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Convergencia

versión On-line ISSN 2448-5799versión impresa ISSN 1405-1435

Convergencia vol.15 no.47 Toluca may./ago. 2008

 

Pensamiento

 

Novos olhares, novos lugares: por uma política social de combate à pobreza condizente com a construção da cidadania

 

Izildo Corrêa Leite

 

Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil / raiz.vix@uol.com.br

 

Envío a dictamen: 16 de agosto de 2007.
Aprobación: 19 de noviembre de 2007.

 

Abstract

Supported on bibliographical research, the present study is intended to show the importance, for the professionals in the area of Social Policy who are involved in the fight against poverty, of considering some often neglected aspects of such social condition, among which, the social representations of poverty and of the poor and the ways in which such subjects' identity is constituted. This is essential: poverty, in practice, can be faced as a multi-faceted phenomenon; the corresponding social policies may be more effective, reject assistencialism, and promote the protagonism of people assisted; the poor may become subjects entitled to rights; the construction of effective citizenship may advance.

Key words: social policy, fight against poverty, social representations, identity, citizenship.

 

Resumen

A partir de una investigación bibliográfica, se intenta demostrar la importancia, a los profesionales de la política social, que actúan en el combate a la pobreza, para que tengan en cuenta aspectos a menudo menospreciados de aquella condición social, como son: las representaciones sociales de la pobreza y de los pobres, y los modos en que se constituye la identidad de estos sujetos. Esto es indispensable para que la pobreza, en términos prácticos, sea encarada como fenómeno polifacético; para que las políticas sociales pertinentes puedan volverse más efectivas, se aparten tenazmente del asistencialismo y fomenten el protagonismo de las poblaciones atendidas; para que los pobres puedan transformarse en sujetos susceptibles de derechos; para que se avance en la construcción de una ciudadanía efectiva.

Palabras clave: política social, combate a la pobreza, representaciones sociales, identidad, ciudadanía.

 

A importância e a atualidade das questões relativas à pobreza e aos pobres

Não trato, aqui, de fenômenos que tenham ficado para trás. Ao contrário: a pobreza, os pobres e as questões relativas tanto àquela condição social quanto a estes sujeitos continuam a constituir um universo temático da maior relevância, e sua atualidade se dá no âmbito da realidade social, na esfera da produção acadêmica e no campo da intervenção sobre a realidade, como procuro demonstrar, a seguir.

 

A pobreza e a vida em sociedade

A pobreza mantém-se como característica profundamente marcante do mundo contemporâneo. A esse respeito, podemos dizer, de maneira enfática, que a "globalização neoliberal" (Santos, 2005b: 31 e 32) não tem contribuído, de forma alguma, para reverter a extrema precariedade das condições em que (sobre)vive imensa quantidade de indivíduos e famílias ao redor do planeta. Muito pelo contrário! A globalização é "uma realidade social múltipla, desigual e contraditória", compreendendo "relações, processos e estruturas de dominação e apropriação desenvolvendo-se em escala mundial" (Ianni, 1998).1 Por isso, juntamente com ela, a pobreza continua a existir em larga medida na contemporaneidade, ainda que sob formas diversas daquelas existentes em períodos anteriores. Sobre esse assunto, Santos (2005b: 35) deixa claro que a "nova pobreza globalizada" não se deve à "falta de recursos humanos ou materiais", mas tem como determinantes o "desemprego",2 a "destruição das economias de subsistência" e —atendendo aos ditames neoliberais— a "minimização dos custos salariais à escala mundial", isto é, o achatamento dos valores com que se paga a força de trabalho.3

Há pouco, usei a expressão "larga medida", referindo-me às dimensões atuais da pobreza. É uma expressão plenamente justificável. Segundo estimativa do Banco Mundial divulgada em 2003, 1,1 bilhão de pessoas (21,1% da população mundial) procuram sobreviver com rendimentos diários inferiores a US$ 1,00.4 Por sua vez, totalizam cerca de dois bilhões as pessoas que percebem, por dia, menos de US$ 2,00 (Santos, 2005b: 33-4).

Ao lado de rendimentos monetários muito baixos, informações de outras ordens podem indicar a acentuada adversidade das condições em que sobrevive vasta parcela da população mundial. Considerem-se, por exemplo, os seguintes dados, levantados pela Organização Mundial de Saúde: "1/5 da população mundial não tem qualquer acesso a serviços de saúde modernos e metade da população mundial não tem acesso a medicamentos essenciais" (Santos, 2005b: 35).

Podemos considerar esses dados como indicadores da pobreza absoluta hoje existente no mundo. Mas a pobreza relativa5 dá mostras ainda mais evidentes de que se vem acentuando nos últimos tempos, devido a um recrudescimento das iniqüidades, em termos mundiais.6 Woodward e Simms (2006: ii, iii e 15) fornecem informações importantes a esse respeito, tratando dos indivíduos mais pobres do mundo —assim considerados aqueles que têm rendimentos diários inferiores a US$ 1,00. Sua participação no crescimento da economia mundial ocorrido na última década passou por uma queda marcante, em comparação com a década anterior. De cada US$ 100,00 de crescimento da renda mundial entre 1990 e 2001, os "mais pobres" ficaram com apenas US$ 0,60 —uma diminuição de 73% em relação aos US$ 2,20 que recebiam durante a década de 1980.7

Em forte contraste com tal perda, e confirmando a acentuação das desigualdades em nível mundial, as 200 pessoas mais ricas do planeta mais do que duplicaram sua riqueza apenas entre 1994 e 1998 (Santos, 2005b: 34).

Podemos também fazer referência a um "aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres8 e, no interior de cada país, entre ricos e pobres" (Santos, 2005b: 26). Quanto a este último ponto, os Estados Unidos, já nos anos 1980, apresentavam uma concentração de riqueza que "não tinha precedentes" em sua história: "1% das famílias norte-americanas detinha 40% da riqueza do país e as 20% mais ricas detinham 80% da riqueza do país" (Santos, 2005b: 34).

Os últimos dados que apresentei começam a nos levar a um ponto importante da argumentação que desenvolvo neste momento: uma das razões pelas quais a pobreza continua a ser um fenômeno de extrema importância na atualidade é que, seja tomada em termos absolutos, seja considerada em termos relativos, ela não está restrita à periferia do capitalismo mundial. Tratemos sucintamente desse fato.

É verdade que, na América Latina, por exemplo, tanto a pobreza como a indigência absolutas vêm-se mantendo nos mesmos patamares desde 1997, além de as desigualdades virem-se acentuando na maioria dos países da região, nos anos mais recentes.9 Mas —e esse é o ponto que destaco—, a pobreza apresenta-se de modo visível também em países do chamado Primeiro Mundo. Em muitas das principais cidades européias, há um número nada desprezível de indivíduos que habitam domicílios extremamente precários. Em grande parte, isso se deve aos aumentos de preços das moradias (os quais vêm apresentando uma média anual de 7% nos últimos cinco anos) e às elevadas taxas de desemprego (cujo patamar médio, no Velho Mundo, situa-se em 9%, na atualidade).10

Assim, não é um acaso que se possa falar numa "realidade —composta de cortiços superlotados e dilapidados, projetos suburbanos em ruínas e até mesmo acampamentos ao ar livre sem instalações sanitárias— [que] invade a consciência européia".11

Na verdade —e contribuindo para evidenciar aquilo que se pode considerar como uma desterritorialização12 do chamado Terceiro Mundo)13, nem sequer os Estados Unidos estão imunes à existência e à visibilidade de formas acentuadas de pobreza. Basta que nos lembremos das imagens de Nova Orleans que correram o mundo à época do furacão Katrina, e que expuseram cruamente as condições de todo precárias em que vive grande parte de seus habitantes. Além disso,

no país mais rico do mundo, não há um sistema nacional de saúde, e 40 milhões de cidadãos não têm qualquer seguro de saúde; a mortalidade infantil tem aumentado desde 2000 e é hoje igual à da Malásia; os negros de Washington DC têm uma mortalidade infantil mais alta que os habitantes do Estado indiano de Kerala (Santos, 2005a).

 

A pobreza e as Ciências Sociais

Também no campo acadêmico, continuam de todo atuais e pertinentes as questões relativas à pobreza e aos pobres. A Sociologia, em particular, e as Ciências Sociais, em geral —mesmo no sentido amplo da expressão, que inclui as Ciências Sociais aplicadas—, sempre tiveram relações muito estreitas com tais questões. Quanto à Sociologia, em particular, seu próprio surgimento, no século XIX, deveu-se, em grande parte, às três seguintes ordens de fatores: as transformações ocorridas nas configurações históricas da pobreza e nas características sociais dos pobres —transformações essas que já vinham se dando desde o início da modernidade pré-industrial da Europa ocidental—, os problemas que outros segmentos da sociedade de então passaram a identificar naquela condição social e nos indivíduos que a vivenciavam e, por fim, as atitudes que, em conseqüência disso, tomaram a seu respeito (Geremek, 1989: 9; Castel, 1998: 341-342; Figueiredo, 2001; Leite, 2002: 6-22; Leite, 2005a: 2; Leite: 2007).

Em toda a história posterior das Ciências Sociais, tem sido extensa e diversificada a literatura concernente aos tópicos que, de várias formas, vinculam-se à pobreza. Confirma-o, de modo consistente, um trabalho de Santos (1978: 75-119) que, por sua relevância, teria merecido atualização. Essa obra fornece uma visão bem aproximada das dimensões da produção acadêmica pertinente, ao apresentar uma vasta bibliografia internacional acerca da pobreza urbana, nela estando incluída grande quantidade de obras produzidas até então no Brasil. Zaluar (1985: 34), por sua vez, refere-se ao "notável fascínio" exercido pelos "'pobres', enquanto categoria social", sobre "os pensadores daqui e dalhures".

Podemos, mesmo, dizer que a pobreza, seus sujeitos e assuntos conexos sempre constituíram temas abordados com grande freqüência pela Sociologia e pelas demais Ciências Sociais, situação que se mantém na atualidade (Santos, 1978; Valladares, 1991; Valladares, 2000; Leite, 2002: 6 e 22; Leite, 2005a: 2; Leite, 2007; Sarti, 2005: 35-53).

Cabe mencionar que uma das características mais marcantes da farta bibliografia produzida sobre as questões referentes à pobreza, onde quer que isso ocorra, é o profundo grau de controvérsia existente entre os autores que se ocupam do tema. Destaco três aspectos do assunto em pauta relativamente aos quais existem divergências significativas: o conceitual, o referente às causas da condição de pobreza e aqueles que dizem respeito aos critérios que definem as parcelas da população consideradas pobres (Leite, 2002: 24-26).

 

A pobreza e a intervenção sobre a realidade

Um terceiro campo em que continua a ter relevância capital o universo temático em que se inserem a pobreza e os pobres é o da intervenção sobre a realidade. Também aqui sempre houve relações muito estreitas. As mudanças citadas há pouco no âmbito da pobreza e dos pobres, iniciadas ainda na modernidade pré-industrial européia e acentuadas a partir da Revolução Industrial —transformações nas configurações históricas da primeira e nas características sociais dos segundos—, não apenas levaram outros segmentos sociais a alterarem, de modo pronunciado, os modos pelos quais representavam aquela condição social e seus sujeitos, como também causaram modificações acentuadas nas atitudes pertinentes. O fato de a pobreza e os pobres terem passado a constituir um problema contribuiu largamente para o surgimento da questão social e para a conseqüente emergência da Política Social, nos termos em que esta se configurou no século XIX14 (Castel, 1998: passim; Behring e Boschetti, 2007: 47-71; Leite, 2007).

Desde então, as formas de intervenção com vistas a enfrentar a questão social modificaram-se muito, mas vêm acompanhando toda a história posterior do capitalismo. Aponto duas razões para tanto. Uma delas diz respeito às amplas dimensões —em extensão e intensidade— que a pobreza continua a ter até o presente. A outra relaciona-se à insatisfação (latente ou manifesta) que tem acompanhado as precárias condições em que vivem parcelas significativas da população, numa sociedade que, por sua vez, apresenta elevações nos ritmos de crescimento da riqueza muito mais acentuadas do que aquelas que existiram nas formas precedentes de organização social.

Tudo isso contribui para explicar não apenas por que a pobreza, os pobres e as questões que lhes são pertinentes compõem uma área privilegiada de ação da Política Social desde os primeiros ensaios realizados nesse campo. Explica, também, por que tal relevância mantém-se até hoje. Assim, não é um acaso que a ONU (Organização das Nações Unidas), em relatório divulgado em 2005 para o lançamento de uma estratégia global de combate à pobreza, tenha explicitado que esse combate constituía sua prioridade para aquele ano.15

De certa forma, essa decisão veio coroar uma preocupação que se vinha manifestando em vários organismos internacionais (a própria ONU, o BID —Banco Interamericano de Desenvolvimento— e o Banco Mundial, entre outros) já desde os anos 1990, como resultado dos nefastos impactos sociais das chamadas "políticas de ajuste estrutural" propostas com base no ideário neoliberal (Maranhão, 2006: 40-43; Almeida, 2006:passim; Behring e Boschetti, 2007:134-145; Ugá, 2004: 55 e 57-62): "Os programas sociais de combate à pobreza assumiram centralidade nos países que aplicaram as políticas de ajuste para compensar os seus efeitos sociais reconhecidamente nocivos" (Almeida, 2006: 105). É claro que as políticas sociais pertinentes propostas a partir de então não fugiram à regra de ser fortemente marcadas pela controvérsia, fato que, por sua vez, expressa visões de mundo e projetos societários diversos —ou, mesmo, conflitantes— entre si (Behring e Boschetti, 2007: 25 e 45).

 

A pobreza, os pobres e as políticas sociais

Embora a relevância do universo temático abordado no item anterior manifeste-se em todos os três âmbitos ali mencionados, foco minhas considerações, neste artigo, nas formas de tratamento dadas à pobreza e aos pobres pelos profissionais da Política Social. Ao fazê-lo, abordo não apenas o ser, mas, também, o dever ser. Penso que isso é indispensável, pois, ao falarmos em políticas sociais, tratamos de ações fundamentadas em escolhas baseadas nos valores assumidos, de forma explícita ou implícita, por quem trabalha nessa área, seja na formulação de tais políticas, seja em sua execução.

Podemos nos perguntar, então, sobre quais têm sido as questões principais que vêm norteando o debate brasileiro sobre as relações entre Política Social e pobreza. Segundo Cohn (1995: 2), "ao se discutir as políticas sociais na atual conjuntura brasileira, a questão da lógica do seu financiamento e da prestação de benefícios e serviços, e, neste caso, da sua produção, ocupa lugar central no debate atual". A autora, após mencionar o baixo grau de eficiência das políticas e programas sociais quanto a atingir os objetivos e os usuários previamente definidos, afirma que "entender sua lógica e buscar elementos que permitam imprimir-lhes outra racionalidade torna-se tarefa das mais urgentes para a construção de uma sociedade mais igualitária, vale dizer, mais democrática" (Cohn, 1995: 2; os itálicos são meus). Tais palavras, escritas há cerca de uma década, mantêm-se muito atuais.

O ponto central que discuto nos tópicos a seguir é: algumas questões cruciais para o combate à pobreza não têm sido levadas na devida conta, dificultando sua efetividade. Se é assim, não basta entender e expor a lógica das políticas sociais assim desenvolvidas: também é preciso procurar propiciar a elas uma outra racionalidade, como procuro demonstrar adiante.

Pois bem: quais são as questões que, usualmente, e em graus não-desprezíveis, têm sido negligenciadas quando se formulam e se colocam em prática políticas sociais voltadas ao enfrentamento da pobreza? Destaco as que se seguem. Quem são, de fato, os pobres? Como são vistos pelos não-pobres? Em que medida o olhar desses "outros" impacta a constituição de suas identidades! Por fim: qual a importância de tais tópicos para a prática do profissional da Política Social?

Abordo, em seguida, esse conjunto de questões. Mas, antes de fazê-lo, é importante enfatizar que, relativamente a tais questões, encontramos um grande silêncio na literatura que trata das políticas sociais voltadas ao combate à pobreza, quaisquer que sejam suas orientações teóricas e as visões de mundo mais amplas em que se fundamentem.

 

As representações sociais da pobreza e dos pobres e a constituição da identidade destes sujeitos; a importância da consideração desses aspectos para a formulação e a implementação de políticas sociais

Inicio com uma afirmação aparentemente banal minha argumentação relativa aos pontos que, há pouco, afirmei serem negligenciados com freqüência: as Ciências Sociais —quer num sentido mais restrito, quer considerando-se o conjunto mais amplo que inclui as Ciências Sociais aplicadas— tratam, de um lado, daquilo que, num primeiro momento, e de maneira grosseira e esquemática, poderíamos chamar "realidade propriamente dita" e, de outro lado, dos modos pelos quais as pessoas pensam essa mesma realidade.

O que estou chamando aqui de "realidade propriamente dita"? Ela se refere a como os indivíduos vivem, de fato, em sociedade; como trabalham; como se relacionam; como agem (no sentido mais amplo da palavra) sobre o mundo.

Trata-se de uma definição provisória, grosseira e esquemática por uma razão simples: nada do que os indivíduos fazem no âmbito da "realidade propriamente dita" pode acontecer sem que, ao mesmo tempo, pensem a respeito dos diversos campos da vida em sociedade —ou, dito de outro modo, sem que esses vários campos sejam subjetivados. Isso porque não vivemos num (ou diante de um) mundo "em estado bruto": necessariamente atribuímos sentido a todas aquelas esferas do viver em sociedade.16 Para poder conviver com elas, nós as representamos: produzimos representações sociais17 a seu respeito.

Por conseqüência, em termos minimamente rigorosos, o pensar também fazparte da realidade propriamente dita —esta última sendo entendida, agora, num sentido mais abrangente. Apesar de tudo isso, porém, a aproximação provisória, grosseira e esquemática que apresentei há pouco ajuda-nos a entender que, em termos analíticos —e, portanto, arbitrários—, temos dois grandes campos sobre os quais se debruçam as Ciências Sociais.

As representações que construímos acerca dos mais diversos campos daquilo que chamei arbitrariamente de "realidade propriamente dita" não têm um caráter passivo diante desta. Não são meros reflexos do real, que, uma vez constituídos, permanecessem apenas em nossas mentes. Pelo contrário: sendo uma "preparação para a ação" (Moscovici, 1978: 50), elas mantêm relações dialéticas com aquela realidade, assim contribuindo para sua construção social:

As representações sociais são saberes sociais construídos em relação a um objeto social, que elas também ajudam a formar. [...] [as] representações [...] se tornam, elas mesmas, constitutivas do objeto que originalmente as formou (Jovchelovitch, 2000: 32-3; os itálicos são meus).

Isso tudo é importante porque, ao tratarmos de modo específico da pobreza (e para sermos condizentes com a consideração —razoavelmente consensual no mundo acadêmico— segundo a qual ela é um fenômeno multifacetado),18 devemos não apenas tomá-la "enquanto fato", mas também levar em conta os modos pelos quais ela é pensada pelos pobres e pelos não-pobres. Apenas agindo assim poderemos nos aproximar de toda a complexidade do fenômeno em questão, ou seja, de seu caráter multifacetado. Inversamente, não considerando sua dimensão representacional, estaremos, de antemão, deixando de lado elementos fundamentais do complexo que o compõe.

Considerar aquela dimensão representacional também é fundamental porque se trata de algo tão marcado pela historicidade quanto o são as configurações "materiais" da pobreza e as características sociais de seus sujeitos: todos esse s elementos se modificam ao longo da história e segundo as circunstâncias sociais, variando no tempo e no espaço. Mais ainda: a mesma pobreza e os mesmos pobres podem ser representados de maneiras diferentes entre si, de acordo com o ser social daqueles que os representem. Por fim, vale dizer que diferentes representações da pobreza e dos pobres conduzem a atitudes e valores também variáveis em relação ao assunto.

Tudo isso nos remete a uma característica essencial das representações sociais, e cuja importância para este trabalho ficará clara adiante: elas expressam não apenas atributos do objeto representado (o campo da realidade sobre o qual se pensa), mas, também, características do sujeito que o representa (Moscovici, 1978: 27; Jodelet, 1989: 43; Sá, 1998: 24; Jovchelovitch, 2000: 121; Leite, 2002: 135-6).

Assim, podemos levantar as duas perguntas que se seguem. Por que o profissional da Política Social, especificamente, deve não apenas considerar a pobreza "enquanto fato", mas também levar em conta os modos pelos quais ela é representada? Por que lhe são importantes, de um modo particular, as representações da pobreza e dos pobres?

Existem dois conjuntos amplos e consideráveis de razões para tanto. Um deles relaciona-se a efeitos que as representações sociais dos pobres e da pobreza podem ter sobre os profissionais da Política Social. O outro liga-se aos impactos que essas mesmas representações têm sobre o processo ininterrupto de (re)construção da identidade dos indivíduos que vivenciam aquela condição social.

Tratemos de cada um desses dois conjuntos.

 

Efeitos que as representações sociais da pobreza e dos pobres podem ter sobre os profissionais da Política Social

Devido ao caráter constitutivo das representações sociais —uma representação é uma "preparação para a ação"—, as maneiras pelas quais os pobres e a pobreza são representados podem afetar a prática dos profissionais da Política Social em relação ao assunto, ainda que eles não tenham uma clara consciência disso.

A esse respeito, vale lembrar não apenas os modos pelos quais —na longa transição que vai do fim da escravidão à "constituição de uma ordem jurídico-política contratual" (Adorno, 1990: 13), no Brasil—, os pobres e a pobreza foram representados pelas classes dominantes e pelos governantes, mas, também, como foram tratados, em conseqüência disso. Naquele período histórico, e tal como vinha ocorrendo na Europa, também aqui os pobres passaram a ser vistos como um problema significativo: as classes dominantes e os governantes de então não apenas os temiam,19 mas também buscavam formas de intervir nesse campo. Isso levou, a partir do final do século XIX, a dois caminhos diferentes, mas complementares. Por um lado, colocou-se em prática uma gestão filantrópica da pobreza urbana e de seus sujeitos, a qual buscava "reformá-los" social e moralmente. Por outro lado, passou-se a considerar a questão social como caso de polícia (Adorno, 1990: passim; Valladares, 1991: 86 et seq.; Hahner, 1993: passim;Valladares,2000: passim). Essas intervenções pressupunham, obviamente, uma construção simbólica (uma representação) da condição social de pobreza e dos sujeitos que nela se encontravam.

Muita coisa mudou, desde então, mas não de modo pronunciado no que se refere ao temor aos pobres. Eis um sentimento que ainda se mantém vigoroso em parcelas da sociedade brasileira não-atingidas pela pobreza. Nesses meios, continua a não ser raro os pobres e os indigentes serem vistos como "perigosos", fato que, muitas vezes, leva até mesmo ao estabelecimento de um forte vínculo entre pobreza, violência e criminalidade (Telles, 1990: 37-9; Telles, 1992:passim, especialmente 101 et seq.; Telles, 1993: 13-5; Carvalho e Laniado, 1992: 26; Hahner, 1993: 134, 283, 296 e 317; Reis, 1999; Sarti, 2005: 45-6).20 Não me parece difícil inferir que tal forma de pensar pode impactar as políticas sociais, na atualidade —tanto sua formulação, quanto sua implementação.

Convém contemplar também outros importantes aspectos da dimensão representacional da pobreza no Brasil de hoje, os quais podem igualmente afetar a prática de formuladores e executores de políticas sociais. Em outras oportunidades (Leite, 2002, passim; Leite, 2005b: 365 et seq.), mostrei que, na sociedade brasileira atual, no âmbito do senso comum dos não-pobres, predomina uma "imagem em negativo" da pobreza. Isso significa que os pobres tendem a ser pensados não como são, de fato —isto é, em termos daquilo que, com Sarti (2005: 36), podemos chamar sua "positividade concreta": como (sobre)vivem, como trabalham, como buscam resolver seus problemas de moradia, como representam aspectos do mundo do qual fazem parte etc.—, mas em termos do que lhes falta (nos campos material e simbólico), do que não têm.21 Também são pensados, com freqüência, como pessoas em relação às quais se deve buscar estabelecer fronteiras ou das quais se deve distanciar. Os pobres tendem, ainda, a ser representados como não-sujeitos, isto é, como seres passivos que pouco (ou quase nada) atuam sobre o mundo.22 O quadro se completa da seguinte maneira: em consonância com uma imagem dos pobres que os toma como aqueles que nada têm, aqueles a quem tudo falta, aqueles que são carentes, passivos, desamparados, desprotegidos e impotentes diante do mundo, manifesta-se uma postura piedosa em relação a eles, que, então inferiorizados, merecem ajuda, auxílio, caridade, ao invés de direitos— postura essa que, por sua vez, reforça a "imagem em negativo" já mencionada, a consideração dos pobres como não-sujeitos e a busca do distanciamento e do estabelecimento de fronteiras em relação a eles.

Essas formas de pensar a pobreza e os pobres ligam-se de modo direto à relevância específica que a dimensão representacional desse universo temático tem para os profissionais da Política Social. Todos os conteúdos de representações mencionados no parágrafo anterior —o que elas "dizem" sobre o objeto a que se referem e de que modo o fazem— precisam ser cuidadosamente considerados pelos profissionais que atuam na área, pois podem estar presentes, ainda que de forma inconsciente, nas práticas que desenvolvem, quer como formuladores, quer como executores de políticas sociais.

 

As representações sociais da pobreza e dos pobres e seu impacto sobre os processos de constituição da identidade desses sujeitos

Há uma segunda ordem de motivos pelos quais as representações sociais dos pobres e da pobreza são importantes, de uma forma particular, para a atuação dos profissionais da Política Social. Trata-se de que tais representações têm impactos significativos sobre o processo ininterrupto de constituição da identidade daqueles sujeitos.

O processo contínuo de (re)construção de identidades23 não se faz "no vazio". Realiza-se sempre em circunstâncias histórico-sociais específicas. Sobre o assunto, afirma Mendes (2005: 505): "Os processos de identificação são sempre situacionais e históricos [...]". Devemos, pois, buscar o "lugar" em que o pobre se constitui enquanto tal. Carvalho e Laniado (1992: 28) mostram que "o pobre urbano se produz [o itálico é meu] a partir de vários campos constitutivos de sua condição social (cultural, psicológica, ideológica, histórica, etc.) e não somente pelas categorias econômicas que determinam sua pobreza". Observam, ainda, que "a pobreza constitui um espaço social de produção de identidades coletivas, de atores e de comportamentos" (Carvalho e Laniado, 1992: 25; o itálico é meu).

As identidades constituem-se não apenas numa situação, mas, também, no âmbito de relações sociais. Sarti (2005: 46 e 113) mostra a relevância de conceber-se em "termos relacionais"24 [o itálico é meu] o "processo de produção de identidades sociais", bem como a "importância do contraste para demarcar fronteiras sociais",25 as quais, por definição, "existem em relação a um 'outro', implicando necessariamente uma relação".

Desse modo, a produção da identidade do pobre é pensada como realizando-se a partir do próprio sujeito, que se coloca de determinada maneira em relação a um "outro". Portanto, para pensarmos a constituição de sua identidade (como acontece com qualquer outra categoria social), é preciso considerar, antes de tudo, as representações sociais que ele tem de si mesmo e de suas relações com aquele "outro".

Mas, a meu ver, para tomar de modo mais completo a construção de identidades, precisamos, ainda, levar em conta dois outros aspectos fundamentais.26

Um deles é o modo pelo qual aquele "outro" representa o sujeito em questão e, em função disso, a maneira pela qual se coloca em referência a ele, em termos de valores e atitudes.

Penso que a consideração desse aspecto é necessária para se contemplar toda e qualquer produção de identidade, mas que ela é particularmente importante quando tratamos de segmentos sociais subalternos: classes dominadas, pobres, indigentes, moradores de rua, mendigos etc. Isso acontece por dois motivos, pelo menos. De uma parte, o modo pelo qual as pessoas situadas nas posições hierarquicamente superiores de uma sociedade colocam-se em relação aos segmentos subalternos (seus valores e suas atitudes a respeito destes) tem impactos sobre as próprias condições materiais de vida dos integrantes de tais segmentos —condições que constituem um dos "campos" fundamentais de produção de suas identidades.27 De outra parte, é óbvio que a situação subalterna desses segmentos não se restringe ao campo econômico. Por isso, os modos de pensar, os valores e as atitudes dos "outros" em relação aos indivíduos dos segmentos sociais que estamos considerando tendem a ganhar uma dimensão maior na constituição de suas identidades do que ocorre no caso de indivíduos que não tenham uma posição subalterna na sociedade.

A esse respeito, Mendes (2005: 505) faz a seguinte consideração: "Importante é também a questão do poder e da desigualdade no processo identitário. A posição no espaço social, o capital simbólico de quem diz o quê, condiciona a construção, legitimação, apresentação e manutenção das identidades." [Os itálicos são meus.]28

Começamos, assim, a abordar um terceiro aspecto que interfere na constituição da identidade do pobre: trata-se de como o olhar do outro sobre o sujeito em questão é visto/representado por este. Mais uma vez, considero que, no caso daqueles que vivenciam situações de pobreza (e dos segmentos sociais subalternos, em geral), a representação desse olhar tem uma importância mais acentuada na constituição de suas identidades do que quando se trata de indivíduos situados em posições sociais mais elevadas. Há uma razão fundamental para isso. Aqui, estamos nos referindo a como indivíduos de posições sociais "inferiores" subjetivam o modo pelo qual são representados por indivíduos de posições sociais "superiores". Tratamos, portanto, de representações de representações que dizem respeito a circunstâncias nas quais podem estar envolvidos afetos vinculados a "questões delicadas" —situações de dominação, opressão, exploração, discriminação, ameaça, etc.:

A pobreza é um problema para quem a vive não apenas pelas difíceis condições materiais de sua existência, mas pela experiência subjetiva da opressão, permanente e estrutural, que marca sua existência, a cada ato, a cada palavra ouvida (Sarti, 2005: 12; os itálicos são meus).

A "aprendizagem da discriminação" (Jodelet, 2002: 65) deixa suas marcas na identidade dos sujeitos que a sofrem. Assim, crianças moradores de rua

[... ] rejeitam o direito aos pequenos prazeres oriundos da vida na rua, como jogar pinball, por exemplo. [...] É o trabalho que surge como atividade correta para eles, como se eles soubessem que, para livrar-se da imagem de vagabundos e pequenos bandidos, eles deveriam estar trabalhando na rua. [...] eles são errados, rejeitados, e, acima de tudo, eles aprendem a ler estes sinais no comportamento de outros.29 [...] A identidade possível destas crianças é a do ser errado e da ameaça (Jovchelovitch, 2000: 122-3; os itálicos são meus, à exceção da palavra "pinball").

Na mesma linha, Sarti (2005: 24) mostra que, entre os pobres urbanos que estudou, "é importante, mais do que em outros grupos sociais [o itálico é meu], que a casa esteja em ordem", pois, sendo vista como "extensão da pessoa", é um valor por meio do qual se demonstra "respeitabilidade". A mesma autora (2005: 90) observa também que, entre os pobres, o trabalho ganha um significado bem específico: é um dos "instrumentos fundamentais" de "afirmação de si em face do olhar dos outros" [o itálico é meu].

Aludindo a uma situação —o racismo— que não é de pobreza, mas que tem semelhanças com ela inclusive no que diz respeito ao modo pelo qual o olhar do "outro" é subjetivado, Jodelet (2002: 65-6) menciona a "experiência de uma consciência desdobrada e de um não-ser, 'continuamente se fazendo, sempre ameaçado e sempre se recolocando em questão' [...]".30

Sentimentos ligados a situações de dominação, opressão, exploração, discriminação e ameaça, bem como o contínuo recolocar-se em questão devido ao olhar do outro, podem explicar algo constatado entre as crianças de rua ouvidas por Jovchelovitch (2000): seu brincar, quando acontece (isso se dá apenas "às vezes"), é "acompanhado por culpa" (p. 123). Podem explicar, também, algo que possivelmente já foi presenciado por muitos de nós: "os pobres, com freqüência, falam baixo, quase se desculpando pela própria existência, quando se lhes pergunta sobre nome, endereço etc., em locais públicos" (Leite, 2005a: 6).

Resumamos o que acabo de afirmar sobre os impactos que as representações sociais da pobreza e dos pobres —por parte destes e por parte de outros— têm sobre o processo de constituição da identidade nesse âmbito social particular: a identidade (re)constrói-se não apenas:

a) a partir do próprio sujeito, que se coloca de determinado modo em relação a um "outro" (um não-pobre),

mas, também —e de maneira mais acentuada do que ocorre nos casos de outros segmentos sociais—,

b) a partir do modo como esse "outro" representa o sujeito considerado e, portanto, coloca-se relativamente a ele;

c) a partir de como o olhar do outro sobre o sujeito em questão é representado por este.

Se tudo isso diz algo sobre a (re)constituição da identidade dos pobres, penso que o conteúdo das considerações precedentes não pode ser deixado de lado pelos profissionais da Política Social —caso queiram, de fato, aproximar-se o máximo possível, em termos de conhecimento, da positividade concreta daqueles sujeitos e de sua condição social, assim municiando-se para ter uma intervenção mais eficaz sobre a realidade.

 

Políticas sociais e valores: o ser e o dever ser

A pobreza hoje disseminada pelos quatro cantos do mundo não resulta, na grande maioria dos casos, de uma insuficiente produção de riqueza. Ela é devida, acima de tudo, à forma predominante de organização social, geradora de desigualdades gritantes, que se acentuam rápida e dramaticamente.

Assim, atenuar as dimensões da pobreza e, mais ainda, extingui-la pressupõem profundas transformações nos determinantes do modo pelo qual se distribui —ou melhor, se concentra— a riqueza gerada socialmente. Por isso, poder-se-ia perguntar: por que é importante, para o profissional da Política Social, preocupar-se com aspectos subjetivos daquela condição social e da realidade dos próprios pobres, como o são as representações sociais correspondentes e os processos de constituição da identidade de tais sujeitos?

Acontece que, ao tratarmos de políticas sociais (quaisquer que sejam elas), devemos nos referir tanto ao ser quanto ao dever ser, pois, nessa área, estão irremediavelmente presentes valores assumidos pelos profissionais que aí atuam. Tais valores —dos quais os profissionais podem ou não estar conscientes— orientam escolhas acerca de diversos assuntos. Dentre estes, podemos citar: prioridades a serem estabelecidas, formas de intervenção, delimitação das populações que serão atendidas, modos de relacionamento com estas, benefícios e serviços prestados, dimensão e distribuição dos dispêndios implicados, forma de financiamento desses gastos e —algo que nem sempre recebe a devida atenção— os objetivos fundamentais que se almeja alcançar por meio das políticas sociais desenhadas e executadas.

Desse modo, a cada "grande" ou "pequena" ação a ser desenvolvida, os profissionais em questão não podem se abster de fazer opções acerca do tratamento que deve ser dado àquela área que aqui nos interessa mais diretamente —ainda que essas opções se façam (é claro) dentro das limitações institucionais em que eles se encontram. Devem, igualmente, perguntar-se sobre os objetivos últimos de sua atuação.

Se, de acordo com os valores que esses profissionais trazem consigo, os pobres são (ou tendem a ser) vistos como não-sujeitos e sua realidade é pensada, acima de tudo, com base naquilo que não têm, então tais profissionais estarão caminhando a passos largos para o assistencialismo. Buscarão ajudar aqueles que são vistos como fracos e impotentes diante da realidade. Procurarão propiciar-lhes auxílio, mas não formular estratégias e desenvolver ações práticas que possam contribuir para que conquistem direitos.

Se, no entanto, seus valores são compatíveis com o protagonismo dos usuários das políticas sociais, aqueles profissionais têm uma dupla e fundamental necessidade.

Por um lado, devem procurar conhecer as representações sociais da pobreza e de seus sujeitos, existentes entre estes e entre os não-pobres. Isso, em parte, porque elas podem estar implícitas nas ações que eles próprios, profissionais, desenvolvem e, em parte, porque tais representações explicam, em grande medida, como se (re)constrói a identidade dos usuários das políticas sociais aqui consideradas. Se não forem contemplados tais aspectos subjetivos do universo temático aqui abordado (as representações sociais correspondentes e os modos pelos quais se realiza a constituição da identidade dos pobres), não apenas se nega, na prática, o tão propalado caráter multifacetado da pobreza. Mais do que isso, tais profissionais ficam impedidos de se aproximar da positividade concreta da pobreza e dos pobres e, portanto, de um conhecimento mais acurado de como estes são, de fato. Não me parece difícil inferir que isso cria obstáculos à efetividade das ações planejadas e implementadas, pois —abstraídos outros fatores—, há uma correlação positiva entre a eficácia das políticas sociais e o grau de conhecimento das populações usuárias.

Caso seus valores sejam condizentes com o protagonismo dos usuários das políticas sociais, o profissional da área tem, ainda, uma segunda necessidade, igualmente importante. Precisa superar, na prática, uma representação presente de forma muito acentuada no senso comum dos não-pobres, passando a considerar as pessoas que vivem na condição de pobreza como sujeitos capazes, sim, de intervir no mundo em que vivem —mesmo que não o façam da forma que muitas vezes se lhes propõe/impõe com base num "olhar de fora", que desconhece a positividade concreta da situação e das pessoas nela envolvidas. Sobre isso, podemos fazer uma pergunta banal: os pobres que sobrevivem poderiam sobreviver, ainda que a duríssimas penas, se não fossem sujeitos atuantes, que improvisam com criatividade, a todo o momento, para atender às necessidades mais elementares com as quais se defrontam eles próprios e quem deles depende?

Se o profissional da Política Social não levar em conta a dupla e fundamental necessidade a que me referi, os pobres tenderão a continuar sendo considerados não como sujeitos de direitos (pois, muitas vezes, sequer são vistos como sujeitos num sentido mais amplo da palavra), mas, sim, como objetos passivos das políticas sociais, e estas, por conseqüência, tenderão sempre a se aproximar do assistencialismo.

Podemos, agora, voltar à pergunta formulada há pouco: o combate resoluto à pobreza —cujo sucesso tem como condição essencial uma alteração profunda nos fatores que determinam o modo pelo qual se distribui a riqueza na sociedade— depende em algum grau de políticas que levem em conta aspectos subjetivos daquela condição social, nos termos apresentados anteriormente?

Essa pergunta nos remete a um fato inarredável: a substância criadora do devir é a ação humana sobre a realidade. Transformações em direção a uma sociabilidade mais igualitária, mais solidária e mais democrática pressupõem ações com vistas a construí-la. Não bastam as "condições objetivas". É indispensável que os sujeitos implicados subjetivem a realidade de uma forma tal, que queiram atuar sobre ela tendo em mente aquele intuito. E uma condição básica para haver envolvimento pessoal com qualquer movimento social é a "mobilidade individual baseada num sentimento de moralidade e (in)justiça" (Frank e Fuentes, 1989: 19; os itálicos são meus).

Se é assim, coloca-se outra questão: cabe apenas aos não-pobres "conscientizados" lutar pela redução acentuada das dimensões da pobreza ou por sua extinção? Penso que não. A meu ver, é fundamental que os "hoje pobres" não apenas sejam, objetivamente, os interessados de modo mais direto no alcance daquela meta. Também é indispensável que, tornando-se gradativamente sujeitos de direitos —aí incluído o direito de lutar por direitos—, envolvam-se em ações coletivas com vistas à construção de uma nova sociabilidade, mais igualitária, mais solidária e mais democrática. Seu envolvimento se faz necessário porque tais ações coletivas devem contar com o maior número possível de pessoas para as quais o combate conseqüente à pobreza —e não a simples "gestão" dessa condição social31— resulte de um "sentimento de moralidade e (in)justiça" que leve cada uma daquelas pessoas à efetiva "mobilidade individual".

Aquele envolvimento por parte dos "hoje pobres" pressupõe, por sua vez, sua gradativa constituição como cidadãos, mesmo se aqui entendermos o termo cidadania no sentido (um tanto quanto limitado, a meu ver) que lhe é atribuído por Marshall (1976: 62 e 76), qual seja: um status de "igualdade humana básica da participação" concedido "àqueles que são membros integrais de uma comunidade", ainda que tal status não seja incompatível com as "desigualdades das classes sociais".

Parece-me claro que, para a consecução daquela "igualdade humana básica da participação", podem contribuir decisivamente políticas sociais que, partindo de um conhecimento acurado da positividade concreta de seus usuários (e da realidade em que eles se encontram), favoreçam seu protagonismo. Para tanto, é indispensável que os formuladores e os executores dessas políticas lancem novos olhares para o combate à pobreza e contemplem aspectos usualmente negligenciados dessa condição social, assim contribuindo para que os pobres, por sua vez, assumam novos lugares nesse mesmo combate. Afinal de contas, podemos nos perguntar: a "igualdade humana básica da participação", no sentido mencionado há pouco, não é um dos meios fundamentais para que, por meio da atuação sobre a realidade social, possam ser minoradas ou, mesmo, superadas as intensas e crescentes desigualdades postas hoje pelo capitalismo globalizado? Não é ela também, por conseqüência disto, um instrumento valioso para que se possa construir uma nova concepção de cidadania, mais abrangente do que aquela referida há pouco e que a supere dialeticamente —uma cidadania pensada como algo incompatível com a desigualdade das classes sociais?

 

Considerações finais

Com muita propriedade, Behring e Boschetti (2007: 26) alertam para os riscos presentes em "perspectivas prescritivas", nas quais se discute "não a política social como ela é [...], mas como ela deve ser, sobrepondo-se o projeto do pesquisador à análise da realidade".

Este trabalho, como já indica seu subtítulo, contém uma dimensão propositiva, ao contemplar não apenas o ser, mas, também, o dever ser. Espero ter demonstrado que, no âmbito da Política Social, as ações desenvolvidas resultam, em larga medida, de escolhas, baseadas, por sua vez, em valores assumidos (de forma consciente ou não) pelos profissionais que aí atuam. Assim, podem-se desenhar e implementar ações de enfrentamento da pobreza que impliquem, na verdade, a gestão e o controle dessa condição social (e dos próprios pobres), mas não a busca de sua superação, dada a suposta inevitabilidade da forma hoje predominante de organização social. Mas também podem-se formular e colocar em prática modos de combater mais resolutamente a pobreza, que apontem a necessidade de transformações mais amplas na estrutura social, com vistas a alcançar o objetivo almejado. Os pobres podem, igualmente, ser vistos como sujeitos das ações a serem colocadas em prática, valorizando-se seu protagonismo, ou podem ser vistos, ao menos tendencialmente, como não-sujeitos, optando-se, então, por políticas sociais que busquem oferecer-lhes ajuda, auxílio, não se rompendo, então, com práticas assistencialistas nem se tendo como perspectiva a conquista de direitos.

No entanto, se é verdade que os valores estão presentes, de forma inelutável, nas ações dos profissionais da Política Social, estas devem partir de análises acuradas da realidade social. Espero ter demonstrado que estão fundamentadas, de maneira apropriada, as proposições aqui formuladas, no que tange à necessidade de que os profissionais da Política Social lancem novos olhares para a realidade da pobreza e dos pobres, assim contribuindo para que estes venham a ocupar novos lugares no combate resoluto àquela condição social, integrem-se a ações práticas que impactem o modo atualmente predominante de distribuição da riqueza gerada socialmente —que é fator fundamental da "nova pobreza globalizada" (Santos, 2005b: 35)— e, assim, constituam-se em sujeitos de direitos, radicalizando a democracia e a cidadania.

Ao mesmo tempo, vale dizer que outros estudos (Marcins, 2002; Almeida, 2006; Carneiro, 2005; Ugá, 2004; Sousa, 2001) —ainda que seguindo percursos diversos e enfatizando aspectos da realidade distintos daqueles aqui considerados— corroboram um dos alicerces principais deste trabalho, demonstrando que as ações que se desenvolvem relativamente à pobreza e aos pobres trazem, subjacentes, determinadas formas de representar aquela condição social e seus sujeitos, bem como concepções mais amplas da realidade social inclusiva.

Se, de fato, este trabalho não se situa numa perspectiva perigosamente prescritiva, por fundamentar-se numa análise apropriada da realidade, ele terá cumprido seu papel se puder contribuir para um repensar teórico das ações voltadas ao combate à pobreza e para que, na prática, os pobres possam vir a integrar-se de forma crescente nas discussões acerca das políticas sociais que lhes dizem respeito, pois, como afirmam Behring e Boschetti (2007: 190):

Debater e lutar pela ampliação dos direitos e das políticas sociais é fundamental porque engendra a disputa pelo fundo público, envolve necessidades básicas de milhões de pessoas com impacto real nas suas condições de vida e trabalho e implica um processo de discussão coletiva, socialização da política e organização dos sujeitos políticos.

 

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Notas

1 A globalização é "um vasto e intenso campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemônicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outro [...]" (Santos, 2005b: 27; o itálico é meu).

2 "O número de desempregados no mundo cresceu para um patamar recorde de 191,8 milhões, no final de 2005", de acordo com dados de um relatório anual da OMT (Organização Mundial do Trabalho) divulgado no início de 2006. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/01/060124_desepmtep.shtml> [24 de janeiro 2006].

3 "No domínio da globalização social, o consenso neoliberal é o de que o crescimento e a estabilidade econômicos assentam na redução dos custos salariais" (Santos, 2005b: 34).

4 "Número de milionários cresce 6% no 1o ano do governo Lula, aponta pesquisa". Disponível em: <http://www.folha.uol.com.br> [15 de junho de 2004].

5 Sobre as conceituações de pobreza absoluta e pobreza relativa, bem como acerca da diversidade de critérios para determiná-las, consultar Leite (2002: 41-42).

6 A depender do FMI (Fundo Monetário Internacional), essa situação não se reverterá tão cedo. Eis o que afirmou sua vice-diretora-gerente: "[... ] a solução [para a redução da pobreza] é um crescimento mais rápido —não uma mudança de ênfase em direção a mais redistribuição. A melhor maneira de reduzir a pobreza é fazer o bolo crescer, e não tentar dividi-lo de uma maneira diferente'" (Krueger, Anne, "Letting the future in: India's continuing reform agenda". Keynote speech to Stanford India Conference. 04 jun. 2006. Apud Woodward e Simms, 2006: 2; o itálico é meu). A tradução dessa passagem é minha, como as dos outros trechos de publicações em línguas estrangeiras inseridos como citações neste trabalho.

7 Dados dessa ordem levam os autores (Woodward e Simms, 2006: ii) à seguinte conclusão: "O crescimento econômico global [por si só] é um meio extremamente ineficiente para se conseguir a redução da pobreza, e está se tornando ainda menos eficaz".

8 "A diferença de rendimento entre o quinto mais rico [dos países do mundo] e o quinto mais pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para 1 e, em 1997, de 74 para 1" (Santos, 2005b: 34).

9 "Exaustão de modelo leva a êxito da esquerda", Folha de São Paulo, São Paulo, 25 dez. 2005. (Entrevista com a economista e professora Lena Lavinas.)

10 "Na Europa igualitária, pobres e imigrantes vivem em cortiços". International Herald Tribune, 18 out. 2005. <http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2005/10/18/ult2680u192.jhtm> [18 de outubro de 2005].

11 "Na Europa igualitária, pobres e imigrantes vivem em cortiços". Cf. nota 12 deste artigo.

12 "As coisas, as gentes e as idéias movem-se em múltiplas direções, desenraízam-se, tornam-se volantes ou simplesmente desterritorializam-se" (Ianni, 1998).

13 Com essa expressão, refiro-me a que muitas características que vêm sendo atribuídas, há décadas, ao "Terceiro Mundo" manifestam-se também no interior de várias das sociedades mais ricas do planeta. Vale dizer que ocorre, igualmente, o contrário: em diversas sociedades da periferia do capitalismo mundial, encontram-se não apenas as formas mais acerbas da pobreza, mas, também, padrões de vida extremamente elevados, restritos a pequenas parcelas de suas populações.

14 Trata-se de medidas que buscam "restaurar laços que não obedecem nem a uma lógica estritamente econômica nem a uma jurisdição estritamente política", constituindo-se, pois, "como um conjunto de práticas que se desenvolverão a partir do século XIX para atenuar o hiato entre a ordem econômica e a ordem política" (Castel, 1998: 31 e 142) — uma lacuna que não é preenchida pela preponderância do mercado e da representação formalmente democrática.

15 "Pobreza causa um tsunami a cada 5 dias, diz ONU". Disponível em: <http://noticias.uol.com.br> [18 de janeiro de 2005].

16 A realidade social "não está objetivamente dada, mas é mediada pelo significado que lhe atribuem os atores sociais" (Sarti, 2005: 10; o itálico é meu). Jovchelovitch (2000: 17), tratando da esfera pública, em particular, levanta questões que, com as devidas adaptações, seriam igualmente válidas para os mais diversos campos da vida em sociedade: "Como, em meio à vida cotidiana, sujeitos sociais apropriam a vida pública e a transformam em uma realidade sua? Como eles a explicam? De que forma eles afazem significativa e quais são os significados que daí emergem?" [Os itálicos são meus.]

17 Trabalho, aqui, com o conceito de representação social tal como se faz presente na teoria cuja formulação original coube a Moscovici (1978). É adequada, para meus propósitos, a caracterização da representação social apresentada por Jodelet (1989: 36): "E uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e compartilhada, com um objetivo prático e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente designada como 'saber do senso comum' ou, ainda, 'saber ingênuo', 'natural', essa forma de conhecimento distingue-se, entre outras, do conhecimento científico".

18 Dentre os inúmeros trabalhos que tratam desse assunto, podem ser consultados: Troyanno et al. (1990); Telles (1992); Paugam (1994); CEPIA/Fórum da Sociedade Civil nas Américas (1999); Leite (2002: 32-6).

19 Em 1916, num texto oficial, Washington Luís, então prefeito de São Paulo, referia-se ao que considerava a "vasa da cidade, [... ] composta de negros vagabundos, negras edemaciadas pela embriaguês habitual, de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis de vencidos de todas as nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos" (Apud Paoli, 1989: 46; o itálico é meu).

20 Telles (1992: passim) usa a expressão "criminalização da pobreza" para caracterizar inúmeras situações enfrentadas no dia-a-dia pelos pobres na contemporaneidade brasileira, inclusive — mas não apenas — diante da força policial.

21 Essa representação dos pobres —construída mais com base naquilo que lhes falta do que a partir daquilo que são— parece ser tão disseminada nos segmentos sociais que não vivenciam situações de pobreza, que deixa seus reflexos até mesmo na literatura sociológica pertinente: "Na visão sociológica [brasileira] sobre os pobres, sobretudo a partir dos anos [19]60, prevaleceu esta tendência a defini-los por uma negatividade, como o avesso do que deveria ser. [...] Nesta perspectiva, o resultado acaba sendo a desatenção para a vida social e simbólica dos pobres no que ela representa como positividade concreta, a partir da qual se define o horizonte de sua atuação no mundo social e a possibilidade de transposição desta atuação para o plano propriamente político" (Sarti, 2005: 36; o itálico é meu).

22 Também nesse campo, parece-me que a academia imita o pensamento cotidiano, pois, com freqüência, nos estudos sobre pobreza, os pobres parecem quase não existir e, por isso, não são merecedores de expressar-se: "Quando se trata de investigar realidades pobres e miseráveis, os sujeitos destas realidades simplesmente não estão lá. Eles desaparecem em meio aos índices de criminalidade, de mortalidade infantil, de pobreza absoluta e fome. É verdade que existem interpretações várias sobre suas vidas e sobre as razões de sua situação. Mas a sua voz, sua experiência e suas narrativas são muito menos freqüentes" (Jovchelovitch, 2000: 112).

23 As identidades são "construções relativamente estáveis num processo contínuo de atividade social" (Mendes, 2005: 504; o itálico é meu).

24 "[...] a identidade é socialmente distribuída, construída e reconstruída nas interações sociais" (Mendes, 2005: 504).

25 De acordo com Mendes (2005: 305), as identidades são "baseadas [...] na diferenciação". "A oposição entre ricos e pobres é um dos eixos fundamentais em torno dos quais [os pobres] constroem sua identidade social" (Sarti, 2000: 11).

26 Discutir, aqui, três aspectos de suma importância para a constituição da identidade do pobre não significa, de forma alguma, propor uma suposta listagem exaustiva dos determinantes da produção de identidades.

27 Basta um exemplo para esclarecer essa idéia. O desprezo pelos pobres e o temor a eles tendem a tornar-lhes ainda mais difícil a consecução de um emprego, num país em que obter um posto de trabalho "normalmente" já é um tanto quanto difícil, quer por razões estruturais, quer por motivos de ordem conjuntural.

28 Ainda segundo Mendes (2005: 534), é preciso "expor e explicitar [...] que elementos históricos, culturais, políticos são mobilizados para dominar, legitimar, emudecer ou exaltar" [o itálico é meu].

29 "Eles têm nojo da nossa cara!", disse uma das crianças ouvidas nesse trabalho (Jovchelovitch, 2000: 123).

30 A autora faz, aí, uma citação de Chronique des années égarés, de Serge Moscovici, sobre o anti-semitismo. Há tradução dessa obra para o Português: Crônica dos anos errantes, Rio de Janeiro: Mauad, 2005.

31 Santos (2005: 35) afirma que, de acordo com o "consenso neoliberal", "o critério de inclusão deixa de ser o direito para passar a ser a solvência. Os pobres são os insolventes (o que inclui os consumidores que ultrapassam os limites do sobreendividamento)." [Os grifos são meus.] O que é possível fazer a esse respeito, então, segundo o consenso neoliberal? O mesmo Santos (2005: 35) nos oferece a resposta: "[...] de preferência, medidas compensatórias que minorem, mas não eliminem a exclusão, já que esta é um efeito inevitável (e, por isso, justificado) do desenvolvimento assente no crescimento econômico e na competitividade a [sic] nível global" [os itálicos são meus].

 

Información sobre el autor

Izildo Corrêa Leite. Doctor en Sociología. Se desempeña en la Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil) (Departamiento de Ciencias Sociales y Programa de Posgrado em Política Social). Línea de investigación: políticas sociales, subjetividad y movimientos sociales. Publicaciones recientes: "Caminhos entrelaçados: pobreza, questão social, políticas sociais e Sociologia", en Manfroi, Vania Maria e Mendonça, Luiz Jorge V. P. [eds.], Política social, trabalho e subjetividade, Vitória, Brasil (2008); "Cidadanias desiguais: os pobres e os não-pobres, cidadania passiva e cidadania protagonista", en Encontro Nacional De Política Social, 3, 2008, Vitória, Brasil (2008); Trabalhos apresentados, Vitória: UFES (2008).

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