SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número48Análisis crítico de la STC 172/2020 (Pleno) en cuanto a la constitucionalidad del artículo 20.2b de la Ley de Seguridad CiudadanaParámetro de regularidad constitucional: 10 años de la reforma constitucional en derechos humanos. Implicaciones teóricas y limitaciones prácticas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cuestiones constitucionales

versão impressa ISSN 1405-9193

Cuest. Const.  no.48 Ciudad de México Jan./Jun. 2023  Epub 12-Jan-2024

https://doi.org/10.22201/iij.24484881e.2023.48.18042 

Artigos doctrinais

Liberdade de expressão e o discurso profano: reflexões sobre a um caso concreto no Brasil

Free Speech and the Secular Reasoning: Some Thoughts a Brazilian Judicial Case

Vitor Maia Veríssimo* 
http://orcid.org/0000-0001-5570-4804

Marcelo Campos Galuppo** 
http://orcid.org/0000-0003-2329-6695

* Mestre em Ciências Políticas pela PUC Minas. Bacharel em Direito pela PUC Minas. vitormaiav@hotmail.com.

** Professor da PUC Minas e da UFMG. Vice-presidente da Internationale Vereinigung für Rechtsund Sozialphilosophie. Ex-presidente do Conselho Nacional de Pesquisa e de Pós-graduação em Direito. marcelogaluppo@uol.com.br.


Resumo

Apesar de a liberdade de expressão ser prevista como direito fundamental pela Constituição Brasileira, há aparente conflito entre esse direito e outros também constitucionalmente protegidos, como a liberdade religiosa. Defendemos o direito do artista divulgar sua obra, mesmo que envolva a crítica das instituições sociais. Investigamos criticamente a decisão em primeira instância do caso da Arquidiocese de Goiânia contra a artista Ana Smile para analisar a atuação do Estado em casos que envolvem liberdade de expressão. Busca-se compreender de que maneira deveria o Estado dirimir a ofensividade do discurso e o direito de se expressar, concluindo ser necessária uma legislação infraconstitucional mais permissiva quanto à liberdade de expressão, em especial dos artistas plásticos.

Palavras-chave: liberdade de expressão; intolerância religiosa; liberdade artística; censura

Abstract

Although Free Speech is a Constitutional Right in Brazil, there is a conflict between it and other Constitutional Rights, such as Freedom of Religion. This paper holds that its necessary to grant the free circulation of ideas, thus protecting the right to artists to publish their work, even when they critic the institutions themselves. We analyze the sentence in the case Arquidiocese de Goiânia v. Ana Smile to understand how the State has acted in cases that cover Free Speech. We try to comprehend how the State should rule the offensiveness of the right to free expression to show that it is necessary to pass more permissive statutes in Brazil, specially concerning Artists and their work.

Keywords: free speech; religious hatred; free expression of the arts; censorship

Sumário: I. Introdução. II. A liberdade de expressão no di
reito brasileiro. III. O caso Ana Smile. IV. Censura e des-
proteção política. V. O outro lado do Estado: a garantia ao
discurso e à arte como direito de expressão política. VI. Con-
clusão. VII. Referencias.

I. Introdução

A liberdade de expressão é comumente invocada em situações de aparente conflito com outros direitos. Ofensas raciais, discursos de ódio, expressões ou performances que contrariam o "bom senso" e a "ética local" são sempre colocados em paralelo com o livre discurso, sobre o qual é importante que determinada comunidade política decida o que está e o que não está protegido.

Pretendemos avaliar um o caso da Arquidiocese de Goiânia versus Ana Smile, artista plástica criadora de peças de gesso que transformam imagens de santos da Igreja Católica em personagens comuns à "cultura pop" (tais quais o Batman, David Bowie, Chapolin Colorado, Galinha Pintadinha, entre outros).1

Para tanto, faremos um breve estudo da legislação brasileira sobre a temática antes de expormos o caso, analisando inclusive as argumentações das partes no referido processo, bem como da atuação do juiz competente no caso.

Traçaremos o pano de fundo teórico da discussão com a contribuição de autores do campo da Liberdade de Expressão, que analisam a proteção -ou não- do discurso pelo Estado, em especial as contribuições de Baker (1989), Dworkin (2006), Fiss (1996), Lewis (2007), Meiklejohn (1961) e Waldron (2012).

Também traremos a discussão para o campo da expressão política da arte, objetivando compreender qual é o papel da arte, enquanto discurso, no contexto da participação cidadã na construção de uma sociedade com livre participação política de seus indivíduos, para respondermos a questão sobre como deveria ser a atuação do Estado -ainda que enquanto mero garante da possibilidade de existência do discurso- em tais situações.

Finalmente, de posse de todo o caminho até então, traçaremos uma análise crítica sobre a atuação estatal no caso Ana Smile para compreendermos de que maneira podem ser prejudiciais as intervenções estatais no campo do discurso artístico, principalmente nos de vieses contra-hegemônicos, tal qual o da Santa Blasfêmia.

Não é propósito desde trabalho reconstruir o conceito de "liberdade de expressão". Por esta razão, nos ateremos ao estudo do caso a ser apresentado e suas implicações, baseandonos nos principais teóricos sobre a liberdade de expressão.2

II. A liberdade de expressão no direito brasileiro

A gênese da liberdade de expressão se confunde com a formação e o desenvolvimento do próprio Estado moderno e a superação do absolutismo pelo estado liberal, principalmente durante as revoluções burguesas, em especial na Revolução Norteamericana, e a partir da qual influenciou todo o constitucionalismo ocidental, deixando sua marca também na Constituição Federal de 1988, que garantiu à liberdade de expressão o status de Direito Fundamental em seu artigo 5o., desenvolvendo sua proteção também em seu artigo 220, que dispõe: "Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição" (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).

Essa nova ordem constitucional, para a qual a liberdade de expressão assume uma função estruturante e legitimadora da política, está em aparente conflito com resquícios normativos da antiga ordem jurídica, que ainda via a liberdade de expressão como algo sujeito ao controle estatal. Assim, o Código Penal trata de espécies normativas para as quais a expressão livre constitui-se em ofensa à ordem jurídica, como no caso de seu artigo 208, que prevê o crime de Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo.3 Este último será parte da presente análise, que não se insere no campo dogmático do Direito Penal, mas no campo Constitucional e Filosófico acerca da liberdade de expressão artística.

III. O caso Ana Smile

No mês de março do ano de 2016, a Arquidiocese de Goiânia ajuizou ação contra Ana Paula Dornelas Guimarães de Lima, conhecida como Ana Smile, em razão de suposta violação à liberdade religiosa no trabalho artístico por ela realizado, a saber, a modificação de imagens de gesso produzidas com moldes originalmente elaborados para a fabricação de imagens de santos da Igreja Católica. A artista, proprietária da marca "Santa Blasfêmia", alterava as imagens produzidas pelos moldes, acrescentando-lhes elementos pictóricos estranhos à representação dos santos para os quais os moldes se desenhados (basicamente um molde da imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição e um molde de Santo Antônio de Pádua), tais como uma pintura não-ortodoxa e a fixação de elementos tais como chifres e capas. Com isso, ela as transformava em ícones da "cultura pop", como as princesas da Disney, heróis do universo da história em quadrinhos e personagens de desenho animado, inclusive a conhecida "Galinha Pintadinha", para a qual ela acrescentava um bico à imagem e a pintava de azul com pontos brancos.

Na ação proposta, o pedido da Arquidiocese continha uma série de medidas -obrigações de fazer- para evitar a produção e divulgação de novas imagens por parte da artista.

Na esfera cível, a base legal utilizada pela Arquidiocese encontra abrigo no artigo 5o. da Constituição Federal, no inciso VI, que dispõe:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

VI- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).

A Petição Inicial foi instruída com o argumento de que, sendo assegurada a liberdade culto e sua proteção pelo Estado, a ação da artista goiana violaria tal disposição normativa, na medida em que "afronta símbolos e valores da Igreja Católica Apostólica Romana, vilipendiando a liberdade de culto" (Ação Comum 201600958448 [95844-36.2016.8.09.0051], 2016: 3).

No mesmo sentido, a autora compreende ainda que o Estado Brasileiro se torna obrigado por meio do Decreto no. 7.107/2010, que promulga a concordata entre o país e a Santa Sé, em seu artigo 7o., a proteger a fé Católica quando esta se encontra ameaçada. A redação do artigo diz respeito à necessidade de proteção dos lugares de culto da Igreja, bem como seus símbolos, liturgias e objetos de culto (Decreto No. 7.107, 2010).

A Inicial foi proposta simultaneamente com pedido em caráter liminar, inaudita altera pars, constando do pedido da Arquidiocese, desde já, que o judiciário restringisse totalmente a atividade da artista. Dentre os argumentos utilizados para fundamentar o pedido da antecipação da tutela, consta que:

O uso dos símbolos católicos pela requerida, em latente sinal de desrespeito à fé católica, justifica a autorização da antecipação da tutela, já que a venda dos objetos pela internet constitui hipótese de dano irreparável ou difícil reparação.

A continuidade da prática do ato (produção e venda de peças) até a final decisão configuraria a perpertuação da ofensa (Ação Comum 201600958448 [95844-36.2016.8.09.0051], 2016: 9).

O Juiz de Direito Abílio Wolney Aires Neto, da 9a. Vara Cível da Comarca de Goiânia, a quem foi distribuída a ação, decidiu (liminarmente) de forma contrária à Ana Smile, proibindo a produção, divulgação e comercialização, inclusive por meio das redes sociais, da sua obra. A fundamentação da decisão (a ser analisada mais abaixo) parte da técnica de interpretação constitucional do sopesamento de princípios, tendo o julgador entendido possuir maior peso o princípio da "dignidade pessoal" do Vaticano (sic), pessoa jurídica de direito público internacional, representado na ação pela Arquidiocese de Goiânia.4

Desta forma, o juiz aplicou uma série de medidas restritivas à produção artística, tais como: "não fabricar, vender, conceder, doar... imagem/ estatueta e/ou ícone que tenha como base os santos e os símbolos pertencentes à Igreja Católica Apostólica Romana ou que façam alusão a eles, descacterizando-os com a inserção da cultura e/ou características populares" (Ação Comum 201600958448 [95844-36.2016.8.09.0051],, 2016: 121).

Também determinou a exclusão das redes e mídias sociais dos perfis da loja da artista que possuam as imagens questionadas, que as obras fossem retiradas e proibidas de serem vendidas nas lojas físicas, bem como proibiu a "venda, cessão, doação ou qualquer tipo de transmissão à terceiros das imagens", fixando multa em caso de descumprimento das obrigações de não fazer.

A artista agravou da decisão de primeira instância, oportunidade na qual demonstrou sua linha argumentativa, alegando que, além de ser a produção artística seu trabalho e meio de sustento, "a obra, em verdade, não ofende a ninguém, porquanto, na sua opinião, super-heróis e santos tem semelhanças". Ressaltou ainda o caráter laico do Estado Brasileiro e os dispositivos constitucionais que garantem a liberdade de expressão. A artista também cuidou de trazer à discussão o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade no. 4.815 (posteriormente enfatizando esse argumento, na oportunidade da contestação).5

O Relator incumbido de julgar o Agravo de Instrumento percebeu a controvérsia contida situação, afirmando que uma conclusão segura a respeito do dilema só seria possível ao final do processo (Agravo de Instrumento 258333-76.2016.8.09.0000, 2016).

Por isto, deferiu apenas parcialmente o pedido da artista de efeito suspensivo da liminar, no que diz respeito à "proibição de fabricação, venda, concessão, doação, permuta ou transmissão a terceiros das peças/imagens", bem como revogou a proibição de venda das mesmas obras na loja física. A despeito da revogação destas medidas ocorrer sob o motivo de tratar de fonte de renda da artista, o relator manteve as determinações de exclusão dos perfis da internet e da medida que proíbe Ana Smile de se valer do conteúdo discutido em processo para autopromoção ou propaganda de seu trabalho.

Na sentença, a decisão do Juízo da 9a. Vara Cível de Goiânia/GO foi distinta da decisão liminar do mesmo processo. Em sentido oposto, embora tenha mantido a linha de fundamentação sobre o aparente conflito entre princípios de Direitos Fundamentais -no caso a liberdade de expressão versus a liberdade religiosa- a decisão final de mérito foi pela improcedência do pedido da Arquidiocese de Goiânia, afirmando que o pedido da Arquidiocese implicava privar a artista não só de sua liberdade de criação e expressão, mas também de exercer seu ofício, do qual retira seu sustento, sua profissão, o que incorreria em uma decisão sem razoabilidade (Ação Comum 201600958448 [95844-36.2016.8.09.0051], 2016).

Na intenção de se garantir uma máxima eficácia (de um princípio constitucional) em detrimento de outro (princípio constitucional), entendeu que garantir o direito da artista seria a solução "menos gravosa". Assim, concluiu que a confecção e divulgação as obras, por si só, "não revela violação ou desrespeito à imagem ou honra da Igreja Católica... não ultrapassando a requerida da esfera da liberdade de expressão ou da livre manifestação do pensamento, intelectual e artística" (Ação Comum 201600958448 [95844-36.2016.8.09.0051], 2016: 4 [sentença]).

A Arquidiocese recorreu da sentença, insistindo nos argumentos iniciais, de que as obras produzidas pela marca "Santa Blasfêmia", "vilipendiam" e ofendem a liberdade de culto e o "sentimento" religioso e que impedir a circulação das obras não seria censura, mas sim um limite à extrapolação da liberdade de expressão realizada pela artista, uma vez que não existiriam "direitos absolutos" (Apelação Cível 0095844.36.2016.8.09.0051, 2020: 04 [recurso de apelação]).

Na resposta à Apelação, a artista se debruça, outra vez, na ADI 4.815, para defender que sua ação está no escopo permitido pela liberdade de expressão conforme a Constituição, afirmando que as peças produzidas, em nenhum momento, impediram qualquer pessoa de exercer sua liberdade religiosa, ou, ainda, obrigaram alguém a seguir religião diversa da própria.

Por fim, foi a 3a. Turma Julgadora da 6a. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, em decisão relatada pelo Desembargador Norival Santomé, que pôs fim ao processo (embora não à controvérsia gerada). A decisão manteve a sentença, aduzindo novos fundamentos que deram maior substância ao caso.

De início considera apenas "aparente" o conflito entre os direitos fundamentais, uma vez que não se trata de sacrificar um direito em detrimento do outro e, sim, de sua conciliação. Segundo o voto do relator, embora garanta a liberdade de expressão e a liberdade religiosa entre seus princípios, a Constituição, em seu artigo 220, expressamente veda a censura e, constituindo-se esta norma em uma regra (e não um princípio), que deve ter aplicabilidade imediata no caso (Apelação Cível 0095844.36.2016.8.09.0051, 2020 [acórdão]).

Além disto, faz importantes considerações sobre o tema, ao retomar a paradigmática ADI 4.815 (que se apresenta como importante chave de leitura da liberdade de expressão nos tribunais brasileiros), afirmando que o judiciário não tem "poder para censurar a exibição de manifestações artísticas, salvo quando houver a prática de ilícitos, tais como a incitação à violência, discriminação e violação dos direitos humanos nos discursos de ódio (Apelação Cível 0095844.36.2016.8.09.0051, 2020 [acórdão]). Outra razão pela qual entendeu não ser caso de impedir a obra da artista é o fato de suas obras não significarem expressão de ódio generalizado à comunidade cristã/católica e, sendo expressamente vedada a censura pelo Direito Brasileiro, não haveria outra medida a ser tomada, senão permitir a continuidade do trabalho artístico.

IV. Censura e desproteção política

No caso da "Santa Blasfêmia", podemos destacar uma sucessão de equívocos, seja na argumentação da Arquidiocese, seja na fundamentação da decisão do juiz da 9a. Vara Cível de Goiânia, seja, até mesmo, na tese da defesa, que insiste em suscitar que a liberdade de expressão da artista decorre de seu caráter não ofensivo.

A análise do argumento da Igreja Católica revela a ênfase no fato de que a arte proposta por Ana Smile carrega um discurso ofensivo a uma coletividade de pessoas, em desrespeito às suas crenças, fé, direito à liberdade de culto e sentimento religioso. Por isso, entendem ser necessária a tutela jurisdicional para dirimir a questão, aqui posta como um conflito entre liberdade de expressão e liberdade ao culto. Entendemos, ao contrário, haver sim uma oposição de interesses, especificamente uma oposição de discursos (concebidos como ideias, concepções, pensamentos ou opiniões sobre determinados assuntos, emitidos na esfera pública, ou passíveis de conhecimento público), mas que, de qualquer maneira, não justifica a tutela jurisdicional tal como concedida no caso.

Analisando a Inicial proposta pela Arquidiocese e o argumento de que a arte foi criada de maneira ofensiva, nos resta buscar compreender não se são justas a reclamações quanto a ofensividade, mas a necessidade da tutela jurídico-estatal, independente da comprovação da suposta ofensividade.

Ainda no caso, a decisão da 9a. Vara Cível de Goiânia suscita que estão em pauta a inviolabilidade de crença/culto versus a liberdade de expressão, ambas garantias dispostas no artigo 5o. da Constituição. Argumenta contudo, que a decisão nesse choque se daria em favor do maior peso da "dignidade pessoal" da Santa Sé, representada pela Arquidiocese de Goiânia. Analisaremos a decisão ao longo do artigo, mas é necessário dizer que, nos casos em que se discuta a proteção ou não ao discurso, invocar o vago conceito da dignidade da pessoa humana como critério de decisão -e de forma bastante duvidosa como fez o julgador, admitindo a "dignidade" de uma pessoa jurídica de direito público internacional- desloca a discussão para um caráter subjetivo acerca do que seja a dignidade, afastando a análise da liberdade de expressão. Tanto quem fala como quem ouve pode ter sua dignidade ofendida no mesmo discurso. Por isso, outros critérios, como forma, conteúdo e periculosidade do discurso, são critérios de decisão mais razoáveis para dirimir a complexa questão da Liberdade de Expressão.

A dificuldade de se estabelecer critérios válidos de argumentação sobre a liberdade de expressão é evidenciada, inclusive, na linha argumentativa escolhida pela defesa da artista. A argumentação adotada paira sobre a intenção da artista com a obra: a artista estaria tratando com humor, se utilizando de uma metáfora para "brincar" com a santificação de figuras da cultura pop, o que nos parece também uma compreensão equivocada sobre o tema. A discussão puramente fática, principalmente baseada no elemento volitivo do falante, também não é suficiente para garantir um provimento coeso quanto à Liberdade de Expressão. Como dito, a discussão se tornaria imprecisa -uma vez que não há como se demonstrar objetivamente a vontade ou intenção de alguém ao falar- e a decisão se embasaria numa fundamentação rasa -como de fato ocorreu-.

Dizer que a arte de Ana Smile não é ofensiva (ou que não pode ser considerada ofensiva) é afirmação tão equivocada quanto restringir sua arte. Para sabermos se ela é de fato ofensiva, o primeiro problema seria definir a quem compete avaliar se houve ou não essa ofensa. O sentimento, seja coletivo, seja individual, não é passível de ser mensurado, dado seu aspecto psicológico, subjetivo,6 e por isso devemos considerar se de fato alguém pode ser ofendido pela arte de Ana Smile. A questão, no entanto, é outra: se a existência de uma mera ofensa é fato legítimo para cercearmos a liberdade de expressão artística.

Primeiramente, é discutível a relevância do que pode ser chamado de ofensivo no campo da liberdade de expressão. Ao fixar o conceito de discurso de ódio,7 Lewis (2007) afirma que o hate speech é comumente definido como "ataques virulentos em relação a judeus, negros, muçulmanos, homossexuais ou membros de qualquer outro grupo. Trata-se de puro ódio, sem que tenha havido nenhum erro do indivíduo" (Lewis, 2007: 157).8 Contudo, Lewis entende que os simples ataques não são suficientes para garantir a qualificação de um discurso como sujeito à intervenção do Estado, porque seria necessário se demonstrar a existência de um "perigo claro e presente" (Clear and Present Danger), tal como fixado em casos norte-americanos como Schenk v. United States. Essa doutrina surgiu a partir do voto do juiz Holmes no caso, quando entendeu que, no caso concreto, o governo dos Estados Unidos não poderia acusar de espionagem aqueles que propunham críticas contra a propaganda ofensiva que o governo fazia durante a Primeira Guerra Mundial (ibidem, 26). A possibilidade de intervenção do Estado nesse caso deveria obedecer à regra segundo a qual somente em caso de "perigo real e iminente de ação ilegal" perpetrada por meio do discurso esse poderia ser restrito (ibidem, 159). No mesmo sentido a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu em Brandenburg v. Ohio, revertendo a condenação de um membro da Ku Klux Klan que ofendeu judeus e negros em um comício ao definir duas condições para que o discurso não fosse protegido pela primeira emenda: a) o discurso deveria incitar ou produzir iminentes ações ilegais, e b) o discurso deveria tornar tal ação provável e plausível (ibidem, 124).

A ofensividade do discurso, por si só, não caracterizaria a necessidade (nem autorizaria a urgência) da intervenção estatal -ainda que estejamos falando de ódio aberto, claro e direcionado a quem quer que seja, porque sempre há o risco de, alegando-se a existência de tal violação, suprimirem-se discursos que são legítimos, ainda que minoritários—.9 Lewis (2007) entende que maior dano haveria na restrição de um discurso -ainda que considerado de ódio- do que na restrição do mesmo, pois para ele, o perigo residiria no fato de que, para que alguém aparentemente intolerante seja silenciado, ocorre ao mesmo tempo o risco de silenciar o pensamento crítico (ibidem, 160). Por isso, a possibilidade de o discurso ofender está dentro do campo de proteção da liberdade de expressão. Não se vê, portanto, qualquer motivação para a intervenção do Estado da forma requerida pela Arquidiocese de Goiânia. Ainda que se percebesse um caráter ofensivo na obra da artista, a mera fabricação e divulgação de imagens caracterizadas como heróis ou personagens, que, na sua origem, se apropria de representação tradicional de santos da Igreja Católica, e ainda que causasse risco para o bem juridicamente protegido da liberdade de culto, isso não seria suficiente para ensejar a ação estatal, suprimindo a instância de crítica que caracteriza o trabalho da artista.

É próprio da obra de arte sua natureza crítica e questionadora das instituições. A discussão sobre a obscenidade (como critério limitador da liberdade de expressão) nos Estados Unidos ajuda-nos a compreendê-la. Owen Fiss analisa esse ponto a partir do exemplo de Robert Mapplethorpe, fotógrafo cuja obra foi considerada por alguns como "obscena". A polêmica originou-se do fato de haver sido organizada uma exposição com financiamento público de suas obras, chamadas pelo Senador Jesse Helms de "sujas" e de "lixo" (Fiss, 1996: 29). Helms também se utilizou do termo "obscena", termo que nesse contexto possuia particular relevância jurídica, em vista de a Suprema Corte haver analisado o conceito de obscenidade no caso em que consagrou o chamado "Miller Test", que consistia em uma espécie de filtro pelo qual o discurso deveria passar para ser aprovado e legitimado na esfera pública. Para alcançar o efeito de restringir o discurso, a acusação deveria provar que o trabalho em questão possuia um apelo sexual lascivo, de maneira manifestamente ofensiva, sem qualquer proveito literário, artístico, político ou científico. (ibidem, 31).

A despeito do Miller Test, o trabalho de Mapplethorpe foi avaliado como passível de financiamento publico à época, porque, no entender do júri convocado para julgar a questão, possuía certo valor ético e até mesmo político. Suas fotos retratavam, em sua maioria, corpos adultos nus em poses eróticas ou explicitamente sexuais, associadas, muitas vezes, a armas de fogo, que poderiam causar estranhamento aos espectadores. Somava-se nessa época o espanto ao surgimento e alastramento da AIDS, aliado a preconceitos que ligavam a doença aos homossexuais, razão pela qual o trabalho de Mapplethorpe, ainda que pudesse ser considerado moralmente "obsceno", não poderia receber a mesma classificação no que diz respeito aos seus aspectos políticos e éticos, como bem decidiu o júri que avaliou o caso.

Se o Miller Test, foi inicialmente proposto para restringir obras eróticas e/ou erotizadas, acabou por se tornar, durante muito tempo, o principal fundamento das questões a respeito da Liberdade de Expressão que chegavam para ser julgadas pela Suprema Corte, uma vez que tornara-se um critério de avaliação prático, social e juridicamente aceitável para classificação dos discursos como protegidos ou não pela Primeira Emenda.

Se assumíssemos o padrão estabelecido no cenário estadunidense de então (década de 80), ainda assim ficaria prejudicada uma classificação das obras de arte de Ana Smile como obscenas, em virtude de não possuírem nenhum apelo lascivo ou "perverso", não pelo menos, de maneira evidente -visto ser difícil comprovar a intenção da artista-. Além disso, as estatuetas trabalham com figuras comuns do imaginário popular, sendo difícil sua classificação com grotescas. As obras possuem um conteúdo que ultrapassa a mera "desconfiguração religiosa", assumindo um caráter crítico/político na medida em que fazem uma interlocução entre a iconografia religiosa e a idolatria imagética proposta pela cultura pop. Por isso não basta a análise, ao nosso ver superficial, de que a transfiguração ou reconfiguração das imagens caracterizam por si sós, ofensa à liberdade de culto, como propora a Arquidiocese de Goiânia.

Jeremy Waldron, em "The Harm in Hate Speech", defende que a proteção da liberdade de expressão ocorre somente quando esta não caracterize uma ofensa a alguém em função de seu pertencimento a determinado grupo social, por causa do dever de se respeitar a dignidade dos indivíduos pertencentes àquele grupo como condição de igual participação na esfera política: ninguém pode ter seu status de cidadão diminuído por meio de ataques ao grupo social do qual faça parte.10 É neste quadro que o autor aborda a distinção entre ódio religioso e ofensa religiosa (Waldron, 2012: 118). Waldron (2012) argumenta que a ofensividade de um discurso, por si, não é motivo que ensejaria a regulação desse discurso (ibidem, 126), pois não é o grupo religioso, mas o indivíduo, por causa de seu pertencimento ao grupo, que é o objeto da proteção (p. 122). O autor afirma que:

... cristãos [considerados individualmente], milhões deles, são titulares de proteção contra difamação, incluindo difamação enquanto cristãos. Mas, isso não significa que algum papa, santo, ou doutrina será protegida, nem significa que a reputação de Jesus deve ser protegida... A dignidade cívica dos membros de um grupo permanece separada do status de suas crenças, não obstante o mais ofensivo que um ataque contra um profeta ou o Corão possa parecer (Waldron, 2012: 123, tradução nossa).11

No caso de Ana Smile, a fundamentação jurídica proposta pelo juiz é no sentido contrário da teoria de Waldron pois não indica ninguém A fundamentação utilizada se baseia na suposta "dignidade pessoal" do Vaticano, mas pressupor uma teoria restritiva da liberdade de expressão baseada no vago conceito de dignidade (que já é de difícil caracterização no que tange aos indivíduos) aplicado a uma pessoa jurídica nos soa impossível, além de interpretar mal o significado da norma constitucional, cujo objetivo não é proteger uma religião, mas o direito dos indivíduos a expressarem sua religião em um ambiente de tolerância.

Esses argumentos só evidenciam a gravidade da decisão -ainda que em caráter liminar- da 9a. Vara Cível de Goiânia, uma vez que a censura (mesmo à posteriori) de uma artista, em face de uma poderosa instituição social, a Igreja Católica, representa uma violação da neutralidade e da laicidade determinada pela Constituição ao Estado brasileiro, inclusive a seus juízes. Conceber uma sociedade democrática e plural é o papel fundamental do Estado e do Direito.

Não obstante, a sentença foi apta para reparar a decisão liminar (que já havia sido, em parte, revogada pelo Tribunal), e foi, por fim, sedimentada no importante Acórdão da 3 a. Turma Julgadora da 9a. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, ao reconhecer a gravidade de se impedir a atividade da artista em dois pontos: sua livre expressão artística e sua capacidade laborativa.

A decisão prezou pela impossibilidade de exercer censura, como já definido na Constituição, e estabeleceu os limites da expressão no ato ilícito de incitação à violência, no discurso de ódio (entendimento já consagrado na importante ADI 4.815), ao verificar que as estatuetas reconfiguradas não implicam em ódio generalizado à fé Católica. Desta forma, a decisão estabeleceu marcos importantes sobre o tema da liberdade de expressão nas artes (e seu aparente conflito com a liberdade religiosa) e como deve ser seu tratamento nos tribunais brasileiros.

1. O discurso na imprensa e na arte

A liberdade de expressão é um importante mecanismo de significação e projeção do self, seja na esfera pública, seja na esfera privada, e partir de uma concepção exigentemente reguladora, principalmente com relação a conteúdos artístico, é passo na contramão dos pressupostos organizacionais de uma sociedade plural. Novamente o exemplo norte-americano é útil para pensarmos as Constituições em geral e o papel estruturante da liberdade de expressão em uma democracia.

No caso New York Times vs. Sullivan, que versava sobre a responsabilidade da imprensa por notícia ou reportagem taxada de mentirosa/caluniosa, decidiu a Suprema Corte que o discurso da imprensa deveria passar por dois filtros: falsidade e malícia efetiva (Dworkin, 2006: 268). O Julgador deveria analisar e comprovar (e nesse teste a comprovação é essencial!) que o discurso em voga era falso e que aquele que o proferiu, tendo ciência dessa falsidade, optou pela publicação do mesmo (a chamada malícia efetiva). O discurso que falhasse no duplo teste não estaria protegido pela primeira e emenda e, portanto, seria passível de retratação e de indenização ao ofendido. Do contrário, ainda que se aplicasse somente um dos filtros, o discurso seria protegido pela primeira emenda.

Essa decisão da Suprema Corte foi bastante abrangente para a consolidação da Liberdade de Expressão nos Estados Unidos, apesar das críticas que recebeu de que daria espaço a uma postura irresponsável dos agentes da própria imprensa. Essa interpretação, que acaba por presumir válido todo discurso (uma vez que a censura exigia dupla comprovação: objetiva e subjetiva12), poderia ensejar os mais diversos resultados na esfera pública.

A despeito das críticas que a decisão recebeu, é preciso compreender suas implicações positivas. A tradição estadunidense atribui muita importância à imprensa para o desenvolvimento de sua democracia. Dworkin (2006), por exemplo, justifica a decisão da Suprema Corte dizendo que a formação da sociedade e sua estruturação como Estado deveria implicar um sistema de conciliação de todas as forças e poderes que atuam diretamente na sociedade, capazes de influenciar, mobilizar e reprimir comportamentos, na medida em que uma "imprensa livre e poderosa serve para impor restrições benéficas às atitudes de segredo e desinformação por parte do Estado" (ibidem, 300).

Dworkin pressupõe dois modos de fundamentação da Liberdade de Expressão: a instrumental e a constitutiva. A primeira defende que a permissão de as pessoas dizerem o que desejam "produzirá efeitos benéficos para o conjunto da sociedade" (ibidem, 319). O ponto aqui estabelecido é que a livre circulação do discurso ocasionaria um meio facilitador para a persecução de uma verdade objetiva no campo da política (ibidem, 319). De outro lado, a corrente constitutiva "pressupõe que [a liberdade de expressão] é importante não só pelas consequências que possui, mas porque o Estado deve tratar todos os cidadãos adultos (com exceção dos incapazes) como agentes morais responsáveis, sendo esse um traço essencial ou «constitutivo» de uma de uma sociedade política justa" (idem). Logo, para se construir uma comunidade cada vez mais livre e democrática, a liberdade de expressão seria essencial, proporcionando não só o livre debate entre os agentes (o que funcionaria como uma forja para as ideias políticas até se chegar à melhor dentre elas, ou pelo menos, a mais "aceitável publicamente") mas também a fiscalização do poder do Estado/Governo, restringindo sua esfera de atuação e garantindo o poder político do povo.

Dworkin se pauta em concepções liberais a respeito da Liberdade de Expressão, e seu argumento político-jurídico é patente quando trata da pornografia. Rebatendo argumentos da feminista Catharine MacKinnon (que defende a forte influência dos efeitos da pornografia na desigualdade de gênero na sociedade), Dworkin reconhece a evidente disparidade socioeconômica entre homens e mulheres, bem como percebe o pouco valor social e moral da pornografia, mas não admite que, em nome de qualquer outro valor, a liberdade de expressão possa ser sacrificada. Para Dworkin, são evidentes os problemas que envolvem de alguma forma a liberdade de expressão: racismo, machismo, homofobia, discurso de ódio. Porém,

... não podemos ver aí uma razão suficiente para proibir [a liberdade de expressão], sob pena de destruir o princípio de que as formas de expressão que odiamos são tão dignas de proteção quanto outras quaisquer. A essência da liberdade negativa13 é a liberdade de ofender, e isso não se aplica somente às formas de expressão heroicas, mas também às de mau gosto... A liberdade de expressão, concebida e protegida como uma liberdade negativa fundamental, é o próprio âmago da escolha feita pelas democracias modernas, escolha essa que agora devemos respeitar, enquanto buscamos outros meios para combater a vergonhosa desigualdade que aflige as mulheres (Dworkin, 2006: 351 e 359).

Acreditamos que o valor da obra de Dworkin reside no olhar lúcido sobre as características controversas e delicadas que envolvem o tema em questão. É necessário compreender que resolver a questão da liberdade de expressão não irá, necessariamente, resolver os problemas que ensejam a participação no debate (o racismo, o machismo, a homofobia, o ódio). Impedir a circulação livre de ideias também não irá fazê-lo. E a repressão estatal é sempre mais gravosa do que o discurso (por mais detestável que ele seja). A pretensão de MacKinnon de que acabar com a pornografia contribuiria para eliminar as desigualdades de gênero é exemplo claro da ilusão criada acerca do discurso: que o controle censor do Estado ocasionaria, a curto ou longo prazo, a diminuição das desigualdades entre homens e mulheres, quando é possível que produza exatamente o contrário, se tomado e colonizado por determinados grupos sociais.

2. O discurso como resistência

É importante entender que questões que poderiam ser tratadas em outras esferas do aparelho administrativo ou das instituições sociais não podem ser trazidas para dentro da discussão da Liberdade de Expressão, sob pena descaracterizá-la e torna-la inefetiva. Por isso, retornamos ao caso da Santa Blasfêmia para, mais uma vez, reiterar que existiriam várias maneiras de lidar com a tensão arte x religião, ou liberdade artística e liberdade de crença, sem que princípios constitucionais fossem erroneamente invocados para silenciar uma artista.

O caso Ana Smile é icônico se também partirmos para análise da importância de sua obra, o que parece não ter sido feito no momento da contestação. A defesa da artista centra seu argumento em seu caráter humorístico, que não deveria acarretar a restrição da circulação das obras. Isto é claro nos itens 28 e 31 da contestação, quando se afirma que o humor da obra não tem intenção de zombaria, mas apenas de "brincar" com a relação entre heroísmo e os santos (e de que maneira estes se relacionam).

Não nos parece haver nada de brincadeiras na obra da Santa Blasfêmia. Pelo contrário, entendemos que a obra deve ser protegida pela Liberdade de Expressão justamente por sua proposta crítica e relevante para a discussão de várias questões sociais. Percebemos que no campo do livre-discurso, as artes deveriam gozar de proteção especial em razão de toda sua capacidade de influenciar no debate e proporcionar enriquecimento democrático (refinamento das opiniões e aguçamento do senso crítico). A liberdade de expressão é uma condição do artivismo, em que a arte "apresenta-se como um discurso alternativo, de resistência ou mesmo antagônico aos discursos e representações dominantes, que se deve procurar constituir como um saber efectivo" (Vieira, 2007: 19).

No contexto brasileiro, a obra de Ana Smile possui uma dimensão: País de forte tradição católica e patriarcal, parece-nos bastante significativo que a obra se expresse justamente através da utilização de ícones relevantes da cultura religiosa cristã e de sua releitura à luz de diversos símbolos da cultura hegemônica capitalista. O movimento pop da arte (o qual é dito pertencerem as figuras pintadas, personagens de desenhos animados, em sua maioria) retira sua denominação não de popular (horizontal e oriundo do povo), mas de popularizado, e se refere ao novo status concedido às obras de arte a partir do impacto da transformação de sua reprodutibilidade técnica. Trata-se, em geral, de imagens veiculadas nos meios de comunicação, em contextos que propagam uma cadeia estética com forte caráter mercadológico: "Daí a necessidade de questionação [sic] permanente através do trabalho dos produtores culturais, na construção de um reposicionamento numa indústria cultural cada vez mais hegemónica" (ibidem, 20).

Walter Benjamin, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, argumenta que a obra de arte sempre foi reprodutível. Contudo, a reprodução técnica no século XX é capaz de "conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos" (Benjamin, 1969: 167). Com isso, a reprodução pode colocar a cópia em lugares que o original jamais alcançaria, pode "principalmente, aproximar do indivíduo a obra" (ibidem, 167). Tal é o trabalho que propõe Ana Smile, ao tomar figuras sagradas e transmuta-las em personagens que se encontram mais próximos do público em geral. Nesse sentido é possível afirmar que se Ana altera a materialidade e o testemunho histórico das estatuetas, dando-lhes outras "auras" (termo usado por Benjamin para definir a essência da obra), não sendo mais possível afirmar que a Santa Blasfêmia está trabalhando com figuras da iconografia Católica Romana, uma vez que houve o "abalo" (ibidem, 168) dessa tradição, tornando infundadas as pretensões da Arquidiocese.

Leandro Lança (2017) faz análise de caso de características semelhantes ao de Ana Smile. A artista Márcia X enfrentou censura quando fotogramas de sua obra "Desenhando com Terços" (no qual a artista se apresentava num quase transeritualístico e se utilizava de rosários para desenhar falos no chão) foram exibidos no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Jáneiro, em 2006. O autor levanta o ponto de que a forte influência cristã na história e tradição cultural na América Latina suscita o desejo dos artistas de trabalharem com essa temática em suas obras (Lança, 2017: 103). É evidente a importância do caráter político e da importância democrática da obra, que propõe questionar símbolos tão latentes de dominação ideológica na cultura ocidental:

Para mulheres artistas envolvidas na desconstrução das imagens convencionais da feminilidade e interessadas em reverter signos da dominação, parece que nada é mais propício do que explorar os mesmos instrumentos e símbolos utilizados pelos seus "algozes", a fim de parodiá-los e esvazia-los. Nesse sentido, é extremamente recorrente a estratégia artística de apropriação de elementos religiosos, sejam imagens, objetos, orações, rituais na composição de trabalhos críticos ao cristianismo. Estratégia muito parecida com que Oswald de Andrade em sua teoria antropofágica chamava de "devoração do inimigo sacro" (ibidem, 104).

Por isso identificamos como problemático o argumento da defesa de que a obra de Ana Smile tem (apenas) a tônica de humor. O trabalho de Ana Smile é muito mais potente do que isto. Representa subversão de ícones hegemônicos e crítica ao caráter religioso de signos da cultura industrializada. Esse tom político só torna mais gravosa a decisão do Juiz da comarca de Goiânia. Pressupor, em frágil argumentação, a existência -e superposição- de uma "dignidade pessoal" do Vaticano em relação ao direito de expressão artística de Ana Smile nos parece atentar contra o exercício político da artista enquanto ser humano. A repressão artística com fundamento de proteção à religião soa anacrônica, se recordamos toda a história da Inquisição Católica Apostólica Romana em relação às obras que a instituição considerava impróprias. E sem precisar ir longe no tempo e no espaço, o regime ditatorial nas décadas de 1960, 70 e 80 no Brasil também empenhou forte campanha de censura artística em distintas plataformas, inclusive por alegados motivos de proteção à religiosidade do povo.

O caráter chocante, e mesmo ofensivo, do discurso pode ter efeitos positivos na audiência. Nesse sentido pensou a Agência de Notícia dos Direitos da Infância (ANDI) (2006) em parceria com a Secretaria Nacional de Justiça ao promulgar cartilha de orientação do Governo Brasileiro sobre a classificação indicativa dos programas de televisão, espetáculos teatrais, musicais, cinema e semelhantes para menores de dezoito anos. No documento, o critério utilizado para classificar não é puramente objetivo, devendo ser analisada uma série de fatores, pois uma cena que possa ser considerada problemática não deveria ser analisada fora de seu contexto (ANDI, 2006: 173). O exemplo trazido no texto diz respeito às cenas que contenham violência. O argumento se dá no sentido de que em alguns casos uma cena de violência destinado à determinada faixa etária poderá (por meio da exposição ao conteúdo chocante) gerar efeitos educativos muito superior ao da simples censura ou privação do público à cena (ibidem, 173).

Corroboram com esse entendimento Dulce Osinski e Ricardo Antônio (2010) em estudo realizado sobre o ensino da arte com crianças. Os autores procuraram perceber de que maneira a exposição infantil à educação artística poderia construir valores éticos no cidadão:

Uma vez que a necessidade de expressão "é inerente a todo indivíduo", o que pode ser visto na exposição é a "expressão na sua forma pura, vinda à superfície através dos estímulos e dos métodos nos quais está sempre presente o respeito pela personalidade infantil" (Paraná, 1959). A criança, imersa numa "atmosfera de liberdade", tem a possibilidade de vencer "normalmente" os sucessivos estágios de seu desenvolvimento, o que libera o professor da "tensão" característica do ensino acadêmico de arte (Osinski e Antônio, 2010, p.281).

Não são poucos trabalhos que demonstram a importância política, ética e social da arte. Muito mais do que expressão estética simples, a expressão artística denota espiritualidade, concepções do ser no mundo, e diversas formas de devir que irão modular a personalidade do indivíduo e as percepções éticas da comunidade. Por isso, arte e política, democracia e livre-expressão são indissociáveis e carecem de proteção especial por parte do Estado na seara da Liberdade de Expressão. No caso da Santa Blasfêmia, ao invés de resguardar um direito ao culto e ao exercício religioso, o provimento estatal despotencializa o exercício do direito político de uma cidadã.

3. Expressar-se é um ato político

O atributo político do discurso é uma das razões pelas quais Edwin Baker reconhece a proteção reservada à fala ou ação que o exprima. Baker repensa a teoria do Livre Mercado das Ideias sobre fundamentos distintos dos pressupostos tradicionais.

Segundo o autor, a teoria clássica do livre mercado de ideais teria três premissas básicas: verdade objetiva, racionalidade dos indivíduos na sociedade e unidade na busca pela verdade. Por verdade objetiva, entende-se que a verdade seja apta, por si só, para afastar a falsidade no debate ou discussão. Ou seja, se existe uma verdade em debate, as premissas podem ser aportadas a fim de que os discursos falsos possam ser afastados. Já por racionalidade dos indivíduos, entende-se que a teoria clássica do mercado de ideias deva assumir que as pessoas são racionais, capazes de ter uma perspectiva correta da verdade ou da realidade. Essa racionalidade permitiria que as pessoas deixassem de lado suas faculdades pessoais para que pudessem avaliar o conteúdo verdadeiro das mensagens. Por fim, por unidade na busca pela verdade, entende-se que a verdade deva ser desejada pela sociedade como um todo porque seria capaz estabelecer uma melhor base de ação a fim de promover seus melhores interesses. Tais pressupostos ensejariam um livre mercado de ideias (com inspirações no liberalismo econômico), em que a ausência de restrição do discurso por parte do Estado ensejaria uma verdade que se mostraria como digna de ser assumida perante a sociedade (Baker, 1989: 6 e 7).

Baker (1989) demonstra a falibilidade das premissas sobre as quais a teoria clássica do Livre Mercado se baseia, em razão da impossibilidade de se considerar os indivíduos como seres absolutamente racionais (ibidem, 14). Além disso, a teoria clássica do livre mercado de ideias parece ignorar que a verdade socialmente aceita poderia ser facilmente forjada por agentes externos ao mercado, como, por exemplo, a mídia (ibidem, 15). Por isso, Baker concebe uma ideia liberal do discurso com fundamentos diversos da teoria clássica do livre mercado de ideias.

Para Baker, a partir de sua teoria revista do livre mercado de ideias, duas premissas fundamentam a proteção do discurso pelo Estado: autor-realização14 e participação política.15 Baker entende que uma manifestação individual deve ser protegida porque evidencia o próprio direito da pessoa de se reconhecer e ser reconhecida no espaço público. Uma pessoa que use um cartaz com os dizeres "Pare Esta Guerra Agora", ainda que não promova a efetiva mudança no cenário social, utiliza-se do discurso para se autorrealizar enquanto indivíduo e membro do corpo social (ibidem, 53). Ao indivíduo deve ser garantida toda manifestação no espaço público que seja orientada por caracteres que exprimam sua própria identidade, inclusive, mas não exclusivamente, política

O discurso é importante instrumento de identidade em duas dimensões: individual e coletiva. Se sua repressão prejudica a autodeterminação do indivíduo, enquanto ser (social, pensante, autônomo), ou, impede que haja a oportunidade de sua manifestação enquanto agente político no jogo democrático -o mais importante aparelho de transformação social-, ela deve ser evitada.

Baker (2009) sugere que uma "forte proteção ao discurso traz resultados melhores" (ibidem, 140) do que sua repressão. Essa proteção pressupõe duas premissas: a) a legitimidade do Estado depende do seu respeito à isonomia e autonomia das pessoas, e b) o Estado respeita a autonomia das pessoas apenas se permitir que elas expressem seus próprios valores, independentemente de seu caráter ofensivo a outras pessoas. (ibidem, 142).

V. O outro lado do Estado: a garantia ao discurso e à arte como direito de expressão política

No caso da Santa Blasfêmia, a proteção à liberdade de deveria ir além da decisão judicial, pois é necessário transferir a discussão também para o campo legislativo. As meras disposições principiológicas da Constituição sobre a Liberdade de Expressão têm se mostrado insuficientes, se pensarmos nas graves ameaças cotidianas recentes à liberdade de expressão de artistas no Brasil.

A Santa Blasfêmia cumpre papel significativo na crítica da sociedade brasileira. Giorgio Agamben (2005) demonstra que profanar não é diminuir nem esvaziar o sentido do que foi separado por ser santo. Se o religare da religião tem o intuito de tirar algo do uso comum e coloca-lo na prateleira dos deuses, a profanação é restituir as coisas ao uso comum dos homens, é atribuir novo sentido.

Uma vez que que a arte possui importante função no espaço político em uma democracia, toda sociedade que pretenda garantir os direitos políticos e, sobretudo, de expressão deve protege-la também no campo artístico.

Casos como os de Marcia X e Ana Smile, que sofreram graves restrições quanto às suas obras, tanto extrajudicial quanto judicialmente, e outros, como o recente caso do Queermuseu,16 no qual o Banco Santander sofreu pressão popular para encerrar uma exposição que trabalhava, de maneira crítica, uma interlocução entre temas LGBT e aspectos conservadores da sociedade, dos quais a religião faz parte, mostram que há ainda muito a se fazer. Não se trata de casos isolados: Todos têm semelhanças bastante significativas, sobretudo o fato de que todos terminaram no cerceamento do direito de expressão artística.

É necessária uma proteção normativa específica do direito de expressão dos artistas, tanto de sua forma quanto de seu conteúdo para que se garanta que o potencial crítico desse discurso contribua para o jogo democrático, ensejando a proteção antes da intervenção da esfera judicial.

Se o Estado pretende preservar sua legitimidade, como propõe Baker, de garantir o respeito e a participação de todos, o caminho para a legislação parece inevitável:

Uma ordem legal deve atribuir autonomia às pessoas em geral, somente diminuindo esta para estendê-la e envolve-la em estruturas institucionais ou em quadros dirigidos por outros mecanismos que não a comunicação e a escolha pessoal... A regulamentação governamental é ou não consistente de acordo com o respeito apresentado. Uma pessoa não é formalmente respeitada em sua autonomia se a lei nega a ela do direito de usar o discurso para expressas seus pontos de vista (Baker, 2009: 142).17

Baker propõe que se garanta uma proteção mais rígida ao discurso, e, portanto, a ampla participação no debate -como expressão política ou de autodeterminação- como fator de legitimidade da própria existência do Estado. Disposições normativas nesse sentido precisam garantir a autonomia de quem fala ou se expressa por qualquer meio artístico. Os princípios constitucionais têm se mostrado insuficientes na proteção do discurso de artistas plásticos que trabalham numa proposta contrahegemônica. A garantia de participação das minorias no debate é pilar da democracia ocidental e fundamento do Estado Democrático de Direito. Impedi-las, ou não garanti-las aptas para participação no debate é atentar frontalmente à toda legitimidade da sociedade -ou do Estado como prefere Baker-.

Por uma efetivação normativa da liberdade artística

Uma efetivação das previsões constitucionais sobre a liberdade de expressão e livre discurso enseja a produção de uma legislação específica, que deve garantir não apenas a liberdade de expressão (de forma difusa e abstrata), mas também dispor sobre garantias específicas ao artista, enquanto agente político legítimo que se expressa por meio do discurso na forma da arte.

Como vimos, se o livre discurso é parte importante de uma sociedade democrática, e se a arte é também campo de expressão político, o discurso produzido em arte merece proteção específica. Isso se torna mais importante ao pensarmos que, assim como Ana Smile, existem indivíduos e até mesmo coletivos, associações e sociedades empresárias que fazem da arte seu labor profisisonal. A decisão da 9a Vara Cível da Comarca de Goiânia se torna ainda mais grave, na medida em que priva o artista de produzir seu próprio meio de vida.

O Ordenamento Brasileiro precisa incluir no seu rol normativo disposições que efetivamente proíbam a restrição judicial, administrativa ou até mesmo popular do exercício de produção artística, exceto se, respeitado o contraditório, sem que haja mais via recursal possível, o julgador entender que a arte -e o discurso- in voga não possa ser contra-argumentado também na esfera pública do debate, e que, ainda, proporcione incitação direta à violência contra determinado segmento social em virtude sua própria constituição como ser na sociedade.

A busca por uma proteção -não só a arte mas também ao artista- não é campanha exclusiva nossa. O "Arts Law Centre of Australia" (Arts Law, 2012) é uma comunidade que reúne artistas, advogados e ativistas que buscam efetivar a plena liberdade de expressão artística, trabalhando especificamente em defesa de artistas de baixa renda e comunidades aborígenes que dependem de sua arte (artesanato, pinturas, esculturas) como meio de vida. Por isso a referida associação compreende que seria necessária a positivação do direito à expressão artística que impedisse a deslegitimação "injusta" da arte, o que feriria a liberdade de expressão, uma vez que contrariar a arte indígena é também contrariar esta cultura como um todo (Arts Law, 2012).

Há também previsão semelhante na Itália. O direito italiano propõe uma legislação específica sobre os direitos autorais, que são basicamente os direitos de propriedade do autor sobre a obra, inclusive o da exploração econômica. Há previsão de tal proteção na qualidade de "direitos morais", que consistiriam no direito à preservação da originalidade da obra, na qual não poderão ser opostas, sem o consentimento do artista, modificação ou mutilação da obra em si, com o fim de garantir ao artista sua honra e reputação (Ufficio Brevetti, 2016).

Interessante é que o ordenamento brasileiro também prevê os "direitos morais" do autor, estipulando-os em lei especifica (9.610/1998). No inciso IV do artigo 24 dessa lei, define-se que é direito do autor: "IV- o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra" (Lei No. 9.610, 1998).

Contudo, não foi isso o que ocorreu com as obras da Santa Blasfêmia. A decisão judicial, ao decretar a remoção das obras, proibição de venda e circulação das imagens pela internet, comete ato mais grave do que a sua modificação: sua exclusão. É fato que proibir um artista de divulgar seu trabalho é prejudicar diretamente sua reputação e sua honra.

Tais questões evidenciam que, em matéria de proteção efetiva à liberdade artística, tanto o Judiciário quanto o ordenamento e a própria sociedade brasileira não têm optado por uma abordagem libertária.

VI. Conclusão

Em sua decisão liminar, ainda que apenas provisoriamente, o magistrado cometeu um equívoco determinando o recolhimento das obras da Santa Blasfêmia e impedindo sua veiculação. Felizmente, a decisão foi reparada na sentença, confirmada com nova fundamentação do acórdão do Tribunal.

Ana Smile faz uso político de sua obra. Dar novo uso a símbolos clássicos e contemporâneos é emitir mensagem sobre a qual vale à pena prestar atenção. Os ídolos religiosos e mercadológicos são espaço potente para expressão e trabalho artístico, uma vez que, como entidades do imaginário social, podem ser criticados no espaço do comum próprio da arte. E essa mesma arte foi e continuará sendo alvo de censura na história da sociedade, uma vez que não tem por pressuposto se tornar parte da lógica ou moral dominante.

A discussão sobre a liberdade de expressão pode partir para outros pontos que transcendem o campo jurídico. Se partirmos do pressuposto de que o Direito só deve agir em último caso, outros mecanismos poderiam ensejar uma melhor compreensão da Liberdade de Expressão, anteriores ao aparato judicial.

A legitimidade do Estado passa pela garantia ao tratamento igualitário no campo do discurso, respeitando sempre a autonomia de quem expressa suas ideais. Por isso, quando estamos diante de casos como este, no qual o Estado ameaça pender, equivocadamente, para um dos lados, fere sua própria legitimidade. Um dos instrumentos para que o Estado preserve sua autonomia e garanta a ampla participação seria sua proteção na legislação infraconstitucional, que ofereceria fundamentos para as decisões nos casos concretos, resguardando a importância das artes na sociedade -e seu papel crítico para a política-. A criação de tal legislação no Brasil possibilitaria que o Estado se protegesse quanto às suas decisões, e protegeria também o público, tornando-o menos suscetível às arbitrariedades e censuras estatais.

VII. Referencias

Ação Comum 201600958448 (95844-36.2016.8.09.0051) (2016, 17 março). 9a. Vara Cível da Comarca de Goiânia do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Consulta em Cartório. [ Links ]

Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815/DF (2015, 10 junho). Relatora: Carmen Lucia. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4271057. [ Links ]

Agambem, Giorgio (2007). Profanações. São Paulo: Boitempo Editoral. [ Links ]

Agravo de Instrumento 258333-76.2016.8.09.0000 (2016, 29 de julho). Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (3a. Turma Julgadora da 9a Câmara Cível). Relator: Norival Santomé. Consulta em Cartório [ Links ]

ANDI-Secretaria Nacional da Justiça (2006). Classificação indicativa: construindo a cidadania na tela da tevê (supervisão editorial Veet Vivarta. Coordenação de texto Guilherme Canela). Brasília: ANDI. [ Links ]

Apelação Cível 0095844.36.2016.8.09.0051 (2020, 29 de outubro). Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (3a. Turma Julgadora da 9a. Câmara Cível). Relator: Norival Santomé. Consulta em Cartório. [ Links ]

Arts law (2012), About Classification, Censorship & Freedom of Expression. [S.l]: Arts Law. Disponível em: https://www.artslaw.com.au/advocacy/entry/freedom-of-expression-censorship/ (acesso em: 8 de abril de 2018). [ Links ]

Baker, C. Edwin (1989). Human Liberty and Freedom of Speech. Oxford University Press. [ Links ]

Baker, C. Edwin (2009). "Autonomy and Hate Speech". En Hare, Ivan e Weinstein, James. Extreme Speech and Democracy. Oxford University Press. [ Links ]

Benjamin, Walter (1969). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica . In: A ideia do cinema. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. [ Links ]

Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília: Senado. [ Links ]

Decreto No. 7.107 de 11 de Fevereiro de 2010 (2010). Promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008. Diário Oficial da União. Brasília. [ Links ]

Decreto-Lei No. 2.848 de 7 de Dezembro de 1940 (1940). Código Penal. Diário Oficial da União . Brasília. [ Links ]

Dworkin, Ronald (2006). O direito da liberdade: A leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]

Fiss, Owen M. (1996). The Irony of Free Speech. Harvard University Press. [ Links ]

Lança, Leandro Gonçalves (2017). A profanação sagrada de Márcia X. Tese de doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes. Acessado em 10 de julho de 2017. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/BUOS-APFQAV . [ Links ]

Lei No. 9.610 de 19 de Fevereiro de 1998 (1998). Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União . Brasília. [ Links ]

Lewis, Anthony (2007). Freedom for the thought that we hate (versão e-book para Kindle). [ Links ]

Meiklejohn, Alexander (1961). "The First Amendment is an absolute". The Supreme Court Review. Chicago. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3108719 (acesso em: 10 de julho de 2017). [ Links ]

Osinski, Dulce Regina Baggio e Antônio, Ricardo Carneiro (2010). "Exposições de arte infantil: bandeiras modernas pela construção do novo homem". Acta scientiarum. Maringá. 32(2). [ Links ]

Ufficio Brevetti (2016). Introduction to Italian Copyright law: full guides and online tools. [S.l]: Ufficio Brevetti. Disponível em: https://www.ufficiobrevetti.it/en/copyright/ (acesso em: 18 de abril de 2018). [ Links ]

Vieira, Teresa de Jesus Batista (2007). Artivismo: estratégias artísticas contemporâneas de resistência cultural. Dissertação-Mestrado em Ciências Visuais, Universidade do Porto. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/7307. [ Links ]

Waldron, Jeremy (2012). The Harm in Hate Speech. Harvard University Press. [ Links ]

1 Acesse o site pessoal da artista em www.santablasfemia.com.br (acesso em 13 de agosto de 2021).

2 Quanto à história do conceito sócio-político de "liberdade de expressão" e a evolução normativa do tema, remetemos o leitor a uma obra que foi objeto de estudo na confecção deste trabalho: O livro Freedom for the Thought that We Hate, de Anthony Lewis, que trabalha detalhadamente a história da legislação e aplicação judiciária no contexto anglo-americano. O autor analisa o surgimento do conceito jurídico de liberdade de expressão, suas implicações sociais e o trabalho, principalmente da Suprema Corte norte-americana, de interpretar a Primeira Emenda à Constituição Norte-americana ao longo dos séculos XIX, XX e XXI.

3 Ainda que este tipo penal não se relacione diretamente com o tema da liberdade de expressão, mas da liberdade religiosa, é muito difícil distinguir ambos na prática, como intuiu o constituinte norte-americano, ao tratar, em um único amálgama normativo, a 1a. Emenda, ambos os direitos, ao lado dos direitos de associação, de liberdade de imprensa e de petição.

4 Note-se que a Nunciatura, como sede em Brasília, e que representa diplomaticamente o Vaticano nos países com que este estabelece relações oficiais, não interviu em nenhum ato processual.

5 O voto da relatora da ADI 4.815, Ministra Carmén Lúcia, cuidou do questionamento feito em relação à constitucionalidade das biografias não autorizadas, posicionando-se em firme defesa da liberdade de expressão dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito Brasileiro, em uma leitura consonante à Constituição de 1988. Para ela, "direito à liberdade de expressão é outra forma de afirmar-se a liberdade do pensar e expor o pensado ou o sentido". A Ministra argumenta sempre no sentido de que a expressão é parte inerente à vida humana, dando sentido ao ser —que é Verbo, como ela mesma define em seu voto— e, o cerceamento ao discurso incorreria, inevitavelmente em propor limitações a própria humanidade do ser.

6 Faz-se necessário aqui estabelecer uma diferença. Trata-se de um caráter ofensivo, porém não danoso. Sabe-se que o Direito tutela a possibilidade de danos de caráter meramente subjetivos e psicológicos, na esfera da Responsabilidade Civil. O que se supõe aqui são situações de caráter meramente ofensiva, que não pressupõem danos —ainda que subjetivos— já tutelados pelo direito.

7 Note que em nenhum momento, nem a arquidiocese, nem a defesa da artista, utilizaram o termo "discurso de ódio". A arquidiocese utiliza apenas as expressões "grave ofensa" ou "práticas discriminatórias".

8 Original: "Hate speech, it is called: virulent attacks on Jews, blacks, Muslims, homosexuals, or members of any other group. It is pure hatred, not based on any wrong done by an individual".

9 Um exemplo disso nos EUA é o caso do comunismo, considerado como um discurso intolerante até bem recentemente e, por isso mesmo, banido naquele país, sob a alegação que deveria se excluir do discurso público aqueles grupos que, caso fossem vitoriosos, eliminariam a democracia e imporiam o totalitarismo (Baker, C. Edwin [2009]. "Autonomy and Hate Speech". En Hare, Ivan e Weinstein, James. Extreme Speech and Democracy. Oxford University press. 144).

10 Precisamos explicar o que significa "por causa de seu pertencimento ao grupo". Essa expressão não deve ser entendida como uma extensão de um direito originalmente pertencente a um grupo a seus participantes, mas, ao contrário, indica que cada indivíduo tem o direito de pertencer a quaisquer grupos sociais, e tal direito deve ser respeitado inobstante as orientações do grupo propriamente dito. Não é, portanto, o grupo que é objeto de proteção, mas o status identitário de cada indivíduo de uma sociedade.

11 "Individual Christians, millions of them, are entitled to protection against defamation, including defamation as Christians. But this does not mean that any pope, saint or doctrine is to be protected, nor does it mean that the reputation of Jesus is to be protected… The civic dignity of the members of a group stands separately from the status of their beliefs, however offensive an attack upon the prophet or even upon the Koran may seem".

12 Objetiva porque o discurso deveria ser comprovadamente falso, e subjetiva porque também deveria haver a comprovação de que o falante tinha ciência da falsidade de suas alegações no ato de falar (a chamada malícia efetiva).

13 Em linhas gerais, "liberdade negativa" para Dworkin "significa não ser impedido pelos outros de fazer o que se deseja fazer" (Dworkin, Ronald (2006). O direito da liberdade: A leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes. 345).

14 O termo utilizado pelo autor é "self-fulfillment", que traduzimos por autorrealização, pois entendemos que se mostra como um processo espiritual e político de conhecer-se, de determinar-se e de expressar-se enquanto indivíduo na comunidade.

15 Este conceito é definido pelo autor como "participation in decision making by all members of the society (which is «particularly significant for political decisions» but embraces the right to participation in the building of the whole culture)" ("a participação na tomada de decisões por todos os membros da sociedade [o que é «particularmente significativo para decisões políticas» mas abarca o direito de participação na construção de toda a cultura]") (Baker, C. Edwin [1989]. Human Liberty and Freedom of Speech. Oxford University Press. 47).

16 Para mais informações sobre o caso, vide a reportagem "Queermuseu: O dia em que a intolerância pegou uma exposição para Cristo". Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html (acesso em: 8 de abril de 2018).

17 "A legal order must ascribe autonomy to people generally, usually withdrawing this attribution only to the extent of involvement in institutional structures or frameworks steered by mechanisms other than communication and a person's choices... A government regulation either is or is not consistent with the required respect. A person is not treated as formally autonomous if the law denies her the right to use her own expression to embody her views".

Recebido: 24 de Novembro de 2020; Aceito: 06 de Setembro de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons