à analyser l’apprentissage mathématique que constitue la modélisation mathématique de la compréhension de la modélisation en tant qu’organisation de situations empiriques. On analyse ce thème à partir de la compréhension des mathématiques en tant que système normatif régie par des règles. Les analyses des délimitations philosophiques de Ludwig Wittgenstein et les études théoriques de Anna Sfard sont à la base de ce point de vue. Les discours produits par un groupe d´étudiants et une enseignante, au cours de la mise en oeuvre de la modélisation, ont été adoptés comme matériel empirique pour analyser ce sujet et ont été obtenus par une procédure d´observation. Les utilisations que les élèves et l’enseignant ont attribuées aux mots nous ont permis de souligner que le jeu de modélisation discursif se joue selon les règles instituées dans le mode de vie mathématique développé dans le contexte scolaire.

Mots clés: Modélisation mathématique; Apprentissage mathématique; Systéme mathématique scolaire; Jeu discursif

1. Introdução

De maneira geral, modelagem matemática em âmbito educacional pode ser entendida como uma prática pedagógica em que os alunos são convidados a investigar, problematizar e compreender situações - problema do dia a dia, das ciências e do mundo do trabalho, utilizando conceitos e procedimentos matemáticos escolares (Souza & Barbosa, 2014; Lorin & Almeida, 2015).

As dificuldades dos alunos em aplicar, usar e problematizar esses procedimentos e conceitos em situações cotidianas e realísticas são constatadas pelos baixos índices atingidos pelos alunos em avaliações de aprendizagem matemática, como as realizadas pelo PISA (Programme for International Student Assessment) e pelo Ministério de Educação Brasileiro.

Com objetivo de fortalecer o ensino da matemática por meio de situações realísticas, em 1983, ocorreu a formação do ICTMA (Internation Conference on The Teaching of Mathematical Modelling and Applications), filiado ao International Commission on Mathematics Instruction (ICMI). Este grupo tem consolidado e divulgado pesquisas sobre a implementação da Modelagem e Aplicações em sala de aula em todos os níveis de escolaridade (Stillman, Kaiser, Blum, & Brown, 2013).

Pesquisas divulgadas no ICTMA, bem como em diferentes meios científicos, discorrem consensualmente que a implementação da modelagem matemática em sala de aula gera importantes repercussões para a aprendizagem matemática, como a proficiência em resolver problemas pautados em situações do dia a dia, do mundo do trabalho e das ciências, a tomada de decisão pautada na presença da matemática na sociedade, a elaboração de argumentos matemáticos fundamentados, a utilização de diferentes procedimentos matemáticos na resolução das situações - problema, entre outros (Stillman, Blum., & Biembengut, 2015).

Entre os argumentos favoráveis à implementação da modelagem em sala de aula, a aprendizagem matemática pode ser identificada com um dos recorrentes. Alguns estudos apontam a aplicação dos conceitos matemáticos em situações do dia a dia, como uma das características da aprendizagem matemática gerada pela modelagem (Soares, 2015), enquanto outros relatam fatores motivacionais os quais são fontes para a aprendizagem, como o interesse e o envolvimento dos alunos no debate das situações propostas (Burak, 2017). Já para Almeida e Lorin (2016) esclarecem que no uso da modelagem a aprendizagem de conceitos e procedimentos matemáticos ocorre concomitante a aprendizagem de como construir modelos matemáticos.

As pesquisas citadas acima são representativas do enfoque comumente delineado para as pesquisas sobre aprendizagem matemática no desenvolvimento de atividades de modelagem matemática no contexto escolar. Esses enfoques apresentam a aprendizagem como uma implicação natural desse desenvolvimento, não adotando o tema aprendizagem matemática em seus objetivos de pesquisa. Nesta direção, o estudo desenvolvido neste artigo busca evidenciar, relacionar e analisar os termos “aprendizagem”, “matemática” e “modelagem matemática” a partir de uma perspectiva filosófica discursiva.

Assim, objetivamos analisar a aprendizagem matemática que se constitui na modelagem matemática com base em pressupostos filosóficos discursivos. Para isso, iremos operacionalizar alguns termos da filosofia wittgensteiniana tardia (1999) e conjugá-los às ideias da pesquisadora Anna Sfard (2018) sobre aprendizagem matemática, em um viéis discursivo.

2. A linguagem em uso

As ideias de Wittgenstein (1999) devem ser entendidas no contexto de um movimento denominado de “virada linguística”, o qual teve repercussões em diversos campos científicos, como a linguagem, psicologia, psicanálise e a filosofia.

Em Wittgentein (1999) a referida “virada” pode ser identifica pelo papel atribuído à linguagem na constituição da significação de nossas experiencias no mundo. É na e pela linguagem que constituímos nossas formas de estar no mundo, de nos vestir, falar, sentar, cozinhar, conversar, sorrir, brincar e aprender matemática, por exemplo.

A “virada se caracterizou pela contraposição às ideias predominantes de significação pela linguagem, a qual ela não era concebida como lugar simbólico de significação, mas como canal de expressão para a constituição dos significados. Assim, a significação era prévia e exterior à linguagem, por isso, a linguagem era entendida como referencial.

Para Wittgenstein (1999), é na análise dos usos efetivos da linguagem que compreendemos como os significados são constituídos. Por meio da análise desses usos, podemos notar que instituímos a linguagem para as mais diversas finalidades peculiares às comunidades em que vivemos. Por exemplo, usamos a linguagem para nominar objetos, dar e obedecer a ordens, relatar um acontecimento, ou ainda, representar uma peça de um teatro, etc. (Wittgenstein, 1999, p. 35).

Wittgenstein (1999) desconstrói qualquer justificação referencial de linguagem, sejam aquelas recorrentes aos sentidos ou as sensações. Os aforismas de seu texto sugerem um diálogo com o interlocutor que busca por essências e / ou referencias, é frequentemente permeado por exemplos. Wittgenstein (1999) exemplifica para seu interlocutor que os usos da palavra Cor e da palavra Dor, é uma produção linguística que independe dos órgãos dos sentidos. Isso justifica podermos usar a palavra Cor para uma tonalidade nunca vista, ou ainda a palavra Dor para uma sensação que jamais sentimos.

Em alusão à significação lingüística de nossas formas de estar no mundo, Wittgenstein (1999), p. 30) usa o termo “jogos de linguagem” em seus escritos. Além de outras implicações, a expressão aponta para diversas significações linguísticas possíveis, diversos usos que a linguagem pode constituir. Como nomear objetos, relatar acontecimentos, expor hipóteses e prova-las, resolver problemas, entre outros.

O uso do termo jogos de linguagem também visa destacar que os usos que fazem sentido atribuirmos às palavras dependem da forma de vida em que os jogos de linguagem estão ancorados. Nesta direção, o filósofo indica a natureza não essencial e não universal dos jogos de linguagem. Existiriam, portanto diferentes usos para a palavra Cor e para a palavra Dor, mas quais seriam esses usos? Depende da forma de vida de constituição dos significados. Nas palavras do filosofo “ representar uma linguagem é representar uma forma de vida” (Wittgenstein, 1999, p. 32).

Em outras palavras, a constituição de significados que se dá na e pela linguagem está relacionada às questões mais gerais da comunidade de pessoas que faz determinado uso das palavras. Adotamos a definição de Moreno (2003) e compreendemos formas de vida como “sistemas regrados de ações convencionais e imersos na prática efetiva de nossa vida com a linguagem; sistemas em que se entrecruzam hábitos, atitudes, éticas, concepções a respeito do conhecimento e decisões de vontade” (Moreno, 2003, p. 129, grifo nosso).

Com isso, forma de vida é uma expressão que indica a amplitude de questões nas quais a constituição de significados está vinculada. Crenças, concepções a respeito do mundo, hábitos e valores, etc. explicam, geram e reelaboram os diversos usos da linguagem e vice-versa.

3. Matemática: um conjunto de enunciados normativos regrados

Wittgenstein (1987) buscou apresentar considerações sobre o papel que os enunciados matemáticos possuem na vida humana. Para o filósofo, os enunciados matemáticos são enunciados normativos, ou seja, seu papel é de organizar nossas experiências no mundo (Glock, 1998; Gottschalk, 2008; Miguel, Vilela, & Moura, 2010; Vilela, 2013).

Conceber os enunciados matemáticos como normativos implica dizer que eles são usados para a organização de nossas experiências, moldando essas experiências de uma determinada forma. Por exemplo, podemos utilizar o sistema de números naturais para a contagem de objetos ao nosso redor e, assim, contabilizarmos cinco canetas em cima de uma mesa de trabalho.

Caso adotássemos outro sistema, poderíamos contabilizar oito, dez, ou três canetas, enfim, poderíamos dar outro sentido a essa experiência. Nas palavras de Gottschalk (2008, p. 81), os enunciados matemáticos, em uma perspectiva wittgensteiniana, “têm a função de paradigmas, modelos que seguimos para dar sentido à nossa experiência empírica”.

Assim, podemos notar que a adoção de determinado sistema normativo regula nossas experiências. No exemplo citado acima, foi o uso do sistema matemático escolar que orientou a experiência de contar e de relatar a quantidade de canetas. Afirma Glock (1998) que para Wittgenstein,

As proposições matemáticas não descrevem nem entidades abstratas, nem a realidade empírica; tão pouco refletem o funcionamento transcendental da mente. Seu estatuto apriorístico se deve ao fato de que, a despeito de sua aparência descritiva, seu papel é normativo, nada que as contrarie pode ser considerado uma descrição inteligível da realidade (Glock, 1998, p. 243).

Com base nesse entendimento, as cinco canetas dispostas em uma mesa de trabalho não são vistas como descrição ou representação do numeral cinco, uma possível compreensão advinda de um entendimento referencial de linguagem. Neste caso, as cinco canetas corresponderiam a como nós organizamos a experiência de contagem pautada no sistema de número naturais adotado na escola.

Por isso, afirma Glock (1998), que para Wittgenstein, os enunciados matemáticos são distintos dos enunciados das ciências empíricas. Em função dos enunciados matemáticos serem normativos, as experiências não refutam esses enunciados da mesma maneira que refutaria os enunciados empíricos.

O sistema de números naturais não seria modificado, caso encontrássemos três, ao invés de cinco canetas, no exemplo aqui discutido. Se isso ocorresse, questionaríamos a situação empírica, afirmando que alguém pegou as canetas vistas anteriormente, ou utilizaríamos outro sistema de números naturais para lidar com tal experiência, de tal forma que o sistema de números naturais usado como normatização não seria modificado em funçaõ da experiência empírica.

Exemplificamos, assim, o fato de os enunciados matemáticos com base nas ideias de Wittgenstein, não serem alvo de refutação pela observação e / ou pela experimentação (Glock, 1998; Gottschalk, 2008, 2014; Vilela, 2013). Diante de tais questões, delineamos a compreensão de que os enunciados matemáticos são enunciados adotados como sistemas / normas para a organização de nossas experiências no mundo. Trata-se da organização no sentido que os enunciados moldam, dão a essas experiências determinado formato.

O estudo de Vilela (2013) a autora identificou nas diferentes adjetivações relativas à matemática (p. ex. matemática dos agricultores, matemática da rua, do dia a dia, etc.), a constatação da existência de diferentes matemáticas, o que neste estudo pode ser entendido como outros possíveis sistemas normativos pelos quais diferentes grupos sociais organizam suas experiências empíricas, além do matemático escolar e acadêmico. Com base nas ideias de Wittgenstein (1999) podemos dizer que esses sistemas / normas foram constituídos e estão vinculados a distintas formas de vida.

4. A aprendizagem do sistema matemático escolar

As ideias relativas à “virada linguística” foram mobilizadas também no campo da Educação Matemática, por pesquisadores como Richard Barwell (2013), Candia Morgan e Anna Sfard (2016), Planas (2018), entre outros. Em comum, a discussão neste campo pode ser sintetizada pela compreensão de aprendizagem matemática como um processo de natureza exclusivamente discursiva.

Nesta direção, as diversas questões que envolvem a aprendizagem matemática no contexto escolar ou acadêmico se constituem nessas pesquisas como problemáticas de natureza discursiva, em contraposição, portanto, às perspectivas de aprendizagem majoritárias na década de 1990, as quais entendem a aprendizagem matemática como um processo cognitivo.

Os estudos de Sfard (2008, 2012) ampliam o entendimento discursivo de aprendizagem matemática para a delimitação da própria Matemática, seus teoremas, demonstrações, conceitos, mediadores visuais, etc., como Discursos. Para este artigo, utilizaremos a compreensão da autora relativa a aprendizagem da Matemática, a qual ela, denomina de aprendizagem do Discurso matemático.

Entre outras descrições que envolvem o entendimento de Discurso matemático, Sfard (2008) destaca que ele é um Discurso orientado por regras de natureza “como” e regras de natureza “quando” (Sfard, 2008, p. 208, tradução nossa). As regras como dizem respeito ao que denominamos de regras procedimentais. Tais regras orientam a elaboração de enunciados que podem ser identificados como enunciados matemáticos legítimos, ou seja, aqueles próprios do Discurso matemático escolar / científico.

Entendemos que Sfard (2008) reconhece que o aprendizado dessas regras deve ser vinculado ao aprendizado da forma de vida a qual tais enunciados são considerados válidos e legítimos. Por conta disso, a autora aponta que a aprendizagem do Discurso matemático envolve regras de outra natureza, as regras quando.

As regras quando indicam sob que circunstâncias espaciais, temporais ou contextuais, ou seja, sob quais critérios a adoção das regras do tipo como será considerada legítima. Para a autora, o fato de alguns indivíduos não utilizarem o sistema matemático escolar / acadêmico em situações não escolares e não acadêmicas e vice-versa, indica que as regras de um Discurso são válidas e legítimas em formas de vida específicas, por isso não transferíveis entre distintos contextos.

No que refere à forma de vida constituída no contexto escolar, o sistema matemático escolar e as suas regras como e quando são concebidos como únicos válidos para a produção de enunciados matemáticos legítimos. Produção discursiva legítima deve ser entendida como usos que fazem sentido empregar às palavras em determinada forma de vida.

Neste artigo, compreendemos a Matemática escolar como um sistema normativo orientado por regras, pois normatizam nossas experiências empíricas, a partir de um conjunto de regras de orientação para a produção de tais enunciados.

Nesta perspectiva, a aprender Matemática no contexto escolar, corresponde a aprender a produzir enunciados matemáticos legítimos, os quais para serem elaborados dependem da identificação das regras quando, as quais a elaboração das regras como são válidas e consideradas legítimas.

No contexto escolar, o professor é um participante experiente (Harré & Tissaw, 2005) cuja participação intencional no Discurso é o ensino das regras e a avaliação da legitimidade da produção de enunciados matemáticos pelos alunos, os participantes iniciantes no Discurso (Sfard, 2008).

Os exemplos contidos em Sfard (2007, 2008, 2012) sugerem que os alunos na participação no Discurso matemático escolar buscam organizar as suas experiências adotando o sistema matemático do dia a dia. Diante disso, ela aponta que os alunos devem mudar a sua produção discursiva, o que é representado pela adoção de regras do tipo como relativas ao sistema matemático escolar em substituição a esse sistema.

Todavia, apresentamos uma sugestão distinta e apontamos para a ideia de que a aprendizagem matemática que se constitui no contexto escolar pode se caracterizar por uma delimitação discursiva, ou seja, pela identificação de quais circunstâncias (quando) as regras do tipo como são consideradas legítimas. Desta maneira, os alunos poderão escolher pelo uso do sistema que se adéque a determinadas finalidades e sejam legítimos em determinada forma de vida, ao invés de substituir um sistema matemático por outro.

O sistema matemático escolar está relacionado às formas de vida distintas daquelas aos quais os indivíduos vinculam-se em contextos não escolares. Esse fato justifica a compreensão de a escola ser entendida como lócus histórico e socialmente constituído para a aprendizagem do sistema matemático escolar.

Diante dessa especificidade, os participantes iniciantes neste sistema, irão aprender o Discurso por meio de um processo denominado imitação discursiva (Sfard, 2008). Ela corresponde à elaboração de enunciados matemáticos tendo a produção discursiva do professor como modelo. A autora aponta que isso ocorre porque os alunos, no momento inicial de aprendizagem, não identificam as razões de usar determinadas regras relativas ao sistema matemático escolar, por isso, imitam os enunciados matemáticos produzidos pelo professor.

A imitação discursiva corresponde à elaboração discursiva realizada a partir de um participante experiente no Discurso. As regras de um Discurso já se encontram compartilhadas e utilizadas por uma comunidade, elas não são modificadas pelos participantes iniciantes. Todavia imitar regras não implica produzir discursos iguais e sim produzir discursos orientados pelas regras ensinadas e elaboradas pelos participantes experientes.

Contudo, a adoção, pelos alunos, da produção discursiva do professor como modelo, ocorre, segundo Sfard (2008, p. 256, tradução nossa), a partir de um conflito denominado de “conflito commognitivo”. O conflito commognitivo é uma situação na qual se identifica que os discursantes estão adotando diferentes regras em seus enunciados, ou em nossos termos, estão adotando diferentes sistemas matemáticos normativos.

Em âmbito escolar, Sfard (2008) destaca que esse conflito ocorre em virtude de os alunos adotarem, como regras na elaboração de seus enunciados matemáticos, aquelas válidas e legítimas em contextos não escolares. Diante disso, Sfard (2008) aponta que o conflito é dissolvido quando os alunos adotam as regras do tipo como legítimas no contexto escolar e abandonam ou mudam suas produções discursivas oriundas de outros contextos.

5. Modelagem: uma maneira de organizar situações empíricas

A modelagem matemática na Educação Matemática tem sua constituição, a partir de pesquisas desenvolvidas no âmbito da Matemática Aplicada (Souza, Almeida, & Kluber, 2018). Em particular, no campo da educação matemática brasileira tal constituição ocorreu por meio de iniciativas de ensino da matemática por meio de modelos matemáticos, em cursos de nível superior em engenharia e matemática, e posteriormente em cursos de especialização para professores nos relata Almeida (2017).

A natureza da constituição do campo configura as múltiplas designações para a expressão modelagem matemática na Educação Matemática, sem haver a busca por uma unidade de significação (Barbosa, Caldeira., & Araújo, 2009). Assim, a modelagem matemática pode ser entendia como a arte de transformar problemas da realidade em problemas matemáticos (Bassanezi, 2015), como alternativa pedagógica a qual, problemas não essencialmente matemáticos são resolvidos por meio da matemática (Lorin & Almeida, 2015), ou ainda como um conjunto de procedimentos cujo objetivo é explicar matematicamente situações do cotidiano (Burak, 2017), entre outras delimitações existentes.

As pesquisas sobre modelagem no cenário brasileiro se caracterizam pela ênfase na aprendizagem matemática gerada no desenvolvimento das atividades de modelagem em suas múltiplas etapas, assumindo a possibilidade de não construção de modelos matemáticos, bem como na natureza crítica dos temas reais tratados no contexto escolar (Kluber & Burak, 2014; Freitas, 2017).

Já no cenário internacional, a modelagem matemática na Educação Matemática identifica-se pelo desenvolvimento de ciclos de modelagem, os quais correspondem a realização item por item de etapas que conduzem a construção de modelos matemáticos e a suas validações (Stillman, Blum., & Biembengut, 2015).

Apesar das multiplicidades de concepções de modelagem matemática possíveis, de maneira geral em âmbito escolar, ela pode ser entendida como a elaboração, pesquisa e / ou resolução matemática de situações - problema,2 adjetivadas de reais ou, ainda, de não matemáticas. A modelagem na Educação Matemática adota, predominantemente, o sistema matemático escolar para abordagem dessas situações.

Apesar de específica, a situação - problema apresentada em Sonego e Bisognim (2010) é representativa de como uma situação - problema é predominantemente abordada em tarefas de modelagem na educação matemática. As autoras, diante uma situação - problema que consistia na determinação da quantidade de metal necessária à construção de silo. Um silo é um recipiente de armazenamento e beneficiamento de arroz industrial. Entendemos que fazer modelagem consistiu em mobilizar regras do tipo como relativas ao sistema matemático escolar na abordagem dessa situação - problema.

Para a mobilização dessas regras, as autoras afirmaram que “durante as visitas de campo os alunos perceberam que a forma do silo é um cilindro, e a parte de cima é um cone” (Sonego & Bisognin, 2010, p. 6) e realizaram cálculos relativos a essas duas figuras. Assim, podemos dizer que foram mobilizadas regras do tipo como referentes às figuras geométricas denominadas no sistema matemático escolar de cone e de cilindro.

Como resultado, os alunos e a professora relataram que seriam necessários 92.99 m2 de metal para construir um silo de algumas específicas dimensões. Diante do uso de regras do sistema matemático escolar na abordagem dessa situação - problema, podemos afirmar que as autoras, modelaram matematicamente a situação.

Poucas pesquisas descrevem ou objetivam explicitar o embasamento filosófico orientador do desenvolvimento das atividades de modelagem propostas no contexto escolar. Porém, o estudo de Araújo (2007) nos possibilita compreender a associação realizada entre o objeto físico (no exemplo o silo) e os objetos matemáticos (no exemplo as figuras matemáticas) como operacionalizadas à luz de uma perspectiva descritiva e referencial de Matemática.

Neste artigo, uma análise discursiva wittgensteiniana nos possibilita apresentar outra compreensão possível. O silo não é um cilindro, nem a parte do superior do silo é um cone. Um silo é comparável a um cilindro se eu adotar o sistema matemático escolar previamente para organizar / nomear esse objeto. Não haveria uma função de Matemática como descrição dos objetos e fatos do mundo “real” e sim, uma maneira de ver a partir de um determinado sistema normativo.

Com base nesse entendimento, compreendemos modelagem matemática em âmbito escolar como um modo de apresentar situações empíricas e de lidar com elas. Centralizamos essas duas características pelo uso único da palavra organização de situações empíricas.

As situações - problema em modelagem são caracterizadas como situações empíricas, porque são passíveis de verificação e refutação pela experiência. Diante disso, a modelagem pode ser entendida como o uso do sistema matemático escolar na abordagem de situações empíricas. Esse sistema, como vimos, refere-se ao conjunto de regras do tipo como, ou seja, de regras procedimentais que são adotadas como modelo para essa abordagem. Essas regras estão ancoradas em formas de vida, nas quais o sistema escolar se fundamenta.

Assim, a aprendizagem matemática em modelagem neste artigo corresponde à elaboração de enunciados matemáticos legítimos relativos à elaboração, pesquisa e resolução matemática da situação - problema. A produção de tais enunciados por sua vez, dependem da identificação das regras como e quando peculiares ao sistema matemático escolar.

6. A tarefa de modelagem: o lixo eletrônico

A professora Nanda, cujos discursos analisamos, encontrava-se no último semestre de um curso de licenciatura em Matemática em uma universidade pública do Brasil. Entre outras disciplinas, frequentava a de Modelagem Matemática e a de Estágio Supervisionado. A disciplina de estágio compreende a inserção dos futuros professores em ambientes escolas, sob supervisão do professor da referida disciplina cursada na universidade.

Os discursos analisados neste artigo são de um grupo de alunos da escola em que referida professora cumpria a carga horária definida na disciplina de estágio supervisionado. O grupo de alunos observado foi escolhido pela professora, em virtude de serem falantes e questionadores durante suas aulas de matemática. Nesse artigo, os identificamos pelos nomes fictícios Fábio, Ane, Laís e Denise. Na disciplina Modelagem Matemática, o professor solicitou aos graduandos que elaborassem, em grupos, uma tarefa de modelagem para ser implementada por um dos integrantes do grupo de alunos.

A professora Nanda escolheu o tema lixo eletrônico e junto com seus colegas elaborou um pequeno texto descrevendo a problemática e um conjunto de cinco situações - problema, configurando-se, assim, a tarefa de modelagem a ser entregue aos alunos. A seguir, apresentamos a referida tarefa. A tarefa consistia de mais 4 (quatro) situações - problema, mas mantemos neste texto, apenas aquela a ser analisada.

Figura 1 Tarefa de modelagem criada pelo grupo de Nanda resumida pelos autores 

7. O método e os procedimentos de registro dos discursos dos participantes

O objetivo deste estudo foi analisar a aprendizagem matemática que se constitui em modelagem matemática em uma perspectiva filosófica discursiva. Entendemos matemática. Entendemos matemática como um conjunto de enunciados normativos regrados. Seus enunciados são, frequentemente, constituídos em termos de escritos, orais e / ou gestuais. Por conta disso, adotamos como fonte de dados desse estudo, a fala, a escrita e os gestos dos participantes produzidos durante o desenvolvimento de uma tarefa de modelagem. Denominaremos a fala, a escrita e os gestos produzidos de discursos orais, discursos escritos e discursos gestuais, respectivamente e as suas produções de produção discursiva. Quando esses discursos se constituirem como matemáticos, denominaremos de discursos matemáticos ou de produção discursiva matemática.

O método de pesquisa utilizado para compreensão da temática apresentada nesse estudo foi o método qualitativo. Ele é adotado, frequentemente, em função do objetivo do estudo e da natureza dos dados que o pesquisador visa ter como fonte de análise. Em particular, o método qualitativo é adotado em pesquisas que têm como fonte de dados, as crenças, significados, práticas, formas de vida e os discursos dos indivíduos (Denzin & Lincol, 2005).

Entre os possíveis procedimentos de obtenção de dados, adotamos a observação, pois esse procedimento nos permitiria entender o fenômeno estudado no momento de materialidade do mesmo (Angrosino, 2005). As observações realizadas foram registradas em vídeo. A professora Nanda desenvolveu a tarefa de modelagem com os seus alunos durante dois dias consecutivos. As gravações possuem duração de uma hora e trinta minutos, no primeiro dia, e uma hora e cinquenta minutos, no segundo.

8. Procedimentos de análise dos discursos

Após as filmagens, os discursos produzidos pelo grupo de alunos e pela professora foram transcritos em sua totalidade. Contudo, selecionamos, para análise, apenas os produzidos durante o desenvolvimento da primeira situação - problema, entre as cinco propostas por Nanda na tarefa de modelagem, em virtude de termos identificado que, na realização da primeira situação - problema, os discursos apresentavam elementos importantes acerca da temática do estudo.

Após selecionarmos esse trecho relativo à produção discursiva, adotamos algumas sugestões de Chamaz (2006) relativas à maneira de analisar dados, quando estes são os discursos dos participantes e quando o estudo não possui categorias previamente estipuladas a serem adotadas para a análise de dados. Podemos dizer que essas sugestões foram assumidas como orientadoras para a escolha de realização de uma análise preliminar em nosso estudo.

Assim, posterior à análise descritiva preliminar, elaboramos uma análise na qual usamos diretamente os conceitos teóricos assumidos, com base no que nos informava a produção discursiva dos participantes da pesquisa.

As transcrições dos discursos serão apresentadas em uma sequência numerada de registros dos mesmos e da indicação de quem os produziu. Inspiramo-nos em Silva (2002) e utilizamos como marcadores de conversação, o símbolo barra (/), para indicar pausas entre orações e pausas no interior das orações. As pausas representativas de hesitação, por parte dos discursantes, serão identificadas pelo uso de reticências, da seguinte maneira: [...]. Nossos comentários serão realizados entre duas chaves.

9. A análise descritiva preliminar

Após um breve debate sobre o tema lixo eletrônico e a leitura da tarefa na íntegra pela professora, os alunos em grupo foram solicitados a iniciarem a resolução das situações - problemas. A seguir, apresentamos as primeiras discussões sobre a primeira questão da tarefa, a qual possuía o seguinte enunciado: Quanto de mercúrio é necessário para produzir o total de lâmpadas que são recicladas no Brasil?

[1] Fábio: Para usar isso aqui de mil? Ô Professora como é que vai somar esse oito mil?
((Fábio aponta para o valor 8.000 mg presente na tarefa de modelagem))
[2] Nanda: Esse oito mil aqui, tem a ver com [...] Depois que ela passa pelo processo
de reciclagem.
[3[ Fábio: com mil lâmpadas?
[4] Fábio: Reciclagem de ?
[5] Nanda: É (/) porque já tinham mil lâmpadas (/) quando eu obtenho delas,
essas mil lâmpadas, eu tiro algumas coisas (/) Agora tente ver (/) Vamos
buscar por partes (/) Qual foi a primeira pergunta? Quais são os itens dessa
primeira pergunta?
[6] Fábio: Quanto de mercúrio é necessário para produzir o total de lâmpadas que
são recicladas no Brasil? (/) Então (/) Eu não sei.
[7] Ane: Mas professora vem cá (/) Quanto de mercúrio é necessário pra
produzir o total de lâmpadas que são recicladas no Brasil? São recicladas
seis por cento das lâmpadas.
[8] Nanda: ((Nanda fez gestos confirmando o argumento ))
[9] Ane: Não professora (/) Vem cá (/) No caso aqui (/) desses seis por cento (/)
nós vamos ver quanto vai ter de mercúrio?
[10] Ane: É?
[11] Nanda: Não (/) Na primeira eu só pergunto [...] É exatamente!
[12] Fábio: Vai dizer isso aqui da reciclagem? (( Fábio apontou para o valor
de 6% presente na tarefa)).
[13] Ane: Agora (/) Nós temos que ver quanto (( A fala de Ane é interrompida
por Nanda)).
[14] Nanda: Depois que essas mil lâmpadas (/) milhões de lâmpadas vão
passando pela reciclagem (/) vão ficando como subproduto essas
quantidades aqui (/) entendeu? (( Nanda indicou no texto o valor de 6%)).
[15] Fábio: Tem que transformar oito mil? (( Fábio respondeu a pergunta
de Nanda)).
[16] Ane: Não (/) Vão ser mil
lâmpadas que serão producidas
(/) Não são mil? (/) Aí (/) nós
vamos tirar os seis por cento?
((Concomitantemente ao discurso oral
de Ane “nós vamos tirar seis por cento”,
Ane produziu o discurso escrito
“ 1.000 - 0,06”)).
[17] Fábio: Vão ser milhões.
[18] Nanda: São cem milhões.
[19] Ane: Então (/) São seis por cento de cem milhões?
[20] Nanda: É
[21] Nanda: Então (/) já tem os dados da primeira questão não é?
[22] Ane: Já
[23] Nanda: Então (/) já sabe.

Os discursos anteriormente apresentados correspondem ao momento em que a professora é questionada pelos alunos sobre a produção discursiva legítima que deveria ser elaborada relativa ao discurso escrito “Quanto de mercúrio é necessário para produzir o total de lâmpadas que são recicladas no Brasil?”

Inicialmente, a professora solicita a leitura desse discurso pelos integrantes do grupo [5]. Essa leitura é alternada pelo uso de outras palavras para explicar / ensinar os alunos sobre quais regras como devem ser acionados para a resolução da situação - problema, ver nas falas de número [5], [14]. No discurso da professora seria necessário, os alunos tirassem valores do total de lâmpadas que fossem recicladas.

Podemos notar que Ane buscou produzir a resposta para a situação - problema, em função do que a professora lhe sugeriu como produção discursiva coerente à resolução. Na transcrição de número 16, Ane, além de verbalizar para a professora como a situação - problema deveria ser matematizada, relatando “nós vamos tirar os seis por cento?”, Ane transcreveu seu discurso oral no discurso escrito procedimental da seguinte maneira “1.000 - 0,06”.

Nanda e Fábio corrigiram Ane, somente quanto ao valor do número de lâmpadas, por ela adotado, afirmando não se tratar de mil, mas, de cem milhões. Ane, então, perguntou “são seis por cento de cem milhões”, e a professora indicou que esse discurso oral correspondia ao procedimento matemático que deveria ser desenvolvido pelo grupo.

Quando a professora se distanciou do grupo, Fábio transcreveu o discurso oral de Ane no seguinte discurso procedimental “100.000.000 - 0,06”. Na ausência da professora, os alunos assumiram não saber que discurso matemático escrito corresponderia a “seis por cento de cem milhões”.

Quando presente no grupo, a professora solicitou que os alunos lhe explicassem o discurso escrito que haviam formulado. Os alunos não responderam a Nanda, tão pouco a professora produziu qualquer julgamento sobre a coerência do discurso matemático dos alunos como resolução matemática legítima da situação - problema. A professora optou por indicar novamente, como a situação - problema deveria ser matematizada, em termos de notação científica.

Os alunos modificaram a maneira pela qual estruturam matematicamente problema, somente, em termos de transformação em notação científica. Embora, o grupo de alunos não tenha atingido um consenso a respeito de como estruturariam “100.000.000 - 0,06” em notação científica, prevaleceu a sugestão de Fábio, que estava com a tarefa de modelagem, em mãos.

O aluno registrou na folha de anotações, a seguinte produção discursiva matemática: “108 - 0,06”. Contudo, novamente, os alunos não desenvolveram matematicamente esse discurso, embora cientes de que procedimentos matemáticos precisam ser desenvolvidos, pois várias tentativas foram empreendidas.

Devido à não identificação pelos alunos, de quais discursos matemáticos corresponderiam a uma resolução legítima da situação - problema, os mesmos recorreram às novas sugestões da professora. As transcrições a seguir se referem ao momento em que Nanda retornou ao grupo.

[73] Ane: Ô professora! Professora.
[74] Ane: Nós ainda não começamos!
[75] Nanda: É (/) já percebi ! Estão demorando demais (/) a maioria já conseguiu.
[76] Laís: É pra usar notação científica, não é? ((Enquanto pronuncia esse discurso, a
aluna aponta para a expressão “108 - 0,06” presente na tarefa de modelagem))
[77] Nanda: É (/) Mas não importa. (/) Se vocês não sabem lidar com notação
científica (/) usem o que vocês sabem.
[78] Fábio: Mas assim (/) fica difícil (/) É muito complicado!
[79] Nanda: Olha (/) se eu tenho cem milhões de lâmpadas (/) e eu quero tirar
seis por cento de cem milhões (/) Quanto é que dá isso?
[80] Fábio: Não sei.
[81] Nanda: O que isso aqui ? (( Nanda apontou para a expressão “108 - 0,06”))
Explica para mim.
[82] Ane: Está certa essa conta?
[83] Ane: É a notação científica (/) professora (/) de cem mil (/) Não é assim
não?
[84] Fábio: Ah (/) professora (/) está difícil!
[85] Fábio: inaudível.
[86] Nanda: Sim ((Nanda responde ao questionamento de Ane)) (/) Mas eu estou
perguntando o que é que isso aqui ((Nanda referindo-se novamente à expressão
“108 - 0,06”)) (/) o que isso adianta para nossa questão?
[87] Fábio: Explica para nós!
[88] Nanda: Mas eu já expliquei.
[89] Fábio: Vou tirar zero!

No trecho anterior, podemos notar que os alunos buscaram produzir discursos matemáticos somente com base na indicação discursiva da docente (“é notação científica, não é?”), sem no entanto, saberem justificar o porquê estruturaram o problema em notação científica da seguinte forma “108 - 0,06”.

A docente não afirmou estar correto a elaboração discursiva dos alunos, optando por buscar explicações dos discentes sobre a estrutura elaborada, mas eles responderam sobre a dificuldade da situação - problema. Nanda então, seguiu um dos direcionamentos para desenvolvimento de tarefas de modelagem, a saber, permitir que os alunos construam as respostas para os problemas, tendo com isso, um papel ativo no processo de modelagem.

Assim, ela resolve explicar novamente como a situação - problema deve ser matematicamente entendida, usando as mesmas palavras do discurso dito inicialmente “se eu tenho cem milhões de lâmpadas e quero tirar seis por cento de cem milhões”? [79]. Os alunos que já haviam estruturado matematicamente esse discurso, porém o mesmo não foi avaliado como legítimo pela docente, explicitam não saberem como elaborar outro discurso matemático a partir da indicação da professora. A seguir, os discursos que se sucederam, após o pedido de Fábio, de outras explicações.

[90] Nanda: Vocês já sabem que o número de lâmpadas.
[91] Fábio: Isso está ok!
[92] Nanda: Ok (/) Aí (/) eu vou tirar os seis por cento (/) Como é que eu faço?
Isso é uma porcentagem (/) Como é que eu tiro seis por cento de cem
milhões?
[93] Fábio: Mas é muito grande (/) é muito chato.
[94] Nanda: Não (/) Faça (/) Todo mundo fez e conseguiu (/) Mesmo ficando
muito grande (/) Faça isso para eu ver (/) Aí (/) nós veremos o que é que faz
(/) Vocês estão com medo de errar (/) Deixa aqui (/) faz de novo (/) Como é
que vocês aprenderam a tirar ? A fazer com esses números mesmos?
[95] Fábio: Assim ô, cem mil (( Fábio começou a escrever o discurso
100.000.000 - 0,06))
[96] Nanda: Cem milhões!
[97] Fábio: Cem milhões (/)
desculpa! (/) Menos zero
vírgula zero seis.
((Fábio finalizou a escrita:
“100.000.000 - 0,06”))
[98] Nanda: É assim que tira zero vírgula seis de cem milhões? O que é esse
zero vírgula zero seis? Seis por cento, né ? Como é que eu tiro de cem
milhões, seis por cento, desse total? Como é que eu tiro?
[99] Fábio: ((Fábio movimentou os ombros fazendo gestos que representam não
saber responder))
[100] Nanda: Se tenho cem reais (/) eu tiro seis por cento (/) Quanto é que é?
[101] Fábio: Se fosse eu ia fazer (/) ((O aluno produziu o discurso escrito
“100 - 0,06” em resposta a pergunta
de Nanda))
[102] Laís: Cem mil (/) menos zero vírgula (/) zero seis (/) Não é assim não?
[103] Nanda: Dá quanto isso aí? ((Nanda questiona Fábio a respeito do discurso
“100 - 0,06” elaborado por ele))
[104] Fábio: Eu não sei.
[105] Nanda: Não sabe (/) quanto é cem menos 0,06?
[106] Fábio: É difícil!

Na transcrição de número 92, a professora realiza novas sugestões por meio da oralidade sobre a estruturação matemática que a situação - problema requeria como legítima no campo do discurso escrito pelos alunos. O discurso oral da docente mantém as palavras usadas em outros momentos de explicação, acrescentando, porém a indicação do assunto matemático escolar a ser acionado pelos alunos na estruturação matemática solicitada, afirmando “isso é uma porcentagem”, “como é que eu tiro seis por cento de cem milhões?”.

A pergunta presente no discurso oral da docente foi respondida por Fábio na produção do discurso escrito “100.000.000 - 0,06”. Para Fábio, esta seria a estruturação matemática legítima relativa a situação - problema almejada pela docente ao propor a tarefa aos alunos. Uma transcrição que atribuiu usos matemáticos palavra por palavra do discurso oral da docente.

Na busca por indícios na fala da docente sobre qual seria estruturação matemática correta da situação - problema, a pergunta da docente em [98] questionando o discurso escrito de Fábio e repetindo a sugestão anterior, indicou para o aluno a ilegitimidade de sua resposta na avaliação da professora. Em [99], o aluno gesticula não saber responder às perguntas da professora, já que sua resposta não sido confirmada como correta pela docente.

Assim como o discurso da professora é indício para os alunos sobre a legitimidade de sua produção, o discurso dos alunos mostra para a docente se suas sugestões e indicações estão sendo transcritas no discurso escrito dos alunos de forma satisfatória em sua avaliação. Neste caso, diante da negativa do aluno em respondê-la, a professora resolve reformular a sua pergunta dizendo, “se eu tenho cem reais eu tiro seis por cento?”, quanto é que é?

Esse novo discurso oral de Nanda apresenta mudanças em relação aos discursos [79], [92] e [98]. Ele inclui outra variável, a variável dinheiro e um valor quantitativamente menor em relação a cem milhões, cem reais (Reais é a moeda monetária brasileira). Todavia, a mudança de valor e de quantidade não conteve diferença na estrutura matemática oral sugerida, pois se manteve o verbo “tirar” e a expressão “seis por cento”.

O uso do adverbio condicional “se” e seu uso entendido como uma possibilidade que não se referia à tarefa propriamente, mas uma analogia a ela, fez Fábio afirmar se fosse assim e transcreveu o discurso oral da docente da seguinte maneira “100 - 0,06”.

Assim, podemos notar que o aluno novamente atribuiu usos matemáticos ao discurso hipotético de Nanda, semelhante aos usos empreendidos nas sugestões anteriores, como em [97]. Em ambos os casos, o verbo “tirar” foi associado ao procedimento matemático do campo da subtração, bem como “por cento” mobilizou a transformação em número decimal.

Na sequência, a professora não responde estar incorreto a produção discursiva do aluno e escolhe questioná-lo sobre ela. Novamente, o aluno entende essa escolha como uma negativa da professora em relação à estruturação matemática da questão e responde “Eu não sei”.

Diante da constatação discursiva da docente de que os alunos ainda não produziram uma estruturação matemática legítima da situação - problema, ela opta por uma nova mudança discursiva.

[107] Nanda: Se eu pedir seis por cento de dez reais?
[108] Fábio: Já sei! (/) Calma (/) Se fosse eu (/) eu ia fazer assim.
[109] Nanda: Se fosse você? (/) Mas é você!
[110] Fábio: Não (/) Mas
se fosse eu (/) eu fazia
assim (/)
((O aluno registrou na folha de anotações o seguinte
discurso matemático em resposta a pergunta de
Nanda : 100×6100
e o desenvolveu da seguinte forma:
100×600100=6))
[111] Ane: Dá seis!
[112] Denise: É (/) dá seis!
[113] Nanda: Então (/) como é que faz? (( Após essa fala Nanda se distanciou
do grupo))
[114] Fábio: Ah! Então
é fácil! (/) Vai ser
assim (/)
(( Fábio apagou a operação de subtração presente
no discurso (100.000.000 - 0,06) e inseriu em seu
lugar, a operação de multiplicação, procedendo da
seguinte maneira))

[115] Fábio: Dá seis mil ((Fábio leu o resultado como seis mil, mas
manteve a escrita de seis milhões em sua folha
de anotações))
[116] Fábio: Está certo? (( Fábio perguntou a pesquisadora))
[117] Fábio: É só isso é? (( Fábio perguntou a Ane))

Na transcrição de número [107], a professora Nanda escolhe manter um discurso hipotético com variável dinheiro, intencionando uma analogia com situação - problema sobre lâmpadas, todavia muda a estrutura discursiva de sua fala, perguntando “se eu pedir seis por cento de dez reais?”.

Podemos notar que o novo discurso de Nanda é diferente dos discursos anteriores. Nesse caso, o verbo “tirar” não foi mais utilizado e foi substituído por “pedir seis por cento de dez reais”. Essa nova estrutura do discurso da professora gerou também mudanças nas respostas discursivas de Fábio. O aluno atribuiu usos matemáticos até então não usados às palavras do discurso da docente. Assim, ele respondeu a “fazer seis por cento de dez reais” com o discurso escrito “100×6100”, ou seja, acionando o procedimento matemático do campo multiplicativo e da porcentagem em forma de fração. O uso do valor cem, ao invés do valor dez, presente no discurso de Fábio pode ter ocorrido, em virtude da analogia com a sugestão anterior da professora que envolvia o valor cem.

Pela primeira vez na interação discursiva, o aluno desenvolve a estruturação matemática elaborada por completo e encontra seu resultado. Após isso, a professora sugere aos alunos que usem esse modelo de estruturação matemática para a situação - problema em questão sobre lâmpadas, questionando “então, como é que faz?”

Essa indicação da professora gerou novas produções discursivas de Fábio que apaga em seu material o sinal de subtração da estruturação anterior “100.000.000 - 0,06” e a porcentagem escrita valor decimal e escreve (100.000.000×6100), depois 600.000.000100, encontrando como resultado o valor 6.000.000.

O aluno também julga que resultado final produzido, assim como suas demais produções discursivas elaboradas, necessitam de confirmação quanto à sua legitimidade. Na ausência da professora, pleiteia que essa avaliação seja realizada pela pesquisadora e posteriormente pela sua colega de grupo. Posteriormente, aguarda a confirmação por parte da docente e só depois, seguem para a resolução dos demais itens da questão.

10. A análise dos discursos

Na tarefa de modelagem proposta pela professora Nanda foi solicitado aos alunos que abordassem matematicamente a situação - problema que versava sobre o descarte de lâmpadas fluorescentes. A questão - problema formulada pela professora na tarefa impressa foi o discurso de partida para o início do jogo discursivo constituído entre a professora e os alunos.

Uma das regras do jogo instituída pela docente foi suscitar que os alunos por eles mesmos, elaborassem uma produção matemática escrita relativa à situação - problema proposta pela professora para resolução. A escolha desta regra pode ter sido inspirada nas especificidades do desenvolvimento de tarefas de modelagem no contexto escolar, já que a literatura aponta para a importância de os alunos serem ativos e autônomos durante tal desenvolvimento (Burak, 2017).

Os alunos iniciaram o jogo discursivo pela busca em elaborar discursos matemáticos, a partir dos usos que atribuíram às palavras presentes na tarefa impressa. Contudo, no decorrer da interação discursiva entre eles e a professora, o discurso oral da mesma foi tomado por eles como única fonte para a produção de discursos matemáticos legítimos.

Isso se constatou, em muitos momentos, quando os alunos não sabiam justificar matematicamente, por eles mesmos a elaboração matemática produzida, afirmando simplesmente tratar-se de uma sugestão dada pela docente. Também, quando eles recorrentemente, solicitavam o julgamento da professora quanto à legitimidade da produção realizada de forma explícita (o que não ocorreu) ou entendiam ter isso esse julgamento negativo.

Esses exemplos colocam em evidência o papel que o discursante experiente tem constituído em uma dinâmica de aprendizagem matemática no contexto escolar, em particular, em uma aula de modelagem, na qual se estimula que os alunos participem do processo compondo por eles mesmos as repostas dos problemas propostos.

Apesar desse objetivo, os alunos atribuem ao professor, o discursante experiente no discurso, o papel de lhes informar, lhes dizer como resolver as situações- problema, inclusive lhes apresentando o discurso escrito final relativo a resolução da questão. Um papel historicamente cristalizado pelos alunos a partir de jogos discursivos vivenciados ao longo do período de escolarização, sejam em aulas de matemática ou não.

Skovsmose (2008) aponta que práticas de sala de aula pautadas em investigação, como a exemplo, a modelagem matemática pode destituir práticas de ensino tradicionalmente abordadas nas quais, o professor é concebido como responsável por todo o processo de ensino, desde a escolha dos conteúdos até a resolução das situações - problemas tratadas em sala de aula.

No entanto, essa função historicamente atribuída ao professor não se desconstruiu por completo no desenvolvimento desta única atividade de modelagem e se constituiu como característica principal do jogo discursivo implementado pelos alunos e pela professora.

Os discursos produzidos nos evidenciaram que os alunos pautaram as suas produções discursivas a partir dos usos que poderiam atribuir às palavras presentes na produção discursiva da docente. Neste caso, a professora mantém suas sugestões na natureza de produções discursivas orais, enquanto os alunos procuram nessas produções elaborar discursos matemáticos escritos que seriam os legítimos, segundo uma posterior avaliação da docente.

Com isso, percebemos que o jogo discursivo realizado se constituiu pela frequente transcrição (discurso escrito) pelos alunos da produção oral da professora e vice-versa. Essa transcrição compreendeu na atribuição de usos às palavras presentes no discurso oral da docente. Tal atribuição evidenciou um conflito commognitivo, nos termos de Sfard (2008), haja vista os alunos e a professora mobilizarem diferentes usos para a palavra “tirar” presente reiteradamente no discurso da docente.

Neste caso, os alunos não acionaram claramente um uso exterior ao discurso matemático escolar, gerando o conflito como entende Sfard (2008). Isso porque o verbo “tirar” compõe o sistema matemático escolar em resolução de situações - problema majoritariamente vinculadas a operação de subtração (Mendonça, 2007).

Assim, podemos entender que o uso do verbo tirar exclusivamente relacionado à operação de subtração atribuído em aulas de matemática vivenciadas pelos alunos no contexto escolar, pode ter orientado a produção discursiva não legítima dos mesmos. Também essa ligação pode limitar as múltiplas possibilidades discursivas de compreensão de uma situação - problema, não apenas em modelagem, pois ao atar uma palavra à uma única operação matemática correspondente não se explora a diversidade de usos que as palavras possuem e a compreensão ampla do problema matemático em questão.

No jogo discursivo aqui analisado, podemos identificar a escolha pelos alunos dos usos matemáticos que podem acionar no discurso oral da professora, como central para a transcrição em discursos escritos. O fato de a professora ter usado um discurso de suposição, o discurso se, usando variáveis que para ela facilitaria a produção discursiva correta pelos alunos, como a variável dinheiro e um valor menor do que cem milhões, não gerou a produção discursiva almejada, porque entendemos que a docente manteve a mesma estrutura matemática de seu discurso anterior sobre lâmpadas.

Nesta direção, podemos destacar que apesar do tema em tarefas de modelagem ser um tema não matemático, a produção discursiva elaborada corresponderá a estruturação matemática formulada sobre a situação - problema. É a transcrição do problema real em problema matemático que enviesará os usos atribuídos às palavras matemáticas dessa estruturação. Tais usos por sua vez, possivelmente corresponderão aos usos mobilizados em aulas de matemática vivenciados pelos alunos.

Por outro lado, o discurso hipotético do se desempenhou um papel relevante na produção do discurso matemático legítimo sobre a situação - problema, quando a professora mudou a estrutura do seu discurso. A estruturação matemática se proposta no discurso gerou o desenvolvimento pelos alunos de discursos matemáticos sobre tal estruturação, os quais foram avaliados pela professora como semelhantes aqueles que deveriam ser produzidos em relação a situação-problema original sobre lâmpadas.

A docente ao escolher o discurso hipotético se e indicar uma relação de analogia com a estruturação matemática da questão original, permite que os alunos construam por eles mesmos, os discursos legítimos da situação - problema, mantendo assim, um jogo discursivo cuja participação dos alunos não se limita a copiar a resposta do problema encontrada pelo professor e não pelos alunos.

Ainda que no jogo discursivo foram os alunos a elaborar por eles mesmos, os discursos matemáticos legítimos relativos à situação - problema, podemos identificar a enorme dependência deles sobre o discurso da professora para lhes informar qual seria a estruturação matemática correta. Os alunos buscaram sempre indícios nos discursos da docente, em um jogo de pistas sobre o quais usos poderiam atribuir às palavras da discente.

Sobre essa questão, Sfard (2008) destaca que a produção discursiva dos alunos, participantes iniciantes no discurso, nesse caso, consideramos iniciantes no jogo discursivo pautado em uma tarefa de modelagem, são produções que imitam a produção discursiva dos participantes experientes.

Neste jogo discursivo, imitar não implica produzir discursos iguais, e sim, discursos que visam estar de acordo com a produção discursiva requerida pelo participante experiente. Certificar-se se o discurso produzido corresponderá ao discurso que o experiente irá julgar como legítimo, ou o discurso que experiente quer ele produza.

Nos discursos aqui analisados, podemos perceber que a docente visou ensinar como os alunos poderiam produzir as regras como da situação - problema proposta. Ela apresentou oralmente uma estrutura matemática da situação, mas as regras procedimentais como foram produzidas pelos alunos a partir dos discursos matemático sobre como essas regras deveriam ser elaboradas. Essa escolha da professora apresentou um novo jogo discursivo aos alunos em aulas de matemática, em que eles são também protagonistas, embora isso tenha gerado discursos descontentes, como os de “eu não sei”, “está difícil”, “explica de novo”, “vou tirar zero”, entre outros.

Em relação às regras quando, os alunos as situaram na forma de vida do sistema matemático escolar e acionaram usos já cristalizados de palavras matemáticas usadas nessa forma de vida. Isso gerou conflitos em alguns momentos, mas também auxiliaram na produção discursiva final.

Assim, entender a dinâmica do desenvolvimento de uma atividade de modelagem como um jogo discursivo nos possibilita identificar o quanto este jogo se mescla aos modos historicamente cristalizados de produzir discursos matemáticos. Entre eles, o papel unilateral que os alunos atribuem ao discurso da professora para a elaboração de discursos matemáticos legítimos.

11. Ideias conclusivas

Este artigo se propôs a analisar a aprendizagem matemática que se constitui em uma tarefa de modelagem matemática a partir uma perspectiva filosófica discursiva. Com base nas ideias do filósofo Ludwig Wittgenstein e da pesquisadora Sfard (2008), descrevemos nosso entendimento de matemática, aprendizagem e de modelagem matemática. Tais delimitações embasaram a compreensão de aprendizagem matemática na modelagem como a elaboração de enunciados matemáticos legítimos sobre a situação-problema analisada. Tais elaborações compreendem a identificação de regras como e quando pelos alunos do sistema matemático escolar.

O embasamento filosófico das ideias apresentadas no texto, nos permitiram olhar para a dinâmica da aprendizagem matemática constituída na tarefa de modelagem analisada como sendo um jogo discursivo.

Este jogo foi caracterizado pelos usos que seus participantes atribuíram aos discursos produzidos por eles ao longo do desenvolvimento da tarefa de modelagem. Foram as análises desses usos em um víeis filosófico de jogos discursivos, os indicadores de reflexões sobre a aprendizagem matemática que se constituiu na tarefa estudada.

Os usos que os alunos e a professora atribuíram as palavras nos permitiram apontar que o jogo discursivo de modelagem é jogado sob as regras instituídas na forma de vida da matemática desenvolvida no contexto escolar. Nesta direção, tarefas pautadas em cenários investigativos, apesar de possuírem propostas didáticas inovadoras (aulas temáticas, investigativas e reflexivas), como a modelagem, por exemplo, quando implementadas no contexto escolar se configuram a partir de regras já cristalizadas na forma de vida escolar.

Uma delas se refere ao papel historicamente atribuído ao professor na dinâmica de uma aula de matemática. Talvez, não nos percebamos, mas esse papel pode ser visto pelos alunos de forma extrema, como sendo o único que sabe usar as regras do discurso matemático escolar, portanto os alunos devem perseguir a produção discursiva do professor, não sendo importante nem justificar matematicamente as respostas encontradas, nem dizer por eles mesmos sobre a legitimidade delas.

Nesta direção, a modelagem matemática ainda encontra resistências e obstáculos para a sua implementação em sala de aula, pois para ser implementada suscita mudanças no papel do professor e dos alunos, na abordagem dos conteúdos e dos procedimentos matemáticos, na natureza da tarefa matemática, entre outros (Magnus, Prane, Cambi, & Caldeira, 2017). Pesquisas apontam existir um hiato entre número elevado de pesquisas desenvolvidas e pequeno número de práticas de modelagem desenvolvidas em sala de aula (Ceolim & Caldeira, 2017).

Algumas resistências podem ser compreendidas em virtude do jogo discursivo que se implementa no desenvolvimento de tarefas de modelagem instituir novas regras para a aprendizagem matemática que destoam das regras já vivenciadas pelos alunos na forma de vida do contexto escolar, as quais predominantemente se caracterizam por: um currículo fixo, linear e predeterminado, pela abordagem de exercícios e não de problemas matemáticos, por um tempo escolar fragmentado, por papeis fixos em relação ao professor e aos alunos na dinâmica da aprendizagem, entre outros.

O jogo discursivo da aprendizagem de regras como e regras quando em tarefas de modelagem imerso na forma de vida escolar encontra resistências, todavia, é no jogar do jogo que instituímos mudanças para tornar essa forma de vida mais crítica, emancipatória, investigativa.

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1Este artigo é uma versão ampliada e revisada de um capítulo da tese de doutorado da primeira autora, sob a supervisão do segundo autor deste artigo.

2Tendo em vista a origem de constituição do campo da Modelagem na educação matemática ser a Matemática Aplicada, mantiveram-se a caraterística de resolução de uma problemática real como eixo comum das atividades de modelagem. Todavia, não se deve confundir com o campo de pesquisa de Resolução de Problemas, pois ambas possuem distintas de constituições de origem, bem como maneiras de operacionalizar as atividades propostas.

Recebido: 06 de Novembro de 2017; Aceito: 08 de Fevereiro de 2019

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