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Tópicos (México)

versión impresa ISSN 0188-6649

Tópicos (México)  no.54 México ene./jun. 2018

https://doi.org/10.21555/top.v0i54.869 

Artículos

Sublime e pintura no primeiro esboço de Sistema de Fichte em comparação com Kant

Sublime and Painting in Fichte's First Outline of System in Comparison with Kant

Lo sublime y la pintura en el primer esbozo del Sistema de Fichte en comparación con Kant

Giorgia Cecchinato1 

1Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. giorgia.cecchinato@gmail.com


Resumo

Este artigo tem duplo objetivo: apresenta-se em primeiro lugar a primeira doutrina fichtiana das formas e cores na pintura, formulada no escrito póstumo Filosofia prática. Em segundo lugar, traça-se um paralelo entre essa doutrina e a exposta por Kant na Crítica da faculdade de julgar. Ao mesmo tempo em que é diagnosticada uma proximidade com a doutrina de Fichte, procura-se mostrar a peculiaridade da doutrina fichtiana.

Palavras chaves: sublime; belo; forma; Kant; Fichte

Abstract

The first aim of this paper is to present the doctrine of forms and colours in painting, formulated by Fichte in the posthumous writing Practical Philosophy. The second one is to draw a parallel between this doctrine and Kant's theory of beauty developed in the Critique of the Judgement. On the one hand the paper will show that the similarities quite sticking, on the other hand it will reveal the peculiarity and originality of Fichte's doctrine.

Key words: sublime; beauty; form; Kant; Fichte

Resumen

Este artículo tiene un objetivo doble: se presenta en primer lugar la primera doctrina fichteana de las formas y los colores en la pintura, formulada en el escrito postumo titulado Filosofia práctica. En segundo lugar, se traza un paralelo entre esta doctrina y la expuesta por Kant en la Crítica de la capacidad de juzgar. Al mismo tiempo que se señala la cercanía entre ambos sistemas, este artículo muestra la peculiaridad y originalidad de la doctrina fichteana.

Palabras clave: sublime; bello; forma; Kant; Fichte

1. O Sublime

É sabido que Fichte1 não concebeu uma estética em sentido estrito e tampouco dedicou à arte uma parte especial de seu sistema filosófico.2 Apesar de ter sido crítico literario e amante de poesia, sem dúvida ele nao foi um conhecedor de pintura. Famoso é o relato da visita à coleção de quadros de Dresden junto com os irmãos Schlegel: "Você teria rido se tivesse visto como os Schlegel arrastavam Fichte de um lado para outro e tentavam persuadi-lo" (Fuchs, 1980: 10), escreve Dorothea Stock a Charlotte Schiller.

Apesar disso, Fichte fornece em contexto sistemático uma chave para a interpretação de pintura, tanto no que diz respeito à produção quanto à recepção, e que pode ser de interesse para interpretar obras de arte que não tem imediatamente algo a ver com sua filosofia, o presente ensaio não pretende demonstrar essas afirmações 3, mas sim usar o conceito de sublime para entender a doutrina da pintura não publicada do filósofo alemão e a originalidade dessa teoria em relação à teoria de Kant.

O sublime foi investigado na antiguidade por pseudo-Longinus em sua obra Do sublime, sobre poesia e oratória. Para pseudo-Longinus, o sublime é a qualidade suprema de toda poesia e de todo discurso. Sua doutrina do sublime contém dois elementos centrais que serão importantes para a história posterior desse conceito: por um lado, o ouvinte ou expectador é humilhado pelo sentimento do sublime e, por outro, é elevado. Ele vai de um espanto terrível até a mais profunda alegria e orgulho, visto que é elevado ao divino e absoluto. Pseudo-Longinus nao encontra grande repercussão na antiguidade, mas sua obra experimenta um verdadeiro renascimento nos séculos XVII e XVIII. Na segunda metade do século XVIII, filósofos importantes começam a considerar o sublime em conexão com o belo: o sublime passa a ser um conceito contraposto ao belo.4 Na quarta parte da Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo, Edmund Burke (1729-1797) observa a semelhança dos mecanismos fisiopsicológicos do sublime com aqueles que causam dor. Trata-se basicamente de uma tensão dos nervos que surge do instinto de autoconservação. Essa caracterização do efeito subjetivo do sublime é ancorada em uma estrutura objetiva. A saber, Burke ressalta aquelas qualidades dos objetos das quais resulta o sentimento do sublime: ao sentimento do sublime associam-se objetos incomensuravelmente grandes, irregulares, ásperos, maciços, escuros ou fortemente intimidadores. Ao contrário disso, o sentimento do belo é descrito em termos psicológicos como distensão dos nervos, resultante do desenvolvimento e apelo do instinto de sociabilidade. Como no caso do sublime, essa caracterização subjetiva do efeito do belo sobre o corpo e a alma é fundada nas qualidades dos objetos que produzem aquele efeito: os objetos do sentimento do belo destacam-se desse modo por tamanho relativamente pequeno, superfície polida, clareza cristalina, ondulação suave e maciez solúvel, evanescente.5 Daí para frente, o contraste entre o belo e o sublime no debate estético será o tema dominante ao longo de todo o século XVIII.

Kant6 transpõe a reflexão sobre a beleza e o sublime para um nível transcendental. Aqui já não se trata mais de efeitos meramente psicológicos de tais experiências, mas do princípio a priori que possibilita essa experiência. Mas também Kant distingue o belo do sublime: belo diz respeito à forma apreendida pela imaginação, sublime à ausência de forma e brutalidade da natureza.

Contra essa orientação dominante, o jovem Friedrich Schlegel, teórico do primeiro romantismo, forçou conceitualmente a superação das diferenças qualitativas entre belo e sublime e, simultaneamente ao lado de Kant e contra ele, converteu enfaticamente o sublime a elemento essencial das belas artes. Com isso, ele formulou uma estética que suspende a tensão de natureza e arte ao passo em que se dissolve a tensão entre o belo e o sublime (Mathy, 1989).

Na concepção fichtiana do belo, à qual pertencem as reflexões sobre pintura, evidencia-se o processo tipicamente romântico de incorporação do sublime ao belo. Trata-se também nesse caso de um desdobramento de conceitos kantianos a partir da Crítica do Juízo. No escrito Filosofia prática, não se trata porém de uma suspensão da tensão entre arte e natureza, mas do aprofundamento da tensão entre natureza e liberdade. A arte pertence para Fichte ao domínio da liberdade e, precisamente por isso, encontra-se em oposição à natureza.

É justamente a aproximação almejada por Fichte entre dois conceitos até então complementares - do belo e do sublime - que permite por exemplo uma tematização radical e original das cores na pintura, contra a teoria da supremacia do desenho na teoria kantiana de cunho neoclassicista.

2. A arte no escrito Filosofia prática

Os manuscritos Meditações próprias sobre a filosofia elementar e Filosofia prática representam a primeira tentativa de Fichte para fornecer uma apresentação nova e própria da filosofia transcendental. Eles remontam ao inverno de 1793/94. o primeiro trata de filosofia teórica, o segundo de filosofia prática. Essa nova apresentação da filosofia transcendental dividida em dois passos deveria constituir um sistema unitário e científico que unificaria liberdade e mundo sensível sob o primado do primeiro e, com isso, permitiria uma compreensão mais profunda e unificada das estruturas subjetivas do pensamento e ação do homem como um ser racional finito.7 As reflexões de Fichte sobre о belo e о sublime se desenvolvem nesse contexto puramente sistemático e filosófico-transcendental.

Filosofia prática deve solucionar a contradição que aparece na filosofia teórica entre, por um lado, o Eu como Eu absoluto e independente e, por outro, entre о Eu como inteligencia e dependente do Não-Eu. Fichte introduz o esforço para eliminar essa contraposição central, о esforço representa a exigencia do Eu absoluto por independência e autoatividade. Contudo, o Eu jamais pode exercer uma causalidade efetiva sobre o Não-Eu, esforçando-se apenas para ultrapassar o limite de sua dependência (GA, II, 3,181-182).Filosofia prática percorre todos os momentos da filosofia teórica - ou seja, sensação, intuição, faculdade do juízo - e mostra como deve se formar em cada um desses momentos um grau elevado de esforço por autoatividade e libertação dos limites do conhecimento. O agradável corresponde à sensação, o belo e o sublime correspondem à intuição e o bem deveria representar o último passo, mas o escrito não foi terminado (GA, II, 3, 206-209).

As reflexões de Fichte sobre o belo e o sublime se mantêm bastante próximas das observações de Kant, mas também oferecem sugestões originais e interessantes, especialmente em relação à valorização da sensibilidade em geral e das cores em particular. Por isso mesmo, justifica-se uma comparação com Kant que será até de grande auxílio para o entendimento da amplitude das inovações de Fichte.

Na compreensão fichtiana do prático, a sensibilidade contribui para desenvolver a autoatividade: o agradável, o belo e o sublime nada mais são do que níveis distintos da libertação do Eu do que é dado no mundo objetivo. O que é profundamente diferente em relação a Kant é a presença do estético (em sentido mais estritamente kantiano, a saber, relacionado ao sentimento, mas também, em sentido contemporâneo, relacionado à beleza e à arte) em um contexto prático. Isso quer dizer que deixa de existir a separação essencial e inevitável para Kant entre sensibilidade e determinação da lei, na medida em que ambas pertencem de modos variados e com peso distinto ao dominio do pratico. Fichte valoriza claramente a sensibilidade em seu aspecto prático, demonstrando com isso que a liberdade da razão pode aparecer mesmo na escuridão e indeterminação dos sentimentos e emoções.

Segundo a doutrina fichtiana do belo, como também a de Kant, o prazer diante do belo é despertado pela apreensão da forma (GA, II, 3, 206). A forma é o produto subjetivo da imaginação que compõe o múltiplo das impressões sensíveis dadas no tempo e no espaço. Mas a forma, como atividade ordenadora da imaginação, respeito ao material sensível, também se reporta a um objeto determinado e representa com isso o primeiro passo na direção do conhecimento objetivo.8

A imaginação é autoatividade na apreensão do múltiplo, mas a ordenação do composto é forçada e o Eu é consequentemente dependente do Não-Eu. O Eu precisa portanto se libertar das coisas dadas no tempo e no espaço. Isso é possibilitado pela diferenciação kantiana entre perspectiva teórica e estética.9

Em perspectiva teórica, a forma de um objeto constitui a condição do conhecimento, mas se considerada esteticamente, a saber, sem finalidade de conhecimento e livre de conceitos e de toda relação a objetos determinados, pode suceder que o Eu se compreenda como causa dessa forma do Não-Eu em sua absoluta espontaneidade do esforço (GA, II, 3, 208). Essa representação ocasiona um prazer inesperado e espontâneo que desvela algo originário no ser humano, ou seja, a essênaa prática do homem, ou ainda, nosso esforço para sermos livres de determinação externa e para determinarmos as coisas fora de nós. Mas esse esforço nunca é completamente satisfeito, ele é um processo infinito de autodeterminação do homem contra a determinação externa.

Fichte assume os elementos mais importantes da teoria kantiana do belo: a forma como ordenação subjetiva da sensação, a intenção não-cognitiva do artista e do expectador, o prazer puramente não-sensível e seu poder de expressão. Mas se em Kant a experiência do belo remete à harmonia originária entre homem e natureza (KU, V, 240), o belo representa em Fichte a causalidade do esforço sobre a forma contra a determinação externa a partir do Não-Eu e da natureza. Como resultado da incorporação da questão da beleza à filosofia prática e ao lado da valorização fichtiana de elementos emocionais e sensíveis da beleza, a diferença mais importante entre Kant e Fichte repousa em sobre como é considerada a relação da forma aos objetos do mundo do conhecimento. Segundo Fichte, o componente subjetivo da forma, ou seja, a atividade livre da imaginação, nao se harmoniza com o componente objetivo, ou seja, com a relação a um objeto. Ao contrário, ambos contrastam. A bela forma representa uma ruptura com a atividade limitante da imaginação teórica que visa conhecer objetos determinados. Em conexão com o belo, o esforço não se satisfaz com a ordenação espaço-temporal das impressões sensíveis, mas almeja uma unidade ainda maior das formas particulares e das formas distintas entre si.10 Em outras palavras: por um lado, o objetivo do esforço é o de nos tornar independentes das coisas fora de nós, o que funda a exigência de destruição da ordem espaço-temporal que determina as coisas e as separa umas das outras. Por outro lado, a forma mesma é, como já vimos, produzida por essa atividade determinante e limitante. Assim, a forma do belo é para Fichte simultaneamente forma e não-forma (GA, II 3, 211). Essa definição da bela forma restitui o caráter mais importante do belo: a beleza torna contraditório tudo o que é teoricamente determinado e seguro (GA, II 3, 200). Com isso, a beleza mostra que a ordem do mundo, na qual o Eu é pensado como determinado pelo Não-Eu, é ilusória e ingénua. Ao mesmo tempo, a beleza contribui para a superação dessa ilusão e para a construção de uma ordem nova e livre do mundo. Por isso, o prazer sentido na experiência da beleza não é meramente positivo, não é, como na concepção de Kant, algo no qual gostamos de nos demorar porque ele nos tranquiliza acerca de nosso pertencimento e adequação ao mundo do conhecimento.11 Ao contrário, a consciência comum se torna imediata e repentinamente estranha para nós de tal modo que buscamos ainda mais unidade e mais liberdade do que as disponíveis no mundo do conhecimento.

O prazer diante do belo pressupõe um momento desagradável que resulta do espanto com a destruição da referência comum ao mundo. Esse sentimento é marcado por uma rápida alternância entre prazer e desprazer e se equipara a uma luta entre dois ordenamentos de mundo.

3. Sublimidade das cores

A compreensão fichtiana do belo como forma e não-forma e do prazer como não apenas positivo é bastante próxima da concepção kantiana do sublime. Na Crítica do Juízo, há primeiro o sentimento de dor e humilhação diante da força e grandiosidade da natureza, mas em seguida há a elevação espontânea por meio desses sentimentos negativos a um grau mais alto de prazer, uma vez que por essa via surge o sentimento de pertença a um ordenamento de mundo superior, o moral (KU, V, 264). Em Filosofia prática, há inicialmente a surpresa provocada pela experiência da arte e o afastamento do mundo cotidiano - por isso, o sentimento de prazer não é imediatamente positivo. Mas então, a imaginação é libertada da tarefa de apresentar o mundo "como ele é" e pode assim construir uma nova ordem das impressões sensíveis, buscando ao mesmo tempo novas conexões. A libertação da imaginação da ordem dada do apreendido é aquilo que causa propriamente o prazer positivo e mostra que somos essencialmente livres.

Fichte utiliza até mesmo as definições "matemático" e "dinâmico", com as quais Kant distinguiu dois tipos de sublime, para identificar dois subtipos de belo (GA, II, 3, 211-212)12 o belo matemático diz respeito à ordem das sensações no espaço, o belo dinâmico à ordem das sensações no tempo.

Em relação à pintura, o desenho pertence ao belo matemático. Fichte pensa com isso na síntese das sensações no espaço como o contorno que pode ser remetido à forma geométrica. Em concordância com a definição do belo enquanto "forma e não-forma", aquilo que é relevante para a perspectiva estética é a indeterminidade do contorno - seu flutuar entre determinações distintas. Quanto mais a forma se descola da determinidade dos objetos, tanto mais ela agrada, visto que também exige mais atividade e liberdade do expectador (GA II, 3, 213).

No âmbito das reflexões sobre o belo matematico, Fichte observa que Kant considerou as cores como elemento meramente adicional da beleza, supérfluo e em todo caso não decisivo. As cores pertencem para Kant não à forma, mas ao conteúdo das impressões sensíveis, e por isso elas não podem ser reduzidas a relações espaço-temporais. Por conseguinte, elas podem ser agradáveis, podem estimular e comover, mas não podem ser propriamente belas, pois há uma diferença qualitativa entre o belo e o agradável. Só o desenho serve para o ajuizamento do belo, já que segundo as reflexões críticas de Kant a beleza precisa estar livre de estímulo e comoção. Com isso, Kant se alinha à longa tradição que vai da renascença ao neoclassicismo e que defende a primazia do desenho sobre as cores.13

Fichte rompe com essa tradição. Para ele, as cores e seus efeitos emocionais são momentos constitutivos da beleza. Especialmente a comoção remete à mesma estrutura do sentimento típico da beleza: uma rápida sucessão de estados de ânimo diversos e mesmo contraditórios. Beleza e comoção são tão próximas uma da outra que Fichte escreve: "não pode haver comoções belas [...]. Mas uma obra de arte que não comove, certamente não é bela" (GA II, 3,215). Fichte só pode afirmar isso porque ele concebe o agradável e o belo como dois níveis da libertação do esforço distintos apenas quantitativamente, enquanto segundo Kant as emoções não pertencem nem podem pertencer ao sentimento que acompanha o juízo de gosto e são qualitativamente diferentes com respeito a este sentimento pelo fato de ser materiais e não podem ser reconduzidos a elementos formais.

No âmbito das reflexões do belo dinâmico, a questão das cores é retomada e colocada em relação com a temporalidade.

Com base no pano de fundo de sua doutrina da bela forma enquanto "forma e não-forma", Fichte pode considerar como belos em si a coloração e, em especial, um aspecto da mistura de cores, a saber, a confluência das cores (GA II, 3,220). Esse desaparecer das cores umas nas outras diz respeito não apenas à impressão das cores particulares, mas à ordenação, à disposição especial e sempre nova, singular, das impressões no tempo. A forma da transição das cores remete inequivocamente ao que Fichte tem em mente com a expressão "forma e nao-forma". Além disso, ela representa não o esforço de destruição do limite da imaginação cognitiva, mas um nível já mais elevado do esforço pela libertação da forma em geral. Isso significa que o esforço tenta dissolver a primeira condição de nossa finitude que é como se fosse um "filtro" de todas as nossas experiências, a saber, o próprio tempo.14 O belo dinâmico diz respeito à síntese das sensações no tempo, corresponde nas reflexões de Fichte à passagem do belo para o sublime que reivindica um grau ainda mais elevado de liberdade. Segundo as reflexões das Meditações próprias que se reportam imediatamente à Crítica da razão pura de Kant, o tempo tem apenas uma dimensão: ele decorre infinitamente do passado para o futuro, ou melhor, não é realmente assim que o tempo flua, mas o múltiplo da intuição flui, de maneira sucessiva, no tempo. Nós tomamos consciência do tempo apenas mediante modificação do Eu: percebemos que ocorre uma modificação de um tempo para outro. Todas as determinações do tempo nada mais são do que a limitação da totalidade do tempo; a imaginação limita cada momento b por uma percepção precedente a e uma subsequente c; cada momento é necessariamente afugentado pelo próximo (GA II, 3, 216-220). Ora, a percepção da transição das cores é bela para Fichte porque nesse caso o desaparecimento das cores é perceptível, e isso é de fato uma forma, uma organização do múltiplo, que não é forma, ou pelo menos à qual falta um elemento importante da forma, ou seja, a relação a um objeto: a confluência das cores não se reporta de fato a um objeto, pois ela e um desaparecer. Além disso, nesse caso, é como se a imaginação captasse intuições distintas em um momento sem poder diferenciar onde começa uma e termina outra. Desse modo, surge uma percepção do desaparecer: percebem-se várias impressões de cor, embora nenhuma especificamente determinada, e com isso apenas uma ordenação do indeterminado que tende à destruição da própria forma. Se considerarmos que toda intuição determina um momento, temos aqui vários momentos em um. Nessa simultaneidade de momentos distintos - que poderíamos denominar compressão do tempo -, a estrutura fundamental do tempo, a sucessão dos momentos, é submetida a uma tensão. Na confluência das cores, o esforço mostra a força do sujeito de investir, por um lado, contra a objetividade e, por outro, contra a forma do sentido interno: o tempo - ou seja, contra uma das condições que nos torna finitos. O esforço dirige-se à infinitude, à destruição de todos os limites no tempo e no espaço. O sublime, cuja abordagem em Filosofia prática se segue imediatamente à do belo dinâmico, almeja "o sem limites no tempo e espaço, acompanhado pela representação de que o Eu está preso a tempo e espaço" (GA II, 3, 239). A força do ser humano contra tudo que limita sua liberdade se mostra potente na experiência do que podemos denominar de belo sublime. A dinâmica sobre a qual o filósofo lança luz na confluência das cores se aproxima bastante da tensão entre tempo e eternidade ou entre finitude e infinitude na perspectiva da destinação do homem: por um lado, o homem deve seguir sua destinação, por outro, esse fim é a princípio inalcançável. O homem deve almejar a perfeição, mas seu destino é um "aperfeiçoamento ao infinito". O homem é finito no tempo, mas em sua destinação a perseguir o fim definitivo ele é eterno e livre daquela limitação. O poder da natureza e mesmo da morte como símbolo supremo de nossa finitude e temporalidade não provoca medo, pois o ser humano é eterno na realização de nossa destinação, exatamente como ele o sentiu na experiência volátil da confluência das cores.

Fichte infelizmente não aprofundou essas reflexões. Mas apesar disso, o tempo já estava maduro para uma reação ao neoclassicismo e para o surgimento de um novo modo de fazer e compreender a arte e uma nova concepção do gênio artístico que já supera os limites cuidadosamente traçados pela Crítica da faculdade de julgar, o sublime da natureza não aponta mais apenas para moralidade, que eleva o homem finito além do sensível, mas para grandeza e eternidade do homem, neste caso do artista, que na luta contra a natureza afirma a própria liberdade. Como exemplo deste deslocamento, mostra-se especialmente oportuna uma passagem de Algumas preleções sobre a destinação do erudito, de Fichte:

Oh! este é o mais sublime de todos os pensamentos: (...). O que se denomina morte não pode interromper minha obra, pois minha obra deve ser acabada; mas como em tempo algum pode ser acabada, tempo algum está determinado para a minha existência - e sou eterno. Levanto ousadamente minha cabeça para a montanha ameaçadora, para a estrondosa catarata, para as nuvens trovejantes, flutuando num mar de fogo, e digo: eu sou eterno.15

Referências

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1Os escritos de Fichte serão citados de acordo com a edição histórico-crítica da Academia Bávara de Ciências (1962ss). As citações serão feitas a partir da Gesammtausgabe abreviada com as iniciais GA, seguida de números romanos (seção) e indicação de volume e página em algarismos arábicos.

2Sobre isso, ver Cecchinato, 2009a.

3Veja sobre isso Cecchinato, 2009b.

4Para uma minuciosa apresentação do conceito de sublime, ver Giordanetti & Mazzocut-Mis, 2005.

6A Crítica do Juízo de Kant será citada a partir da edição da academia (1900ss). Será indicada a abreviação da obra, KU, seguida pelo volume em romanos e respectiva página.

7Sobre o surgimento cronológico, o contexto e o significado dos manuscritos para o desenvolvimento filosófico de Fichte, ver Lauth (1962).

8 Sobre isso veja Gonçalves (2016).

9GA, II, 3, 207: "A forma do objeto é dada na medida em que é reportada à verdade representada; mas na medida em que ela é meramente reportada à intuição estética, ela é como que produzida por uma autoatividade absoluta, segundo uma certa norma da faculdade do esforço".

10Em relação a isso, Fichte fala de recuperação do esforço mediante satisfação, ver GA, II, 3, 209.

11 Sobre isso, ver Henrich, (1982) .

12Em relação à hipótese de uma "profunda solidariedade entre belo e sublime nas obras de arte" também no pensamento de Kant, Cfr. Tomasi (1997: 113).

13Sobre isso, ver Giordanetti (1995). Tópicos, Revista de Filosofia 54 (2018)

14Em sua reflexão sobre o sublime matemático, Kant procede de modo bastante semelhante, Cfr. KU, V, 257-260. Sobre esse tema, Cfr' Makkreel (1984).

15A I, 3, 50, citação de tradução brasileira, Fichte (2014: 61).

Recebido: 20 de Outubro de 2016; Aceito: 20 de Janeiro de 2017

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