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Papeles de población

versión On-line ISSN 2448-7147versión impresa ISSN 1405-7425

Pap. poblac vol.11 no.43 Toluca ene./mar. 2005

 

Questões conceituais e metodológicas relativas a domicílio, família e condições habitacionais*

 

Methodological and conceptual issues on household, family, and housing conditions

 

José Eustáquio Diniz Alves y Suzana Cavenaghi

 

Instituto Brasileño de Geografia y Estadística/ Universidad Estatal de Campinas

 

Resumo

Este artigo trata das questões conceituais e metodológicas relativas a domicílio, família e condições habitacionais, tendo como base os censos demográficos do Brasil e Estados Unidos, realizados no ano 2000 e o Censo Nacional de Población, Hogares y Viviendas realizado em 2001 na Argentina. Em primeiro lugar, busca revisar e avaliar a forma como os quesitos de família e domicílio são coletados nos censos do Brasil, Argentina e Estados Unidos. Existem diferenças marcantes na forma de coletar e divulgar os dados dos arranjos familiares e não-familiares e de domicílios coletivos e domicílios ocupados e não-ocupados. O trabalho compara os dados dos três países e discute os principais componentes conceituais que relacionam as unidades familiares e domiciliares na definição do déficit habitacional e das as necessidades habitacionais.

Palavras chave: família, domicílio, déficit habitacional, condições habitacionais.

 

Abstract

This paper deals with methodological and conceptual issues related to household, family, and housing conditions utilizing demographic census data for Brazil and United States for the year 2000 and The National Population, Households and Dwellings for Argentina carried out in 2001, pointing out to issues on cross country comparability. First we present a revision and evaluate the types of questions available on family and household in the three censuses. We compare data on selected variables and discuss the main conceptual components that utilize family units and households in the definition of housing shortage and housing needs, which are also often compared cross countries. We present some methodologies on housing shortage and unmet basic needs.

Key words: family, household, housing shortage, housing conditions.

 

Introdução

As condições habitacionais da população são um dos aspectos que perpassam as várias dimensões das desigualdades sociais na América Latina. A melhoria da qualidade de vida está intimamente ligada à melhoria das condições de habitação. Para serem consideradas habitáveis, os domicílios devem apresentar requisitos mínimos de construção e conservação. Entretanto, as condições de moradia da população brasileira e latino-americana são marcadas por alto grau de desigualdade e exclusão. Uma pequena parcela das famílias possui mais de um domicílio ou domicílios com grande área e baixa densidade de moradores, enquanto outra grande parcela não possui imóvel próprio ou mora em domicílios pequenos e deficientes ou com alta densidade de moradores.

Os organismos internacionais e os governos nacionais manifestam grande preocupação em resolver os problemas habitacionais e buscam traçar políticas para elevar o padrão das condições de moradia. Para tanto precisam de um diagnóstico apurado, o que requer, por sua vez, definições operacionais de domicílio e família, especialmente para permitir a comparabilidade dos dados de diferentes países. É preciso, também, atentar para as mudanças ocorridas ao longo do tempo. As famílias da América Latina, assim como em outras partes do mundo, têm passado por grandes mudanças e por um rápido processo de transformação nas últimas décadas. As principais tendências que tem ocorrido são a redução do tamanho da unidade familiar, o descenso e o adiamento da nupcialidade, o aumento das uniões consensuais, das separações e divórcios, das famílias monoparentais, unipessoais e das famílias reconstituídas e a elevação do número de nascimentos fora do casamento e da gravidez precoce (Arriagada, 1997). Todas estas mudanças têm impactos sobre a família e sobre os arranjos familiares e tornam difíceis as comparações entre os censos de um país e entre os censos de diversos países.

Os censos demográficos vêm aperfeiçoando a forma de investigação sobre os arranjos familiares e sobre as características dos domicílios, apesar de ainda existirem muitas lacunas. Estes aperfeiçoamentos são importantes para se conhecer a oferta e a demanda de moradias, em termos quantitativos e a adequação dos domicílios, em termos qualitativos. Também são importantes os diagnósticos sobre as carências de serviços públicos (luz, água, esgoto e coleta de lixo). No Brasil, o número de domicílios tem crescido acima do ritmo de crescimento da população, mas abaixo do crescimento do número de famílias. Tem crescido o percentual de pessoas morando sozinhas e de coabitação, tanto familiar (parentes), quanto não-familiar (não parentes). Desta forma tem diminuído a densidade de pessoas por domicílio, mas tem aumentado o número de famílias conviventes.

A compreensão das mudanças ocorridas na formação das famílias e na variação da quantidade e qualidade das moradias é condição essencial para se avaliar as condições de habitação. Existem diversas metodologias para a análise dos problemas habitacionais. A Fundação João Pinheiro (FJP), de Belo Horizonte, tem utilizado uma metodologia de cálculo do déficit habitacional no Brasil, que tem como componente central o conceito de coabitação familiar. Para justificar sua metodologia, a FJP comparou os dados do Brasil com os dados dos Estados Unidos e Argentina (mas interpretou de maneira equivocada os números). O Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC), da Argentina, tem calculado as "Necessidades Básicas Insatisfechas" (NBI) combinando variáveis do domicílio, condições sanitárias, educação e renda dos moradores. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tem calculado a "Adequação das Moradias" utilizando as variáveis abastecimento de água, esgoto sanitário, coleta de lixo e densidade de moradores.

Estas metodologias não são comparáveis entre si, primeiro porque a forma de coleta dos dados e a definição das variáveis são diferentes entre os países e, em segundo lugar, porque elas foram construídas com propósitos diversos. Contudo, existe um esforço, principalmente entre os países do Mercosul, para uma maior comparabilidade dos quesitos investigados. O diagnóstico das condições habitacionais de um país é de fundamental importância, tanto para o setor privado, quanto para o setor público, constituindo-se em instrumento fundamental para o planejamento, a intervenção e a avaliação de programas de ação, quer no nível nacional, estadual ou municipal.

 

Condições habitacionais: questões iniciais

Os censos demográficos (censos de población e vivienda) são a fonte mais ampla de informação das unidades habitacionais e das unidades familiares de um país. Exatamente por isso, são utilizados para a gestão o diagnóstico e a formulação das políticas habitacionais. Contudo, existem problemas, discrepâncias e diferenças metodológicas que limitam os seus usos locais e as comparações internacionais.

Aparentemente, o balanço habitacional, em termos quantitativos, é simples de ser feito. Se subtrairmos o total de famílias do total de domicílios haverá um déficit habitacional quando o resultado for negativo, vale dizer, quando o número de famílias for maior que o número de domicílios; ou haverá um superávit habitacional quando o resultado for positivo, isto é, quando o número de domicílios superar o de famílias.

1. Balanço habitacional = total de domicílios - total de famílias.

2. Déficit habitacional: total de domicílios < total de famílias.

3. Superávit habitacional: total de domicílios > total de famílias.

As dificuldades surgem nas definições dos termos. O número total de famílias depende do conceito utilizado. Por exemplo: uma pessoa sozinha pode ser considerada uma família? Pode uma família ocupar mais de um domicílio? A família estendida é contabilizada como uma única unidade familiar? Pessoas sem laços de parentesco vivendojuntas em um domicílio devem ser contabilizadas como uma família? Por outro lado, no cálculo do número total de domicílios devem entrar os domicílios particulares permanentes ocupados ou, também, os domicílios vagos, fechados, em construção, em reforma e ofertados para venda ou aluguel? Como tratar os domicílios coletivos e os improvisados? Para abordar essas questões vamos discutir alguns problemas teóricos e analisar a forma como alguns censos demográficos definem as categorias família e domicílio.

As definições de família e suas operacionalizações

Na literatura sociológica, antropológica e demográfica, a reflexão sobre família é bastante rica e complexa (Cavenaghi e Goldani, 1993; Medeiros e Osório, 2000; Lazo, 2002). Segundo Bruschini (1989), nos estudos de família existem limitações tanto no aspecto teórico, quanto na perspectiva empírica, em relação à capacidade de se apreender a dinâmica desse grupo social. Dependendo do ângulo de análise, a família pode ser vista como: a) unidade de produção (valores de troca) e de reprodução (de indivíduos e valores de uso); b) unidade de reprodução e consumo; c) unidade de indivíduos com laços de consangüinidade; d) unidade de solidariedade, afeto e prazer; e) pessoas que dividem o mesmo teto e a mesma cozinha; f) local da relação dialética entre dominação e submissão; g) rede de parentesco (independente da moradia conjunta); h) espaço de socialização, reprodução ideológica e conflito; etc.

Os censos demográficos e as pesquisas domiciliares, entretanto, precisam fazer uma escolha para tornar viável a operacionalização desses amplos conceitos de família. No censo 2000, o IBGE definiu a família como sendo:

a pessoa que morava sozinha; o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco ou dependência doméstica; e s pessoas ligadas por normas de convivência. Nos domicílios coletivos, considere, como família, as pessoas que residam na mesma unidade e tenham laços de parentesco ou dependência doméstica.1

Os censos brasileiros adotam o conceito de família censitária que são aquelas que compartilham um domicílio e podem ser classificadas da seguinte forma: Pessoa só: pessoas vivendo sozinhas em um domicílio; Família única: nos domicílios particulares ocupados por uma só família e nos boletins das famílias residentes em domicílios coletivos; Família principal: referente às famílias cujos chefes são os donos, locatários ou responsáveis pelos domicílios particulares onde vivem mais de uma família; Família secundária-parente: referente às famílias secundárias, quando entre estas e as principais existirem laços de parentesco; Família secundária-não parente: referente às famílias secundárias, quando entre estas e as principais não existirem laços de parentesco.2

Este tipo de definição difere, evidentemente, das abordagens teóricas que entendem a família como uma rede de relações entre parentes e não limitam o seu âmbito aos moradores de um domicílio. A forma de coleta dos dados de família nos censos do IBGE não possibilita a reconstituição de famílias que morem em dois domicílios diferentes, mas não impede que os pesquisadores possam fazer agregações diferentes a partir dos dados dos moradores de cada domicílio. A questão, então, é definir o que se entende por família a partir dos dados disponíveis. No caso brasileiro, considera-se que todo domicílio particular possui uma família, mesmo que seja uma pessoa morando sozinha ou um grupo de pessoas não-parentes.

Já o Bureau do Censo dos Estados Unidos não considera como família uma pessoa morando sozinha ou mais de duas pessoas não-parentes (até o máximo de 10) morando juntas. Eles divulgam os dados da seguinte forma: domicílios familiares (Family households) e domicílios não-familiares (Nonfamily households).3 Desta forma, é preciso ter cuidado na comparação dos dados dos dois países, porque no Brasil são consideradas unidades familiares aquilo que nos Estados Unidos consideram como unidades não-familiares. Este fato levou a Fundação João Pinheiro a considerar que existe um superávit habitacional nos Estados Unidos e justificou a sua metodologia de incluir toda coabitação no Brasil na categoria de déficit habitacional (FJP, 1995).

Na Argentina a família (hogar) é definida da seguinte forma: "pessoa ou grupo de pessoas que vivem debaixo de um mesmo teto e compartem os gastos de alimentação" (INDEC, 2001). A existência de um espaço para cozinhar e para alimentação fazia parte da caracterização dos domicílios dos Estados Unidos, mas a partir de 1990 o censo americano retirou estes requerimentos (Ruggles and Brower, 2003). No Brasil a definição de família independe da existência de uma unidade de consumo ou da alimentação conjunta, basta que uma pessoa ou grupo de pessoas parentes ou não-parentes habitem um domicílio para serem consideradas famílias (Alves, 2004). No Brasil e na Argentina o chefe ou responsável pela família (ou do domicílio) é definido pelo respondente, enquanto nos Estados Unidos o responsável pela família (householder) é o proprietário do domicílio ou a pessoa em cujo nome o domicílio está alugado ou sendo comprado (no caso de existir dois proprietários, o respondente define quem será o responsável/householder).

Outra questão refere-se aos filhos solteiros que não constituíram família, mas, por motivos de estudo ou trabalho moram em outra localidade diferente do local de residência dos pais, demandam um domicílio para moradia, mesmo por um período definido de tempo. No caso brasileiro, qualquer pessoa que esteja morando sozinha é considerada uma família, mas, segundo Lira (1999) o mesmo não acontece na definição do censo do Chile, o que leva a comparações diferentes dos dados dos dois países. Nos Estados Unidos, até 1940, os estudantes que estavam estudando fora eram contabilizados como integrantes da casa dos pais e após 1950 eles passaram a serem contabilizados no local onde estavam estudando, o que provocou efeito substancial na enumeração das famílias (Ruggles e Brower, 2003).

Como se vê, existem importantes diferenças na operacionalização do conceito de família nos diversos censos dos países do continente americano. Portanto, para que o número total de famílias seja utilizado de maneira correta no cálculo das necessidades habitacionais é preciso que se faça uma harmonização dos dados e dos conceitos utilizados em cada país.

As definições de domicílio

Para o IBGE (2000), Domicílio é o local ou recinto estruturalmente independente, que serve de moradia a famílias, formado por um conjunto de cômodos, ou por um cômodo só, com entrada independente, dando para logradouro ou terreno de uso público ou para local de uso comum a mais de um domicílio. Considerarse também como domicílio o local que, embora não atendendo àquelas características, sirva de moradia na data do censo a pessoas ou a uma só pessoa, tais como: prédios em construção, embarcação, veículos, barracas, tendas, grutas, pontes, galerias, banco de praça, pátio de estação, marquise de edifício, etc. Segundo a caracterização dos grupos de pessoas que os habitam, os domicílios podem ser particulares ou coletivos. Segundo a natureza dos domicílios eles podem ser classificados em permanentes ou improvisados.

O domicílio particular é caracterizado pela separação e independência. As casas de cômodos (cabeças-de-porco, cortiços, etc.), os edifícios de apartamentos e as fazendas, estâncias, engenhos, etc. constituem um conjunto de domicílios particulares, desde que respeite a condição de separação e independência. O domicílio coletivo é o domicílio ocupado por grupos conviventes nos quais a relação entre os moradores se restringe à subordinação de ordem administrativa e ao cumprimento de normas de convivência. São exemplos de domicílios coletivos: hotéis, pensões, recolhimentos, conventos, manicômios, asilos, orfanatos, conventos, barcos mercantes, penitenciárias, postos militares, quartéis, navios de guerra, alojamento de trabalhadores etc. O domicílio permanente é aquele construído para servir exclusivamente à habitação e, na data de referência do censo, tinha a finalidade de servir de moradia a uma ou mais pessoas. O domicílio improvisado é aquele localizado em prédios não residenciais (lojas, fábricas, etc.), desde que não tenham dependências destinadas exclusivamente para fins de moradia, mas que estejam servindo de abrigo na data do censo.

O IBGE só faz perguntas sobre as características dos domicílios particulares permanentes ocupados. Para os domicílios coletivos e improvisados não se perguntam suas características. O IBGE também contabiliza os domicílios não ocupados (fechado, uso ocasional e vago), mas evidentemente, não pergunta sobre as características destes domicílios.

Na Argentina, o censo 2001, perguntou sobre o tipo dos domicílios: casa (tipo A "permanente" e B "rústica"), rancho, "casilla", apartamento, cômodo ("pieza/s em inquilinato"), "pieza/s em hotel o pensión", local não construído para habitação, domicílio móvel, domicílio de rua (improvisado). Além dos domicílios particulares ocupados, contabilizou ainda os domicílios não ocupados onde todas as pessoas estavam temporariamente ausentes, o domicílio estava em oferta para aluguel ou venda, o domicílio estava em construção, o domicílio estava sendo usado para comércio/oficina/consultório, o domicílio usado para férias e fins de semana, o domicílio fechado por motivos desconhecidos e o domicílio abandonado.4

Nos Estados Unidos se pergunta para todos os domicílios ocupados ou não ocupados os seguintes tipos de domicílios: domicílio móvel, casa independente ("detached from any other house"), casa geminada ("attached to one or more houses"), prédio com 2 apartamentos, prédio com 3 ou 4 apartamentos, prédio com 5 a 9 apartamentos, prédio com 10 a 19 apartamentos, prédio com 20 a 49 apartamentos, prédio com 50 ou mais apartamentos, barco, RV (trailers), van, etc.

Desta forma vê-se que as definições são diferentes entre os censos, tanto para os domicílios ocupados, mas principalmente sobre os domicílios não ocupados. Isto torna complicada a definição do número total de domicílios que entra na conta das necessidades habitacionais e na análise das condições de moradia.

 

Comparação dos dados de famílias e domicílios dos três países

Antes da análise dos dados de família e domicílio para os três países é preciso levar em conta que eles possuem uma estrutura etária bastante diferente sendo que os Estados Unidos possuem uma população mais envelhecida (idade mediana de 35.2 anos) do que a da Argentina (27.9 anos) e, especialmente, em relação ao Brasil, que possui a população mais jovem (mediana de 25.4 anos). O índice de envelhecimento (IE) pode ser lido como a quantidade de pessoas com mais de 60 anos para cada 100 crianças de 0 a 14 anos. Nos Estados Unidos existiam 74 idosos para cada 100 crianças, enquanto o IE da Argentina era de 49 e o do Brasil era de 27 idosos para cada 100 crianças no ano 2000. A maior presença de pessoas idosas na população americana influencia a composição das famílias, explicando, especialmente, a grande incidência de pessoas morando sozinhas (tabela 1).

A tabela 2 (e o anexo 1) mostra algumas diferenças acentuadas nas características de família e domicílio e na forma de coleta e tratamento dos dados nos três países. Em primeiro lugar, destacamos que os domicílios coletivos têm um peso expressivo nos Estados Unidos (2.8 per cent), quando comparado com o Brasil (0.3 per cent) e a Argentina (0.9 per cent). Em grande parte isto se deve ao peso da população idosa dos Estados Unidos, sendo que existe uma maior possibilidade destes idosos viverem em asilos, cidades geriátricas e outros tipos de domicílios coletivos que abriguem a população idosa. É preciso considerar também que a baixa fecundidade, a grande mobilidade familiar (mobilidade espacial das várias gerações) e a família pequena nos Estados Unidos fazem com que muitas pessoas idosas não contem com familiares para cuidar dos membros mais velhos do grupo familiar como é muito comum no Brasil e, em menor proporção, na Argentina. Nos Estados Unidos, também existe um peso grande dos quartéis e prisões nos domicílios coletivos. A baixíssima presença de pessoas em domicílios coletivos no Brasil, mesmo quando comparado com a Argentina, pode estar sugerindo uma subenumeração da população neste tipo de moradia coletiva.

Outra diferença significativa mostrada na tabela 2 refere-se à relação entre domicílios ocupados e não ocupados, já que nos Estados Unidos o percentual de domicílios não ocupados é bem menor do que no Brasil e, em especial, na Argentina. A alta proporção de domicílios não ocupados nos dois países da América do Sul merece estudos mais aprofundados e maior empenho por parte do IBGE e do INDEC para conseguir maiores informações sobre esta importante parcela do parque habitacional. Além disto, cabem algumas perguntas: será que estes domicílios são o reflexo da alta concentração da renda e da propriedade existentes na Argentina e no Brasil? Como uma política habitacional poderia incentivar que os domicílios não ocupados sirvam para a redução das necessidades habitacionais da população excluída?

No Brasil, por exemplo, faltam informações sobre a parcela dos domicílios não ocupados que estão sendo ofertados para venda ou aluguel. Além de ter uma menor proporção de domicílios não ocupados, nos Estados Unidos 43.2 per cent destes encontravam-se à venda ou oferecidos para aluguel, comparado com apenas 13.5 per cent na Argentina. Tanto na Argentina quanto no Brasil existe uma alta proporção de domicílios não ocupados por outro motivo. Este é um desafio para que futuras pesquisas domiciliares e censos se atenham para buscar informações mais detalhadas.

A tabela 2 também mostra que existem diferenças expressivas nos arranjos familiares e não-familiares nos domicílios ocupados dos três países. Enquanto nos Estados Unidos existe 68.1 per cent dos domicílios com arranjos familiares, no Brasil este percentual sobe para 90.7 per cent, enquanto a Argentina fica em situação intermediária (82.7 per cent). A maior razão para esta diferença se deve à quantidade de pessoas vivendo sozinhas que chega a quase 26 per cent nos Estados Unidos, 15 per cent na Argentina e apenas 9 per cent no Brasil. Evidentemente, este fato reflete o fato do maior envelhecimento da população dos Estados Unidos, mas reflete também uma questão cultural, pois é um fato mais comum no Brasil as pessoas idosas viverem com algum outro parente, ou mesmo alguma outra pessoa sem laços de parentesco, no domicílio. Outra diferença importante é o percentual de arranjos não familiares (multipessoal) nos Estados Unidos que chega a 6.1 per cent dos domicílios, enquanto na Argentina chega a 2.2 per cent e no Brasil, fica em somente 0.3 per cent. Esta questão merece estudos mais aprofundados especialmente no Brasil que apresenta números muito abaixo dos outros dois países.

A tabela 3 mostra a quantidade de pessoas por domicílio nos três países. Considerando a população total em relação ao total de domicílios particulares (ocupados e não-ocupados) existiam 2.43 pessoas por moradia nos Estados Unidos, 2.92 na Argentina e 3.13 no Brasil. Considerando a população total, menos a população em domicílios coletivos, em relação ao total de domicílios ocupados existiam 2.59 pessoas por moradia nos Estados Unidos, 3.57 na Argentina e 3.78 no Brasil. Nota-se, portanto, que os números variam de acordo com os critérios adotados. Em ambos os casos a densidade de moradores por domicílios é menor nos Estados Unidos, seguidos da Argentina e tendo o Brasil com a maior densidade de indivíduos nas moradias.

Apesar do Brasil apresentar a maior densidade de moradores (3.8), em 2000, entre os três países analisados, o número de moradores por domicílios particulares ocupados era de 5.3 pessoas no ano de 1970. Esta redução, nas três últimas décadas, se deveu ao crescimento do estoque de habitações concomitantemente à queda da fecundidade no Brasil (Alves, 2004).

 

Condições habitacionais: componentes quantitativo e qualitativo

Pelo exposto, podemos perceber a importância da definição dos conceitos de família e domicílio na avaliação das condições habitacionais. Dependendo dos critérios utilizados pode-se chegar a resultados bastante diferentes, ou até mesmo opostos: apresentando superávits ou déficits habitacionais. Especialmente no Brasil existe uma ampla utilização do conceito de déficit habitacional como forma de pressionar as autoridades governamentais na definição de políticas públicas na área habitacional. Porém, algumas estimativas apresentadas (Vasconcelos e Cândido Júnior, 1996; Gonçalves, 1998; Carneiro e Valpassos, 2003) podem estar infladas, devido à metodologia utilizada. Superestimar a escassez de moradias pode dificultar a busca de recursos adequados e dificultar a solução do problema (apesar de favorecer o lobby das grandes construtoras e da indústria da construção civil). Definir com precisão as necessidades habitacionais é uma prioridade para uma política habitacional eficiente e que não desperdice os recursos públicos e privados.

Componentes quantitativo

Para uma avaliação quantitativa do balanço habitacional é preciso considerar as famílias e os domicílios. Na definição de família —um dos componentes da equação do balanço habitacional— algumas situações específicas são muito relevantes, como: pessoa só, pessoas não-parentes morando juntas e coabitação. Diferentemente da Argentina e dos Estados Unidos, o IBGE considera como família censitária tanto a pessoa morando sozinha, quanto as pessoas não-parentes morando no mesmo domicílio. Considera, também, que dois ou mais núcleos familiares morando no mesmo domicílio constituem famílias distintas, isto é, coabitação de famílias, sendo parentes ou não. Por exemplo, um casal que more com filho(s) e neto(s) e suas respectivas famílias (mínimo de duas pessoas) é contabilizado pelo IBGE como famílias conviventes, assim como o domicílio que tenha uma família principal que abrigue um casal de empregados domésticos (com ou sem filhos).

Bilac (2003) considera que a metodologia utilizada pelo IBGE, apesar da "fragilidade teórica", tem a vantagem de poder distinguir as famílias principais e secundárias, mas os pesquisadores e os usuários das informações censitárias devem estar atentos para não confundir os conceitos e para fazerem comparações internacionais entre os dados dos institutos que utilizam metodologias diferentes. Neste sentido, a questão da coabitação deve ser utilizada com bastante cuidado para não confundir um conceito sociológico de família com o conceito de família censitária do censo.

Na definição de domicílio —outro componente da equação do balanço habitacional— existem várias questões a serem consideradas. A primeira diz respeito aos domicílios coletivos. Geralmente a questão dos domicílios coletivos não é considerada no cômputo do déficit habitacional. Mas é comum se discutir, no âmbito da política de segurança, a falta de presídios adequados para a população carcerária; no âmbito da política educacional, a falta de dormitórios e repúblicas estudantis para a população em idade escolar, principalmente nas universidades; no âmbito da política de saúde, a falta de hospitais para doentes que requerem tratamento de longo prazo; no âmbito da política previdenciária, a falta de asilos para idosos e de "cidades geriátricas" para a população da terceira idade, etc. Estes exemplos servem para mostrar que a discussão dos domicílios coletivos é relevante e deveria fazer parte das preocupações da política habitacional de qualquer país.

Outra questão importante diz respeito aos domicílios não-ocupados que, principalmente no Brasil e na Argentina, chegam a cifras próximas de um quinto do parque habitacional. No Brasil eram mais de 9 milhões de domicílios em 2000, para os quais o IBGE não tinha qualquer informação, tais como, a qualidade, o tamanho, o estado de conservação, a finalidade de uso, a quem pertencem, etc. Se estes domicílios pertencem a famílias ("pessoa física") que já possuem outro imóvel, então seria importante se ter informações sobre o grau de concentração imobiliária das famílias. Se estes imóveis pertencem a firmas ("pessoa jurídica"), então seria importante avaliar qual a finalidade deste patrimônio. Enfim, qualquer política pública na área habitacional não pode deixar de considerar a existência do alto percentual de domicílios não-ocupados.

Existe também uma grande variação entre os domicílios não-ocupados. Existem aqueles que, sendo de propriedade particular de famílias, possuem utilização ocasional, para uso nas férias, fins de semana, temporadas e recreação. Há famílias que preferem imobilizar uma parte do capital para ter uma outra propriedade como segunda opção de moradia, enquanto outras famílias preferem empregar seu capital em outras alternativas que tragam rendimentos financeiros que lhes possibilitem passar férias e temporadas em hotéis e pousadas. Evidentemente, estas opções afetam as condições habitacionais e deveriam fazer parte de uma política habitacional.

Uma parcela dos domicílios não-ocupados geralmente estão sendo ofertados para venda ou aluguel, ou já vendidos e alugados, mas ainda vagos. Nos Estados Unidos este tipo chega à quase metade dos domicílios não-ocupados (na Argentina fica em 13.5 per cent e no Brasil não existem dados). Pela lógica do mercado habitacional estes domicílios deveriam entrar no cálculo do déficit habitacionaljá que estão disponíveis para moradia. Existem também os domicílios que não estão ocupados porque estão em reforma ou em fase final de construção.

Ou seja, a política habitacional pode incentivar a utilização desta parcela dos domicílios através de incentivos fiscais aos proprietários ou de apoio aos inquilinos para uma ocupação mais rápida.

Componente qualitativo

A avaliação da qualidade do parque habitacional de um país não é uma questão trivial. O conceito de qualidade depende de uma avaliação cultural e, por vezes, subjetiva. Geralmente se avalia a qualidade dos domicílios pela aparência e pelo tipo de material utilizado na construção.

Em várias pesquisas e censos o IBGE classificou os domicílios em duráveis e rústicos. Domicílio durável é aquele localizado em prédios em cuja construção predominam: paredes de tijolo, pedra, adobe ou madeira preparada; cobertura de telha (barro, amianto, madeira, zinco, etc.) ou laje de concreto; piso de madeira, cimento, ladrilho ou mosaico. Domicílio rústico é aquele localizado em prédios em cuja construção predominem: paredes e cobertura de taipa, sapé, palha, madeira não aparelhada, material de vasilhame usado e piso de terra batida.5

Contudo, a classificação dos domicílios em duráveis e rústicos não é o melhor indicador para se avaliar a durabilidade e a qualidade das construções, pois se tratam das características dos materiais utilizados na parede, piso e cobertura e não do estado de conservação dos domicílios. Por exemplo, uma construção pode utilizar materiais de alvenaria nas paredes, ter pisos de cimento ou cerâmica e coberturas de telhas, embora esteja em péssimas condições de conservação (Vetter e Simões, 1981).

Nas favelas brasileiras, por exemplo, tornou-se comum a existência de construções permanentes de alvenaria em contraposição às construções precárias do meio rural. Contudo, as carências na qualidade dos "barracos" são muito grandes e precisam ser levadas em consideração pelas políticas habitacionais, como aquelas de ajuda para reformas e melhoria no padrão das construções.

 

Carências habitacionais: déficits, necessidades e adequação

Existem alguns aspectos das carências habitacionais que são bastante visíveis e inquestionáveis, como os moradores de rua e os domicílios improvisados (barracos precários debaixo de viadutos, na beira de estradas, etc.). Contudo, apesar de serem um grave problema social, o número de pessoas encontradas nessas situações é relativamente pequeno. No Brasil, um dos maiores problemas habitacionais decorre da ocupação desordenada do solo urbano, quer seja através dos loteamentos clandestinos, quer seja da ocupação precária em áreas sem infra-estrutura adequada, com falta de urbanização, arborização e grande concentração de moradias que transformam muitos sítios urbanos em locais impróprios para moradia. Por outro lado, existem áreas centrais nas grandes cidades que possuem excelente infra-estrutura urbana, porém, por serem áreas utilizadas prioritariamente ao comércio e por falta de conservação, investimentos em melhorias de reparação dos imóveis e políticas habitacionais apropriadas, tornam-se inadequadas para o uso residencial.

Para atender a demanda de informações necessárias às políticas habitacionais é preciso haver disponibilidade de informações estatísticas e dados que sejam comparáveis ao longo do tempo em cada país e, se possível, comparáveis entre os países. Ainda que os censos demográficos não sejam voltados exclusivamente para a mensuração das condições habitacionais, eles prestam-se a essa finalidade específica, apesar das lacunas e dos problemas de comparabilidade. Além de informações, é preciso, também, se ter um bom diagnóstico do problema e metodologias apropriadas para se conhecer as condições habitacionais.

Rodriguez (1999) em trabalho bastante rico na definição de informações censitárias para a medição do déficit habitacional, considera que não deve se levar em conta os domicílios coletivos e os domicílios não-ocupados no cálculo das necessidades habitacionais. Quanto à questão da coabitação ele mostra que poucos países incluem em seus censos a pergunta sobre os diferentes núcleos familiares convivendo em um mesmo domicílio. Bercovich e Pereira (1999) mostram que o Brasil faz a distinção entre os diversos núcleos familiares convivendo no mesmo domicílio, conforme recomendações internacionais (United Nations, 1998). Apesar das diversas ponderações sobre qual definição de família e domicílio é mais conveniente ser usada, a avaliação das condições habitacionais segue caminhos diferentes nos diversos países e o debate continua aberto.

Nos Estados Unidos não é prática comum se calcular o déficit habitacional. No Brasil a Fundação João Pinheiro (FJP) calculou o déficit habitacional brasileiro em 14.8 per cent dos domicílios e na Argentina, o Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC), calculou as necessidades básicas insatisfeitas em 14.3 per cent dos domicílios, em 2001. Mas apesar desta semelhança nos números, existe uma enorme diferença na metodologia utilizada nos dois casos. A seguir, vamos discutir três metodologias diferentes sobre déficits, necessidades e adequação dos domicílios, utilizadas no Brasil e na Argentina.

Déficit habitacional

A Fundação João Pinheiro (FJP), órgão do Governo do Estado de Minas Gerais, elaborou o documento Déficit habitacional no Brasil, em 1995, que se tornou uma referência nos estudos voltados para as políticas habitacionais no Brasil. Em 2002, a FJP reviu e atualizou o estudo anterior e publicou o documento Déficit habitacional no Brasil 2000. Dentro do conceito mais amplo das necessidades habitacionais, este estudo identifica o déficit habitacional (que requer incremento do estoque de moradias) e a inadequação dos domicílios, conforme mostrado abaixo:

1. Déficit por incremento de estoque (déficit habitacional).

1.1 Coabitação familiar, domicílios com mais de uma família (famílias conviventes secundárias) e os cômodos cedidos ou alugados ("coabitação disfarçada").

1.2 Domicílios improvisados.

1.3 Ônus excessivo de aluguel, casas e apartamentos urbanos com até três salários mínimos de renda familiar que despendem mais do que 30 per cent com aluguel.

2. Déficit por reposição do estoque (inadequação dos domicílios).

2.1 Adensamento excessivo de moradores, domicílios com mais de três pessoas por dormitório (só em relação à família principal).

2.2 Carência de infra-estrutura, domicílios que não possuíam pelo menos um dos seguintes serviços básicos: energia elétrica, rede de abastecimento de água com canalização interna, rede coletora de esgoto ou fossa séptica e lixo coletado direta ou indiretamente, independente da renda de seus moradores.

2.3 Inexistência de unidade sanitária domiciliar interna.

2.4 Inadequação fundiária urbana: sem a posse do terreno.

2.5 Depreciação: estimação de déficit de domicílios com mais de 50 anos de construção.

Nota-se que a Fundação João Pinheiro leva em consideração várias dimensões do problema habitacional, como coabitação familiar, ônus excessivo de aluguel (ou deficiência de renda), adensamento excessivo, carência de infra-estrutura e de políticas de serviços públicos voltados ao domicílio, inexistência de sanitários, inadequação fundiária e idade da construção.

Apesar de bastante ampla e complexa, é preciso fazer alguns comentários à metodologia utilizada pela FJP: a) não trata da questão do déficit relativo aos domicílios coletivos; b) não inclui os domicílios não-ocupados, especialmente aqueles disponíveis para venda e aluguel, no cômputo do déficit habitacional; c) considera toda coabitação como déficit habitacional o que é poucojustificável do ponto de vista sociológico e demográfico;6 d) considera inadequada toda habitação com mais de 50 anos (depreciação) como déficit o que, evidentemente, pode significar um superdimensionamento do problema se não se considera o estado de conservação do imóvel.

Necessidades básicas insatisfeitas

O Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC) da Argentina considera os domicílios com Necessidade Básicas Insatisfeitas (NBI) como aqueles apresentam ao menos uma das seguintes condições de privação:

1. Adensamento, domicílios com mais de três pessoas por quarto.

2. Domicílios inconvenientes, quarto de aluguel, domicílios precário e outro.

3. Domicílios sem banheiro.

4. Domicílios com crianças em idade escolar (6 a 12 anos) fora da escola.

5. Domicílios que tinham quatro ou mais pessoas por membro ocupado e cujo chefe não tinha completado o terceiro ano de escolaridade primária.

Nota-se, portanto, que são condições muito diferentes daquelas definidas na metodologia de cálculo do déficit habitacional da FJP, apesar de haver coincidências quanto ao adensamento, domicílios precários e sem banheiros. Mas a NBI do INDEC não leva em consideração a coabitação (que é o principal componente do déficit da FJP), o ônus excessivo de aluguel, a falta de serviços básicos de luz, água, esgoto e lixo, a depreciação (após 50 anos) e a inadequação fundiária. Porém, a NBI leva em consideração a questão educacional, da taxa de dependência e do mercado de trabalho que não fazem parte dos elementos de cálculo do déficit habitacional da FJP.

Adequação da moradia

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera a adequação dos domicílios de acordo com os critérios abaixo:

1. Domicílio adequado.

1.1 Domicílio particular permanente com rede geral de abastecimento de água, com rede geral de esgoto ou fossa séptica, coleta de lixo por serviço de limpeza e até dois moradores por dormitório.

2. Domicílio semi-adequado.

2.1 Domicílios particulares permanentes com pelo menos um serviço inadequado.

3. Domicílios inadequado.

3.1 Domicílios particulares permanentes com abastecimento de água proveniente de poço ou nascente ou outra forma, sem banheiro e sanitário ou com escoadouro ligado à fossa rudimentar, vala, rio, mar ou outra forma e lixo queimado, enterrado ou jogado em terreno baldio ou logradouro, em rio, lago ou mar ou outro destino e mais de dois moradores por dormitório.

Nota-se que nesta metodologia do IBGE são levados em consideração apenas os serviços públicos de água, esgoto e coleta de lixo, acrescidos da densidade de moradores. Observa-se, também, que esta classificação utilizada se aplica com maior propriedade à área urbana, já que no meio rural existem muitos domicílios com acesso próprio à água e com tratamento próprio do lixo descartado. Esta metodologia do IBGE se presta mais a avaliar o déficit por serviços de saneamento básico e não às carências habitacionais propriamente definidas.

 

Considerações finais

Os censos demográficos são a única fonte de informação que recolhe dados sobre todos os domicílios e famílias de um país. Exatamente por isso são reconhecidos como instrumentos indispensáveis para a elaboração de políticas públicas que visam a melhoria das condições habitacionais. Também são reconhecidos pelo setor privado e pelas organizações não-governamentais que realizam investimentos e alocam recursos na área habitacional e de serviços de infra-estrutura urbana e saneamento.

Contudo, as definições de família e domicílio não são simples e existem muitas diferenças na forma como estas variáveis são obtidas nos diversos países. No presente trabalho, buscamos mostrar as sutilezas e a complexidade existente nos censos dos Estados Unidos, Brasil e Argentina. Uma tentativa de compatibilização das variáveis, ao menos no âmbito do Mercosul, seria um esforço bem vindo. Porém, é preciso, também, haver um esforço de compatibilização das metodologias utilizadas para se avaliar as condições habitacionais. Neste sentido, o presente trabalho é uma contribuição para a discussão do tema.

As carências habitacionais são de vários tipos: ausência de moradia, deficiências na edificação, reduzido espaço interno, alta densidade de moradores, loteamentos irregulares, falta de serviços públicos (água, esgoto, coleta de lixo, luz, transporte, educação, saúde, etc.). Para criar condições satisfatórias de habitabilidade, uma política habitacional deve abarcar pelo menos 6 áreas: a) apoio e incentivo aos domicílios coletivos; b) legalização e regularização dos terrenos; c) construção de novas unidades habitacionais; d) reparação e reforma de unidades inadequadas e insuficientes; e) incentivo à utilização dos domicílios não-ocupados; f) investimentos em infra-estrutura urbana e serviços públicos.

Uma política pública visando a melhoria das condições de habitação de um país deveria propor ações nas seis áreas sugeridas:

1. Domicílios coletivos: nas sociedades individualistas é comum se ignorar as alternativas de convivência coletiva. Mas existem experiências interessantes de domicílios coletivos como o kibutz,7 de Israel, em que o espaço de alimentação é coletivo, assim como outras atividades. O investimento em orfanatos, moradias estudantis, asilos, "cidades geriátricas", hospitais, etc. são elementos que devem fazer parte de uma política habitacional.

2. Legalização e regularização dos terrenos: muitos moradores não investem em seus domicílios porque não possuem o título de propriedade do terreno ou porque não existe investimento público na região onde moram. Ações visando a legalização e regularização dos terrenos e lotes irregulares pode contribuir para a melhoria das condições habitacionais através de investimentos dos próprios moradores.

3. Construção de novas unidades residenciais: através de políticas públicas apropriadas é possível ampliar o parque habitacional do país, criando mecanismos de financiamento de investimentos de longo prazo em habitação, dando acesso às famílias que possuem rendas, e criando mecanismos de subsídio para as famílias de baixa renda.

4. Reparação e reformas: existe uma grande parcela dos domicílios que podem ser recuperadas e melhoradas através de intervenções que podem ser feitas pelos respectivos proprietários dos imóveis. Mas o poder público pode incentivar e apoiar estas reformas através de mecanismos de apoio financeiro e de incentivos fiscais.

5. Incentivo à utilização de domicílios não-ocupados: existem domicílios que ficam desocupados porque seus proprietários não encontram inquilinos capazes de pagar o aluguel desejado, pois as taxas e impostos públicos inviabilizam sua ocupação. Neste sentido, políticas habitacionais visando a facilitar o aluguel e a ocupação destes domicílios (especialmente nas áreas centrais dos grandes municípios) podem contribuir para a redução do déficit habitacional.

6. Investimentos em infra-estrutura e serviços: muitas das carências habitacionais não decorrem da falta de moradias, mas sim da falta de serviços públicos em infra-estrutura urbana, serviços de saneamento e outros serviços decorrentes dos direitos econômicos, sociais e culturais. Neste caso, trata-se de equipar o poder público, através de parcerias Federal, Estadual e Municipal, para criar as condições adequadas para que os proprietários se sintam apoiados para investir em suas moradias. O fim dos lixões, por exemplo, não só contribui para o combate à degradação ambiental, como contribui para a melhoria da saúde pública e a redução da mortalidade e da morbidade.

Elevar os padrões de habitabilidade de uma população é o objetivo principal de uma política habitacional. O alto crescimento da população urbana na América Latina, decorrente do alto crescimento vegetativo e do êxodo rural, nas últimas décadas, tem contribuído para agravar o problema das sub-habitações: favelas, mocambos, palafitas, cortiços, etc. A crise fiscal do Estado dificulta intervenções públicas mais efetivas. Contudo, muitas moradias são feitas através de autoconstrução ou mutirões de amigos e familiares. Se houver definições precisas de tarefas o poder público, a iniciativa privada e as pessoas ou famílias podem juntar forças para resolver as carências habitacionais. Informações mais precisas e uma maior comparabilidade dos dados podem ajudar no desenho e na formulação de políticas apropriadas na área habitacional e, conseqüentemente, podem contribuir para a melhoria das condições de vida e a redução das múltiplas formas de manifestação da pobreza.

 

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Notas

* Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu, Minas Gerais, Brasil, de 20-24 de Setembro de 2004.

1 Até 1991, o IBGE considerava as famílias como o conjunto de, no máximo, cinco pessoas que morassem em um mesmo domicílio particular, sendo que as repúblicas de estudantes eram consideradas como domicílios coletivos mesmo que tivessem menos de seis estudantes.

2 No censo 2000 perguntou-se sobre: Pessoa responsável pelo domicílio e pela família; Cônjuge, Companheiro/a; Filho/a, enteado/a; Pai, mãe, sogro/a; Neto/a, bisneto/a; Irmão, irmã; Outro parente; Agregado/a; Pensionista; Empregado/a doméstico/a; Parente do/a Empregado/a Doméstico/a; Individual em domicílio coletivo.

3 Segundo o censo 2000 existiam 115,9 milhões de domicílios nos Estados Unidos, sendo 10.4 milhões não ocupados e 105.5 milhões ocupados por 71.8 milhões de unidades familiares e 33.7 milhões de unidades não-familiares. Para uma população total de 281.4 milhões de habitantes, 273.6 milhões viviam em domicílios particulares e 7.8 milhões viviam em domicílios coletivos (US Census Bureau, 2001).

4 Em 2001 a população total da Argentina era de 36.3 milhões de habitantes, sendo que 35.9 milhões estavam em domicílios particulares e 0.3 milhão em domicílios coletivos. A população vivendo na rua não foi contabilizada. Existiam 10.1 milhões de domicílios ocupados em 2001 (INDEC, 2001).

5 Quando o material empregado nos três componentes da estrutura do prédio (parede, cobertura e piso) não estiver discriminado em um mesmo grupo (durável ou rústico) deverá ser assinalado o grupo que contiver dois dos componentes. Exemplo: prédio com paredes e cobertura de vasilhames usados e piso de madeira, será classificado como rústico. Quando em um dos componentes do prédio for usado mais de um material, será considerado o empregado em maior quantidade.

6 Considerar toda coabitação como déficit habitacional não nos parece um procedimento adequado nem em termos teóricos, nem práticos. Com o aumento da esperança de vida, a diminuição da fecundidade, o aumento das rupturas familiares e o aumento da incidência de filhos fora do casamento é cada vez mais comum a convivência de parentes de duas, três ou até quatro gerações morarem no mesmo domicílio. Se o domicílio comporta este tipo de arranjo multi-geracional não há porque considera-lo déficit habitacional, a não ser que haja densidade excessiva.

7 Kibutz (palavra hebraica que significa estabelecimento coletivo) é uma comunidade rural singular; uma sociedade dedicada ao auxílio mútuo e a justiça social; um sistema sócio-econômico baseado no princípio da propriedade comunal, igualdade e cooperação na produção, no consumo e na educação; o cumprimento do princípio "cada um dá de acordo com sua capacidade e recebe de acordo com sua necessidade"; o lar para aqueles que assim escolheram.

 

Información sobre los autores

José Eustáquio Diniz Alves. Es graduado en Ciencias Sociales por la FAFICH/UFMG, maestro en Economía con especialización en Demografía por el Cedeplar/UFMG, doctor en Demografía 1994 también por el Cedeplar/UFMG. Laboró en la Secretaria del Trabajo dei Estado de Minas Gerais (1984-1988) donde fungió como Coordinador Estatal del Sistema Nacional de Empleo (SINE). Fue profesor de la Universidad Federal de Ouro Preto entre 1987 y 2002. Desde 2002, es profesor titular do la Maestría en Estudios Poblacionales e Investigación Social de la Escuela Nacional de Ciencias Estadísticas (ENCE) del IBGE. Fue subcoordinador de población y género de Abep entre 2001-2004. Sus publicaciones abarcan vanas áreas de interés, entre otras: fecundidad, salud y derechos reproduce población y desarrollo, familia y condiciones habitacionales. Correo electrónico: jedalves@ibge.gov.br

Suzana Cavenaghi. Es graduada de Matemática y Estadística 1988 por la Universidad de Campinas, especialista en Demografía por el Centro de Estudios Latinoamericano y Caribeño de Demografía (Celade), Santiago de Chile, maestra y doctora 1999 en Sociología con es énfasis en Demografía por la Universidad de Texas-Austin. Fue investigadora de NEPO/UNICAMP de 1988-2000 y profesora asociada del Departamento de Sociología del Instituto de Filosofía e Ciencias Humanas de la Universidad de Campinas de 1999-2005. Fue miembro del comité organizador del Encuentro de la Asociación Brasileña de Estudios de Población (ABEP), 1992. Es actualmente vicepresidente de la Asociación Latinoamericana de Población (ALAP). Trabaja en proyectos conjuntos con el Population Research Center, Texas y coordina el proyecto sobre Indicadores de salud sexual y reproductiva. Actualmente es investigadora de la Escuela Nacional de Estadista (ENCE) del Instituto Brasileño de Geografía y Estadística (IBGE). Correo electrónico: cavenaghi@ibge.gov.br

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