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La ventana. Revista de estudios de género

versión impresa ISSN 1405-9436

La ventana vol.6 no.50 Guadalajara jul./dic. 2019

 

Aportes

Relações de gênero, poder e violência contra as mulheres: um estudo sobre o Sertão brasileiro1

Relaciones de género, poder y violencia contra las mujeres: un estudio sobre el Sertão do Brasil

Kalline Flávia Silva de Lira* 

*Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Brasil. Correo electrónico: kalline_lira@hotmail.com


Resumo

O presente artigo investiga as relações de gênero e de poder existentes na violência contra as mulheres no Sertão do Brasil. O artigo foi baseado nos aportes teóricos sobre gênero e relações de poder, além de documentos e pesquisas nacionais sobre a violência contra as mulheres. Sobre o lócus do Sertão, apontamos a singularidade através de dois fenômenos importantes: o coronelismo e o cangaço. Do ponto de vista metodológico, trata-se de um estudo de caso sobre a realidade do Sertão, com uma pesquisa de campo, a partir de uma abordagem qualitativa. Foram realizadas entrevistas com mulheres em situação de violência durante o ano de 2014. Concluímos que, apesar de compreender as agressões que sofrem como uma situação de violência, as mulheres minimizam a gravidade. Mesmo não se percebendo apenas no papel de esposa e de mãe, a maior participação da mulher sertaneja no espaço público ainda não reconfigurou as relações de gênero e de poder no âmbito privado, permanecendo a cultura que impõe a subordinação das mulheres diante dos homens.

Palavras-chave: violência; poder; gênero; sertão

Resumen

El presente artículo investiga las relaciones de género y de poder existentes en la violencia contra las mujeres en el Sertão do Brasil. El artículo fue basado en los aportes teóricos sobre género y relaciones de poder, además de documentos e investigaciones nacionales sobre la violencia contra las mujeres. Sobre el locus del Sertão, apuntamos la singularidad desde dos fenómenos importantes: el coronelismo y el cangaço. Desde el punto de vista metodológico, se trata de un estudio de caso sobre la realidad del Sertão, con una investigación de campo, a partir de una abordaje cualitativa. Se realizaron entrevistas con mujeres en situación de violencia durante el año 2014. Concluimos que, aunque comprender las agresiones que sufren como una situación de violencia, las mujeres minimizan la gravedad. A pesar de no percibir sólo en el papel de esposa y de madre, la mayor participación de la mujer sertaneja en el espacio público todavia no reconfiguró las relaciones de género y de poder en el ámbito privado, permaneciendo la cultura que impone la subordinación de las mujeres ante los hombres.

Palabras claves: violencia; poder; género; sertón

Abstract

This article investigates the gender and power relations existing in violence against women in the Sertão do Brasil. The article was based on the theoretical contributions on gender and power relations, as well as national documents and surveys on violence against women. On the loch of the Sertão, we point out the singularity through two important phenomens: coronelismo and cangaço. From the methodological point of view, it is a case study about the reality of the Sertão, with a field research, based on a qualitative approach. Interviews were conducted with women in situations of violence during the year 2014. We conclude that, despite understanding the aggressions they suffer as a situation of violence, women minimize the severity. Even though women's participation in the public space has not yet been reconfigured in terms of gender and power in the private sphere, while the culture that imposes the subordination of women to men.

Keywords Violence; power; gender; sertão

Introdução

O estudo aqui apresentado tem como objetivo analisar a violência contra as mulheres através dos dados coletados a partir das entrevistas com mulheres em situação de violência. A aproximação com a temática ocorreu juntamente ao trabalho num Centro de Referência que atende mulheres em situação de violência, localizado no Sertão brasileiro, por isso a escolha deste lócus para a pesquisa. Foi através de um panorama de altos índices de violência contra as mulheres que esse artigo foi refletido. Esse estudo se justifica pela falta de pesquisas específicas que analisam o contexto sociocultural do Sertão para a compreensão da violência contra as mulheres.

Apesar da expressão “Sertão” aparecer nas representações do Brasil, segundo Amado (1995), nos relatos dos viajantes europeus que visitaram e descreveram o país desde o século XVI, foi a partir da virada do século XIX para o XX que ela assume uma centralidade na própria explicação do país. A partir daí, verifica-se uma tendência em naturalizar a expressão “Sertão”, remetendo-a a um espaço físico delimitado e atualmente é usada para nomear, mais especificamente, as regiões do interior dos Estados nordestinos. Assim, ao utilizarmos a palavra “Sertão”, fazemos referência aos municípios localizados no interior dos Estados do Nordeste brasileiro.

Geograficamente, o sertão nordestino é caracterizado pela presença do clima semiárido, da vegetação de caatinga, irregularidades nas distribuições de chuvas, solos secos e temperaturas elevadas. Segundo o geógrafo Ab’Sáber (2003), os termos sertão nordestino e semiárido brasileiro são utilizados para designar o espaço das caatingas ou o Nordeste seco. No entanto, ressalta que historicamente o termo sertão foi impregnado pela noção de espaço dominado pela natureza.

Por causa do tipo de natureza, consequência do clima e da topografia do lugar, o sertão, com o passar do tempo, foi sendo considerado um lugar atrasado, com muita seca, fome e atravessado por uma violência excessiva. Obra clássica da literatura brasileira, o livro de Cunha (1995) descreve a natureza física do sertão através de um tom dramático, perpassado por uma melancolia que descreve um lugar inóspito, de relevo desordenado, clima árido e vegetação ofensiva. O sertão apresentado na obra é um lugar naturalmente isolado, de difícil acesso e permanência, consagrando a imagem do Sertão como atraso.

O Brasil é um país com alta incidência de pobreza e elevada desigualdade na distribuição de renda. Não podemos negar que, nesses lugares considerados pertencentes ao sertão se concentram algumas das cidades com maiores índices de desigualdades sociais do país, além de baixos indicadores de desenvolvimento socioeconômico. Levantamento realizado pelo Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA), em 1990, aponta que dos 32 milhões de indigentes no país, 55% estavam no Nordeste. Mais de 10 milhões viviam na zona rural, e destes, 63% eram do Nordeste (IPEA, 1993). Dados divulgados em 2003 continuam revelando que a região Nordeste abriga o maior contingente de pobres, ou seja, 55,3% de sua população viviam com até meio salário mínimo de renda domiciliar por pessoa. Este percentual é entre duas ou três vezes superior ao das regiões Sudeste e Sul. Seguindo esta linha, os dados mostram que a proporção de pobres no meio rural é mais que o dobro da observada no meio urbano - 57,1% contra 27% (IPEA, 2003).

Assim, a mulher do Sertão, principalmente residente na zona rural, vive com escassez de quase tudo: água, alimento, serviços de saúde e de educação, emprego. Elas trabalham em casa e na roça, principal meio de subsistência. Morando em vilas onde uma casa pode estar há quilômetros de distância da outra, ficam expostas a quase tudo, inclusive à violência do marido. A ideia de que mulher não deve trabalhar fora, e sim cuidar da casa e da família ainda existe e é muito intensa também no Sertão.

No entanto, não podemos supor que é diferente para a mulher que reside na zona urbana da cidade. Se por um lado as oportunidades de emprego e educação são maiores, a “vigilância” também é. Os considerados “crimes de honra” ainda acontecem. Afinal, o conceito de que “homem que é homem lava honra com sangue” persiste. As mulheres da zona urbana são monitoradas pelo marido e principalmente pela família dele, que não quer ter o “nome manchado”.

A violência tem ocupado, cada vez mais, lugar de destaque no nosso cotidiano, ocasionando debates e discussões em todo o mundo, no intuito de minimizar os seus efeitos. No Brasil, o início dos debates para a criação de uma lei que coibisse a violência contra as mulheres foi a necessidade de caracterizar a violência doméstica e familiar como uma violação dos direitos humanos das mulheres e a importância de garantir proteção e atendimento humanizados para as vítimas, já que ficou notório que a mulher corria mais riscos de ser vítima dentro de sua própria casa.

A violência contra as mulheres no Brasil

A violência, fenômeno universal e humano, é um problema multifacetado, e nenhuma causa isolada pode explicá-la. Há uma dificuldade para definirmos a violência, por ser um fenômeno que provoca forte carga emocional e por seu conceito variar de sociedade para sociedade, sendo um fenômeno biopsicossocial. Há várias definições para a violência, e segundo Pinheiro e Almeida (2003, p, 14) ela “provém do latim violentia, que significa ‘veemência’, ‘impetuosidade’, e deriva da raiz latina vis, ‘força’. Certamente, deve ter havido alguma interação entre ‘violência’ e ‘violação’, a quebra de algum costume ou dignidade. Isso é parte da complexidade do termo”.

Portanto, a violência é uma força intencional, não necessariamente física, que provoca dano contra alguém. A violência pode ser expressa através da opressão, do abuso da força, do preconceito, agressão física ou verbal, entre outras formas. Segundo D’Oliveira (1996), a violência passou a ser reconhecida como uma questão pública a partir do século XIX, não porque tenha se tornado necessariamente mais intensa, mas por causa do aparecimento de um discurso ético e moral, que ocasionou iniciativas para conceituar e compreender o fenômeno, vinculado à ideia moderna de igualdade social.

Entendendo a violência como um tema múltiplo, de naturezas diversas, consideramos como objeto de estudo desta pesquisa uma forma particular, que é a violência contra as mulheres. O conceito de violência contra as mulheres é uma expressão criada pelo movimento social feminista, e faz referência, de modo geral, a sofrimentos e agressões que estão tradicional e profundamente enraizados na vida social, percebidos como situações normais, quando dirigidos especificamente às mulheres pelo simples fato de serem mulheres.

A violência contra as mulheres não é algo novo, existe desde a antiguidade, e por muito tempo a violência contra as mulheres foi socialmente aceita, acarretando a tolerância atual ao fenômeno. Durante décadas esse tipo de violência não foi considerado no Brasil. Dessa forma, quando o marido matava a esposa tendo como justificativa uma suposta traição da mesma, ele não era punido. Assim, foi sendo construída a forma de perceber a violência, e a maneira de coibi-la, com base nas desigualdades de sexo, classe social e cor (Pitanguy, 2003). Por isso, mesmo que a legislação atual condene a violência contra as mulheres, a aceitação sociocultural está tão arraigada que as próprias mulheres em situação de violência ainda têm dificuldade de se perceberem como vítimas, e nem sempre reconhecem as agressões sofridas como violência.

Podemos perceber a amplitude da questão através dos dados da pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo (Venturini, Recamán y Oliveira, 2004) que revelam que pelo menos 6,8 milhões de mulheres brasileiras vivas já foram espancadas ao menos uma vez, e 31% dos casos tinham ocorrido entre os últimos doze meses em que a pesquisa foi feita. O estudo chegou ao número alarmante de que a cada quinze segundos uma mulher é agredida no Brasil. A pesquisa ainda mostra que a responsabilidade do marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% e 70% dependendo do tipo de violência praticada, sendo que os outros agressores mais comuns são ex-marido, ex-companheiro e ex-namorado. Segundo o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2015), embora o local mais comum de ocorrência ainda seja a via pública, a residência da vítima é local relevante, totalizando 27,1% dos casos. Ainda de acordo com o Mapa, em 67,2% dos casos, o agressor era parceiro, ex-parceiro ou parente da mulher, o que demonstra a vulnerabilidade da mulher no âmbito de suas relações domésticas, afetivas e familiares.

Assim, com números tão preocupantes, tornava-se premente uma lei que coibisse a violência contra as mulheres. Em 2006, finalmente foi aprovada uma lei que prevê o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres - a Lei 11.340/2006. A “Lei Maria da Penha”, como ficou conhecida, no seu artigo 5º, define violência doméstica ou familiar contra a mulher como sendo toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida (Diário Oficial da União, 2006). O advento desta lei foi importante, principalmente por ampliar o conceito de violência doméstica contra a mulher, enquadrando várias tipificações.

A violência contra a mulher é tão ampla que atualmente, no Brasil, é difícil conhecer alguém que não tenha contato com a problemática. Segundo pesquisa do Instituto Patrícia Galvão (2013), 54% das pessoas entrevistadas conhecem uma mulher que já foi agredida por um parceiro, e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira. Ainda segundo dados da pesquisa, sete em cada dez pessoas entrevistadas acreditam que a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos. Ideia corroborada por dados já apresentados do Mapa da Violência (Waiselfisz, 2015). Os números são claros e mostram que, efetivamente, as mulheres sofrem mais violência em casa e por seus parceiros íntimos.

Podemos perceber através desses números como a violência praticada contra as mulheres está socialmente construída e aceita, criando um espaço na sociedade para a dominação masculina e a submissão feminina. Isto pode perpetuar a situação de desigualdade, colocando o homem num lugar de detentor de poder sobre a mulher. Por isso, recorremos a dois conceitos importantes - o de gênero e o de poder, fundamentais para compreender as questões de violência e para analisar aquelas praticadas contra as mulheres no Brasil, e mais especificamente no Sertão, lócus de nossa pesquisa.

Problematizando as relações de gênero no Sertão brasileiro

As noções do “ser mulher” mudaram ao longo da história de acordo com as transformações sociais ocorridas. Se antes as mulheres deveriam apenas servir ao marido e aos filhos nos seus afazeres domésticos, ou ainda se limitando às tarefas no campo, a partir da Revolução Industrial houve uma nova realidade econômica no mundo, o que acarretou a ida das mulheres para trabalhar com as máquinas, saindo do espaço doméstico como único lócus de suas atividades diárias.

Na tentativa de dar conta da mudança que vem ocorrendo em relação às mulheres, buscou-se um conceito, o de gênero, para tentar entender a configuração de sociedade, e, consequentemente, a violência (ainda) existente nela. Os primeiros aportes teóricos sobre gênero apresentavam os conceitos de sexo e gênero intimamente atrelados, numa relação dicotômica entre a condição humana biológica versus a social. Desse modo, pelo menos inicialmente, a concepção de gênero partiu da ideia de uma diferença biológica existente entre homens e mulheres e, vinculada a essa diversidade, os vários lugares sociais historicamente construídos e propostos a cada um deles e a cada uma delas, que instituem os alicerces de práticas discriminatórias e desiguais entre as pessoas.

Lauretis (1994) coloca a problemática da diferença sexual no centro do debate das teorias feministas. Seus argumentos falam da necessidade de separar gênero de diferença sexual, e partindo de uma visão foucaultiana, passar a conceber gênero como produto de várias tecnologias, como um dispositivo. Para a autora, os gêneros são produzidos por uma tecnologia, uma maquinaria de produção, que criam as categorias homem e mulher para todas as pessoas, através de discursos apoiados nas instituições como a família, a escola, entre outras.

Dessa forma, somos todos interpelados pelo gênero, considerando interpelação como um “processo pelo qual uma representação social é aceita e absorvida por uma pessoa como uma própria representação, e assim se torna real para ela, embora seja de fato imaginária” (Lauretis, 1994, p. 220). Por isso algumas pessoas inseridas em determinada cultura social absorvem os papéis de mulher como sendo estritamente de esposa e de mãe, e os reproduzem como se fossem escolhas suas e não uma representação da sociedade em que vivem.

Conforme Scott (1995), em seu uso mais recente, o termo gênero nasce com as feministas americanas, que tentavam dar ênfase ao caráter social das diferenças baseadas no sexo. As feministas recusavam o determinismo biológico que ficava implícito nos termos “sexo” e “diferença sexual”. Para a autora, o conceito de gênero é uma categoria analítica que ajuda no entendimento da história, do percurso e dos diversos significados atribuídos ao termo. Além disso, tem suas implicações para a compreensão de estudos sobre a mulher. Scott aborda e discute três posições teóricas evidenciadas pelas historiadoras feministas para realizar a análise de gênero.

A primeira proposição é das feministas que procuram explicações nas raízes do patriarcado, além de discutir a desigualdade entre homens e mulheres; a segunda posição teórica refere-se à tradição marxista, que sugere uma explicação material para o gênero; e a terceira abordagem é a teoria psicanalítica, que trabalha com teorias de relação de objeto ou têm como referências as teorias freudianas e lacanianas (Scott, 1995).

Considerando as três abordagens que buscam explicar o gênero, mas percebendo que cada uma tem falhas, Scott (1995, p. 86) propõe uma definição que incorpora duas posições entendendo como: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”. Dessa forma, trabalhar com o conceito de gênero é ampliá-lo além das questões sobre diferenças físicas e biológicas, sendo necessário afirmar sua dimensão social, histórica e política. Gênero, portanto, revela-se um conceito fundamental para analisar a relação de subordinação das mulheres e a mudança social e política, bem como as violências praticadas contra elas.

Consideramos, para fins deste estudo, que gênero diz respeito às relações de poder e à distinção entre atributos culturais impostos a cada um dos sexos e suas peculiaridades biológicas. O gênero é o sexo socialmente modelado, ou seja, as características tidas como masculinas e femininas são ensinadas desde o berço e tomadas como verdadeiras, pela sua repetição cultural, não havendo determinação biológica dos comportamentos e atitudes, e sim um aprendizado social. Dessa forma, o Sertão brasileiro, devido a sua singularidade sociocultural, tem uma forma particular de significar o gênero mulher.

Durante muito tempo, o “ser mulher” no Sertão esteve no imaginário social ligado ao cangaço, um fenômeno social ocorrido no Nordeste do país entre o final do século XIX até 1940, em que grupos de pessoas armadas demonstravam a insatisfação pelas condições precárias em que a maior parte da população nordestina se encontrava, dando ênfase a estereótipos de um ambiente hostil e violento. A mulher era vista como “mulher de coragem”, referindo-se às cangaceiras, trazendo arraigado esse estigma de “mulher macho”, capaz de assumir qualquer tipo de trabalho por mais duro que fosse, onde a criminalidade atribuída a elas não levava em consideração as circunstâncias que as fizeram entrar para o cangaço. A mulher sertaneja estava associada a valores morais rígidos e tradicionais, vistas como mulheres sérias, trabalhadoras, centradas na vida familiar, e apegadas a terra e a acompanhar seus maridos.

Nesse ambiente de caatinga, a construção do “ser mulher” não era algo fácil, e a vaidade e os sentimentos como amor, acabavam dividindo espaço com a dor e o medo. Parece que o senso comum cristalizou a ideia da masculinização da mulher como algo corriqueiro do Sertão nordestino, colocando-as num lugar fixo e determinado. Segundo Falci (2000), no Sertão, ao nascerem, as mulheres eram chamadas de “meninos fêmeas”.

Albuquerque Jr. (2003) afirma que a mulher sertaneja ainda é vista como uma mulher lutadora, resistente à seca, honesta, cheia de filhos dos quais cuida com muito amor e carinho, seja ela rica ou pobre. A mulher sertaneja além de trabalhar nos afazeres domésticos, é aquela que também trabalha em pequenas indústrias e auxilia nos serviços do marido, podendo substituí-lo, caso haja necessidade. Embora isso não seja mais totalmente verdade, ficou no imaginário coletivo a imagem da mulher do sertão como “mulher-macho”.

Essa identidade feminina foi construída em relação ao homem sertanejo. Na ideia de estabelecer o homem do Sertão como àquele que não tem medo, de pensá-lo como forte e resistente ao clima árido, tornou o homem viril, macho e corajoso. Assim, a mulher também foi sendo construída em relação a esta identidade masculina, e igualmente em decorrência das condições de sua região, passou a ser masculinizada, ou seja, estabeleceu-se que a mulher tinha que ser “macho” para sobreviver aos obstáculos, “era uma exigência da natureza hostil e da sociedade marcada pela necessidade de coragem e destemor constante” (Albuquerque Jr., 2001, p. 247).

Se por um lado temos a masculinização da mulher sertaneja, ao mesmo tempo, nos é dado uma mulher que vive ás voltas de seu “coronel”, levando-se em conta o estereótipo do machão nordestino. Segundo Falci (2000), mesmo as mulheres mais ricas, tinham a vida cerceada pelos homens. No Sertão brasileiro do século XIX, as mulheres de classe social alta, até as que tinham estudo, estavam limitadas ao espaço privado, do lar. As mulheres não eram consideradas cidadãs políticas, e por isso o campo público, seja econômico, político, social ou cultural, não era destinado às mulheres.

Assim, foi construído um lugar para a mulher que é do trabalho duro, e da ajuda ao marido. Alguns elementos explicam a masculinização da mulher do Sertão, como a seca e a ausência dos maridos que migram com ela, forçando as mulheres a assumirem as tarefas deles e também seu lugar na família. Aquelas denominadas “viúvas da seca” tinham que aprender a viver no universo masculino para sobreviver à ausência do marido. Essa rigidez das mulheres na época da seca e a necessidade de estar masculinizada são elementos ainda presentes na literatura regionalista (Albuquerque Jr., 2003). Os discursos preconceituosos acabaram naturalizando os papéis de gênero.

Embora a imagem da mulher sertaneja tenha sido construída principalmente embasada nas questões da seca e da pobreza, no século XXI algumas mudanças aconteceram. Sem dúvida o aumento do acesso à educação e à saúde pública ajudaram as mulheres a ressignificarem seus papéis para além de esposa e de mãe, passando a ocupar outros espaços, como o do mercado de trabalho, alcançando níveis mais altos de escolarização e renda. A inserção cada vez maior da mulher no mercado de trabalho, a influência dos movimentos feministas pela igualdade de direitos, o avanço da ciência em relação aos métodos contraceptivos, a melhoria educacional das mulheres, dentre outras, trazem um conjunto de “novos valores”, ligados a uma situação mais igualitária entre o homem e a mulher. Juntam-se a isto, mudanças demográficas, econômicas, políticas e culturais, que têm consequências nas questões do poder exercido por homens e mulheres na sociedade.

As relações de poder no Sertão de Pernambuco

No senso comum, as representações dos homens sertanejos estão ligadas ao coronel, ao jagunço, ao cangaceiro: coragem, destemor, valentia, virilidade. Para Albuquerque Jr. (2003), alimentar esse mito do homem sertanejo como “cabra-macho” é contribuir para alimentar um modelo de masculinidade baseada numa relação entre homens e mulheres que vigora desde o Brasil colônia, e por isso, é naturalizada, tida como eterna. Esse modelo de homem termina por vitimar os próprios homens, já que os instiga a situações de risco, colabora com a violência contra as mulheres, e termina por exigir dos homens renúncias afetivas e emocionais, como paternidade e expressão de sentimentos. Para o autor, a macheza nordestina torna os homens infelizes.

Atualmente, a sociedade sertaneja é herdeira de uma sociedade machista, do coronelismo. A modernidade, é claro, chegou, e o sertão está mais desenvolvido, com Universidades, por exemplo, e as mulheres estudam e trabalham. No entanto, os pensamentos continuam tendo como base a raiz “coronelista”. Janotti (1984), no entanto, critica o estereótipo dos coronéis como pessoas rústicas, brutais e ignorantes, considerando que todo estereótipo é restritivo e empobrecedor. A autora traduz o coronelismo como uma política de compromissos, uma aliança do Estado com a oligarquia agrícola. Para Janotti (1984), o coronel era um tipo social, que tinha sua autoridade reconhecida pela comunidade em função de seu papel “protetor”. Porém, também deixa explícito que o coronel podia representar o bem ou o mal, a depender das circunstâncias e seus interesses.

Na época dos grandes coronéis, datada no final do século XIX até a década de 1930, a mulher tinha que ser boa cozinheira, cuidar bem da casa e dos filhos, além de satisfazer sexualmente o marido. Dento da política falocêntrica, não tinham como deixar essa imagem de mulher, já que eram treinadas para servirem ao marido e ao lar. Restava à mulher ser aquela submissa ao homem, tendo que acatar suas decisões e servi-lo. Depois de casar, a mulher se libertava do poder de seu pai, mas caía nas “garras” do poder do marido, passando a obedecer a seu esposo. No coronelismo, podemos ver a mulher com dois objetivos: o da satisfação do homem, centro da sociedade coronelística, e o da reprodução.

Outro fenômeno social importante nos sertões brasileiros foi o cangaço - fato complexo, que divide a opinião dos/as estudiosos/as que já refletiram sobre o tema. De forma geral, trata-se de um fenômeno regional, no qual indivíduos organizados em grupos praticavam uma série de crimes, como roubos, assassinatos, violações, entre outros. Para Queiroz (1986), o cangaço é delimitado no tempo (de fins do século XIX até 1940) e no espaço (interior do sertão nordestino). Os termos “cangaço” e “cangaceiro” eram empregados para definir homens que viviam fortemente armados na região das caatingas áridas, no interior de sete estados brasileiros.

O cangaço é um fenômeno controverso porque, apesar de espalhar o terror pelo interior do Nordeste, os cangaceiros também eram admirados por sua gente e se constituíam como “heróis ambíguos”. Para Freitas (2005), o fenômeno do cangaço foi considerado uma alternativa em relação aos trabalhos rurais e aos casamentos que selavam acordos entre as famílias e não consideravam os sentimentos dos/as noivos/as, principalmente das mulheres. Ser cangaceiro/a parecia ser algo subversivo a ordem social, patriarcal e clientelista existente, embora não possamos desconsiderar que as maiores vítimas das violências praticadas pelos cangaceiros eram as mulheres camponesas, que quando não entravam de forma forçada para os bandos, eram estupradas e até mesmo mortas.

Em contrapartida, quando as mulheres eram entregues aos cangaceiros, tornavam-se cangaceiras, o que lhes davam uma identidade e autonomia. A entrada das mulheres, por volta de 1930, mudou completamente o movimento do cangaço. Para alguns, depois que o cangaceiro se apaixonava, ficava mais fácil ser vencido; para outros, amar uma mulher deixava simbolicamente o cangaceiro menos viril. Há uma dualidade de visões no que refere ao fenômeno do cangaço, e não podemos dizer com certeza que as mulheres vivenciavam outro tipo de relação de poder, mais libertário, dentro do grupo (Queiroz, 1986). Ainda segundo a autora, embora a maioria das mulheres que entraram no cangaço tenha origem pobre, com passado de violência, algumas mulheres ricas aderiram ao movimento, por razões que não eram econômicas ou sociais.

Importante frisar que no Sertão, assim como no resto do Brasil, os “desviantes” são muitas vezes respeitados e admirados. Assim, o contexto de violência trazido pelo cangaço, trouxe graves consequências para o destino da mulher. Segundo Queiroz (1986), o machismo tradicional do Nordeste teve como consequência a estigmatização da mulher violada pelos cangaceiros ou pelos soldados, produzindo, inclusive, um repúdio pelas vítimas. A violência (neste caso, o estupro de mulheres), era uma prática tida como “natural” da cultura androcentrista, uma afirmação do erotismo masculino.

Em resumo, o cangaço é representado por um contexto transgressor, que não segue regras nem leis, e por isso é visto como a representação da própria violência, principalmente contra as mulheres. Já o coronelismo, na figura marcante do “coronel”, representa a dominação do homem sobre as mulheres, suas esposas, consideradas apenas objetos da sexualidade do marido e instrumento de procriação. No sertão, o homem dominava sua casa e as fronteiras dos currais eleitorais, e assim as mulheres tinham pouca oportunidade para reivindicar por espaços dentro da sociedade construída para ela servir ao homem. E assim, como a violência normatiza a conduta dos homens do sertão nordestino, tanto entre coronéis quanto entre os cangaceiros, os jagunços, os machões, o poder do mando, sem descartar o uso da força, é o que prevalece.

As mulheres em situação de violência no Sertão brasileiro

No intuito de compreender com mais profundidade a problemática da violência contra as mulheres no Sertão do Brasil, realizamos entrevistas com mulheres em situação de violência doméstica atual ou passada. Para análise dos dados qualitativos, utilizamos a técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (2004), para identificar os conteúdos subjacentes e latentes das entrevistas. Dentro da análise de conteúdo, escolheu-se a análise categorial, que funciona pelas operações de desmembramento do conteúdo em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos. As categorias de análise escolhidas são relacionadas ao nosso aporte teórico apresentado neste artigo.

O universo da pesquisa envolveu cinco mulheres. As mulheres participantes da pesquisa representam um universo diversificado: da zona urbana e rural, com graus de escolaridade variados, diferentes condições financeiras, e de todas as faixas etárias. Isso corrobora o fato de que a violência doméstica contra a mulher não se restringe a determinada classe ou cor, mas já está difundida, infelizmente, em nossa sociedade como um todo.

No que refere à análise das entrevistas, na primeira categoria analítica, buscamos compreender a visão das mulheres em situação de violência doméstica sobre a violência sofrida. A entrevistada Esperança2 demonstrou entender que as agressões que sofreu eram violência, pois além de violência física, relatou também violência psicológica e patrimonial. Apesar de seu entendimento de que sofria violência doméstica, Esperança ainda permaneceu casada por vários anos: “Sempre tem a questão de achar que tem que estar juntos por causa dos filhos. É frustrante ver seus sonhos de família sendo destruído”. Isto corrobora a ideia de que a mulher tem como principal papel (ou destino) de esposa e de mãe, e sente-se desamparada se os perde. Evidente que isso não é algo inerente, e corrobora a noção de gênero empregada neste estudo, em que o papel de cada um é aprendido social e culturalmente.

A entrevistada Superação mostrou claramente que as mulheres tendem a minimizar a violência psicológica e moral: “[o marido] me chamou de rapariga, prostituta, um monte de coisa. [...] Me agredia sempre verbalmente. [...] Eu fui muito espancada. Mas fui espancada só ume vez!”. Ou seja, enquanto as agressões eram verbais, Superação não tomou nenhuma atitude, rompendo a relação apenas na violência física. O principal questionamento diante desse fato é: as agressões verbais e/ou psicológicas doem/marcam menos que as físicas?

Para a entrevistada Felicidade, os insultos são tão cruéis quanto às tapas: “[ele ofende com] os palavrões que nordestino fala: satanás, desgraça, vai se f..., vai tomar no...”. No entanto, diz que pelas agressões verbais não tem coragem de se separar: “Eu teria [coragem] se ele aprontasse de novo [arrumar outra mulher]”. Está claro, portanto, que o homem firma sua condição de autoridade no lar, mesmo quando é infiel e agride a mulher. Afinal, o adultério é historicamente permitido ao homem na cultura patriarcal.

A entrevistada Socorro apresenta diversas contradições em seu discurso. Ao verificar sua concepção de violência, ela relata só ter sido agredida uma única vez, com um empurrão, configurando a violência física. Em seguida, ao falar sobre a motivação da violência, utiliza o verbo “bater”, o que no nosso entendimento é uma gradação dos atos que configuram a violência física. Socorro diz que esse “único” episódio foi há muito tempo, mas mais adiante na entrevista, diz que fazia três meses que o companheiro deixou de agredi-la. Assim, Socorro pareceu não reconhecer as inúmeras violências que sofreu ou, no mínimo, tentou escondê-las, diminuindo a gravidade dos fatos. Afinal, numa sociedade de base coronelista, a mulher deve ser submissa ao marido, pronta para servi-lo.

A segunda categoria analítica buscou compreender as relações de gênero existentes na situação de violência doméstica contra as mulheres. Esperança relata uma situação: “Minha filha tinha quebrado o braço, eu estava trabalhando e ele [o marido] em casa, sem fazer nada. Mas ele dizia que eu tinha que levar ela ao médico porque eu era a mãe”. As situações domésticas e familiares, portanto, são legitimadas como funções da mulher e não do homem. Mesmo quando a mulher já ultrapassou o âmbito privado e conseguiu adentrar o mundo público através do mercado de trabalho, ela é sobrecarregada pelas tarefas domésticas, ainda entendidas como exclusivas das mulheres.

A entrevistada Superação acredita que já não há mais tanta exigência para que a mulher seja apenas esposa e mãe, ou seja, a sociedade compreende e aceita com mais facilidade o fato da mulher estudar e trabalhar, por exemplo. Por outro lado, confirma que algumas pessoas criticam a postura de uma mulher mais independente, que não vive apenas para o marido e para os filhos. Isto porque, como pontua Scott (1995), os atributos culturais impostos para cada sexo reforçam o que é considerado para o homem e para a mulher. No caso da entrevistada, seu mergulho no mundo do trabalho, âmbito público, é tido como um atributo masculino, e por isso carregado de preconceito. Foi justamente num dia em que trabalhou até tarde que seu marido cometeu a agressão física que a deixou com várias marcas no corpo - e na mente.

Para a entrevistada Mudança, as mulheres do Sertão têm medo de denunciar o marido agressor (ela mesma não o fez), e que em cidades grandes como as capitais, isso não aconteceria, pois as mulheres denunciam logo. Importante ressaltar que Mudança já morou em São Paulo, quando “fugiu” do marido agressor. Segundo a entrevistada, em municípios pequenos rapidamente sabe-se quem denunciou algum crime. No entanto, diz que isto acontece porque “a maioria das mulheres daqui não tem coragem, e é ‘besta’. Hoje, se o ‘cabra’ [o homem] me bater, ele só bate uma vez, eu denuncio”. Essa ideia da mulher sertaneja como frágil e sem coragem de denunciar o agressor está ligada à figura dos coronéis, concebidos como homens autoritários, brutos e ignorantes, assim como era o primeiro companheiro de Mudança, que ela nunca denunciou, preferindo fugir. A mulher era muitas vezes considerada indefesa, e precisava do homem pra lhe proteger. No entanto, muitas vezes, era esse homem “protetor” que cometia a violência.

A última categoria analítica foi sobre as relações de poder, em que buscamos compreender a cultura patriarcal e a dominação masculina existente na sociedade. A entrevistada Esperança pontua que a dominação masculina é exercida constantemente, mesmo que existam formas de resistência e contestação. A ideia de que o homem é “dono” da mulher rompe até mesmo as barreiras do casamento: “[mesmo depois de separada] ele queria continuar mandando em mim. Porque eu ainda entrava na onda, numa forma meio inconsciente, me via escrava de umas coisas, ele me manipulava, ligava pra mim direto. Era horrível. Parecia filme de terror”.

Essa dominação também é um reflexo da sociedade patriarcal em que vivemos onde o poder do pai passa para o marido. Através do recorte sertanejo, trazemos a contribuição de Albuquerque Jr. (2001). Segundo o autor, alimentar a ideia do homem do sertão como “cabra-macho” contribui para naturalizar a relação entre homens e mulheres baseada num modelo de masculinidade que vigora desde o Brasil Colônia: um homem corajoso, viril e valente.

Uma questão importante é trazida pela entrevistada Superação - o fato de seu ex-marido não cumprir a medida protetiva: “Na realidade, não é uma coisa que parte dele. Os lugares, eu evito completamente, eu vivo minha vida tentando evitar [o encontro]”. Isso nos remete ao poder dos “coronéis” do sertão nordestino, que eram figuras de grande influência e submetiam ao seu poder os delegados e os juízes. Não sabemos se este é o caso, mas a analogia é pertinente. Por outro lado, reforça-nos a ideia de que o homem é do âmbito público e que por isso não tem seu espaço restringido; enquanto a mulher é do âmbito do privado, e deveria se restringir à sua casa.

A entrevistada Socorro nos revela outro lado da situação de violência: ela mantém financeiramente a casa, já que o companheiro está desempregado. Mesmo assim, a dominação masculina permanece. Socorro, inclusive, explica a agressão que sofreu um dia, dizendo que foi ela que começou. Por mais que a mulher seja provedora financeira da casa, o homem permanece como provedor moral, reafirmando a posição da mulher como submissa ao homem. Essa situação é corroborada pela pesquisa do IPEA (Garcia, Freitas, Silva & Höfelmann, 2014) que apontou que para 64% dos entrevistados, o homem deve ser o chefe do lar, apesar do número de mulheres como principal provedora da família só aumentar.

Na pesquisa aqui apresentada, foi de suma importância a narrativa de Felicidade quando ela resgata uma fala de sua mãe: “Minha mãe diz: Mas minha filha, ‘palavrão’ [palavra considerada vulgar, imprópria] não dói. Tu não lembra que teu pai me xingava [insultava]?”. Reforçando essa situação, Felicidade ainda menciona que todas as irmãs também já passaram por momentos difíceis no casamento, ou pior, segundo ela, porque o marido de uma delas agredia fisicamente. Essa afirmação aponta o macho agressivo, que não demonstra fraqueza, é frio e cruel, conforme Albuquerque Jr. (2003), e que ainda é legitimado na cultura sertaneja. Ou seja, homem tem que ser “macho” e as mulheres enquanto seres “frágeis” tem que se conformar com algum tipo de violência, e melhor ainda se for “apenas” verbal, já que segundo Felicidade seu marido diz: “Eu te xingo [insulto] para não te bater”. Podemos pensar o quanto esta frase traz a violência simbólica que às mulheres são submetidas cotidianamente.

A entrevistada Mudança relata algo impressionante e até mesmo cruel. No episódio em que comenta ter sofrido uma agressão física intensa, com chutes em seu rosto, ela disse que não procurou nenhum serviço de saúde, cuidou dos ferimentos em casa, visto que seu companheiro não a permitia sair. O cerceamento da vida da mulher numa relação de poder desigual tem alcances em todas as áreas de sua vida, inclusive nas questões da saúde. É claro que isso se devia ao fato que, talvez, Mudança tivesse que explicar os ferimentos, e algum profissional poderia perceber que era devido a uma violência. Importante destacar que o poder tem alcance no corpo, marca, investe, sujeitando-o. É justamente no corpo que o homem mais demonstra sua dominação sobre a mulher.

Conclusões

A violência contra as mulheres, principalmente a cometida no âmbito doméstico, talvez seja a expressão exacerbada da insuficiente autonomia das mulheres em várias situações, seja por motivações financeiras, envolvimento emocional e afetivo ou ainda, pelas próprias convenções de gênero, que atribuem papéis definidos socialmente para homens e mulheres os quais, embora cada vez mais assumam identidades múltiplas, ainda se inserem nessa ordem social e familiar persistentemente patriarcal. Essas concepções expressam a desigualdade de poder que marca o próprio conceito de gênero, fazendo com que o considerado “feminino” seja frequentemente desvalorizado em relação ao “masculino”.

Concluímos que, apesar de compreender as agressões que sofrem como uma situação de violência, as mulheres minimizam a gravidade. Nossos resultados também revelam que a mulher do Sertão brasileiro, atualmente, não se vê apenas no papel de mãe e esposa, pois conquistou sua liberdade, chegando ao espaço público, encontrando seu lugar no mercado de trabalho e nos estudos; no entanto, a hegemonia masculina ainda é muito presente. A mulher oscila entre sua antiga posição, restrita ao papel de esposa e mãe, e a atual. Em virtude do paradigma dominante em nossa sociedade, a mulher acumulou diversos papéis, que a sobrecarregam. De alguma forma, as mulheres ainda percebem certa discriminação quando elas saem do restrito mundo privado, e os dados mostram que não houve consenso entre as entrevistadas sobre se existe diferença das relações de gênero e de poder no Sertão e em outros lugares, como a capital.

O gênero, como debatido nesta pesquisa baseado nas ideias de Scott e Lauretis, é uma ação contínua das relações sociais entre homens e mulheres, sendo que essas relações ainda são desiguais na maioria das sociedades. Importante refletir sobre um aspecto: a mulher que vive numa relação em que sofre agressões físicas, psicológicas e morais constantes, às vezes, para romper este laço tem que mudar completamente sua vida, abandonando casa, família, amigos, enfim, tudo o que conhece e construiu, como o caso da entrevistada Mudança, e até mesmo de Esperança, que terminou ficando longe dos filhos. É o lado mais perverso da violência, onde quem mais sofre com a situação, também tende a ter as maiores perdas com a separação; essas perdas não são apenas financeiras, mas principalmente emocionais. Talvez a frase mais marcante tenha sido a da entrevistada Felicidade: seu marido diz que a agride verbalmente para não bater, como se a violência verbal/psicológica fosse menos grave que a violência física.

Diante do exposto, apesar dos significativos avanços e conquistas históricas alcançadas pelas mulheres - afinal, de totalmente submissa ao poder masculino, lutou para conseguir maior espaço no lar e visibilidade no espaço público -, no Brasil ainda vigoram padrões, valores e atitudes discriminatórias. As novas dinâmicas macrossociais acarretaram mudanças que repercutiram no âmbito da família e nas relações de gênero. A inserção cada vez maior da mulher no mercado de trabalho, a influência dos movimentos feministas pela igualdade de direitos, o avanço da ciência em relação aos métodos contraceptivos, a melhoria educacional das mulheres, dentre outras, trazem um conjunto de “novos valores”, ligados a uma situação mais igualitária entre o homem e a mulher. Juntam-se a isto, mudanças demográficas, econômicas, políticas e culturais.

No entanto, nos espaços públicos e privados continuam as dicotomias, mesmo com a mulher tendo maior acesso ao mundo público através do trabalho e da escolarização. Parece inegável o reconhecimento de mudanças significativas, trazidas por este novo contexto, nos padrões de relações de gênero e a nova configuração das relações de poder que as envolvem. Ou seja, mesmo que as mulheres tenham conquistado avanços significativos como o direito ao voto, ao trabalho fora do ambiente doméstico e à educação, algumas ainda permanecem submissas aos homens devido às relações de gênero e de poder tão fortemente arraigadas na nossa sociedade, que não é diferente no Sertão do Brasil.

Vivendo na caatinga, um ambiente castigado pela escassez de chuvas e aridez, o sertanejo foi, e ainda é considerado um forte. Essa força e coragem para sobreviver foram absorvidas também nas relações entre homens e mulheres. A imagem socialmente compartilhada é de um homem sertanejo forte, valente, com uma peixeira na cintura, sempre pronto para resolver seus problemas “na ponta da faca” (com violência). Essa imagem é principalmente ligada ao fenômeno do cangaço, considerando os cangaceiros como bandos de homens armados e sem piedade, que roubavam, saqueavam e matavam todos que viam pela frente. No entanto, mesmo não sendo necessariamente vinculado à violência extrema, posto que muitas vezes é considerado um fenômeno político, o coronelismo também deixou herança nas relações de gênero, já que os coronéis eram latifundiários, tinham autoridade sobre seus “súditos” (principalmente a população mais pobre), e esse poder certamente era refletido dentro de casa. Ainda hoje o homem é considerado como aquele que deve ser o chefe, o provedor financeiro e moral da família.

Por fim, esclarecemos que este estudo não tenta demonstrar que a violência contra a mulher acontece mais no Sertão do que em outros lugares, mas evidencia que as propostas de intervenções não podem ser desvinculadas das questões socioculturais e históricas. É importante pensar que a região tem uma grande zona rural, altos índices de analfabetismo e evasão escolar, o mercado de trabalho é escasso, entre outros fatores. E por todas essas questões, não podemos esconder que o Sertão, lócus de nossa pesquisa, ainda apresenta números alarmantes de violência contra as mulheres.

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1Este trabalho é derivado da dissertação de mestrado: “Violência doméstica contra as mulheres: relações de gênero e de poder no sertão de Pernambuco”.

2Os nomes aqui apresentados são fictícios e foram escolhidos pelas próprias entrevistadas.

Recebido: 05 de Abril de 2018; Aceito: 27 de Agosto de 2018

Kalline Flávia Silva de Lira es Doutoranda em Psicologia Social, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direitos Humanos, pela Universidade Federal de Pernambuco. Psicóloga.

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