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Convergencia

versión On-line ISSN 2448-5799versión impresa ISSN 1405-1435

Convergencia vol.13 no.42 Toluca sep./dic. 2006

 

Pensamiento

 

Articulações entre o enfoque CTS e a pedagogia de Paulo Freire como base para o ensino de ciências

 

Tatiana Galieta Nascimento e Irlan von Linsingen

 

Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Correo electrónico: tatianagn@ced.ufsc.br; linsingen@emc.ufsc.br

 

Envío a dictamen: 17 de agosto de 2006
Aprobación: 11 de octubre de 2006

 

Resumen

En este artículo se presentan unas relaciones teóricas entre el enfoque CTS y la filosofía educacional de Paulo Freire. Se explotan tres puntos de convergencia que por supuesto no agotan las posibilidades de articulación entre estas frentes pedagógicas y que no se quedan cerradas en sí mismas sino que dialogan entre sí. Son ellos: (i) el abordaje temática y la selección de los contenidos y materiales didácticos; (ii) la perspectiva interdisciplinar del trabajo pedagógico y el papel de la formación del profesorado; (iii) el papel del educador en el proceso de la enseñanza y aprendizaje, y en la formación para el ejercicio de la ciudadanía. Tenemos en cuenta que la articulación de estas proposiciones educacionales es una ganancia para los dos: para el enfoque CTS por conferirle una base educacional sólida y coherente (no siempre explícita en el enfoque CTS) y, a la vez, para la pedagogía y método Paulo Freire (y sus desdoblamientos en la enseñanza de las ciencias) por hacer oportuno el abordaje de temas actuales de dimensión social, política y económica, en particular en el ámbito de la enseñanza de la ciencia y la tecnología.

Palabras clave: CTS, educación progresista de Paulo Freire, enseñanza de las ciencias, educación científico-tecnológica, ciudadanía.

 

Abstract

In this paper we present the Science, Technology and Society (STS) approach and the Paulo Freire's philosophy of education and their relations hips. We explore three points of convergence without necessarily to exhaust the possibilities of articulation between these pedagogical theories. These points are not handling in an isolated way since they certainly have connections and dialogue with each other. They are: (i) the thematical approach and the selection of didactical material; (ii) the interdisciplinary perspective of the pedagogical work and its role in the teacher formation; (iii) the role of the teacher in the process of teach and learning and in the formation of citizens. We understand that this proposal of articulation benefits both: to the STS approach is provided a solid and coherent educational basis — some that not always is present in their proposals — and on the other hand to the Freire's method (and its applications to the science teaching) by creating opportunity of discuss topical themes with social, politics and economics dimension, especially in the context of science and technology education.

Key works: STS, Freire's progressive education, science education, scientific-tecnological education, citizenship.

 

1. Introdução

Oensino de ciências na escola vem assumindo historicamente uma perspectiva internalista na medida em que super valoriza uma concepção de ciência de caráter neutro, o "método científico" empregado pelas ciências da natureza, os conteúdos específicos de cada disciplina e o papel do cientista como produtor isolado de conhecimentos sempre benéficos para a humanidade. Este tipo de ensino não costuma contemplar temas da atualidade, desconsidera acontecimentos presentes na sociedade e aparenta não possuir muita utilidade social. Algumas propostas alternativas ao ensino propedêutico e canónico das ciências vêm despontando no cenário das pesquisas em educação científica propondo diferentes formas de abordagem e seleção de conteúdos a serem tratados nas aulas de ciências.

Algumas dessas propostas encontram-se associadas a concepções progressistas de educação as quais colocam no centro do debate educacional a formulação de propostas pedagógicas que visam à construção da cidadania e ao exercício de princípios de justiça social almejando a transformação da sociedade. Teixeira, defensor de uma dessas concepções de educação —a pedagogia histórico-crítica—, aponta as críticas que a esquerda educacional vem sofrendo pelo fato de não ter conseguido ainda "articular convincentemente um movimento orgânico que se mostre como real opção na construção de uma escola cidadã" (Teixeira, 2003a: 177).

Este tipo de crítica poderia favorecer a disseminação de uma atitude pessimista, ent re os educadores, quanto a possibilidades concretas de transformação social que certamente requer a ajuda da educação escolarizada. Porém, acreditamos que ela deva ser encarada como um desafio àqueles que vêm resistindo ao tipo de globalização que se propaga e à política de mercado que acabou por invadir nossas escolas e universidades. Pensamos que é dever de todos os que se encontram envolvidos com alguma instância da educação formal e, mais especificamente, do ensino de ciências e tecnologia, buscar alternativas dentro e fora das escolas para a superação dessa distorção histórica.

Não é pretensão deste artigo apresentar uma única resposta a essa questão, mas sim trazer elementos para se pensar o papel do ensino de ciências em uma formação ampla do educando. É nesse sentido que são discutidas algumas relações teóricas entre a abordagem educacional CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) e a filosofia educacional progressista de Paulo Freire. São explorados três pontos de convergência que certamente não esgotam as possibilidades de articulação enlre essas frentes pedagógicas e que tampouco se encontram estanques já que certamente elas dialogam entre si. São eles: (i) a abordagem temática e a seleção de conteúdos e materiais didáticos; (ii) a perspectiva interdisciplinar do trabalho pedagógico e o papel da formação de professores; (iii) o papel do educador no processo de ensino e aprendizagem e na formação para o exercício da cidadania.

Entendemos que a articulação de tais propostas educacionais seja um ganho para ambas: para o enfoque CTS por lhe proporcionar uma base educacional sólida e coerente (algo nem sempre explicitado nas abordagens CTS) e, por outro lado, para a pedagogia e método freiriano (e seus desdobramentos no ensino de ciências) por oportunizar a abordagem de temas sempre atuais de dimensão social, política e económica, particularmente no âmbito do ensino de ciências e tecnologia.

A seguir, são tecidos comentários acerca dos principais objetivos do movimento CTS e, em seguida, apresentamos os princípios e o método freiriano de educação. Buscamos, ainda, traçar os principais pontos de convergência entre as propostas do enfoque educacional CTS e as idéias de Paulo Freire.

Sem esquecer que a natureza do assunto aqui abordado é de caráter complexo e eminentemente interdisciplinar, e que o esforço de ação transformadora proposto permeia todos os âmbitos da formação, este artigo concentra-se na exploração da convergência entre dois enfoques educacionais orientados para o ensino de ciências para o nível de formação médio. Apostamos que a efetividade das propostas educacionais transformadoras CTS poderá ser significativamente ampliada se tratada de forma integrada e coerente em todos os níveis de formação. Aceitamos que existem diferenças importantes ent re os diferentes níveis de formação e entre as especialidades, mas entendemos que, consideradas as especificidades em cada situação, é possível encontrar neste trabalho subsídios para a estruturação de programas disciplinares nos diversos níveis e modalidades de ensino.

 

2. Bases do enfoque educacional CTS1

É amplamente aceito que os estudos CTS, ou estudos sociais da ciência e da tecnologia, começam a tomar um novo e importante rumo a partir de meados de 1960 e início dos anos 1970, como resposta ao crescimento do sentimento generalizado de que o desenvolvimento científico e tecnológico não possuía uma relação linear com o bem-estar social, como se tinha feito crer desde o século 19. O sonho de que o avanço científico e tecnológico geraria a redenção dos males da humanidade estava chegando ao fim, por contada tomada de consciência dos acontecimentos sociais e ambientais associados a tais atividades. Tanto na América do Norte quanto na Europa, os estudos CTS surgem como uma reconsideração crítica do papel da ciência e da tecnologia na sociedade, embora com orientações distintas (Mitcham, 1990).

Desde seu início, os estudos e programas CTS seguiram três grandes direções que se complementam: no campo da pesquisa, como alternativa à reflexão acadêmica tradicional sobre a ciência e a tecnologia, promovendo uma nova visão não-essencialista e socialmente contextualizada da atividade científica; no campo das políticas públicas, defendendo a regulação social da ciência e da tecnologia, promovendo a criação de mecanismos democráticos facilitadores da abertura dos processos de tomada de decisão sobre questões de políticas científico-tecnológicas; e, no campo da educação, promovendo a introdução de programas e disciplinas CTS no ensino médio e universitário, referidos à nova imagem da ciência e da tecnologia, que já se estende por diversos países (na Europa e na América Latina, e nos EUA) (Bazzo, von Linsingen e Pereira, 2003).

Essas três direções reúnem tradições CTS bastante diferentes —norte-americana e de países europeus—, e são conectadas pelo silogismo CTS baseado em três premissas. A tradição européia, centrada na pesquisa acadêmica dos antecedentes sociais da mudança científico-tecnológica, trata o desenvolvimento científico e tecnológico como um processo conformado por fatores culturais, políticos e económicos, além de epistêmicos. A segunda considera a mudança científico-tecnológica como um fator determinante principal que contribui para moldar nossas formas de vida e de ordenamento institucional, sendo assunto público de primeira grandeza. Reúne os resultados da tradição norte-americana, mais pragmática, que se preocupa mais com as conseqüências sociais e ambientais da mudança científico-tecnológica e com os problemas éticos e reguladores suscitados por tais conseqüências. A terceira premissa é a de que todos compartilham um compromisso democrático básico.

A natureza valorativa desta última premissa justifica a conclusão de que, para tanto, "deveríamos promover a avaliação e o controle social do desenvolvimento científico-tecnológico, o que significa construir as bases educativas para a participação social formada, assim como criar mecanismos institucionais para tornar possível tal participação" (González García, Cerezo e Luján, 1996: 227 — grifo nosso).

Pass ados mais de quarenta anos do início do moviment o de "desencantamento"2 científico-tecnológico, a lista de problemas atribuídos à ciência e à tecnologia parece crescer mais que suas inegáveis benesses, contribuindo para isso tanto a academia quanto a mídia, o que concorre para o acirramento das contradições da percepção pública da ciência e da tecnologia.

Entretanto, a forma tradicional de entendimento conceitual da ciência e da tecnologia como atividades autónomas, neutras e benfeitoras da humanidade, cujas raízes estão firmemente fincadas no século 19, continua a ser utilizada na academia para legitimar suas atividades. Para González García, Cerezo e Luján, "é esta concepção tradicional, assumida e promovida pelos próprios cientistas e tecnólogos, a que em nossos dias continua sendo usada para legitimar formas tecnocráticas de governo e continua orientando o projeto curricuCar em todos os níveis de ensino" (González García, Cerezo e Luján, 1996: 26 — grifo nosso).

A concepção clássica das relações entre ciência, tecnologia, sociedade3 emerge com notável freqüência no mundo acadêmico e confere sustentação a muitos dos discursos que se assentam em argumentação técnica, esta considerada essencialmente neutra. Essa forma de compreender tais relações estaria associada à imagem da tecnologia como "braço armado" da ciência pura, ou seja, a tecnologia seria reduzida à aplicação da ciência, ou a tecnologia seria a aplicação da ciência à construção de artefatos, ou apenas identificada com os artefatos.

A vinculação unívoca da ciência à tecnologia sugerida pelo modelo linear estabelece também uma "oportuna" comunhão da tecnologia com os preceitos clássicos de neutralidade e autonomia imputados à atividade científica, preceitos estes que também se manifestam nos atos pedagógicos das áreas técnicas.

A caracterização desse novo enfoque das relações enlre ciência, tecnologia e sociedade é fundamentalmente contrária à imagem tradicional da C&T —assumida como atividade autónoma que se orienta exclusivamente por uma lógica interna e livre de valorações externas—, na medida em que transfere o centro de responsabilidade da mudança científico-tecnológica para os fatores sociais. Assim, o fenómeno científico-tecnológico passa a ser entendido como processo ou produto inerentemente social onde os elementos não epistêmicos ou técnicos (como valores morais, convicções religiosas, interesses profissionais, pressões económicas etc.), desempenham um papel decisivo na gênese e consolidação das idéias científicas e dos artefatos tecnológicos (Bazzo, von Linsingen e Pereira, 2003: 126).

Em termos do ensino de ciências e tecnologia, essa mudança de eixo pode significar uma transformação radi cal nos processos cognitivos, na medida em que a atividade tecnológica, pensada como atividade meio, passaria a ser orientada por uma lógica distinta da que hoje a estrutura, orientada para a técnica como meio e não um fim em si mesma. Em termos históricos, entende-se que a técnica possui apenas caráter procedimental, e assim o passado é traduzido como algo "superado" e ao futuro é atribuído o significado de "aperfeiçoamento" dos procedimentos. Nesse universo de meios, que visa exclusivamente ao aperfeiçoamento e à potencialização da própria instrumentação, no qual o mundo da vida torna-se totalmente dependente do aparato técnico, os humanos acabam por tornar-se funcionários deste aparato (Galimberti, 1999). Na perspectiva aqui abordada, visa-se à superação dessa condição.

Entretanto, o tecido tecnocientífico não existe à margem do próprio contexto social em que se desenvolve, e no qual os conhecimentos e os artefatos adquirem relevância e valor. Desse modo, as imbricações entre ciência, tecnologia e sociedade apresentam uma complexidade muito maior do que as decorrentes das relações imaginadas ent re campos estanques que se comunicam, mas sem interpenetração, apontando para uma análise mais cuidadosa e abrangente das reciprocidades, ao invés da simples aplicação da clássica relação linear entre elas.

 

3. O enfoque educacional CTS para o ensino de ciências

Para Auler, tratando especificamente no ensino de ciências, o enfoque educacional CTS objetiva:

Promover o interesse dos estudantes em relacionar a ciência com as aplicações tecnológicas e os fenómenos da vida cotidiana e abordar o estudo daqueles fatos e aplicações científicas que tenham uma maior relevância so cial; abordar as implicações sociais e éticas relacionadas ao uso da tecnologia e adquirir uma compreensão da natureza da ciência e do trabalho científico (Auler, 1998: 2).

A concepção CTS para o ensino de ciências, de acordo com Wildson Santos,

Aponta para um ensino que ultrapasse a meta de uma aprendizagem de conceitos e de teorias relacionadas com conteúdos canónicos, em direção a um ensino que tenha uma validade cultural, para além da validade científica. Tem como alvo, ensinar a cada cidadão comum o essencial para chegar a sê-lo de fato, aproveitando os contributos de uma educação científica e tecnológica (Santos, 1999: 3).

Esta mesma autora identifica um movimento de "reconceptualização" do ensino de ciências, a partir dos anos de 1980, que embora possua diferentes tipos de propostas corresponde a uma tomada de consciência de alguns fatores, a saber: (i) relevância de se compreender a ciência como processo de co-produção e de avaliação da ciência em contextos não-disciplinares nos quais são solicitadas a produção de saberes e de competências; (ii) necessidade de se rever as idealizações em torno da natureza da ciência de modo a se utilizar a história da ciência; (iii) valorização dos debates centrados em acontecimentos técnico-científicos decisivos que ocorrem no decorrer da vida dos estudantes; (iv) reconhecimento dos impactos (ambiental, soc ial e moral) que os desenvolvimentos tecnológicos têm na atualidade; (v) importância do diálogo enlre os diferentes saberes que circulam na escola; (vi) reconhecimento do déficit escolar em capacitar o estudante como cidadão, para lidar efetivamente com matérias científicas e tecnológicas; (vii) e o fato da origem, dos mecanismos e, sobretudo, dos efeitos da ciência parecerem cada vez mais misteriosos para aqueles que não dominam o saber científico, suas práticas e linguagens (Santos, 1999).

Esta concepção CTS de ensino de ciências privilegia abordagens de ensino menos internalistas dando conta dos mais diversos tipos de acontecimentos da esfera social. Em síntese, "o movimento CTS procura colocar o ensino de ciências numa perspectiva diferenciada, abandonando posturas arcaicas que afastam o ensino dos problemas sociais" (Teixeira, 2003a: 182).

Os diferentes tipos de programas educacionais CTS propõem a inserção de temas que envolvem a relação ent re ciência, tecnologia e sociedade em três níveis distintos. São eles: 1. Enxerto CTS: temas CTS são introduzidos nos currículos de disciplinas científicas sem que, no entanto, a ciência deixe de ser apresentada de modo usual. Desta forma, há pouca alteração na organização e na seleção dos conteúdos. Segundo Décio Auler, "podem-se mencionar conteúdos CTS para tornar mais interessantes os temas puramente científicos ou complementar os conteúdos científicos com breves estudos CTS" (Auler, 1998: 2). 2. Ciência e tecnologia vistas através de CTS: nestes programas o foco central são as relações entre CTS de modo que o conteúdo científico ensinado passa a ser apenas decorrência dos temas sociais pré-selecionados. A estruturação desses programas "pode ser levada a cabo tanto por disciplinas isoladas como através de cursos multidisciplinares, inclusive por linhas de projetos pedagógicos interdisciplinares" (Bazzo, von Linsingen, Pereira, 2003: 148). É nosso entendimento que este tipo de programa CTS é o que melhor se adequa à abordagem temática (que será comentada a seguir) e, por isso, penso que deveria ser adotado pelas escolas que estão em sintonia com a filosofia freiriana. 3. Programas CTS puros: nestes programas os conceitos científicos são pouco explorados uma vez que eles se concentram na explicação dos conteúdos CTS em sentido estrito. De acordo com Bazzo, von Linsingen e Pereira (2003), podem ser feitas referências aos temas científicos e tecnológicos em questão, porém, não são abordados conteúdos específicos das áreas. Este tipo de programa explora a história e a sociologia da ciência como pano de fundo para a discussão de episódios sociais passados que se relacionam à ciência e à tecnologia.

No caso específico do ensino básico, o espaço da disciplina escolar "Ciências Naturais", integrante do currículo do ensino fundament al, é altamente propício para o debate de temas interdisciplinares que explorem programas CTS uma vez que a mesma não possui uma única ciência como referência. Nesta disciplina são explorados conhecimentos oriundos da Física, Química e das Geociências, muito embora o enfoque atual tenha sido maior para a Biologia já que a maioria dos professores que ministram a disciplina é licenciada em Ciências Biológicas.

Como os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais4 (PCN), no que tange especificamente às relações entre ciência, tecnologia e sociedade, ressaltam:

As questões éticas, valores e atitudes compreendidas nessas relações são conteúdos fundamentais a investigar nos temas que se desenvolvem em sala de aula. A origem, o destino so cial dos recursos tecnológicos, o uso diferenciado nas diferentes camadas da população, as conseqüências para a saúde pessoal e ambiental e as vantagens sociais do emprego em determinadas tecnologias também são conteúdos de "Tecnologia e Sociedade" (Brasil, 1998: 48).

Além disso, um outro aspecto deve ser considerado em prol da implementação de abordagens CTS no ensino fundamental: o de que a maioria dos brasileiros apenas cursa parte da educação básica compulsória, não tendo acesso ao ensino médio e universitário. Dessa forma, é urgente o debate de questões sociais, morais e éticas derivadas do desenvolvimento científico e tecnológico neste nível de ensino.

 

4. Os princípios e o método da concepção freiriana de educação

A concepção progressista de educação pensada por Freire teve, originalmente, o foco na alfabetização de adultos em contextos não-formais de educação. Para compreender de tal concepção é fundamental ter clareza dos princípios centrais que norteiam a filosofia de Freire: aproblematização e a dialogicidade.

Problematizar, para Paulo Freire, vai muito além da idéia de se utilizar um problema do cotidiano do educando para, a partir dele, introduzir conceitos pré-selecionados pelo educador. A problematização deve ser um processo no qual o educando se confronta com situações de sua vida diária, desestabilizando seu conhecimento anterior e criando uma lacuna que o faz sentir falta daquilo que ele não sabe. Nesse sentido, a experiência de vida do educando é o ponto de partida de uma educação que considera que seu contexto de vida pode ser apreendido e modificado (Delizoicov, 1983). Essa modificação apenas é possível quando o educando passa de um nível de "consciência real efetiva" para o nível de "consciência máxima possível"5 (Freire, 1975: 126). Isso implica numa educação que é realizada com o educando e não sobre o educando, de modo que o sujeito da ação educativa não é passivo e um mero recebedor dos conteúdos que são depositados pelo educador; a este último tipo Paulo Freire dá o nome de "educação bancária" (Freire, 1975: 66).

Da mesma forma que o conceito de problematização, e o de dialogicidade não pode ser compreendido de uma maneira simplificada, qual seja, a de reduzi-lo a idéia de que o educador deve dialogar, conversar, com o educando. Para Freire, o diálogo envolvido na educação progressista é aquele que permite a fala do outro, a interlocução. É um moviment o de interação ent re educador e educando que se constitui enquanto diálogo cujo conteúdo não é aleatório. É um diálogo diretivo que permite que o educando tenha conhecimento sobre seu pensar ingênuo, sobre seu conhecimento anterior. É por meio deste diálogo que os homens são capazes de transformar o mundo, de se libertarem.

Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra sozinho, ou dizê-la para outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais.

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.

[...] A conquista implícita no diálogo, é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens (Freire, 1975: 92-93, grifo do autor).

Para que o diálogo se concretize e para que haja a superação da situação opressora é preciso que o educador seja concebido como "educador-educando" e o educando como "educando-educador". É aí que a educação problematizadora, que serve à libertação, toma corpo e vence a concepção bancária; esta mantém a contradição educador-educando, enquanto que a primeira realiza a sua superação de modo que ambos tornam-se sujeitos do processo educativo (Freire, 1975).

A dialogicidade tem início antes mesmo da interação entre educador e educando. Ela encontra-se presente nos momentos que antecedem o ato educativo propriamente dito, ainda na fase de elaboração do programa, como Freire ressalta na seguinte passagem:

Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece, não quando o educador-educando se encontra com os educandos-educadores em uma situação pedagógica, mas ances, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta inquietação em torno do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação (Freire, 1975: 98).

Paulo Freire (1975) propõe, então, uma metodologia que permite a operacionalização da educação problematizadora: a investigação do universo temático dos educandos ou o conjunto de seus temas geradores.

A dinâmica da educação problematizadora é operacionalizada por meio da investigação temática (Freire, 1975). É por meio dela que o educador —ou melhor, a equipe interdisciplinar de educadores— se aproxima da realidade dos educandos, identificando os níveis de percepção que os sujeitos têm desta realidade.

A investigação temática se faz, assim, um esforço comum de consciência da realidade e de autoconsciência, que a inscreve como ponto de partida do processo educativo, ou da ação cultural de caráter libertador (Freire, 1975: 117).

A investigação temática, objetiva explicitar as situações contraditórias ("situações-limites"6) com as quais os educandos estão envolvidos de modo que deste processo sejam apreendidos os temas geradores (Freire, 1975). Estes guiarão a ação pedagógica e permitirão aos educandos superar a situação-limite, alcançando assim a consciência máxima possível e emergindo da realidade em que se encontravam para inserir-se numa outra em que assumem agora um posicionamento crítico.

Estes temas se chamam geradores porque, qualquer que seja a natureza de sua compreensão como a ação por eles provocada, contêm em si a possibilidade de desdobrar-se em outros temas que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas (Freire, 1975: 110, em nota de rodapé).

A investigação temática envolve o processo de codifuação-decodiftcação-problematização uma vez que Freire compreende que as contradições vividas pelos educandos são a eles apresentadas como códigos que devem ser decodificados e problematizados para que sua superação seja possível. Este processo permeia as cinco etapas da educação problematizadora, sendo as quatro primeiras dedicadas à investigação temática e a última à situação pedagógica em si (o trabalho em sala de aula).

A primeira etapa da investigação temática consiste no levantamento preliminar das condições da localidade através de conversas informais com os indivíduos e observações da área e de suas diferentes atividades. Nessa etapa, os investigadores registram a forma com que os homens constroem seu pensamento. Com isso, há uma aproximação dos núcleos centrais das contradições principais e secundárias em que estão envolvidos os indivíduos da área.

Na segunda etapa é realizada a escolha de algumas dessas contradições, pela equipe de investigadores, com as quais serão elaboradas as codificações que serão apresentadas aos indivíduos, na etapa seguinte, para que eles analisem sua própria realidade.

Na terceira etapa os investigadores voltam à área para inaugurar os diálogos decodificadores nos "círculos de investigação temática" (Freire, 1975: 131) em reuniões com os sujeitos e a equipe interdisciplinar de educadores. Nos círculos, os participantes são desafiados frente às situações existenciais codificadas e vão expondo sentimentos e opiniões de si, dos outros e do mundo.

Terminadas as decodificações, os investigadores dão início à última etapa da investigação temática que consiste no estudo sistemático e interdisciplinar dos dados coletados nos círculos e, em seguida, na redução temática. A partir de seus achados, os educadores identificam os temas geradores explícitos ou implícitos que serão classificados num quadro geral de ciências (especializações), sem que isso signifique o estabelecimento de departamentos estanques. Em seguida, é "feita a delimitação temática" e "caberá a cada especialista, dentro de seu campo, apresentar à equipe interdisciplinar o projeto de 'redução' de seu tema" (Freire, 1975: 135) e a estabelecer encre as unidades de aprendizagem. Freire comenta ainda a possibilidade de que outros temas sejam adicionados à programação apesar de não terem surgido diretamente da investigação:

Neste esforço de "redução" da temática significativa, a equipe reconhecerá a necessidade de colocar alguns temas fundamentais que, não obstante, não foram sugeridos pelo povo, quando da investigação. [...] A estes, por sua função, chamamos "temas dobradiças" (Freire, 1975: 136).

A última etapa da educação problematizadora, que sucede a última etapa da investigação temática, tem espaço no ambiente de ensino.

 

5. CTS e Paulo Freire: bases para uma articulação

Com base nas considerações tecidas acima a respeito dos principais objetivos e proposições do enfoque educacional CTS e da filosofia educacional de Paulo Freire, apresentamos pontos de convergência entre os dois de modo a estabelecer uma base teórica que subsidie o ensino de ciências na escola. Um ensino que vise à formação de educandos que sejam capazes de atuar de forma consciente e transformadora na sociedade em que vivem. Para tanto, selecionamos três pontos que certamente não esgotam as possibilidades de articulação ent re essas frentes pedagógicas e que tampouco se encontram estanques já que certamente elas dialogam entre si.

 

A abordagem temática e a seleção de conteúdos e materiais

A pedagogia progressista de Paulo Freire propõe uma educação que ultrapasse a "concepção bancária de educação". Ou seja, uma educação que não seja realizada sobre o educando, de modo que o sujeito da ação educativa assuma uma posição ativa em sua aprendizagem (Freire, 1975). Neste tipo de educação, os conteúdos abordados em sala de aula pouco (ou nada) têm a ver com a realidade dos educandos, sendo selecionados exclusivamente pelo professor de cada disciplina.

Tanto o enfoque CTS quanto o método de investigação temática proposto por Freire rompem com o tradicionalismo curricular do ensino de ciências uma vez que a seleção de conteúdos se dá a partir da identificação de temas que contemplem situações cotidianas dos educandos. Este tipo de abordagem temática é comum ao método freiriano, conforme comentado anteriormente, e às abordagens CTS.

Afirmam os autores que enquanto no ensino de base tradicional, a organização do conteúdo tem como elemento central os conceitos (de Física, Química, Biologia e Matemática), nos cursos CTS, a organização da matéria já não se dá com os conceitos no centro, mas sim, através de temas sociais. Isso significa que, os conteúdos dos cursos de disciplinas científicas, via abordagem CTS, necessariamente incluem temas sociais (Teixeira, 2003a: 186).

Além disso, podemos perceber que ambas as propostas preocupam-se em realizar uma contextualização dos conhecimentos provenientes da cultura elaborada (nesse caso específico, a cultura da ciência e da tecnologia) integrando-os à realidade do educando. Nesse sentido, Auler comenta que o enfoque CTS "permite compreender problemas relacionados ao contexto do aluno" de modo que "a aprendizagem é 'facilitada' porque o conteúdo está situado no contexto de questões familiares e relacionado com experiências ext ra-escolares dos alunos" (Auler, 1998: 3).

Esse tipo de contextualização está praticamente assegurado na proposta de Freire: ao realizar o levantamento das situações-problema nas quais os educandos encontram-se imersos e, posteriormente, na etapa de redução temática (onde são selecionados os conteúdos programáticos de cada disciplina), os educadores estarão aptos para, em sala de aula, apresentarem e discutirem conteúdos (científicos) que fazem algum sentido para aquele grupo específico de educandos.

Com relação aos materiais didáticos utilizados em sala de aula, a idéia principal é que sejam utilizados diferentes tipos (minimizando, assim, a influência que o livro didático tem nas aulas) e, até mesmo, sejam elaborados novos materiais com base na realidade dos educandos. Nesse sentido, Paulo Freire comenta que é apenas após a etapa de redução temática e da elaboração do programa que deve ser confeccionado o material didático. Este poderá ser constituído por fotografias, slides, cartazes, textos de leituras, além dos "pré-livros" (livros texto que não foram escritos especificamente para aquela situação didática) sobre a temática pré-estabelecida (Freire, 1975: 139).

 

Perspectiva interdisciplinar do trabalho pedagógico e o papel da formação de professores

A metodologia da investigação temática de Freire (1975) requer a participação de uma equipe interdisciplinar composta por professores das diversas disciplinas escolares e por outros profissionais, como por exemplo: assistentes sociais, psicólogos, sociólogos, entre outros. Desta forma, an tes mesmo de ser realizada a seleção do tema gerador e, em seguida, do conteúdo programático já existe um trabalho interdisciplinar excra-classe. Esse tipo de sistemática facilita, de certa forma, a interdisciplinaridade em sala de aula uma vez que no processo de redução temática serão escolhidos conteúdos que contemplam diferentes aspectos do tema gerador e este, por sua vez, permite a realização de pontes entre os conhecimentos das diferentes áreas disciplinares.

As abordagens CTS, por sua vez, também ressaltam a importância da discussão de temas sociais a partir de um enfoque interdisciplinar. Conforme Teixeira ressalta, "a grande preocupação com estratégias de ensino que efetivamente promovam a interdisciplinaridade e a contextualização" (Teixeira, 2003b: 99) é uma das proposições do movimento CTS.

Porém, a formação atual dos professores (disciplinar e fragmentada) é, conforme apontam Auler (1998) e Angotti e Auth (2001), um entrave para a implementação das abordagens interdisciplinares sob o enfoque CTS nas escolas.

Nesse mesmo sentido, Teixeira (2003a) encara a precária formação inicial —que não alia conhecimento técnico à formação política— como o principal determinante para a tendência de se "tratar os conteúdos com abordagens internalistas" afastando-os dos relevantes problemas sociais. Num outro artigo, este mesmo autor coloca que as abordagens CTS englobam:

Postulações sobre a necessidade de alterações no perfil docente, advogando modificações nos cursos de formação de professores e na implantação de um programa sistemático de formação em serviço, que além de capacitar permanentemente os professores, ofereça a oportunidade de interação entre ensino e pesquisa didática (Teixeira, 2003b: 99).

Angotti e Auth acreditam que para haver interdisciplinaridade na educação científica e tecnológica é "preciso contrastar as visões oficiais presentes nos sistemas de ensino e constituir uma fonte de visões alternativas para o ensino" (Angotti e Auth, 2001: 23). Para tanto, a formação continuada de professores é fundamental. Porém, os próprios autores reconhecem a realidade deste tipo de formação no Brasil ressaltando que:

O desafio é envolver/comprometer os professores em atividades colaborativas, para inquietá-los e desafiá-los em suas concepções de ciência, de "ser professor" e em suas limitações nos conteúdos e nas metodologias (Angotti e Auth, 2001: 23).

Estes estudos nos confrontam com a urgência de formarmos professores através de cursos (de formação inicial e continuada) que integrem os diversos conhecimentos de modo que esses educadores consigam realizar um trabalho interdisciplinar nas escolas onde atuarão futuramente.

 

O papel do educador

As propostas de Freire e das abordagens CTS requerem um novo tipo de profissional da educação já que, na concepção dialógica de educação ele deixa de depositar conteúdos na cabeça dos educandos, para assumir o papel de catalisador do processo de ensino e aprendizagem. De acordo com essa concepção, "o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa" (Freire, 1975: 78).

A figura de um professor que estimula a aprendizagem dos educandos também se encontra presente nas abordagens CTS, conforme Bazzo, von Linsingen e Pereira colocam:

É importante entender que o objetivo geral do professor é a promoção de uma atitude criativa, crítica e ilustrada, na perspectiva de construir coletivamente a aula e em geral os espaços de aprendizagem. Em tal "construção coletiva" trata-se, mais que manejar informações, de articular conhecimentos, argumentos e contra-argumentos, baseados em problemas compartilhados, nesse caso relacionados com as implicações do desenvolvimento científico-tecnológico (Bazzo, von Linsingen e Pereira, 2003: 149).

Apesar de o professor assumir um novo papel, ele não pode ser, em momento algum, permissivo deixando de gerenciar o espaço da sala de aula. Ele deve ter sempre clareza de seus objetivos educacionais para que a participação dos educandos aconteça de modo efetivo e, ao mesmo tempo, ele não precise tomar atitudes autoritárias. Como muito claramente expõe Teixeira:

As estratégias CTS pressupõem a participação ativa dos educandos. Participação sempre apoiada pelo professor, que assim, assume papel de mediador no processo de ensino-aprendizagem. Desse modo, ocorre a descentralização do poder na sala de aula, porém, tal processo não implica a diminuição da autoridade do professor. E nesse sentido, não podemos confundir a expressão dessa autoridade com qualquer espécie de manifestação de autoritarismo (Teixeira, 2003a: 186)

Devemos pensar, finalmente, que esse novo perfil de educador formado de acordo com uma concepção de educação progressista requer, da mesma forma, um outro tipo de educando. Ou seja, para que também sejam formados educandos críticos é imprescindível que se rompa com a atual maneira de comportamento dos estudantes nas escolas, onde são tolhidas todas as manifestações de criatividade e a espontaneidade de crianças e adolescentes. Para que a educação formal possa contribuir para a formação de cidadãos é necessário dar espaço para que os educandos possam se expressar e exercitar seus deveres e direitos.

 

6. Pesquisas e iniciativas da articulação CTS e Freire na educação científica e tecnológica

A proposta origi nal de Freire não tinha como cenário a escola e sim ambientes não formais de educação nos quais ocorreriam a alfabetização de adultos. No entanto, algumas experiências bem sucedidas demonstram a pertinência de se transpor as idéias de Freire para o contexto de ensino formal, mais especificamente o ensino de ciências. São exemplos os projetos desenvolvidos e implementados na Guiné-Bissau (Delizoicov, 1983), em escolas do Rio Grande do Norte (Pernambuco et al., 1988), em parte da rede escolar da cidade de São Paulo (Pontuschka, 1993) e em diversas escolas de diferentes regiões do Brasil (Silva, 2004).

Tais experiências demonstram a viabilidade, a complexidade e o potencial prático da concepção problematizadora de Freire. Apontam, ainda, para a necessidade de que suas idéias sejam seriamente estudadas de modo a serem implementadas em outras instituições de ensino formal.

Dessas iniciativas têm derivado pesquisas de mestrado e doutorado que buscam aprofundar reflexões teóricas acerca da filosofia freiriana —que dizem respeito não apenas à aplicação da metodologia da investigação temática no âmbito do ensino científico e tecnológico— como também estabelecem diálogos com teorias da aprendizagem, da sociologia e demais teóricos da pedagogia crítica (Auth, 2002; Delizoicov, 1991; Silva, 2004).

Outros estudos têm explorado a própria relação entre o enfoque CTS e a filosofia freiriana no contexto da formação de professores de ciências (Auler e Delizoicov, 2006). Há também iniciativas no campo da educação em CTS, como o curso de "Ciencia, Tecnología, Sociedad y Valores" proposto por Gordillo e Osório7 e dirigido a docentes de educação média e superior, no qual se adota uma perspectiva freiriana na definição temática.

 

7. Considerações finais

Iniciamos essas considerações finais apresentando dois dos objetivos do ensino fundamental estipulados pelos PCN:

Compreender a cidadania como participação social e política assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação, repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas (Brasil, 1998: 7, grifos nossos).

O discurso que prega a formação de cidadãos críticos está presente, como podemos observar, não apenas nos artigos acadêmicos (que exploram os mais diversos temas relacionados às diferentes áreas disciplinares) como também no documento oficial da educação básica que dita as diretrizes curriculares do ensino fundamental. Porém, para que este discurso saia do campo teórico e ganhe coerência do ponto de vista prático, temos que nos fazer a seguinte pergunta: como esta cidadaniapode (e deve) ser construída e exercitada no âmbito do ensino de ciências? É importante ressaltar que estamos nos referindo a uma concepção de cidadania progressista ou socialista democrática como defendida por Freire; cidadania que "tem que ver com a condição de cidadão, quer dizer, com o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidadão" (Freire, 1993: 45). Ou seja, temos que pensar em que medida o ensino de ciências ajuda a formar cidadãos que tenham assegurado o exercício pleno de seus direitos e deveres em sociedade.

Nesse sentido, o presente artigo não pretendeu apresentar uma única resposta a essa questão, mas sim trazer elementos para se pensar o papel do ensino de ciências em uma formação ampla do educando. Foi nesse sentido que foram exploradas as relações teóricas entre a abordagem CTS e a filosofia educacional de Paulo Freire. Acreditamos que a articulação de tais propostas educacionais seja um ganho para ambas: para o enfoque CTS por lhe assegurar uma base educacional sólida e coerente (algo nem sempre presente nas abordagens CTS) e, por outro lado, para o método freiriano (e seus desdobramentos no ensino de ciências) por efetivar a contemplação de temas atuais de dimensão social, política e econômica.

Apesar da abordagem realizada neste artigo estar mais direcionada para o ensino fundamencal e médio, há elementos que sugerem sua aplicabilidade também para o ensino superior tecnocientífico, realizadas as devidas adaptações e contextualizações.

Dadas as novas orientações educacionais que essa perspectiva oferece ao nível de formação básica, de um processo que já se encontra em andamento com notável poder de penetração e consolidação, pode-se prospectar que, uma vez consolidada essa formação no nível médio, um impacto sobre a formação universitária se fará notar, provocando a emergência de questões sociotécnicas que não são explicitamente apresentadas na formação universitária, de modo que torna-se imperativo que as universidades se atenham a considerar seriamente a inclusão da perspectiva CTS na formação profissional, especialmente nas áreas técnicas.

Esperamos, finalmente, ter criado com esse trabalho um espaço para reflexão para que aqueles que se encontram envolvidos com a educação (sobretudo os educadores que estão dia-a-dia na sala de aula) se sintam motivados a promover ações que, embora pareçam pequenas ou isoladas à primeira vista, favoreçam a formação de pessoas aptas a se posicionar na sociedade não aderindo acriticamente aos interesses de mercado capitalista e a relações parcelares de poder.

 

Referências

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Notas

1 Parte do que aqui se expõe foi apresentado em outra publicação (von Linsingen, 2003).

2 Este termo é empregado aqui como indicativo de que a explicitação de aspectos mais delicados da atividade científico-tecnológica resultou numa perda de credibilidade no caráter benfeitor e neutro da ciência e da tecnologia, materializada pela reação social e acadêmica a partir da década de 1960. Esse termo procura incluir também uma positividade no fato de que o desencantamento pode desencadear uma tomada de consciência sobre as diferentes possibilidades da ciência e tecnologia (C&T), tornando mais consciente o caráter das suas produções.

3 Expressa o desenvolvimento como um processo no qual mais conhecimento científico determina linearmente mais tecnologia — que implica mais domínio e submissão da natureza — que conduz a mais desenvolvimento económico, que resulta em mais desenvolvimento social (associado a mais bem-estar). O "modelo linear de desenvolvimento" se estabelece num contexto de neutralidade e autonomia alheio a qualquer processo de valoração axiológica e que se traduz incondicionalmente em benefícios para a humanidade.

4 Os PCN propõem que o estudo das ciências naturais no ensino fundamental seja feito por meio dos eixos temáticos, sendo que um deles explora as relações entre "Tecnologia e Sociedade".

5 Os termos "consciência real" (efetiva) e "consciência máxima possível" são termos emprestados de Goldman e que Freire se utiliza para explicar os níveis de consciência dos indivíduos antes e depois da prática educativa libertadora. Segundo ele, ao nível da "consciência real", os homens se encontram "limitados na possibilidade de perceber mais além das 'situações-limites' [...]" (Freire, 1975, p.126). Já ao atingir o nível da consciência máxima possível, o indivíduo é capaz de vislumbrar as soluções antes não percebidas.

6 As "situações-limites" (Freire, 1975: 106) são situações que parecem intransponíveis pelos indivíduos quando estes se encontram ao nível da consciência real efetiva. Apesar do clima de desesperança que elas geram, não devem ser vistas como o fim das possibilidades, mas sim um obstáculo a ser superado durante a caminhada da libertação.

7 Encontra-se em <http://www.campus-oei.org/salactsi/mgordillo.htm>.

 

Información sobre los autores

Tatiana Galieta Nascimento. Licenciada e Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Fede ral do Rio de Janeiro. Mestre em Tecnologia Educacional nas Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Líneas de investigación: linguagem e análise do discurso no ensino de ciências; enfoque CTS na educação científica e tecnológica; formação inicial de professores de ciências e biologia. Publicaciones recientes: "Um diálogo com as histórias de leituras de futuros professores de ciências", en Pro-posições, vol. 17, núm. 1, Campinas, 2006; "Contribuições da análise do discurso e da epistemologia de Fleck para a compreensão da divulgação científica e sua introdução em aulas de ciências", en Ensaio, vol. 7, núm. 2, Belo Horizonte, 2005. Disponível em <http://www.fae.ufmg.br/ensaio/>; "O texto de genética no livro didático de ciências: uma análise retórica crítica", en Investigações em Ensino de Ciências, vol. 10, núm. 2, Porto Alegre, 2005. Disponível em: <http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/revista.htm>.

Irlan von Linsingen. Engenheiro Mecânico, Mestre em Engenharia Mecânica (Ciências Térmicas) e doutor em Educação em Ciências pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pro fessor dos programas de graduação em Engenharia Mecânica e Engenharia de Materiais, e de pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica. Coordenador do NEPET (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica) e líder do DICITE (Grupo de Estudos de Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação). Líneas de investigación: ciência, tecnologia e sociedade; linguagem e análise do discurso da ciência e tecnologia na educação; enfoque CTS na educação científica e tecnológica. Publicaciones recientes: "CTS na educação tecnológica: tensões e desafios", en I Congreso Iberoamericano de Ciencia, Tecnología, Sociedad y Innovación CTS+I, México, DF, 2006; "Contribuições a uma Educação para a Sustentabilidade", en I Congreso Iberoamericano de Ciencia, Tecnología, Sociedad y Innovación CTS+I, 2006, México, DF, 2006; "A Ciência e a Tecnologia como Discursos: uma visão alternativa para uma educação CTS", en VI Jornadas Latinoamericanas de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología, Bogotá, 2006.

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