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Investigaciones geográficas

versión On-line ISSN 2448-7279versión impresa ISSN 0188-4611

Invest. Geog  no.57 Ciudad de México ago. 2005

 

Geografía humana

 

O território nas constituições Republicanas Brasileiras

 

The territory in the Brazilian Constitutions

 

Fabiano Soares Magdaleno*

 

* Universidade Federal do Rio de Janeiro (Doutorando / PPGG), Rua Barão de Mesquita, 904/104 - Grajaú - Rio de Janeiro/ RJ - Brasil, Endereço eletrônico: famag@brfree.com.br

 

Recibido: 18 de agosto de 2003
Aceptado en versión final: 25 de abril de 2005

 

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo analizar la cuestión de la división territorial del poder en Brasil. El tema central de la investigación es la dualidad centralización-descentralización presente en las distintas Constituciones brasileñas y las acciones territoriales derivadas de las normas en ellas concretizadas. Con base en la concepción de que la Constitución refleja la forma de organización de los poderes en el espacio, la suposición utilizada es la de que las diversas Constituciones brasileñas determinan diferentes posibilidades de recortes territoriales para la acción. La repartición de los recursos tributarios es acá encarada como un elemento de crucial importancia para el entendimiento de las relaciones entre las distintas esferas de poder público, ya que como son la base de la estructura federativa, actúan como factores causadores de gran parte de los roces que marcan las relaciones entre los gobiernos federal, estadual y municipal en el sistema republicano brasileño.

Palabras clave: Territorio, política, Constituciones, descentralización, federalismo.

 

Abstract

The present study intents to analyse the question of the power territorial division in Brazil. The central theme of the proposed investigation is the binomial centralization-decentralization that is present into different Brazilian Constitutions and the derived territorial practices established by the constitutional rules. Based on the conception that the Constitution reflects the arrangement of the powers on the space, is used here the supposition that the different Brazilian Constitutions establish different possibilities of territorial cut to action. The division of the tributary capitals is considered as an important element to the comprehension of relations between different spheres of public power. It happens because the tributary capitals division act as base of the federative structure and consist of generating factors of bigger part of the discords between federal, state and municipal governments in the Brazilian republican political system.

Key words: Territory, politic, Constitutions, decentralization, federalism.

 

INTRODUÇÃO

O presente estudo examina a questão da partilha territorial do poder no Brasil. O tema central é o binômio centralização-descentralização presente nas diferentes Constituições Federais brasileiras, do período republicano, e as práticas territoriais derivadas das normas nelas estabelecidas. Tem-se como objetivo ana-lisar a forma e o grau de inserção do conceito de território no pensamento político brasi-leiro.

As Constituições, ao apresentarem em seus textos atitudes mais centralizadoras ou descentralizadoras, estabelecem diferentes possibilidades de recortes territoriais para ação e, por conseguinte, diferentes possibilidades de ação. A avaliação de alguns de seus componentes, tal como a repartição dos recursos tributários, revela a forma de interação dos diferentes entes federados, o que permite inferir os modos pelos quais o território foi e é pensado politicamente no país, como suporte da institucionalização e da territorialização da política. Nesse sentido, as diferentes Constituições possibilitaram a territorialização de distintos atores sobre o espaço, tanto em relação ao que está nelas determinado, como em relação ao que não está, visto que se constituem em elementos de caráter normativo. Assim, uma maior autonomia para os municípios, por exemplo, materializada na maior possibilidade de obtenção de recursos financeiros por conta própria, favorece uma ação mais efetiva de grupos específicos de atores sobre o espaço e uma mudança formal e prática na maneira como este espaço é territorializado, tanto pela esfera pública como pela privada.

Este trabalho se insere no âmbito da Geografia Política, pois trata das relações espaciais e políticas de poder, materializadas na repartição deste poder entre unidades territoriais do Estado (Trigal y Pozo, 1999). A legislação é utilizada como instrumento para a análise dos modos de divisão do espaço e das formas de organização dos campos operatórios dos diferentes atores sociais. Estes constroem o espaço, que afeta e é, ao mesmo tempo, moldado pela legislação, o que confere a esta uma dimensão geográfica (Bromley, 1994 e Trumbek, 1984). O desdobramento dessa abordagem busca trazer alguns avanços para a discussão sobre a relação existente entre um dos conceitos básicos da Geografia, o território como recorte espacial, e o cotidiano das práticas político-sociais, em uma perspectiva teórica que resgata papel da esfera pública brasileira na criação de diferentes formas de territorialização, em escalas nacional, regional e local.

De início, para se fazer a articulação entre os dois elementos teóricos básicos desta investigação, lei e território, são definidos alguns conceitos essenciais, definições estas, de grande importância para o entendimento das relações aqui apresentadas. São apontadas as diferenças básicas existentes entre regras, normas e leis, para que possa ser entendido o processo de formação de uma lei, assim como suas influências nas práticas dos diferentes atores sociais. Em seguida, é feito um apanhado geral das acepções do termo território, dentro da Ciência Geográfica, visto o desenvolvimento posterior do trabalho quando é estabelecida uma comparação dos significados que a palavra território adquire nos diferentes textos constitucionais brasileiros.

Após a definição dos conceitos de centrali-zação, descentralização e federalismo, os sistemas fiscal e tributário são apontados como elementos cruciais à consolidação do chamado "pacto federativo" brasileiro, e, por isso, são escolhidos como os elementos constitucionais básicos para a análise do binômio centralização/descentralização e do conceito de território emergente do pensamento político brasileiro. Nesse sentido, para o entendimento das relações territoriais entre as três esferas federativas (União, estados e municípios) e para ser possível a avaliação das conse-qüências de posturas constitucionais de maior ou menor centralização no pacto federativo brasileiro, foi feita uma análise evolutiva das competências tributárias de cada um dos entes federados, em cada uma das Constituições republicanas brasileiras (1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988), sendo a Constituição de 1988 identificada como a maior representante do conceito de descentralização política.

Por fim, é ressaltada a criação do Pacto de Cooperação Cearense, uma ação territorial derivada das mudanças apresentadas pela constituição de 88 e são analisadas as tendências mais recentes de centralização e/ou descentralização no cenário político brasileiro.

Nas considerações finais, busca-se responder à questão central de como o conceito de território está inserido na estrutura da política brasileira.

 

LEI E TERRITÓRIO

Em dicionários comuns, os termos regra, norma e lei se confundem, sendo freqüentemente considerados sinônimos. Ferreira (1977:289), por exemplo, define a palavra lei de quatro formas:

1. Regra de direito ditada pela autoridade estatal e tornada obrigatória para se manter a ordem e o progresso numa comunidade. 2. Norma(s) elaborada(s) e votada(s) pelo poder legislativo. 3. Obrigação imposta pela consciência e pela sociedade. 4. Norma, regra.

Nota-se que, segundo estas definições, falar em lei é o mesmo que se falar em regra ou norma.

Contudo, é na análise das definições encontradas das palavras regra e norma que está traçado um esboço de diferenciação entre os três termos citados anteriormente. Segundo Ferreira (1977:333 e 409), norma é, dentre outras definições "aquilo que se adota como base ou medida para a avaliação ou realização de algo", e regra é "aquilo que regula, dirige, rege ou governa"; e a "fórmula que indica ou prescreve o modo certo de falar, raciocinar, agir, etc." Podemos notar que com o uso da expressão "base de avaliação" é concedido à palavra norma um sentido mais generalista, enquanto que o uso dos verbos dirigir, reger e regular concede ao termo regra um sentido mais prático de estímulo e resposta.

Ao tratarem dessas sutis diferenças entre os termos regra e norma, Clark e Dear (1984:104), citando Kennedy (1976), seguem a diretriz esboçada em Ferreira e definem regra como uma diretiva formal, exigente de resposta de uma maneira específica. Já a norma, segundo essa linha de pensamento, se constitui em um termo referente aos objetivos gerais da ordem legal. As normas, nesse sentido, atuam como princípios e diretivas de caráter mais amplo, a serem levados em consideração no momento de elaboração das regras que nortearão as práticas individuais e coletivas. E é por isso que Santos (1996:184) caracteriza as normas como elementos importantes na estruturação da realidade, já que se configuram nas bases mais profundas das ações reguladoras do território.

A lei, por sua vez, deve ser considerada, não apenas como um simples sinônimo de regra, e sim como um corpo de regras, formalmente estabelecidas ou não, e reconheci-das como obrigatórias para os membros de um Estado ou comunidade (Webster's Dictionary, 1994:221). Essa noção de conjunto de regras concede ao termo lei um sentido de obrigação imposta, que deve ser somado à idéia de maior abrangência da lei. Segundo Clark e Dear (1984:106), para um conjunto de regras ganhar o status de leis, duas condições essenciais precisam ser preenchidas. Primei-ramente, as leis devem ser gerais e totalmente abrangentes, estando voltadas mais para o lado social que para o lado individual. Em segundo lugar, devem ser dependentes das dimensões que os indivíduos concedem aos outros. Em essência, a lei é uma expressão social de regras e padrões que estabelece ações individuais, obrigações e intenções, apesar de nem todos concordarem com essas regras e padrões, e nem todos os comportamentos derivados serem iguais.

É válido salientarmos que a pretensa neu-tralidade da lei, almejada por naturalistas e positivistas, é quase que utópica, já que não existe, na prática, distanciamento entre lei e política. Dizemos utópica porque uma breve análise do significado da palavra política nos revela a incongruência de se pensar que a ela-boração de leis possa ser um processo marcado pela neutralidade.

O uso da política surgiu da convivência comunitária entre o povo grego, sendo a palavra derivada do termo polis, que, por sua vez, significava cidade, naquela língua. Desde o início, fazer política era dever e direito do cidadão em sua participação na vida comunitária. Nesse sentido, todo cidadão era um político, já que tratava ou se ocupava de política (Finley, 1989).

A política criada pelos gregos constituíase no questionamento explícito da sociedade instituída, presumindo-se que pelo menos a maior parte das instituições por ela criada não teria nada de sagrado ou natural, estando na dependência do movimento democrático que combateria o poder explícito e buscaria reinstituí-lo. Não obstante, esse questionamento explícito da sociedade não pode, de maneira alguma, estar associado a uma neutralidade inquestionável da lei.

As leis, assim, consistem na força normativa da vontade política e, dependendo do momento histórico em que são elaboradas, tendem a incorporar características específicas, que revelam as condições políticas e sociais em que for am feitas. Todavia, ela não é apenas um reflexo dessa estrutura política. Ao mesmo tempo, também orienta e influencia a ação político-social (Bromley, 1994). A partir de uma representação territorial que uma lei, então, pode e deve estabelecer, os atores vão proceder a repartição das superfícies e organizar os campos operatórios de suas ações (Trumbek, 1984).

Produzir uma representação do espaço já é uma apropriação, isto é, uma territorialização, mesmo se ela permanece nos limites de um conhecimento. A política, nesse sentido, aparece como um guia essencial dessa investigação, a partir do momento em que podemos defini-la como um conjunto de relações que delimita os conteúdos dos territórios.

De acordo com Souza (1997), não há poder sem base territorial, uma vez que essa é o fundamento de acesso a fontes de poder. Transformações na vida social costumam demandar mudanças no substrato material que as condiciona. Sendo assim, ao ser parte integrante das relações sociais, qualquer projeto legal, apesar de não determinar, induz ao estabelecimento de um recorte espacial, que por sua vez tem relação direta com o objetivo de tal projeto.

Apesar da prática legal poder afetar a vida social em uma determinada porção do espaço, a lei, por ela mesma, não é simplesmente imposta à escala local, mas é, em vez disso, interpretada dentro e através dela. Neste sentido, é válido ressaltarmos que estamos aqui tratando de influências, interações e relações entre processos que produzem movimentos na ação política, mas operam em diferentes escalas geográficas (Delaney and Leitner, 1997).

Considerando as diretrizes estabelecidas acima, podemos destacar três noções básicas que nortearão os próximos passos teóricos: 1. Um projeto legal não pode ser analiticamente separado das relações sociais e políticas. 2. As leis podem e devem estabelecer representações territoriais, a partir das quais os atores vão proceder a repartição das superfícies e organizar os campos operatórios de suas ações. 3. Não há poder sem base territorial. Visto isso, se torna necessária uma breve discussão sobre o conceito de território, para explicitarmos com mais clareza o significado que tal termo adquire em nossa explanação.

O termo território vem ganhando cada vez mais importância nas Ciências Sociais. Contudo, sua definição como um conceito bem estruturado e acabado está longe de terminar. Discussões sobre o assunto não faltam, o que evidencia a sua grande riqueza e fluidez.

Por ser alicerce de sobrevivência, fonte de poder e alvo de desejo de apropriação e controle (militar, econômico e cultural), o espaço geográfico, entendido como um "conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações" (forma-conteúdo) que materializa o tempo cronológico, tende a ser objeto de disputa e apropriação (Santos, 1996:18). Esta apropriação, feita com consciência, independentemente da linha de abor-dagem que se adote, implica sempre na caracterização do termo território e da noção de territorialidade.

O território é uma qualificação do espaço geográfico que não deve ser confundida com o próprio. Constitui uma dimensão espacial de projeção que não é, em si, a materialidade, apesar de denotar uma existência objetiva. Neste sentido, o entendimento mais profundo do termo nos leva a considerá-lo como parte integrante de qualquer projeto social, já que não existe ação social que não esteja relacionada a uma determinada porção do espaço, isto é, que não denote a necessidade de uma territorialização, mesmo que esta fique apenas na fase do projeto.

A noção de território tem sua origem na palavra latina territorium que significa "pedaço da terra apropriado". A aplicação inicial da palavra ocorreu nas cidades-estado da Grécia clássica. Em um período posterior, ele reaparece para descrever a área de jurisdição das cidades medievais italianas.

Só a partir da época moderna que o termo começa a ganhar importância e a aparecer com maior freqüência. No tratamento moderno, a sua aplicação referente às cidades foi substituída pela aplicação dos Estados Modernos. O território passa, a partir daí, a ser a terra pertencente ao Estado (Taylor, 1985).

O significado jurídico moderno do termo território está diretamente relacionado ao conceito de soberania, o que por sua vez significa que há uma autoridade final e absoluta na comunidade política.

O Estado territorial está associado ao nascimento das monarquias absolutistas na Europa, com suas burocracias centralizadas, taxas e exército. Neste sentido, três noções básicas podem ser associadas ao sentido jurídico moderno do termo: dominação, área e limites.

Na geografia moderna, a incorporação de concepções advindas da Etologia (estudo do comportamento animal no seu habitat) de que não existe comportamento social sem território, faz emergir com força a reflexão sobre o poder revelado no controle e na gestão do espaço. A partir daí, passaram a ser discutidas as bases da existência de "novos territórios" como os da prostituição, das feiras, das drogas, etc., todos eles marcados por um sentido figurado que conserva a idéia de domínio individual ou coletivo. Assim, o conceito de território deixa de estar reduzido apenas a uma entidade jurídica e internaliza um outro sentido, que não mais está apenas relacionado a escala do Estado-Nação: o sentido comportamental.

Visto o aparato conceitual básico, percebese, portanto, que a palavra território tornou-se um termo polissêmico que tem como principais, as seguintes acepções: domínio mais ou menos vago, não necessariamente espacial, atribuído a qualquer objeto de estudo geográfico; porção da superfície terrestre que representa uma simples área de extensão de um fenômeno e seus limites; porção da superfície terrestre sobre a qual ocorrem conflitos entre grupos sociais para assegurar sua dominação e mudanças nos usos do solo; porção da superfície terrestre delimitada por uma coletividade humana que a organiza de acordo com suas necessidades, contém uma autoridade e possui limites reconhecidos; porção da superfície terrestre apropriada por um grupo social para assegurar sua reprodução e a satisfação de suas necessidades vitais; Conceito relevante da socialização do espaço, que não é de natureza individual, salvo em alguns sentidos específicos, como os do cômodo de uma casa.

Desta maneira, segundo tais acepções, todo território possui uma localização particular, resulta de um processo de apropriação, é organizado e gerido por um grupo (é produzido), e muda de uma geração para outra. A noção que permanece como base para a formulação do conceito e que é adotada aqui como alicerce de nossa explanação, é, simples e objetivamente encara o território como uma porção do espaço geográfico (conjunto de sistemas de objetos e sistemas de ações), onde são projetadas relações de poder, que geram uma apropriação e um controle sobre este espaço, independentemente se ele é ou não territorializado por um ou mais agentes. Apesar de ser aqui considerado como uma apropriação efetiva e/ou simbólica de uma porção do espaço geográfico por um determinado agente social, o conceito não designa uma "entidade" imutável, sem variação escalar.

Sendo assim, devemos considerar que a disposição de certas regras e práticas de reprodução social e política no território e seus limites de ação, são partes constituintes de uma ordem espacial.

 

O termo território nas Constituições do Brasil

A recorrência do termo território nos textos constitucionais republicanos pode ser considerada razoável, principalmente se considerarmos a relação entre o número de artigos componentes de cada Constituição e o número de vezes em que a palavra aparece em cada texto (Tabela 1). Com base nessa relação, observa-se que houve um crescimento, não linear, mas expressivo, dessa recorrência. Na Constituição de 1891, a palavra território aparece uma vez a cada seis artigos publicados, o que representa a menor freqüência de todos os textos. No texto de 1934, a freqüência de citações aumenta muito e passa para uma ocorrência a cada quatro artigos. Já nas Constituições de 1937 e 1946, essa freqüência voltou a diminuir, passando a ser, respectivamente, uma citação a cada cinco artigos e uma para cada seis. A partir daí, nas Constituições de 1967 e 1988, a tendência de aumento da freqüência de utilização do termo território se consolida, voltando a ser de uma citação a cada quatro artigos nos dois textos constitucionais. Desta forma percebe-se que a freqüência do uso da palavra território nos textos constitucionais brasileiros quase dobrou de 1891 até 1988.

Apesar desse aumento da freqüência de uso da palavra, nota-se que o sentido do termo, em todos os casos de sua utilização, não variou praticamente em nada. A palavra território, em todos os textos constitucionais analisados, aparece sob duas formas de uso: ou é encontrada sob forma de nome próprio, com letra maiúscula, ou sob forma substantiva comum, geralmente associada a outras palavras como nacional, estadual, municipal e estrangeiro.

O "Território nome próprio", com "T" maiúsculo, que só não é encontrado no texto da Constituição de 1891, se refere a uma espécie de ente federado semelhante a um estado, mas que está sob a administração da União até que possua recursos suficientes para sua própria sustentação. Já o "território substantivo comum", com "t" minúsculo, aparece sempre, ou direta-mente associado a outras palavras, formando termos como território nacional, território da República, território estrangeiro, território estadual, etc, ou fazendo referência a estas palavras, sem necessariamente formar expre-ssões específicas, como por exemplo, no caso do artigo 8°, § 4°, da Constituição de 1934, que diz "O imposto sobre transmissão de bens corpóreos cabe ao Estado em cujo território se achem situados..." (Campanhole e Campanhole, 1992:622). De qualquer forma, no caso do "território substantivo comum", a palavra adquire o sentido de área de extensão sob o controle do Estado e/ou de outra entidade política, ficando evidente, assim, a supremacia da noção jurídica tradicional da Geografia Política, que define o território como a base geográfica de um Estado sobre a qual exerce a sua soberania.

A expressiva recorrência do termo território nos textos constitucionais republicanos brasileiros, é um fator que, associado à evidência, de que esse termo foi citado nos mais variados contextos (associado a temas como eleições recursos naturais, competência tributária, sistema de ensino, etc.), nos dá a confirmação de que o conceito de território se configura em um elemento importante para a definição da legislação e, consequentemente, para o desenrolar das práticas sociais, f ato este que, por si só, já serviria de justificativa para a escolha do tema de nossa investigação.

Contudo, devemos, além disso, estar atentos ao fato de que, como foi tratado anteriormente, o termo território, em suas facetas mais complexas que vão além da simples definição de porção do espaço concreto, se configura em uma noção que muitas vezes está intrínseca às práticas e aos projetos sócio-políticos, não havendo a necessidade de que seja citada de forma explícita como uma palavra. Nesse sentido, sendo a Constituição o elemento primeiro e efetivo de definição da forma e da área de atuação dos agentes sociais, principalmente dos agentes públicos, a existência da noção de território se torna inegável em diferente partes do texto constitucional. Os exemplos são muitos, mas para uma análise mais detalhada escolhemos um, que nos mostra com clareza e transparência a presença da noção de território nas Constituições, mesmo quando a palavra não é textualmente mencionada: o caso das competências designadas para cada esfera de governo e, mais especificamente, o caso das competências tributárias, ou seja, a parte do texto constitucional que mostra, de forma clara, o que cabe a cada esfera de governo, em termos de recolhimento de impostos. Tal repartição de impostos a serem arrecadados não se configura apenas em uma simples determinação de quanto recurso financeiro cada esfera de poder terá disponível. É inerente e derivado dessa repartição de impostos o estabelecimento da maneira como o poder de ação, entendido como a capacidade de obter efeitos desejados, está distribuído dentre as diferentes esferas de governo que compõem a federação brasileira. Como desdobramento, esta repartição dos tributos estará delimitando, mesmo que de maneira superficial, o espaço geográfico a ser apropriado por cada esfera de governo e a escala de ação de cada uma delas (está presente o conceito de território, mesmo que ele não seja citado textualmente).

 

CENTRALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS BRASILEIRAS

Nesta parte, objetivamos avaliar a sucessão de processos políticos de centralização-descentralização oriundos diretamente dos textos constitucionais, bem como evidenciar os efeitos dessas regras constitucionais sobre o território brasileiro.

Centralização e descentralização são princípios, tendências e modo de ser de um aparelho político ou administrativo que representam, na teoria, dois tipos contra-postos de ordenamentos. Contudo, na pr ática, assim como ressalta Bobbio (1986:329), "todos os ordenamentos jurídicos positivos são parcialmente centralizados e, em parte, descentralizados", já que "não existe um sistema político-administrativo que esteja exclusivamente orientado para a otimização de uma ou de outra" prática. Daí, o porquê de estarmos considerando como tema central de nosso trabalho o binômio, e não a oposição, centralização/descentralização nas Constituições brasileiras.

Assim, na realidade, nenhum ordena-mento se encontra totalmente centralizado ou descentralizado. A centralização pura não é compatível com a existência de grande complexidade e variedade de funções, en-quanto que, por outro lado, a descentralização total levaria à criação de um novo ordena-mento, efetivamente desvinculado de sua origem.

O que se pode perceber de concreto é que, do ponto de vista geral, ocorre um contínuo movimento de troca entre tendências centralizadoras e descentralizadoras. Quando "a quantidade de poderes das entidades locais e dos órgãos periféricos é reduzida ao mínimo indispensável" tem-se o que consideramos como centralização. Em outra direção, tem-se a descentralização quando "os órgãos centrais do Estado possuem o mínimo de poder indispensável para desenvolver as próprias atividades" (Bobbio, 1986:330).

Ao tratarmos do tema descentralização, é inevitável e necessário que consideremos o conceito de federalismo. Uma federação, segundo Dallari (1986:80), se configura em uma "aliança indissolúvel de Estados, baseada numa Constituição", que dá nascimento a um novo Estado, mas que assegura a autonomia (direito e poder de autogovernar-se) de cada um dos Estados-membros. Para o exercício de tal autonomia indispensável que o Estado-membro, integrante da federação, tenha um conjunto significativo de competências próprias e exclusivas e possa desempenhá-las com seus próprios meios".

Em um sistema federalista não existe a possibilidade de existência de apenas um único centro de poder hegemônico, ficando afastada a hipótese de predomínio de um grupo sobre o outro. A pluralidade de centro de poder está garantida, pela atribuição de diferentes competências a cada uma das esferas.

Desta forma, consideramos que dentro de um ordenamento político pode haver diferentes possibilidades de relações entre os Poderes, definidas nas Constituições por meio do estabelecimento de competências e de distintas formas de distribuição de recursos entre esses Poderes, o que significa diferentes graus e formas de descentralização.

Para que um sistema federativo funcione é necessária a existência do chamado pacto federativo, que consiste em um conjunto de complexas alianças, na maioria pouco explícitas, soldadas em grande parte por meio de fundos públicos. Esses fundos podem ser definidos como um conjunto de recursos que têm a finalidade de desenvolver ou consolidar, através de financiamento ou negociação, uma atividade pública específica, e se materializam na soma das receitas tributárias próprias e oriundas de transferências constitucionais ou negociadas, com outros recursos públicos, tais como a receita disponível da União, os gastos das empresas estatais federais, os incentivos fiscais regionais e setoriais, e os empréstimos do sistema financeiro público (Quadro 1). Sobre essa teia de fluxos de recursos públicos é que se assentam as relações de troca entre as esferas de governo e entre os recortes territoriais formais, materializadas no sistema de representação política dos estados e na distribuição de encargos entre União, estados e municípios, contemplando, assim, um maior ou menor grau de unicidade/ diversidade entre as unidades federadas.

No Brasil, tendo em vista que o processo de integração territorial, intensificado a partir de meados do século XX, não foi capaz de superar as enormes disparidades da distribuição regional da renda (Egler, 1996), o papel crucial dos fundos públicos é o de soldar o pacto federativo (Affonso, 1995). Além disso, os fluxos de recursos representam um elemento de fundamental importância para a formação e reprodução das bases partidárias locais e angariam apoio empresarial, em nível regional, para alavancar financiamentos privados para obras públicas.

A forma institucional de organização da Estado federativo brasileiro está diretamente ligada à idéia de que o federalismo é uma forma de organização territorial de poder que supõe necessariamente uma permanente tensão e desarmonia entre as partes, desarmonia essa que está na origem da tensão, mas que é o motivo de uma negociação que passa a ser permanente, e cujos produtos serão sempre arranjos institucionais transitórios e dependentes do momento histórico de sua formação.

O federalismo fiscal e tributário do país obedeceu a uma espécie de movimento pendular que se iniciou com um período de descentralização fiscal acentuada, no começo da república, avançou gradativamente para uma centralização na década de 60, voltou a tender para a descentralização a partir da Constituição de 1988 e, nos dias atuais, está novamente com inclinações centralizadoras.

A Constituição de 1891 atuou como um instrumento aglutinador que permitiu aos liberais elaborarem um pensamento político, que preponderou ao longo das três primeiras décadas republicanas. Neste período, o liberalismo correspondia à doutrina política oficial, apesar de a prática do regime, na época, ter sido francamente autoritária, com o abandono do princípio da representação das camadas urbanas (Barreto, Paim, 1989). De acordo com o momento histórico brasileiro da época, passagem da Monarquia para a República, podemos ressaltar algumas inovações encontradas nesta Constituição de 1891, em relação a sua antecessora de 1824, que, com certeza, serviram como criadoras de novas formas de territorializações nas mais diversas escalas: a transformação definitiva do país em uma federação, na qual concebiam-se como seus membros os Estados Federados; as decorrentes da eliminação da nobreza; as advindas da separação da Igreja do Estado; e a opção pela forma presidencialista do exercício do Poder Executivo e, simultaneamente, pela descentralização dos poderes da União mediante a transferência de múltiplas atribuições aos estados (os estados deveriam assegurar a autonomia municipal; o raio de ação do poder central foi bem delimitado; auxílios financeiros da União aos estados deveriam ser feitos apenas em caso de calamidade pública e só quando solicitados), atribuições essas que não significavam um poder soberano.

No início do período republicano, o sistema tributário brasileiro concedia grande liberdade de ação aos estados, que baseavam suas receitas nas exportações, incluindo as vendas interestaduais, ficando para a União as receitas obtidas com as importações. Diferentemente dessas duas esferas, a federal e a estadual, que tributavam também o consumo, os municípios não possuíam, naquele momento, nenhuma competência tributária própria, atuando como dependentes das transferências de recursos estaduais.

Foi só a partir da Constituição de 1934 que os municípios passaram a ter competência própria, materializada nos impostos de licenças, no imposto predial e territorial urbanos, no imposto sobre diversões públicas e no imposto cedular sobre renda de imóveis rurais e taxas sobre serviços municipais.

A Constituição de 34, além de não ter mais permitido a bi-tributação, dividiu o tributo sobre o consumo em duas partes: o imposto de consumo, de competência da União, e o imposto sobre vendas e consignações, de competência estadual. Contudo, nota-se que tal Constituição representou, ao mesmo tempo, um momento de ampliação da base de competências da União, que expandiu sua fonte de receita, antes concentrada nas impor-tações e no consumo, para a renda, e um momento de restrição da liberdade de atuação dos estados, que tiveram fixado em 10% a alíquota máxima para o imposto sobre exportações e deixaram de ter os pequenos produtores como contribuintes do imposto sobre vendas e consignações, dos quais se tornaram isentos.

Nas Constituições seguintes de 1937 e 1946 a liberdade de ação dos estados só se fez diminuir, o que evidenciou o movimento gradual, já citado anteriormente, de centralização pelo qual passou o federalismo fiscal brasileiro até a década de 80. Entre 1939 e 1946, por exemplo, os estados e municípios, para concederem qualquer tipo de isenção, eram obrigados a consultar um Conselho Federal ou o Presidente de República. Na Constituição de 1946, se por um lado a necessidade dessa consulta foi eliminada, a liberação das propriedades agrícolas inferiores a 20 hectares do imposto sobre propriedade rural, a redução da alí quota máxima do imposto de exportação, que era de 10% na Constituição de 1934, para 5% e a restrição do campo de incidência desse imposto apenas às vendas ao exterior, por outro lado, tornaram mais limitada a capacidade de ação dos estados. Como mecanismo de compensação, foi ampliada a incidência do sistema de transferências do Governo Federal para os estados e, principalmente, para os municípios. Quanto a isso, é válido destacar que o sistema de partilha e transferências constitucionais federais iniciou-se de forma explícita na Constituição de 1937, com a Lei Constitucional n° 4/40 que destinou aos estados e municípios uma quota correspondente a seu consumo sobre a receita proveniente da tributação, pela União, dos combustíveis e lubrificantes.

Na Constituição de 1967 foi dada continuidade ao processo de centralização fiscal com a expansão das fontes de financiamento da União, por meio da instituição dos impostos únicos e da transferência para a União da responsabilidade, anteriormente dos estados, sobre arrecadação dos impostos sobre propriedade rural e exportação. Para se ter uma noção mais precisa, se compararmos com a constituição anterior, a competência estadual foi reduzida de sete para apenas dois impostos: o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) e o Imposto sobre transmissão de bens imóveis. Os municípios, nesse momento, mantiveram sua tributação sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) e consolidaram os demais impostos no Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), cobrado sobre os serviços fora do campo de incidência do ICM.

Além disso, o limite principal estabelecido para a atuação dos estados e municípios, enquanto agentes sociais, foi dado pela prerrogativa constitucional do artigo 20, § 2-, que atribuía à União o poder de mediante lei complementar, atendendo a relevante interesse social ou econômico nacional, conceder isenções de impostos federais, estaduais e municipais.

Mais uma vez, assim como ocorreu na Constituição de 1946, buscouse compensar a redução do poder de tributar dos estados e municípios com a ampliação do sistema de transferências constitucionais federais. Apesar de ter havido uma diminuição na por-centagem a ser repassada aos estados e municípios, pela União, do imposto sobre os lubrificantes e combustíveis líquidos ou gaso-sos, que na Constituição de 1946 era de, no mínimo, sessenta por cento da arrecadação e na Constituição de 1967 passou para quarenta por cento, houve aumento na porcentagem de repasse do imposto sobre os minerais, de sessenta por cento, em 1947, para noventa por cento, em 1967. Além disso, dois novos impostos ficaram sujeitos a tal distribuição intergovernamental: o imposto sobre renda e proventos e o, então criado, imposto sobre produtos industrializados, dos quais doze por cento eram divididos entre um fundo especial (2%) e os fundos de participação de estados (5%) e municípios (5%).

Essa concentração cada vez maior de poderes, na área tributária, nas mãos da União, provocou como reação, na década de 70, um movimento de caráter descentralizador, principalmente, em relação aos recursos.

Mas foi na Constituição de 1988 que, pela primeira vez, juntamente com os estados, o Distrito Federal e ocasionais Territórios, os municípios passaram a ser considerados oficialmente membros integrantes da federação, tendo, assim, maior possibilidade de se conveniar diretamente com a União. Além disso, passa a ser de competência estadual o estabelecimento dos parâmetros dos processos de emancipação, o que fortaleceu, e muito, a autonomia dos estados e representou um passo adiante do federalismo no País (Noronha, 1997). Nesse sentido, o texto constitucional de 1988 é considerado por muitos como o de caráter mais descentralizador dentre todos os outros, se configurando como uma poderosa força normativa, que ao se refletir na prática político-social, foi e é capaz de gerar mudanças significativas nas possibilidades de territorialização dentro do espaço brasileiro.

As discussões referentes às questões tributárias e orçamentárias na constituinte de elaboração da atual Constituição foram conduzidas sob influência forte da faceta federativa da redemocratização, expressa mais na ascensão dos poderes municipais e estaduais, do que dos aspectos ideológicos desse processo, tais como a justiça social e as relações entre Estado, sociedade e mercado. Os maiores beneficiados com o aumento da participação das esferas subnacionais no chamado bolo tributário foram os municípios, que, considerando as transferências intergovernamentais, quase duplicaram sua participação na receita disponível, passando de 9%, em 1980, para 16%, em 1993.7 Contudo, na análise da evolução da receita própria dos governos municipais, para o mesmo período, de 80 a 93, nota-se que houve apenas um pequeno acréscimo de dois pontos percentuais (de 3% para 5%), o que nos leva a considerar que tal elevação de participação na receita disponível deve ter sido conseqüência, principalmente, do aumento de transferências federais e estaduais, dado pela nova Constituição, que, no caso dos estados, apesar de ter elevado as receitas próprias, aumentou também as suas transferências obrigatórias aos municípios. Percebe-se também que a União, por sua vez, perdeu posição em relação às demais esferas, já que sua receita própria caiu 7%, entre 1980 e 1993, e sua receita disponível obteve um decréscimo de 9%, nesse mesmo período.

A Constituição de 88 está marcada também pela maior exigência de vinculação dos gastos da União, contrastando com a maior liberdade de aplicação de recursos dos governos subnacionais. Ocorre, então, uma grande perda de capacidade regulatória e articuladora por parte da União.

Ocorreu, na atual Constituição uma grande redução da área de competência tributária da União, dada pela eliminação de cinco impostos federais e pela criação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte e Comunicações), imposto estadual com uma base de incidência bem mais ampla que o antigo ICM. Nesse contexto, vários produtos que eram anteriormente tributados pela União, foram para a competência dos municípios, como por exemplo, os combustíveis, ou passaram a f azer parte da base de incidência do ICMS, f azendo desse uma das principais fontes de arreca-dação do país, como, por exemplo, o transporte, a energia elétrica, os minerais, e as comunicações.

Além disso, a disputa política entre as unidades federadas por fontes de renda fixas e seguras, teve como resultado algumas distorções na distribuição das competência tributárias que geraram até mesmo superposições de incidências entre alguns impostos (Dinis Filho, 1998).

A criação do Imposto sobre Vendas a Varejo de Combustíveis (IVVC) refletia, segundo a proposta original, a tendência de compensação dos municípios de maior porte pela perda de arrecadação com a incorporação do Imposto Sobre Serviços (ISS) ao então criado ICMS. Contudo, apesar de essa incorporação não ter se concretizado, o novo imposto foi criado, carreando maiores recursos para os municípios, ainda que não houvessem perdas a serem compensadas.

Analisando a base de incidência de cada imposto percebe-se uma superposição entre alguns impostos que aumentam o peso sobre certos setores da economia e geram efeitos cumulativos de tributação sobre o consumo. Os produtos industrializados, por exemplo, pagam o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), no âmbito federal, e o ICMS, no estadual. Da mesma forma, o setor de combustíveis e lubrificantes é tributado pelo ICMS, estadual, e pelo IVVC, municipal. Já no caso do ISS, encontram-se alguns pontos de contato entre esse imposto e o ICMS, em especial no caso de prestação de serviços com fornecimento de mercadorias ou quando os serviços intermediários são incluídos na base de cálculo do ICMS (Quadros, 1995:78).

Outro elemento encontrado na Constituição de 1988 que evidencia a faceta descentralizadora do poder político, encontrada no modelo federativo por ela instaurado, é a proibição, explícita em seu texto, de concessão, por parte da União, de isenções de impostos submetidos à competência exclusiva de estados e municípios, o que conferiu a essas unidades federadas a capacidade de exercer importante papel na definição da política fiscal e nas políticas de desenvolvimento baseadas na concessão de incentivos fiscais.

O governo federal reagiu à perda de recursos da Constituição de 88 aumentando, por exemplo, as alíquotas dos tributos não-sujeitos à partilha intergovernamental (IOF e contribuições sociais), ampliando as dificuldades para rolagem das dívidas dos estados e exigindo dos estados o pagamento da dívida externa contraída com o aval federal. Além disso, nos anos 90, transferiu o patrimônio e pessoal da saúde (rede INAMPS) aos estados e municípios, contudo mantendo sob seu comando as transferências de recursos. Ocorreu, assim, segundo Affonso (1995:70), uma "descentralização tutelada".

A partir da Constituição de 1988, somando-se a crise econômica à ampliação da participação das esferas subnacionais no bolo tributário e à conseqüente diminuição da capacidade regulatória e articuladora da União, surgiram grandes disputas estruturais entre as unidades federadas, que infelizmente não foram suficientes para sanar o vício da reprodução das desigualdades sociais. A recente intensificação da chamada "guerra fiscal" (competição para atrair capitais, por meio de concessão de incentivos de isenção fiscal) entre estados é o maior exemplo disso. Ocorreu assim, uma generalização das estratégias estaduais de atração de investimentos produtivos e de geração empregos, por meio de concessões de incentivos fiscais, que só foi viabilizada graças à autonomia conquistada pelos estados, nesta atual Constituição, para gerirem o então criado Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

O ICMS substituiu diversos impostos seletivos incidentes sobre o faturamento das empresas pela sistemática da tributação sobre o valor adicionado, segundo a qual a alíquota do imposto é baseada apenas no valor que é acrescido à mercadoria em cada operação de venda, descontando-se, assim, o imposto já pago em operações anteriores.

Contudo, a estrutura tributária montada no Brasil em 1988, ao invés de criar um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA)8 com base de incidência ampla e colocado na competência do governo federal, adotou dois impostos desse tipo IVA: o IPI, de base mais restrita e competência federal, e o ICMS, de base ampla e de competência estadual, caso único no mundo de IVA que não é de competência federal (Dinis Filho, 1998).

Para os municípios, por sua vez, a mudança que permitiu a sua maior atuação nessa luta por investimentos produtivos foi a, já citada, criação do IVVC,9 sem a correspondente incorporação do ISS ao ICMS, fato este que fez com que o ISS, juntamente com o IPTU, se constituíssem em importantes instrumentos municipais nessa "guerra fiscal".

Sendo assim, além da faceta de descentralização política, dada pelo veto à União de conceder isenções de impostos submetidos à competência exclusiva de estados e municípios, consideramos que a Constituição de 88 possui também uma outra faceta, marcada por efeitos de sua estrutura fiscal e tributária sobre o desempenho da economia e das finanças públicas e pela intensificação da chamada "guerra fiscal". Essa "guerra" gerou efeitos no território, concretizados em disputas territoriais por investimentos, que, por sua vez, estão caracterizadas pelo aumento da competitividade de porções território brasileiro historicamente menos favorecidas para atrair investimentos, afetando a hegemonia das regiões centrais.

Como um exemplo, que já é até considerado clássico desse tipo de disputa fiscal que teve sua gênese estreitamente ligada às mudanças na distribuição das receitas tributárias instituídas pela Constituição de 1988, há o chamado Pacto Cearense de Cooperação, iniciativa ocorrida na escala estadual que revela uma prática territorial de base essencialmente legal, visto que, sua ocorrência foi possível pela alteração no texto constitucional.

Este "Pacto de Cooperação" consistiu em um fórum semanal de debates, iniciado em 1991, semelhante a vários que existiram e ainda existem em outros estados do país, que reunia empresários, intelectuais e sindicatos empenhados em buscar alternativas à revita-lização da economia cearense. Tratava-se de uma articulação entre interesses econômicos, político-partidários e administrativos, nos anéis burocráticos do poder. No dizer de Gunn (1994), o Pacto constituiu-se em um exercício inovador de propaganda e "marketing", tendo sido, na realidade, uma espécie de "venda" do Ceará para sediar atividades econômicas e "venda" de um modelo de governo. Essa incorporação de práticas do "marketing" fez parte da renovação de administração dos negócios empresariais e estaduais, e os benefícios trazidos pelo Pacto ao governo do Ceará se configuraram em ganhos políticos e econômicos, em função de uma atividade de divulgação que criou uma imagem favorável do estado, diferenciando-o dos demais (Manzagol, 1985).

Com base na possibilidade de manipulação do ICMS, o governo cearense destacava-se dentre os estados nordestinos, em meados da década de 90, por adotar uma política de atração de investimentos das mais agressivas do país (Castro y Magdaleno, 1996). Nesse contexto, de 1991 a 1996, trezentas e vinte e quatro novas empresas de vinte e oito perfis industriais distintos, desde de fábricas de zíper até indústria eletrônica, já haviam se instalado no estado.

Sendo assim, os efeitos territoriais das atividades do Pacto Cearense foram a efetiva atração de capitais nacionais do Sudeste e do Sul, principalmente nos setores têxtil e calçadista, como a melhoria da imagem do estado, importante para o turismo e para a "captura" de capital multinacional.

Percebe-se, então, que o Pacto Cearense de Cooperação tem sua gênese estritamente ligada às mudanças na distribuição das receitas tributárias instituídas pela Constituição de 1988 e que representou uma ação de caráter descentralizador das decisões econômicas e políticas, já que é derivado de uma modificação do agente decisório, que antes estava muito centrado no poder federal, e passou a estar um pouco mais ligado à esfera de articulação local, representando, nesse sentido, uma perspectiva de ganho de uma certa autonomia em sua organização.

Como conseqüência de todo esse processo de alteração de responsabilidades tributárias, nota-se que dentro das discussões acerca do pacto federativo, o que está em jogo, no Brasil de hoje, é a disputa pelo comando dos gastos públicos. De um lado, encontra-se a reivindicação, por parte do governo federal, de uma certa recentralização de recursos e, de outro lado, a exigência de estados e municípios de manutenção da descentralização e de repasse automático de recursos, com critérios de transferência previamente definidos. A vinculação dos repasses oriundos de transferências da União ao pagamento de obrigações relacionadas às várias modalidades de endividamento, reintroduziu a rigidez e dependência nas relações intergovernamentais. A recente-mente aprovada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), Lei Complementar nQ 101, de 04/ 05/2000, que estabeleceu normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, mediante ações de correção de riscos que possam ser capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, trouxe à tona debates sobre o grau de autonomia financeira que devem possuir as esferas subnacionais de governo e sobre a extensão das funções reguladoras do governo federal, já que estipula, dentre outras coisas, critérios de fixação e cumprimento de metas de resultados entre receitas e receitas.

Assim, vê-se que a introdução de maiores restrições a novos endividamentos de estados e municípios somada à pressão pelo pagamento de suas dívidas já existentes, vem freando naturalmente o processo descentralizador alavancado pela Constituição de 1988.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devemos finalizar respondendo à principal indagação de nosso trabalho que está relacionada com a forma de materialização da noção de território nos textos constitucionais brasileiros.

O entendimento dos territórios que emergem das Constituições brasileiras só se faz possível se levarmos em consideração duas acepções distintas, mas, de alguma forma, complementares, do termo. A primeira acepção, aqui intitulada de "noção jurídica tradicional", considera o território apenas como uma área de extensão sob o controle oficializado do Estado e/ou de outra entidade política; e a segunda, intitulada de "multiescalar", concede à noção de território uma conotação mais ampliada de porção do espaço geográfico que se torna fruto de uma apropriação efetiva e/ ou simbólica, dada por um determinado agente social, que obedece a um mecanismo variável no tempo e no espaço.

Nesse contexto, a análise dos textos constitucionais republicanos do Brasil conduz a duas dimensões: uma formal e outra menos formal e mais dinâmica. A primeira ressalta a existência de um território rígido, marcado pela soberania de um agente político, União, estados e/ou municípios, sobre o qual é exercido total controle. Como exemplos, sao atados nos próprios textos constitucionais os termos território nacional, território da República, território estadual, e território municipal, Território do Acre, etc.

Na segunda dimensão, as relações entre os entes federados, dadas pelo modo como estão divididos os recursos financeiros no país, recursos estes que garantem a possibilidade de ação desses diferentes agentes, revelam que das Constituições brasileiras analisadas, guardadas as particularidades de cada uma delas, emergem territórios muitas vezes superpostos, com limites tênues, alvos de disputas acirradas, sujeitos a mudanças permitidas por simples alterações nos textos constitucionais, os quais, a princípio, se mos-tram como elementos-chave na definição dos limites de ação de cada um dos entes federados, ou seja, de cada um dos agentes sociais aqui estudados.

Desta forma, as possibilidades de territorialização, isto é, as possibilidades de prática, influência ou controle sobre ações em uma determinada porção do espaço, por parte dos três entes federados, variaram tanto quanto as mudanças feitas no quadro de competências, em cada um dos textos constitucionais, principalmente, no que se refere ao sistema tributário brasileiro. Nesse contexto, a territorialização mais efetiva, até a década de 80, sempre foi realizada pelo Governo Federal, visto que a União era o ente que mais detinha, até então, competências tributárias em seu domínio, tanto em números de impostos, como em valores arrecadados, haven-do assim uma nítida centralização política no país. O território que resulta desta ação é aquele marcado pela forma concentrada dos investimentos produtivos e pela grande expansão metropolitana. Esse quadro só muda, de forma mais efetiva, a partir da Constituição de 1988, em cujo texto está estabelecido um sistema de competências tributárias bem mais descentralizador, que abriu um espaço maior para uma atuação das unidades subnacionais (estados e municípios) na promoção do desenvolvimento e na transformação do espaço geográfico.

Envolvidos por essa situação complexa, percebemos, enfim, que o grande desafio dos agentes político-territoriais brasileiros para um futuro próximo é dar continuidade à estratégia de descentralização das políticas públicas, enfrentando os desafios das diferenças econômicas e sociais que produzem o abismo entre as regiões desenvolvidas e as mais pobres. Tendo-se em conta a existência e disponibilidade prévia do aparato técnico institucional, um elemento relevante a ser considerado é a natureza e intensidade dos desafios políticos específicos das sociedades, que, associado ao grau de organização local, vai determinar a capacidade de influência no processo decisório dos distintos grupos que compõem essa sociedade.

 

Indo além da abertura de caminhos legais

A descentralização contida na Constituição de 1988 fez emergir a escala local, tendo permitido maior participação política da sociedade por meio das administrações municipais. Este processo leva ao debate na Geografia sobre o fortalecimento da escala local e seus efeitos atenuantes ou agravantes no enfraquecimento do Estado-Nação. A estrutura federativa criada por esta, ao definir como se dá a divisão de poder entre as unidades federadas, por meio da distribuição de competências de atuação e de arrecadação fiscal, indicou os possíveis caminhos a serem percorridos pelos diferentes grupos, para que tenham acesso ao processo decisório das políticas públicas. A decisão de níveis mais abrangentes de governo de implantação de programas de descentralização de atribuições e o seu devido acompanha-mento por uma institucionalização técnica (financeira, administrativa e de recursos humanos), criou a possibilidade de um processo decisório diferenciado principalmente em relação à ampliação do acesso de grupos locais na definição da agenda política. Assim, não só a escolha de prioridades, mas também os processos de busca de recursos financeiros, de imposição de perdas e de inovação de políticas antigas, passaram a ser feitos por vias diferenciadas.

Contudo, apesar da maior capacidade de atuação das unidades subnacionais na construção do espaço e da maior legitimidade na participação das decisões de políticas públicas de diferentes setores sociais da escala local, é importante a percepção de que estes fatos não significam, em si, uma atuação mais efetiva da sociedade ou mesmo uma maior eficiência na determinação e concretização das políticas públicas. Considerando que o caminho institucional já está aberto, devemos então voltar nossas atenções para como se dá, na prática, o processo decisório na escala local. Somente dessa forma poderemos avaliar até que ponto essa descentralização representou mudanças qualitativas no processo de construção do espaço, no Brasil. Sendo a dinâmica de funcionamento do processo decisório em escala local influenciada principalmente pela associação entre a estrutura institucional da área, a organização do movimento popular no território específico e o posicionamento das autoridades locais em relação à participação da população por meio de seus líderes, devemos ter em mente que não basta a existência de determinações legais padronizadas, já que o  funcionamento da estrutura de decisão política é, em linhas gerais, conseqüência de condições específicas de articulações políticas e sociais, e da disponibilidade de aparato institucional. Em outras palavras, considerase aqui que a busca para soluções de problemas, no momento atual, não passa tanto por caminho legais de participação de atores locais, mas sim por uma articulação política mais efetiva desses atores e pela luta intensa para criação de um aparato institucional que possa servir como meio de ação.

 

NOTAS:

1 Após a incorporação das emendas aprovadas em 3 de Setembro de 1926.

2 Após a incorporação das emendas 1, 2 e 3, aprovadas em 18/12/35.

3 Publicada em 19 de Novembro de 1937.

4 Após a retificação de 15 de Outubro de 1946.

5 Promulgada a 24 de Janeiro de 1967.

6 Após a E. C. n. e 28, de 25/05/2000.

7 A fonte de dados sobre receitas disponível e própria por esfera de governo foi Affonso (1995:64) - Com base em dados do DECNA/IBGE e IBRE/FGV.

8 O Imposto sobre o Valor Agregado consiste na taxação do "sobre-preço" das mercadorias ou serviços. Nesse sentido, se uma mercadoria é comprada por R$ 1,00 e revendida por R$ 1, 50, o IVA incidirá sobre a diferença (R$ 0,50).

9 Imposto sobre Venda a Varejo: consiste na taxação do preço a varejo integral, sendo somada ao preço.

 

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