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Revista latinoamericana de investigación en matemática educativa

versión On-line ISSN 2007-6819versión impresa ISSN 1665-2436

Relime vol.18 no.3 Ciudad de México nov. 2015

https://doi.org/10.12802/relime.13.1833 

Artículos

Gestos, sinais e esquemas de aprendizes surdos na multiplicação

Gestures, signs and schemes of deaf learners in multiplication

Jurema Peixoto* 

* Departamento de Ciências Exatas e Tecnológicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, Bahia, Brasil. peixotojurema@gmail.com


Resumo:

O reconhecimento de toda sorte de esquemas que sustentam a ação cognitiva dos alunos podem auxiliar o professor na análise das práticas matemáticas. Este estudo teve como objetivo identificar esquemas mobilizados por três alunos surdos usuários da Língua Brasileira de Sinais no cálculo da multiplicação, a partir do conceito de esquema da Teoria dos Campos Conceituais de Gérard Vergnaud e da tipologia dos gestos de David McNeill. As tarefas analisadas mostraram que todos os alunos apresentaram o esquema de correspondência sinal-a-sinal ou sinal-a-dedo coordenado com a contagem, dois alunos apresentaram o procedimento de contar a partir de. Seus esquemas articularam simultaneamente sinais com gestos, porém os gestos extrapolaram a função da comunicação e passaram a integrar a ação cognitiva desses alunos.

Palavras chave: Gestos; Esquemas; Multiplicação; Aprendizes surdos; Língua de sinais

Abstract:

The acknowledgement of all sorts of schemes that support students' cognitive activity can help teachers in the analysis of mathematical practices. This study's objective was to identify schemes used by three deaf students, users of the Brazilian Sign Language in the calculation of multiplication, from the scheme concept based on Gérard Vergnaud's Conceptual Fields Theory and David McNeill's typology of gestures. The analyzed tasks showed that all students had the matching signal-to-signal or signal-to-toe schema, coordinating it with counting, but just two students presented the counting starting from procedure. Their schemes allow the simultaneous articulation of signs and gestures, and gestures extrapolated the communication function and integrate the cognitive action of these students.

Key words: Schemes; Multiplication; Deaf learners; Sign language

Resumen:

El reconocimiento de toda suerte de esquemas que respaldan la acción cognitiva de los alumnos pueden auxiliar al profesor en el análisis de las prácticas matemáticas. Este estudio tuvo como objetivo identificar esquemas movilizados por tres alumnos sordos usuarios de la Lengua Brasileña de Señas para el cálculo de la multiplicación, a partir del concepto de esquema de la Teoría de Campos Conceptuales de Gérard Vergnaud y de la tipología de los gestos de David McNeill. Las tareas analizadas mostraron que todos los alumnos presentaron el esquema de correspondencia señal-a-señal o señal-a-dedo coordinado con el conteo, y dos alumnos presentaron el procedimiento de contar a partir de. Sus esquemas articularon simultáneamente señales con gestos aunque los gestos extrapolaron la función de la comunicación y pasaron a integrar la acción cognitiva de estos alumnos.

Palabras clave: Gestos; Esquemas; Multiplicación; Aprendizaje en Sordos; Lengua de señas

Résumé:

La reconnaissance de toutes sortes de schémas qui soutiennent l'action cognitive des élèves peut aider les enseignants dans l'analyse des pratiques mathématiques. Cette étude visait à identifier les schémas déployés pour trois élèves sourds, qui utilisent la langue brésilienne des signes dans les calculs de la multiplication, à la base de la notion de schéma de la Théorie du Champs Conceptuels du Gérard Vergnaud et la typologie des gestes proposés pour David McNeill. Les tâches analysées montraient que tous les élèves avaient le schéma du correspondant signe-à-signe ou signe-à-doigt coordonnée avec le comptage. Deux élèves ont présenté la procédure de compter à partir. Leurs schémas s'articulent simultanément, entre les signes avec des gestes, mais des gestes extrapoler la fonction de communication et ont rejoint l'action cognitive de ces élèves.

Mots clés: Gestes; Schémas; Multiplication; Apprenants sourds; Langue des signes

1. Introdução

Com a concepção de inclusão sob o ideal de uma escola para todos, as escolas regulares do Brasil recebem cada vez mais alunos com diversas necessidades especiais. Consequentemente, professores e pesquisadores de matemática são desafiados a compreender as diferenças cognitivas desses alunos, inclusive, dos alunos surdos sinalizadores que ainda enfrentam muitas barreiras, principalmente nos processos comunicativos que envolvem as especificidades das disciplinas escolares e as particularidades dadas por uma língua na modalidade visuoespacial − a língua de sinais.

Mas essa situação já foi muito mais grave, pois os surdos por muito tempo eram considerados ineducáveis e, portanto, completamente excluídos dos processos educacionais. Essa condição só começou a ser modificada em meados do século XVIII quando o abade francês Charles-Michel de L'Epée iniciou tentativas de usar sinais para ensinar surdos e, posteriormente, quando a atenção se voltou para o estudo das línguas de sinais.

A partir do trabalho do linguista americano William Stokoe, na década de 60, as línguas de sinais foram analisadas de forma consistente. Stokoe mostrou que a língua de sinais "satisfazia todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico e na sintaxe, na capacidade de gerar um número infinito de proposições" (Sacks, 2010, p. 70). Desde então, a pesquisa acadêmica voltou-se para a análise das línguas de sinais. Com certeza esse trabalho representou um marco na pesquisa da ciência linguística quando conferiu às línguas de sinais o status de língua, promovendo uma mudança no contexto social e educacional dos surdos, onde estes passaram a assumir a posição de sujeitos da linguagem. Nas palavras de Sacks (2010): "uma dupla revolução estava em processo: uma revolução científica, atentando para a língua de sinais e seus substratos cognitivos e neurais, como ninguém jamais pensara antes em fazer, e uma revolução cultural e política" (p. 71).

Estudos subsequentes (Klima & Bellugi, 1979) também mostraram que essas línguas possibilitam de forma eficiente tanto a comunicação como a construção de significados para diversos conhecimentos e podem ser adquiridas naturalmente por crianças surdas expostas a elas, sendo utilizadas pelas "diversas comunidades surdas em todo o mundo" para a comunicação "de ideias, sentimentos e pontos de vistas". Esses esforços tiveram o êxito desejado, porém, alguns estudos procuraram evitar as análises da gestualidade "que permeiam fortemente o discurso dessas línguas" (McCleary e Viotti, 2011, p. 289-290). O que é compreensível, pois a preocupação inicial nas pesquisas da época era justamente distinguir o sinal (estruturado) do gesto (não estruturado). Assim, sinal e gesto foram, portanto, organizados em categorias distintas - sinal era considerado como algo linguístico, enquanto gesto era visto como extralinguístico, ou seja, externo às línguas sinalizadas (Crystal, 2008).

Por sua vez, segundo McCleary e Viotti (2011), cresceu o interesse pela gestualidade nas línguas orais, no sentido de considerar a língua e gestos como elementos de "um único sistema cognitivo" (Kendon, 2004; McNeill, 1992; Goldin-Meadow, 2003), tal fato tem despertado a pesquisa pelo papel da gestualidade nas línguas de sinais (Correa, 2007; Cuxac, 2000; Lidell, 2000; McCleary e Viotti, 2011; Santana, Guarinello, Berberian e Massi, 2008; Wilcox, 2004). Decorre desses estudos que os gestos são tanto uma parte do conjunto de recursos linguísticos utilizados para compartilhar experiências do mundo, como são os componentes das línguas faladas e de sinais.

Trazendo estas considerações para a proposta deste artigo, reafirmamos com Roth (2001) sobre a necessidade de mais pesquisas centradas na importância dos gestos para trazer luz às questões vinculadas ao planejamento e avaliação de situações de ensino e aprendizagem. Na educação matemática, essa necessidade tem despertado o interesse dos pesquisadores em compreender como as complexidades associadas às diferentes práticas linguísticas influenciam a aprendizagem matemática, passando a explorar o gesto e o corpo como fontes de informação para a cognição em matemática (Aparicio y Cantoral, 2006; Arzarello & Edwards, 2005: Fernandes, 2008; Radford, 2003, 2005; Healy & Fernandes, 2011; Alibali & Nathan, 2011).

No caso de aprendizes surdos sinalizadores, tem crescido o interesse pelas particularidades das línguas de sinais relacionadas com a linguagem matemática e de que forma favorecem a apropriação de conhecimentos matemáticos pelos surdos (Garnica, Astorga y Barojas, 2013; Goldin-Meadow, Shield, Lenzen, Herzig, & Padden, 2012; Healy, Fernandes, Marcondes, & Santos, 2011; Ramos & Zazueta, 2011). Mas pouco se conhece sobre as práticas matemáticas na Língua Brasileira de Sinais (Libras), uma língua na modalidade visuoespacial, nem como essas práticas afetam os processos cognitivos envolvidos na organização das diferentes etapas da aprendizagem e do desenvolvimento de competências advindas da experiência do indivíduo. Assim, o objetivo deste trabalho é contribuir para a elucidação dessa questão, se alinhando aos estudos recentes sobre o papel dos gestos na aprendizagem e avaliação em matemática de surdos sinalizadores; engrossando o debate sobre o lugar dos gestos nas línguas sinalizadas.

A partir disso, propomos neste artigo analisar uma tarefa matemática desenvolvida por três aprendizes surdos, buscando investigar a interação entre elementos gestuais e esquemas mobilizados por esses sujeitos nas práticas matemáticas em Libras, particularmente, quais e como elementos gestuais fazem parte dos esquemas mobilizados por esses sujeitos? Quais os esquemas mobilizados e o que eles revelam da ação cognitiva? Este trabalho busca responder essas indagações, valendo-se do conceito de esquema de Vergnaud (2009) e da tipologia dos gestos de McNeill (1992).

2. Os gestos espelham esquemas?

Os gestos constituem uma das primeiras produções das crianças surdas e das crianças ouvintes. Na ausência de uma língua, crianças "produzem e interpretam gestos durante o seu desenvolvimento" (Santana et al., 2008, p. 1). Piaget foi pioneiro "na análise da gestualidade dos bebês em relação ao desenvolvimento cognitivo", mostrando como o corpo e os gestos podem intervir "na conceitualização e no desenvolvimento dos esquemas" (Vergnaud, 2003, p. 55). Vygotsky (2007) se referiu aos gestos no desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças: "o gesto é o signo visual que contém a futura escrita da criança, assim como uma semente contém um futuro carvalho. (...) Os gestos são a escrita no ar, os signos escritos são frequentemente, simples gestos que foram fixados" (p. 128). E depois se referiu aos gestos no desenvolvimento do simbolismo no brinquedo, onde alguns objetos podem denotar outros, substituindo-os e tornando-se seus signos:

... O brinquedo simbólico das crianças pode ser entendido como um sistema muito complexo de "fala" através de gestos que comunicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar. É somente na base desses gestos indicativos que esses objetos adquirem, gradualmente, seu significado - assim como o desenho que, de início apoiado por gestos, transforma-se num signo independente (Vygotsky, 2007, p.130).

Essa referência de Vygotsky (2007) não acentua o papel dos gestos na comunicação com outros, mas dá ênfase aos aspectos do desenvolvimento da criança, do processo de apropriação dos signos provenientes da cultura, indicando que os gestos podem ser vistos como instrumentos de mediação que conectam o social e o psicológico (Costa, 2010).

Segundo Vezali (2011, p. 49) há evidências consideráveis, nessas duas últimas décadas, "mostrando que a gestualidade não pode ser reduzida apenas a um suporte do material linguístico". McNeill (2006), por exemplo, considera o gesto um componente integral da linguagem e não apenas um acompanhamento ou ornamento. Para esse autor, os gestos e a fala são sistemas unitários, porém diferem semioticamente, um gesto "é global, sintético, instantâneo e não especificado pelas convenções. Já a fala é analítica, combinatória, linear e definida pelas regras socialmente constituídas" (pp. 1-2). Para McNeill (1992, citado por Vezali, 2011), a gestualidade estaria relacionada com o planejamento conceitual de uma mensagem a ser verbalizada. Isso implica que: "a) os gestos desempenham um papel importante na constituição do pensamento e da linguagem; b) os gestos têm um papel facilitador nos processos cognitivos" (p. 57). Em outras palavras, esses desdobramentos elevam os gestos para além da função complementar na comunicação: "os gestos, juntamente com a língua, ajudam a constituir o pensamento e refletem a representação imagística mental que é ativada no momento de falar" (McNeill, 1992, p. 245). Baseado em narrativas orais, o mesmo autor categorizou os gestos em:

Gestos icônicos: tem uma relação direta com o discurso semântico, ou seja, existe um isomorfismo entre o gesto e a entidade que ele expressa. No entanto, a sua compreensão está subordinada ao discurso que o acompanha.

Gestos metafóricos: os gestos metafóricos são reflexos de uma abstração, na qual o conteúdo é uma ideia abstrata, mais do que um objeto concreto, um evento ou um lugar. Estes gestos são parecidos exteriormente com os icônicos, mas se referem às expressões abstratas.

Gestos rítmicos (beats): são os gestos curtos e rápidos que acompanham o discurso dando significado especial a uma palavra, não pelo objeto que ela representa, mas pelo seu papel no discurso.

Gestos dêiticos: são os gestos que o sujeito utiliza para tocar ou indicar diretamente um objeto, pessoa, local ou evento particular. (McNeill, 1992, pp.12-18)

De acordo com Seelaender (2012, p. 119), "essa classificação tem sido expandida por estudos subsequentes, tendo o próprio McNeill (2005) proposto uma substituição do conceito categorial por um conceito de dimensões, dada a questão da presença de iconicidade na representação metafórica". Além do mais, conforme proposto por Kendon (2004), os gestos coverbais não são necessariamente manuais, a gestualidade pode incluir outras partes do corpo para comunicar um enunciado. Vale salientar que a possibilidade de construção de sentido, somente será possível dentro do contexto enunciativo, em relação ao discurso no qual o gesto encontra-se inserido, no nosso caso, dentro do contexto da atividade matemática proposta. Nesse sentido, Edwards (2005) enfatiza que a matemática como disciplina pode requerer uma categoria de gestos mais específica, pois enquanto no cotidiano os objetos concretos se referem apenas a eles próprios, no ensino da matemática objetos concretos são frequentemente utilizados para denotar objetos matemáticos abstratos. Por exemplo, quando um aluno gesticula um círculo para falar sobre fração, ele pode estar lembrando o modelo de peças de plástico da escola fundamental, esse gesto poderia ser classificado como emblemático1 - simbólico. Assim, "descrições e análises dos gestos em matemática devem levar em conta as características da prática matemática e do discurso" (Edwards, 2005, p. 138).

Quanto ao estatuto simbólico do gesto na Libras, alguns autores brasileiros concordam que uma sequência de gestos não constitui uma língua, mas questionam até que ponto eles fazem parte da língua, como se dá essa parceria, se constituem um sistema linguístico ou se há processos de outra natureza envolvidos na questão (Correa, 2007; Fedosse e Santana, 2002; McCleary e Viotti, 2011; Santana et al., 2008). Alguns desses estudos evidenciam uma interdependência entre gesto e língua "na construção da significação e das relações gramaticais, na coesão discursiva e na estruturação da narrativa, sugerindo que essa parceria está na base da gramática das línguas sinalizadas" (McCleary e Viotti, 2011, p. 289). Deve-se destacar que, diferentemente das línguas orais, nas línguas sinalizadas o gesto e a língua compartilham do mesmo canal de produção, o que torna mais difícil separar o sinal do gesto. O sinal, especialmente utilizado nas línguas sinalizadas é estruturado (tem gramática) e convencional, isto é, tem um significado combinado por um grupo social. No entanto, em línguas orais, o gesto não influencia a forma de uma palavra. Já na língua de sinais, devido a sua modalidade, "gestos e componentes linguísticos podem andar juntos como um recurso de complementaridade para estabelecer direcionalidade no espaço sinalizado e para inserir referentes ausentes no discurso sinalizado" (Correa, 2007, p. 57). Para esta autora, não há discordâncias entre os pesquisadores de que os sinalizantes, além de enunciados linguísticos, usam o espaço para trazer informação gestual. Há discordâncias, entretanto, se este uso do espaço é gramatical ou gestual.

Por outro lado, acerca do papel dos gestos no campo da Educação Matemática, Radford (2009, citado por Costa, 2010) defende uma concepção sensitiva do pensamento, afastando-se da concepção do pensamento como algo apenas mental: "... gestos como um tipo de movimento do corpo, não são considerados como uma espécie de janela que ilumina os acontecimentos que ocorrem numa "caixa preta" - nem são deixas para interpretar estados mentais. Eles são antes constituintes genuínos do pensamento" (p. 131). A partir dessa concepção, os gestos poderiam ser compreendidos num contexto mais amplo envolvendo a interação de diversos aspectos sensitivos da cognição que ocorrem na sala de aula de matemática. Gestos e ações do corpo se relacionam com o processo de objetificação do conhecimento, isto é, com a produção de "significados palpáveis a entidades matemáticas" (Costa, 2010, p. 129), transformando um objeto conceitual cultural em um objeto de consciência. Para Radford (2003), os gestos fazem parte dos meios semióticos de objetivação: "objetos, ferramentas, dispositivos linguísticos e sinais" (p. 41) que as pessoas usam intencionalmente nos processos sociais de construção de significado para alcançar conscientemente o objetivo de suas ações.

Com respeito à conceitualização, os gestos podem indicar momentos intermediários na aquisição de novos conceitos, além disso, podem fornecer indícios sobre as informações não encontradas no discurso (Goldin-Meadow, 2003). Por exemplo, quando mostramos a uma criança duas fileiras de damas e, depois de espalharmos as damas em uma linha, perguntarmos se as duas linhas tem o mesmo número, elas responderão de imediato "não" justificando "porque foram movidas". Mas, ao mesmo tempo, a criança pode mover seu dedo sobre a primeira peça da linha 1e a primeira peça da linha 2, em seguida, sobre a segunda peça da linha 1 e a segunda peça da linha 2 e assim por diante. Nesta gesticulação, a criança estará demonstrando uma compreensão da correspondência de um-para- um, um conceito central subjacente à conservação do número, que não aparece no seu discurso (Goldin-Meadow, 2014). Além de refletir os conhecimentos dos alunos, os gestos podem transformar ou moldar o que eles sabem e duas possibilidades não se excluem: "(1) Os gestos que vemos outros produzirem têm o potencial de mudar nossos pensamentos. (2) Os gestos que nós mesmos produzimos têm o potencial de mudar nossos pensamentos, talvez por espacializar as ideias que não são inerentemente espaciais" (Goldin-Meadow, 2014, p. 1).

Essas considerações mostram que a linguagem2 influencia a forma como pensamos. Na psicologia cognitiva, a noção que diferentes idiomas podem afetar as formas de percepção do mundo ou transmitir diferentes habilidades cognitivas, já é muito antiga. Atualmente, muitos trabalhos empíricos estão retomando essa questão, fato que confronta diretamente o paradigma da universalidade, trazendo implicações relevantes para a educação (Boroditsky, 2014).

A emergência da diversidade linguística e do multilinguismo trouxe para a Comissão Internacional de Instrução Matemática (ICMI) na conferência "Study 21" em 2011 o tema "Educação Matemática e Diversidade de Linguagem". As discussões focaram a forma de trabalhar com e dentro dessa diversidade para melhorar a aprendizagem e ensino da matemática, visto que o ensino e a aprendizagem da matemática ocorrem em todo o mundo em contextos de diversidade linguística e cultural. Particularmente, discutiram como a variedade e a complexidade de contextos de linguagem dos alunos pode ser usada efetivamente para promover a sua aprendizagem matemática. Nessa conferência, encontramos apenas três trabalhos que tratavam de alunos surdos sinalizadores. Por exemplo, Ramos e Zazueta (2011) apresentaram sua pesquisa com alunos surdos sinalizadores da Língua de Sinais Mexicana, abordando atividades que focaram a percepção visual e espacial dos alunos baseados numa demonstração visual do teorema de Pitágoras. Os autores concluíram que as construções nessa língua influenciam os processos que envolvem generalizar, classificar e comparar, levando à abstração. Healy et al. (2011), explorando práticas matemáticas de alunos surdos sinalizadores de Libras, apresentaram episódios mostrando como estes alunos expressam generalizações matemáticas do pensamento algébrico nesta língua. E Peixoto e Cazorla (2011) discutiram as dificuldades dos surdos sinalizadores em aritmética no contexto da escola inclusiva, bem como as sugestões destes sujeitos que reivindicaram a utilização da Libras e dos recursos visuais para o ensino de matemática.

Com respeito aos gestos produzidos por crianças surdas sinalizadoras na atividade matemática, Goldin-Meadow et al. (2012) distinguiram os gestos produzidos por 40 crianças surdas da Língua Americana de Sinais ao explicar as suas respostas para questões matemáticas3 quando instruídas, buscando verificar se desempenham um papel semelhante aos gestos manuais produzidos por crianças ouvintes. Segundo os autores, a concordância gesto-sinal ocorre quando um gesto transmite a mesma informação do sinal, e a discordância gesto-sinal ocorre quando o gesto transmite informação diferente do sinal. Os resultados destacaram que as crianças que produziram muitos gestos, transmitindo informações diferentes de seus sinais, eram mais propensas a ter sucesso depois da instrução (demonstrando que estavam prontas para aprender) do que as crianças que produziram poucos, sugerindo que a discordância gesto-sinal, já detectada na modalidade oral com crianças ouvintes (gesto-fala), pode ocorrer também na modalidade sinalizada, abrindo caminho para o uso de estratégias de ensino baseados em gestos com alunos surdos.

Por sua vez, Vergnaud (2009, p. 41), na sua Teoria dos Campos Conceituais, se refere aos gestos no contexto do desenvolvimento a longo prazo e da aprendizagem, pontuando que "os processos cognitivos organizam não apenas a conduta (as diferentes etapas da aprendizagem) a representação, a percepção e, de forma geral, a atividade −, como também o desenvolvimento das competências de um indivíduo no decorrer de sua experiência", quando o indivíduo desenvolve um amplo repertório de formas de organização da atividade humana como os gestos, os afetos, a linguagem, competências técnicas e científicas, entre outras. Nesse sentido, para compreender a natureza do pensamento dos alunos, Vergnaud considera primordial olhar para "todos os registros da atividade humana, não nos limitando apenas aos registros científicos ou técnicos, mas considerando também os gestos, os diálogos, as interações sociais e afetivas" (Muniz, 2009, p. 116).

O modo como o aluno organiza sua ação ao se defrontar com situações análogas constitui o que Vergnaud (2009) chama de esquema, mais precisamente, é "a organização invariante da atividade e do comportamento para uma determinada classe de situações" (p. 44). Este conceito, introduzido por Piaget visava à compreensão das formas de organização "tanto das habilidades sensório- motoras como das habilidades intelectuais" (Moreira, 2002, p. 12).

Os conhecimentos em ação devem ser buscados nos esquemas, estes permitem que a ação do sujeito seja operatória. Os esquemas são compostos por invariantes operatórios que formam a "parte epistêmica do esquema (e da representação): eles consistem em categorias" do pensamento tidas como pertinentes na ação no contexto da situação (conceitos-em-ato) "e em proposições consideradas como verdadeiras (teoremas-em-ato)", conforme Vergnaud (2009, p. 45). Estas últimas categorias constituem os conhecimentos-em-ato, formando "a base conceitual, implícita ou explícita, que permite obter a informação pertinente e, a partir dela e da meta a atingir, inferir as regras de ação mais pertinentes para abordar uma situação" (Moreira, 2002, p. 13). A ideia de esquema é indissociável da noção de campo conceitual. O conceito não pode ser visto isoladamente e a compreensão da constituição dos conceitos, especialmente na aprendizagem matemática, "tem de considerar que cada conceito é constituído a partir de sua participação em uma rede conceitual mais ampla" (Muniz, 2009, p. 134).

Vale salientar que os teoremas-em-ato não são como os teoremas formais da Matemática, "porque a maioria deles não são explícitos, eles estão subjacentes ao comportamento dos alunos, aparece de modo intuitivo na ação do aluno e seu âmbito de validade é normalmente menor que o âmbito dos teoremas" (Magina, Campos, Nunes e Gitirana, 2008, p. 16). As autoras ainda ressaltam que a análise das "estratégias intuitivas dos alunos" constitui um caminho para "ajudá-los na transformação do conhecimento intuitivo para o conhecimento explícito" (p. 17).

Desse modo, "a revelação, o reconhecimento, a análise e a valorização dos esquemas" ideia proposta por Piaget e resgatada por Vergnaud − permite ao professor se aproximar das reais construções dos alunos, revelando o processo de conceitualização pelo qual o aluno se encontra, elucidando "os conhecimentos em ação, as potencialidades, as incompletudes, os desvios e os atalhos, as ressignificações, os erros e obstáculos, quase sempre presentes produções matemáticas dos alunos" (Muniz, 2009, p. 115). A investigação dos esquemas dos alunos pode contribuir para uma mediação pedagógica mais eficaz, sobretudo, no caso de alunos surdos sinalizadores que possuem diferenças linguísticas muito exploradas no campo da Linguística, mas pouco conhecidas pela comunidade de professores de matemática.

O desenvolvimento dessas considerações nos permitiu olhar os gestos não apenas como espelhos dos esquemas ou complemento da comunicação, mas de uma forma mais ampla, como componente da cognição e quiçá como constituintes dos esquemas. Com isso em mente, procuraremos responder nossas questões de pesquisa, analisando as produções de jovens surdos, buscando identificar os esquemas mobilizados durante o cálculo de multiplicação, bem como os conceitos, os teoremas-em-ato para obter uma melhor compreensão das relações entre os conhecimentos em ação mobilizados e a sua explicitação em gestos.

3. O estudo

Trata-se de um estudo de caso cuja fonte de dados foi uma pesquisa mais ampla4 sobre o desempenho em matemática de alunos com necessidades educacionais especiais de uma escola pública inclusiva da cidade de Ilhéus/Bahia/Brasil. Nesta pesquisa, diagnosticamos inicialmente o que estes alunos sabiam do sistema de numeração decimal e das quatro operações fundamentais através de tarefas envolvendo adição e subtração (com reserva e sem reserva), multiplicação e divisão (de dois algarismos por um algarismo). Dentre os alunos investigados, os surdos foram os que apresentaram maiores dificuldades com as quatro operações tendo em vista a sua idade e série, nenhum deles sabia dividir nem apresentaram muitas estratégias oriundas da vida extraescolar. Mas foi no cálculo da multiplicação que observamos maior número de estratégias gestuais e sinalizadas interagindo entre si. Esse fato nos motivou a investigar de que forma os gestos e os sinais produzidos nesta tarefa específica faziam parte dos esquemas mobilizados por esses sujeitos. Assim, resolvemos olhar detalhadamente para a gênese dos esquemas do cálculo da multiplicação de três alunos com surdez bilateral profunda5 para identificar seus conhecimentos em ato, visando compreender suas especificidades na atividade matemática, a fim de subsidiar formas de intervenção no ensino desta disciplina para os surdos.

Para tanto, desenvolvemos uma análise microgenética, que se assemelha a "um zoom no estudo de determinado processo, permitindo uma análise detalhada, passo a passo, necessária à observação de mudanças desenvolvimentais significativas" (Kelman & Branco, 2004, p. 95). Segundo Góes (2000), a análise microgenética pode ser definida como um modo de construção de dados que exige "a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos" (p. 9-10), comumente esta forma de análise utiliza a videogravação devido à natureza dos dados.

Para nos referirmos aos alunos surdos deste estudo utilizaremos os nomes fictícios: Rodrigo, Henrique e Lucila. Rodrigo com 24 anos de idade cursava o 7o ano do Ensino Fundamental, Henrique com 19 anos cursava o 1o ano do Ensino Médio, do Programa "Tempo de Aprender" e Lucila com 22 anos cursava o 6o ano do Ensino Fundamental. Os três iniciaram seus estudos em classes especiais aos 6 anos de idade, onde começaram a aprender Libras e continuaram praticando com seus pares surdos no convívio social da igreja e da própria escola. Rodrigo aprendeu Libras com 14 anos e Henrique com 10 anos; já Lucila teve os primeiros contatos com Libras com 7 anos de idade. Os alunos relataram que algumas vezes desistiram de estudar, pois não havia intérprete na sala de aula e não conseguiam entender as aulas, apenas Lucila lembrou o tempo que ficou fora da escola (3 anos). No momento da pesquisa, todos os alunos estavam estudando na escola comum na perspectiva da inclusão, cujas aulas são ministradas em português pelos professores e interpretadas pelo profissional de Libras6 que acompanha os surdos em todas as disciplinas. No turno oposto, os alunos recebem atendimento especializado, em salas de recursos multifuncionais, para estudar o português e a Libras segundo a abordagem bilíngue que tem como pressuposto básico: o surdo deve adquirir como língua materna a Libras, considerada sua língua natural e, como segunda língua, a língua portuguesa. Esses alunos não possuíam domínio amplo de vocabulário na língua portuguesa.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas baseadas em tarefas que, segundo Goldin (2000, citado em Fernandes, 2004), permite analisar "os conceitos ou estruturas conceituais, cognição ou estruturas cognitivas, competências, atitudes, estágios de desenvolvimento, sistemas de representação interna e estratégias utilizadas pelos sujeitos" (p. 77). De acordo com Fernandes (2004), a proposta de Goldin não se preocupa apenas no resultado final da tarefa, mas busca descobrir os meios, métodos e as estratégias utilizadas pelos sujeitos para organizar seu próprio comportamento. A tarefa foi aplicada individualmente a cada aluno. Participaram da aplicação das tarefas a pesquisadora, autora deste artigo, e uma intérprete proficiente em Libras com ampla experiência em ensino de alunos surdos. A tarefa tinha o seguinte enunciado "Fazer as operações indicadas (primeiro mentalmente, se não conseguir, faça no papel): a) 32x3 b) 65x6". O aluno foi instruído pela intérprete a ler a tarefa, resolver e perguntar em caso de dúvida. Após a resolução de cada atividade, o intérprete orientado pela pesquisadora, indagava em Libras sobre algumas dúvidas sobre o significado de seu procedimento, enquanto isso a pesquisadora registrava no seu caderno as observações.

A execução da tarefa foi videografada mediante o consentimento do aluno através da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido do aluno e do termo de uso de imagem, atendendo as normas exigidas pelo Conselho de ética em pesquisa. Tratando de surdos sinalizadores e da natureza da pesquisa, as gravações em vídeo possibilitam visualizar os eventos gravados com a frequência que for necessária, em tempo real, em câmera lenta ou quadro a quadro, permitindo análises mais profícuas. A análise dos dados, provenientes dos filmes e dos registros escritos dos alunos, também contou com a participação da pesquisadora e da intérprete de Libras. Das filmagens, transcrevemos seu conteúdo e revisitamos quantas vezes foram necessárias, utilizamos os recursos do Windows Media Player (parar, adiantar e voltar). As fotos foram capturadas dos filmes em momentos de parada. Para melhor separar os gestos dos sinais utilizamos a tipologia dos gestos de David McNeill (1992), observando o contexto da tarefa, e as configurações dos sinais matemáticos na Libras através do dicionário de Libras (Capovilla, Raphael, & Mauricio, 2012). A identificação dos conhecimentos em ato (conceitos-em-ato e teoremas-em-ato) foi sendo obtida através da observação dos registros (escritos, dos gestos e dos sinais) e pela comparação com os conceitos formais da matemática.

Convém explicitar que em Libras, os algarismos de 1 a 9 são representados com as configurações de mão da Figura 1. A Figura 2 apresenta os sinais que representam as quantidades (cardinal). Podemos observar nas duas Figuras (1 e 2) que os sinais para os algarismos 0, 5, 6, 7, 8 e 9 possuem a mesma configuração de mão e direcionalidade. Já os sinais 1 e 2 são diferentes na sua configuração de mão e direção, os sinais 3 e 4 possuem a mesma configuração de mão, mas direções diferentes; 3 e 4 na horizontal representam os algarismos e 3 e 4 na vertical representam quantidades. Para continuar a sequência numérica, a exemplo do número dez, articula-se o sinal do algarismo 1 depois o zero; para o 11, articula-se o 1 duas vezes; para 13, o 1 e o 3; para o 100, articula-se o 1, depois 0 e 0, e assim por diante.

Fonte: <http://libraspt-br.blogspot.com.br/>

Figura 1 Sinais que representam os algarismos em Libras 

Fonte: <http://libraspt-br.blogspot.com.br/>

Figura 2 Sinais que representam quantidades (cardinal) 

Nas descrições das tarefas a seguir utilizaremos o verbo sinalizar e suas conjugações para indicar os sinais da Libras e o verbo gesticular e suas conjugações para indicar os gestos mobilizados.

4. Os exemplos

4.1. Caso 1: Rodrigo

Na multiplicação 32x3, o aluno Rodrigo (24 anos) começou multiplicando 3x3. Para isso, sinalizou com a mão esquerda o número 3 e bateu na mesa esta configuração de mão três vezes: tum, tum, tum, significando 3, 3, 3 (gesto rítmico), conforme a Figura 3. Para obter o resultado, configurou o número 3 na mão direita, moveu duas vezes no espaço (gesto rítmico) e, mantendo esta configuração, articulou com a mão esquerda o sinal 6 (Figura 4), depois o 7, 8 e 9, apontando com o olhar (gesto dêitico), simultaneamente, para a configuração do 3. Fica explícito que quando ele moveu a mão duas vezes, fez mentalmente 3 + 3 = 6, e a partir do 6, fez corresponder (com o olhar) a cada dedo da mão direita (3 dedos) os sinais 7, 8 e 9. Posteriormente, sinalizou com a mão esquerda o 2, movendo no espaço esta configuração três vezes (gesto rítmico), em seguida, com a mesma mão, sinalizou o 6. Depois, registrou o algoritmo no papel, conforme a Figura 5.

Figura 3 Aluno sinalizando o número 3 e batendo este sinal três vezes na mesa 

Figura 4 Aluno mantendo a configuração do sinal 3 na mão direita e na esquerda sinalizando o 6 

Figura 5 Registro de 32x3 feito pelo aluno 

Rodrigo utilizou o esquema de correspondência termo-a-termo (cada sinal em Libras fez corresponder a um dedo da sua mão, denotamos sinal-a-dedo) coordenada com a contagem. O conceito-em-ato evidenciado pelos gestos rítmicos foi à compreensão da multiplicação como uma adição repetida de parcelas iguais, enfatizada pelos professores nas escolas. Os gestos dêiticos (apontar com o olhar) evidenciou também o conceito de bijeção (quando fez corresponder cada sinal em Libras a cada dedo), o conceito de cardinal (o último número contado corresponde ao total) e o conceito de contar a partir de. No registro foi evidenciado o conceito da organização dos algarismos no algoritmo da multiplicação, unidade em baixo de unidade (2, 3 e 6) e dezena em baixo de dezena (3 e 9), conforme Figura 5.

E na multiplicação 65x6, Rodrigo inicialmente armou a conta no papel. E para multiplicar 6x5, ele sinalizou o cinco na mão direita e movendo esta configuração (gesto rítmico) seis vezes, sinalizou olhando (gesto dêitico), simultaneamente, com a mão esquerda, os algarismos 1, 2, 3, 4, 5, 6 (Figura 6). Como se estivesse pensando: 5 uma vez, duas vezes, três vezes até 6 vezes. Em seguida, abriu 6 dedos e uniu-os de dois em dois (gesto metafórico), como se estivesse somando: (5+5) + (5+5) + (5+5), conforme Figura 7. Finalmente, sinalizou 30 e registrou o zero na ordem da unidade e o 3 registrou em cima do 6 (Figura 8). Tentou fazer a mesma coisa com 6x6, sinalizando com a mão esquerda o 6 e com a direita 1, 2, 3 até o 6, mas não conseguiu, então foi para o papel. No papel, registrou o 6 (seis vezes), associou de dois em dois e somou (Figura 8).

Figura 6 Aluno sinalizando 5 com a mão direita e com a esquerda o sinal 2 

Figura 7 Aluno juntando os dedos de dois em dois 

Figura 8 Registro do cálculo 65x6 e do cálculo auxiliar feito por Rodrigo 

Rodrigo utilizou o esquema de correspondência termo-a-termo (sinal-a- sinal) coordenada com a contagem. Nesse exemplo, observamos que o conceitos- em-ato evidenciado pelo gesto rítmico foi a multiplicação como a soma de parcelas iguais, o gesto metafórico (juntar dedos, simulando mentalmente uma soma) evidenciou a composição dos números naturais (5+5) + (5+5) + (5+5) = 10 + 10 + 10. O gesto dêitico evidenciou a bijeção (sinal-a-sinal). No registro, os conceitos explicitados foram a organização em colunas das ordens na representação do algoritmo da multiplicação, unidade em baixo de unidade, dezena em baixo de dezena, o vai 3 dezenas para as dezenas, e a composição de números naturais, (6+6) + (6+6) + (6+6), conforme Figura 8. O teorema-em-ato evidenciado foi "a multiplicação de números naturais é comutativa" (multiplicou 5x6 ao invés de 6x5). A tabela I resume os tipos de gestos mobilizados por Rodrigo, especificando sua frequência por tipo e total, bem como a ação do gesto e os conceitos em ato.

TABELA I Número de gestos de Rodrigo por tipo e a correspondência entre os gestos, sua ação e os conceitos 

ALUNO RODRIGO
GESTOS No AÇÃO DO GESTO CONCEITOS-EM-ATO
icônicos 0
metafóricos 1 Juntar os dedos de dois em dois Composição de números naturais: (5+5)+ (5+5)+ (5+5)
dêiticos 2 Olhar Bijeção ou correspondência sinal-a-sinal ou sinal-a-dedo e contar a partir de
rítmicos 4 Mover Adição de parcelas iguais
Total 7

4.2. Caso 2: Lucila

Na multiplicação 32x3, a aluna Lucila (22 anos) levantou três dedos da mão esquerda e com a mão direita apontou (gesto dêitico) com o indicador para um dedo da mão esquerda (Figura 9), sinalizando com a mão direita, 6, 7, 8, 9 até o 10 (Figura 10). Em seguida, sinalizou desculpa e recomeçou o cálculo: levantou novamente três dedos da mão esquerda, movendo levemente essa configuração duas vezes (gesto rítmico). Com a mão direita, sinalizou 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 até o 18. Após, sinalizou 3x32 = 18 para a intérprete. A intérprete perguntou "como?", então ela apontou (gesto dêitico) para o 3x3 no papel e sinalizou 3+3+3. Em seguida, com a mão esquerda sinalizou 1, 2 e, simultaneamente, com a mão direita desenhou no espaço dois traços (/\) (gesto metafórico), conforme Figura 11. Depois fez o sinal de soma. Como não conseguiu fazer mentalmente, pediu para fazer o cálculo no papel (Figura 12). Enquanto registrava expressava quantidades nos dedos (Gesto icônico).

Figura 9 Aluna apontando para um dedo da mão esquerda 

Figura 10 Aluna sinalizando 3 na mão esquerda e 6 na direita 

Figura 11 Aluna desenhando no espaço com a mão direita dois traços (/\) e com a esquerda o sinal 2 

Figura 12 Registro do cálculo 32x3 e do cálculo auxiliar feito por Lucila 

O esquema utilizado por Lucila foi a correspondência sinal-a-dedo e sinal-a-sinal coordenada com a contagem, mas se perdeu na contagem. O conceito-em-ato evidenciado também pelos gestos rítmicos e metafóricos foi a multiplicação como soma de parcelas iguais (3+3). Também foi identificado o conceito de bijeção e o cardinal de um número quando contava nos dedos, gesto icônico. E no registro foi explicitada a composição de números naturais (Figura 12) e a organização dos algarismos no algoritmo. Quanto à multiplicação 65x6 a aluna disse que não sabia fazer, nem mentalmente, nem no papel. A tabela II resume os tipos de gestos mobilizados por Lucila, especificando sua frequência por tipo e o total, bem como a ação do gesto e os conceitos em ato.

TABELA II Número de gestos de Lucila por tipo e a correspondência entre os gestos, sua ação e os conceitos 

ALUNO LUCILA
GESTOS No AÇÃO DO GESTO CONCEITOS-EM-ATO
icônicos 1 Expressar quantidade Contagem
metafóricos 1 Desenhar "no espaço" Adiçao de parcelas iguais
dêiticos 2 Apontar Bijeção ou correspondência sinal-a-sinal e sinal-a-dedo
rítmicos 1 Mover Adição de parcelas iguais
Total 5

4.3. Caso 3: Henrique

Na multiplicação 32x3, o aluno Henrique (19 anos) disse que não sabia fazer mentalmente, portanto, começou armando a conta no papel e registrando a sequência 2x1 = 2, 2x2 = 4, 2x3 = ..., conforme a Figura 13. Para preencher a lacuna (2x3), configurou, com a mão esquerda, a quantidade 2 e, com a mão direita o sinal 3; apontando (gesto dêitico) a configuração do 3 (mão direita) para cada dedo da mão esquerda, como se pensasse 3+3. Assim registrou no papel 2x3 = 6 (Figura 13). Em seguida, registrou 3x1 = 3, 3x2 = ..., 3x3 = ... (Figura 13). Para preencher as lacunas, configurou o sinal 3 na mão esquerda, e, com a mão direita, apontou (gesto dêitico), biunivocamente, os sinais 4, 5 e 6, respectivamente, para cada dedo da mão esquerda (Figura 14). Assim, preencheu a lacuna, 3x2 = 6. Em seguida, repetiu o procedimento para 3x3: com a configuração do sinal 3 na mão esquerda, apontou (gesto dêitico) para cada dedo da mão esquerda, a sequência de sinais 7, 8, 9, respectivamente. Finalmente, registrou o cálculo, conforme figura 13.

Figura 13 Registro do cálculo 32x3 e do cálculo auxiliar feito por Henrique 

Figura 14 Aluno sinalizando 3 na mão esquerda e na direita a sequência 4, 5 e 6 

Na multiplicação 65x6, o aluno começou registrando 6x1 = ..., 6x2 = ... até 6x6 = ...Para preencher a lacuna (6x1 = ...), ele segurou 5 dedos na mão esquerda e 1 na direita (Figura 15), totalizando 6 (gesto icônico), registrou 6x1 = 6 (Figura 17). Em seguida, contou em sinal (com a mão direita) em grupos de seis; sinalizou 7, depois apontou (gesto dêitico), biunivocamente, para cada dedo da mão esquerda os sinais de 8, 9 até 12 (Figura 16), então registrou 6x2 = 12. Em seguida, contou a partir do 12, sinalizou 13 e depois apontou (gesto dêitico), biunivocamente, para cada dedo da mão esquerda os sinais 14, 15 até 18, então registrou 6x3 = 18. Repetiu o mesmo procedimento até preencher 6x6 = 36, articulando no total 25 gestos dêiticos. Então registrou o cálculo, conforme figura 17.

Figura 15 Aluno representando as quantidades 5 na mão direita e 1 na esquerda 

Figura 16 Aluno sinalizando 6 na mão direita e a quantidade 5 na mão esquerda 

Figura 17 Registro do cálculo 65x6 e do cálculo auxiliar 

O esquema utilizado por Henrique foi a correspondência sinal-a-sinal e sinal-a-dedo coordenada com a contagem e o esquema de contar a partir de. Nas multiplicações 32x3 e 65x6, observamos que os conceitos-em-ato evidenciados pelos gestos dêiticos foram a multiplicação como a soma de parcelas iguais, bijeção e cardinal. No registro, Henrique evidenciou a organização do algoritmo da multiplicação, unidade em baixo de unidade, dezena em baixo de dezena, porém, no momento de multiplicar 6x5, registrou o resultado 30 no produto, e não somou as 3 dezenas com o resultado 36 = 6x6, para obter 39. Considerou esta multiplicação como uma multiplicação sem reserva. Além disso, o aluno explicitou através do gesto dêitico, o seguinte teorema-em-ato: a sequência dos múltiplos consecutivos de um número é uma progressão aritmética cuja razão é este número, ou seja, nos múltiplos de 2 a razão é 2, nos múltiplos de 3 a razão é 3 e assim sucessivamente. A tabela III resume os tipos de gestos mobilizados por Henrique, especificando sua frequência por tipo e total, bem como a ação do gesto e os conceitos em ato.

TABELA III Número de gestos de Henrique por tipo e a correspondência entre os gestos, sua ação e os conceitos 

ALUNO HENRIQUE
GESTOS No AÇÃO DO GESTO CONCEITOS-EM-ATO
icônicos 0
metafóricos 0
dêiticos 25 Apontar Bijeção ou correspondência sinal-a-sinal e sinal-a-dedo e contar a partir de
rítmicos 0
Total 25

5. Discussão dos resultados

As tabelas I, II e III mostraram que os alunos fizeram no total 37 gestos, sendo 25 de Henrique, 5 de Lucila e 7 de Rodrigo. Os tipos mais utilizados foram os gestos dêiticos (29), seguido dos gestos rítmicos (5), depois os metafóricos (2) e, por último, os icônicos (1). Os gestos metafóricos de Rodrigo e Lucila apresentaram características de iconicidade, conforme McNeill (2005, citado por Seelander, 2012). O de Rodrigo teve algo de físico (Edwards, 2005), quando ele juntou os dedos de dois em dois como se fizesse um laço ou traço, imitando os registros escritos que aprendemos e fazemos na escola do ensino fundamental. Houve predominância de gestos dêiticos, acreditamos que isso se relaciona diretamente com a natureza da atividade de cálculo. Estes gestos apareceram, na maioria das vezes, combinados com os sinais em Libras formando o esquema de correspondência um-para-um (Goldin-Meadow, 2014) próprio do raciocínio aditivo7 e tão comum em contagens desde os primórdios da humanidade, quando se utilizava os dedos da mão para estabelecer uma relação entre cada dedo e cada elemento da coleção a ser contada.

Conforme Alibali e DiRusso (1999), gestos de "apontar" e "tocar" são frequentemente utilizados por adultos e crianças para atribuir significado numérico aos objetos contados. No entanto, verificaram que crianças pré-escolares contam com mais precisão quando gesticulam porque esta forma de agir possibilita um maior controle da atividade e permite explicitar seu conhecimento da correspondência um-a-um quando coordena a "fala" do rótulo numérico com o objeto a ser contado. Golbert (2005), em sua pesquisa com crianças pequenas, destacou que os primeiros esquemas multiplicativos, relacionados com as sequências numéricas iniciais, envolvem uso intenso dos dedos e da contagem um a um; quando as crianças utilizam esquemas de sequências numéricas implícitas, a utilização dos dedos decresce progressivamente, até que o seu uso torna-se imperceptível. Por fim os esquemas consolidam-se, as crianças dão respostas imediatas, não fazendo uso dos seus dedos, da contagem ou da adição, vão direto à multiplicação, utilizando esquemas de sequências numéricas explícitas.

Tratando das diferenças entre surdos e ouvintes na atividade de contagem numérica, Vargas (2011) assegura que as crianças ouvintes fazem uso do código fonológico para relembrar o número de objetos apresentados, pois tal código é útil para preservar a ordem dos itens. Já as crianças surdas usam códigos visuais, que são importantes para preservar a localização dos itens. Ouvintes levantam os dedos em sincronia com a "fala", e surdos, mesmo jovens, levantam o dedo em sincronia com os sinais de números em Libras. Esse fato foi observado durante o desenvolvimento das multiplicações quando os alunos utilizavam frequentemente sinais em Libras enquanto contavam.

Nesse sentido, Leybaert e Van Cutsem (2002, como citado em Vargas, 2011) afirmam que as línguas de sinais permitem a crianças surdas desenvolverem habilidades de contagem de objetos tão satisfatoriamente como as crianças ouvintes. Porém, Vargas (2011) chama a atenção para algumas diferenças na estrutura da sequência dos números na língua oral e em Libras que podem dificultar a aprendizagem das crianças surdas brasileiras nas contagens iniciais. Porque nem sempre a estrutura do sistema numérico decimal permite uma regularidade que facilite a contagem, por exemplo, os números de 0 a 9 são combinados formando novos números, vinte e um, vinte e dois. Esta combinação não se dá de forma regular no início da série numérica, se fosse para contar onze, utilizaríamos a expressão "dez e um"; para o doze "dez e dois" (Nunes e Bryant, 1997). Esta mesma situação de irregularidade se dá com a numeração inicial em Libras, que não segue uma regra. Os números de 1 a 4 possuem uma relação direta com a quantidade, a partir do número 1, acrescentando mais um dedo formam-se os números até o quatro. O número cinco não respeita a regra aplicada até o número quatro, nem tem relação com o próximo número, o 6, conforme figura 1 e 2. Nesse aspecto, não observamos dificuldades com esses alunos surdos (pois são mais velhos e com mais experiência na Libras), pelo contrário, o rótulo em Libras do número 5, equivalente a 5 unidades que representa uma composição aditiva, foi utilizado como ferramenta para a ação articulada com os gestos das mãos, trazendo economia para esta atividade.

Vale mencionar que todos os gestos identificados foram dirigidos para o próprio sujeito e não se destinaram a comunicação com um interlocutor externo (intérprete ou pesquisadora). As ações faziam parte da linguagem egocêntrica, como se o aluno estivesse "pensando alto" para si mesmo. Esta linguagem egocêntrica acompanha a atividade da criança auxiliando o planejamento da sua ação, constitui uma fase de transição do discurso socializado para o discurso interior, onde a função generalizante da linguagem a torna instrumento do pensamento, conforme Vygotsky (1987). Os elementos gestuais revelaram-se como mediadores do processo cognitivo (Goldin-Meadow, 2003) e, coordenados com os sinais em Libras, orientaram ou guiaram a própria atividade cognitiva, funcionando como suportes de representação ou, do ponto de vista da semiótica, meios semióticos de objetificação (Radford, 2003) porque os alunos não tinham memorizado a tabela da multiplicação nem da adição, usaram ferramentas (para o pensamento) para ajudar a memória e a atenção de forma consciente.

Nas ações individuais dos alunos encontramos a discordância gesto-sinal (Goldin- Meadow et al., 2012) que não foram redundantes, mas complementares (Correa, 2007): gestos e sinais atuaram simultaneamente em coordenação, contendo separadamente significados diferentes, mas juntos formavam um único esquema de ação. Porém, não investigamos se essa discordância indicava períodos transicionais com respeito à aquisição de novos conceitos ou prontidão para aprender. No entanto, a atuação dialética do gesto com a Libras, atualizava o pensamento em tempo real (McNeill, 1992, 2006), mostrando que o gesto e, a própria Libras, desempenham um papel importante na constituição do pensamento, facilitando os processos cognitivos. Assim, a observação destes elementos na execução da tarefa mostrou para a pesquisadora a "dinâmica mental" dos alunos, os seus esquemas subjacentes (conceitos e teoremas-em-ato), por não ser possível observar diretamente o que ocorre no interior do pensamento de uma pessoa (Costa, 2010, p. 139).

Referindo-se aos conceitos-em-ato, todos apresentaram o conceito da multiplicação como a adição de parcelas iguais. Este resultado sugere que a ênfase no ensino tem sido dada a esta ideia8, negando aos alunos outras representações do cálculo da multiplicação. Sabemos que a multiplicação, em termos de cálculo, pode sim, ser encarada desta maneira, mas a ideia da multiplicação é mais ampla e envolve outras situações, como a disposição retangular e o cálculo de possibilidades. Os três alunos também apresentaram os conceitos de bijeção e de cardinal. No registro no papel, também todos apresentaram o conceito de organização dos números no algoritmo, mas só um aluno (Rodrigo) acertou a multiplicação com reserva no algoritmo. Em relação aos teoremas-em-ato, destacaram-se: a propriedade comutativa (Rodrigo), a sequência dos múltiplos consecutivos de um número é uma progressão aritmética cuja razão é este número (Henrique). O conceito de adição de parcelas iguais foi identificado na ação dos gestos rítmicos (5) e também no gesto metafórico (1). O conceito de bijeção associado à correspondência um-a-um foi identificado apenas por gestos dêiticos (7). Assim, observamos a flexibilidade semântica dos gestos para expressar as relações do pensamento (McNeill, 1992). Quanto aos esquemas mobilizados coordenados com os gestos e a Libras, podemos concluir que todos os alunos apresentaram o esquema de correspondência um-a-um coordenado com a contagem. Denotado aqui por sinal-a-sinal ou sinal-a-dedo, especificando o instrumento utilizado pelo aluno na articulação das mãos. Apenas dois alunos (Rodrigo e Henrique) apresentaram o procedimento de contagem contar a partir de ou conting on (Corso, 2008).

Do ponto de vista da obtenção de respostas corretas, os dados mostraram que apenas Rodrigo acertou as operações, demonstrando estar num patamar mais elevado de compreensão do conceito de multiplicação. De forma geral, os dados revelaram defasagens em relação à idade-série, pois nessa fase os alunos deveriam apresentar um domínio maior desse campo conceitual. Esse fato pode estar relacionado, entre outras causas que não são foco desse estudo, com as qualidades das experiências do surdo dentro e fora da escola, e não com um déficit cognitivo relacionado à surdez.

Considerações finais

Neste estudo utilizamos o constructo de esquema da Teoria dos Campos Conceituais por considerá-lo um instrumento fecundo para investigar a construção de novas práticas matemáticas na sala de aula, na medida em que favorece a descoberta e valorização das formas específicas de pensar e fazer matemática de cada aluno. Além disso, esta teoria descreve os componentes de um esquema e oferece para o pesquisador categorias de análise da atividade. Associamos a este constructo a tipologia dos gestos de McNeill (1992), como ponto de partida para facilitar a identificação dos esquemas dos surdos sinalizadores, dadas às características destes sujeitos.

O desenvolvimento de uma análise microgenética das práticas matemáticas de alunos surdos resultou numa classificação dos seus gestos, sinais e registros escritos que obteve êxito ao vislumbrar os conhecimentos em ação contidos nos esquemas mobilizados que, na sua maioria, são implícitos. Mas, os gestos refletiram "a representação imagística mental ativada no momento de falar" (Mcneill, 1992, p. 245), ou sinalizar. Constatamos a fertilidade deste tipo de análise porque apenas duas operações de multiplicação, embora insuficiente para tecer generalizações consistentes sobre a aprendizagem destes alunos sobre este campo conceitual, geraram uma riqueza de dados que redundou numa descrição detalhada da atividade. Por isso, confirmamos a importância de olhar, quando possível, para toda sorte de esquemas mobilizados para conseguir uma melhor aproximação das construções dos alunos, ferramenta indispensável para professores e pesquisadores.

Esta análise mostrou que a Libras cumpriu um papel relevante no cálculo da multiplicação de surdos, tornando-se capaz de mediar e explicitar os processos cognitivos destes alunos. Gestos e Libras são articulados na mesma modalidade (corporal), mas diferente da língua oral que é linear, a Libras apresenta a característica da simultaneidade que se aproxima do gesto; juntos formam um entrelaçamento complexo e trazem dinamismo à expressão do pensamento para moldar práticas matemáticas. Por exemplo, os gestos dêiticos estavam relacionados com a contagem (contar a partir de), com o conceito de cardinal, bijeção e com o esquema de correspondência (sinal-a-sinal e sinal-a-dedo), os gestos metafóricos evidenciava a composição de números naturais e o conceito da multiplicação como uma adição de parcelas iguais, conceito evidenciado também por gestos rítmicos. Isso sugere que situações de ensino destes conceitos para estes alunos deve valorizar a realização de gestos (Goldin-Meadow et al., 2012) em coordenação com a Libras, o que exigirá um professor de matemática competente nesta língua para alcançar a comunicação de sentido relevante para o ensino de matemática no contexto da inclusão.

Destacamos ainda que a discussão dos gestos, desde a Linguística, ampliou nossa visão sobre as práticas linguísticas dos alunos surdos, permitindo que enxergássemos como essas práticas podem se relacionar com a investigação dos processos cognitivos matemáticos. Vimos que, na linguística, a discussão sobre a relação entre gesto e língua não é recente, mas o gesto, de forma geral, foi sempre discutido de forma separada da língua (seja ela oral ou sinalizada), definido muitas vezes como um instrumento da comunicação, fato que omite a compreensão das relações dele com a língua (Santana et al., 2008). Tratando das línguas sinalizadas, essa discussão tem sido evitada justamente para não colocar em risco seu estatuto de língua obtido até então. Mas, estudos recentes, respaldados pelas pesquisas da linguística cognitiva sobre a co-ocorrência da gestualidade com a fala (das línguas orais), têm procurado resgatar o lugar dos gestos também na língua de sinais; evidenciando uma parceria entre gesto e língua em termos simbólicos, interativos e cognitivos.

A realização do gesto pode estar relacionada a um sistema bem mais complexo (envolvendo fenômenos cognitivos, neuro-linguísticos, semióticos ou de outra natureza), também pode assumir a mediação das funções simbólicas, indicando a não dicotomia dos processos simbólicos. Os exemplos analisados neste artigo evidenciaram essa última concepção, sugerindo que a cognição matemática não é compartimentada, nem a sua investigação deve ser monorreferencial, mas, pelo contrário, a cognição envolve todo o corpo e sua investigação deve incluir múltiplas perspectivas, tanto teóricas como metodológicas.

Enfim, retomando nossas questões de pesquisa sobre de que forma os elementos gestuais fazem parte dos esquemas mobilizados por alunos surdos e o que revelam da ação cognitiva, constatamos que os três alunos apresentaram esquemas muito semelhantes em maior ou menor grau de elaboração que, de forma geral, revelaram pouco domínio no cálculo da multiplicação. A análise também evidenciou o quanto os alunos surdos maximizam a parceria gesto- sinal nos esquemas, indicando diferenças e também semelhanças entre surdos e ouvintes. Suas práticas no cálculo de multiplicação mobilizaram esquemas gestuais, em Libras e em registros escritos, revelando o estágio de compreensão dos conceitos bem como a ação cognitiva atual dos sujeitos. Além disso, os gestos deixaram o caráter de apenas acompanhante do sinal para fazer parte da organização da atividade, se relacionando reciprocamente com os invariantes operatórios. Assim, ao lado da linguagem oral ou sinalizada, dos registros escritos, os gestos podem espelhar, fazer parte e até constituir os esquemas mobilizados pelos alunos nas práticas matemáticas.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES e à Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado da Bahia- FAPESB por financiarem essa pesquisa.

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1 Emblemáticos são gestos "convencionalizados por uma comunidade que lhe deu um significado" (Kendon, 2004, citado por Correa, 2007, p. 38). Edwards (2005), no contexto de entrevistas sobre a aprendizagem de frações, dividiu a categoria de gestos emblemáticos em duas sub-categorias icônico-físico-simbólico e icônico.

2 Entende-se aqui como um sistema amplo de comunicação natural ou artificial, humano ou não: linguagem corporal, expressões faciais, reações fisiológicas, modos de vestir, música, pintura, as línguas orais e sinalizadas, etc.

3 Seis questões do tipo 6 + 5 + 8 = __ + 8.

4 Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB/2008- 2010) cujo objetivo inicial foi diagnosticar o domínio das estruturas aditivas e multiplicativas na resolução de problemas com alunos cegos, surdos e com déficit intelectual. O objetivo final foi subsidiar a construção de artefatos e sequências de ensino para auxiliar o professor de matemática na sua tarefa de ensinar em classes regulares na presença destes alunos.

5 Estes alunos com estas características de surdez profunda foram escolhidos porque foram os únicos da escola que aceitaram participar da pesquisa.

6 A comunidade surda no Brasil tem exigido a manutenção das escolas de surdos que ainda existem no país e a criação de escolas bilíngues, sendo contrários à inclusão como tem sido praticada hoje nas escolas, pois muitos alunos surdos não estão avançando na aprendizagem efetiva das disciplinas escolares, apesar do intérprete na sala de aula e do atendimento educacional especializado.

7 "Os conceitos de adição e subtração tem origem nos esquemas de ação de juntar, separar e colocar em correspondência um-a-um", conforme Nunes, Campos, Magina e Bryant (2005, p. 80).

8 Não foi foco deste estudo investigar as formas de ensino, mas os conhecimentos que apareciam na ação espontânea.

Recebido: 16 de Dezembro de 2013; Aceito: 06 de Agosto de 2015

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