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Educación química

versión impresa ISSN 0187-893X

Educ. quím vol.30 no.4 Ciudad de México oct. 2019  Epub 25-Nov-2019

https://doi.org/10.22201/fq.18708404e.2019.4.68526 

Reflexiones

Uma educadora científica do século XIX e algumas questões sexistas por ela enfrentadas: Marie Curie superando preconceitos de gênero

A 19th century scientific educator and some issues faced by her: Marie Curie overcoming gender prejudices

Ingrid Nunes Derossi1 

Ivoni Freitas-Reis2 

1 Professora da área de Ensino de Química e Coordenadora de Ensino da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

2 Professora Associada I da Universidade Federal de Juiz de Fora.


Resumo

Este artigo discute a relação da mulher na ciência, focando especialmente nos momentos de discriminação que a cientista e educadora Marie Curie (1867-1934) vivenciou. Buscou-se traçar um breve panorama da participação das mulheres nessa área, evidenciando alguns obstáculos sexistas que a cientista teve de superar para alcançar o objetivo que ela afirmava buscar desde a sua juventude: ser útil para a sociedade. De indiscutível importância para o desenvolvimento cientifico, Madame Curie é, na maioria das vezes, citada no meio acadêmico, mas com conhecimento parcial de sua vida pelos estudantes, devido ao caráter predominantemente machista da comunidade científica. Este fato reforça a relevância e a necessidade da ampla divulgação do trabalho dessas mulheres em todos os segmentos escolares.

Palavras-chave: Gênero; Marie Curie; Educação; Ciência

Abstract

This article approach the relationship of women in science, focusing especially on the moments of discrimination experienced by the scientist and educator Marie Curie (1867-1934). The objective is to provide a brief overview of women’s participation in this area, highlighting some of the sexist obstacles that the scientist had to overcome in order to achieve the goal that she affirmed to follow from youth since youth: to be useful to society. This woman of unquestionable importance for the scientific development, Madame Curie is, nevertheless, most often cited in academic circles, but with partial knowledge of their lives by the students, due to the predominantly male chauvinist character of the scientific community. This fact increase the relevance and necessity of the wide dissemination of the work of these women in all the school segments.

Keywords: Gender; Marie Curie; Education; Science

Introdução

As questões que envolvem a mulher têm sido tema de debates em diferentes áreas, assuntos como a legalização do aborto, estupros, assassinatos recorrentes, salários desiguais e principalmente a discriminação da mulher na sociedade, de um modo geral. Neste artigo, iremos abordar a relação que envolve a mulher e a ciência, com foco nas ciências naturais.

Nas poucas vezes que os nomes de cientistas do sexo feminino são mencionados, estão acompanhados apenas das suas realizações na ciência, não são abordadas as dificuldades ultrapassadas, isso quando não estão acompanhados de especulações e maledicências sobre a vida pessoal da mesma sem apresentar as verdadeiras causas e consequências de tais fatos.

Em uma pesquisa realizada por Teixeira e Costa (2006), na qual o autor investiga as impressões de estudantes universitários sobre a presença de mulheres na ciência, foi solicitado que citassem o nome de duas mulheres cientistas; os nomes mais citados foram de Marie Curie e sua filha Irène Curie, os nomes Lise Meitner, Leona Woods e Mileva Einstein, foram citados uma vez.

De acordo com o site oficial do prêmio Nobel, desde 1901 até 2018, são 51 mulheres detentoras de tal prêmio (distribuídos em Física, Química, Medicina ou Psicologia, Literatura, Paz, Ciências Econômicas), porém, dessas, apenas 8 na área de Física e Química (se contarmos que Marie Curie recebeu duas vezes). A maior concentração está no prêmio Nobel da Paz com 17 mulheres, seguido da área de Literatura com 14 e Psicologia ou Medicina com 12, nas Ciências Econômicas temos apenas uma mulher laureada em 20091. A questão da ausência da mulher na história da ciência é abordada por Lopes (2005)), que atribui ao fator da “a existência de poucas mulheres - e menos ainda feministas - com treinamento necessário para escrever com autoridade sobre ciência e com disposição para escrever sobre gênero e ciência”. Quantos professores e/ou professoras universitários discutem em suas aulas a discrepância entre os ganhadores de um prêmio Nobel em ciências? (Lopes e Costa, 2005)

Outro aspecto que destacamos é que a apresentação da história de mulheres cientistas contribui para a aproximação dos estudantes da pessoa por trás da descoberta, além de desmistificar o caráter masculino predominante do campo científico, que em inúmeros casos é algo construído socialmente. (Ferreira, 2003; Gilbert e Calvert, 2003; Tindall e Hamil, 2004; Ostermann e Santos, 2007)

Desta maneira, o propósito deste artigo é contribuir e incentivar o debate da interação entre a mulher, sociedade e ciência. Para isso, selecionamos alguns episódios sexistas, vividos por uma mulher muito representativa para ciência, mas, como muitas outras, pouco lembrada deste ponto de vista: Marya Salomee Sklodowska (1867-1934), mais conhecida por Marie Curie. Vale ressaltar que, ao reportarmos a “episódios sexistas”, o fazemos porque estamos certas de que houve muitas outras discriminações sofridas por ela em sua vida diária; entretanto, iremos nos ater àqueles relatados em suas principais biografias.

Um pouco da vida de Marie Curie

A cientista reconhecida mundialmente, Marie Curie e cujo nome de batismo é Marya Salomee Sklodowska, provém de uma família tradicionalmente envolvida com a educação, ela e seus quatro irmãos - Zofia Skłodowska (1862-1876), Jozéf Skłodowski (1863-1937), Bronisława Skłodowska (1865-1939), Helena Skłodowska (1866-1961) - foram educados por seu pai Wladyslaw Sklodowski (1832-1902), que era professor de física, e por sua mãe, Bronisława Skłodowska (1835-1878). Sua mãe, apesar de não ter tido o ensino público que era oferecido aos homens, teve uma educação particular, que lhe permitiu fugir das imposições escolares russas e assim possuir uma visão mais ampla sobre o seu país e compartilha-la com seus filhos. Foi diretora de uma das melhores escolas particulares para moças em Varsóvia. (Quinn, 1997)

Desde a infância, Marya se interessava pelos equipamentos de física de seu pai, porém, na sociedade polonesa da época, as mulheres não podiam frequentar a universidade. As irmãs Sklodowska, Bronia e Marya ansiavam veementemente em continuar os estudos. Bronia e Joseph desejavam estudar medicina, Marya queria formar-se em ciências e matemática. Joseph, como homem, podia desfrutar do privilégio de estudar na Polônia; entretanto, as moças teriam que imigrar para a França. Foi combinado que Marya auxiliaria na permanência da irmã na universidade em Paris e, quando esta terminasse seus estudos, seria a vez de Marya ingressar no ambiente acadêmico. (Curie, 1938)

Durante esse período, atuou como governanta no interior da Polônia e, além de ensinar os filhos da família que a contratou, pôs em prática o que gostaria de fazer em Varsóvia: “ensinar o povo”. O trabalho realizado era proibido e portanto perigoso, com risco de deportação ou de prisão, pois as escolas só tinham permissão para ensinar a língua e a cultura russa. Entusiasmada, Marya se alegra por poder mostrar àquelas crianças a beleza da língua polaca e a história do seu tão amado país. Entretanto, sua preparação pessoal para a Universidade estava um pouco prejudicada. Estudando sozinha, ela escreveu ao seu irmão Joseph: “Estou aprendendo química em um livro. Você pode imaginar quão pouco tiro disso, mas que posso fazer se não tenho lugar para fazer experiências nem trabalho prático?” (Marie Curie apudQuinn, 1997, p. 78)

Em 1891 Marie2 finalmente chega a Paris e, em 1894, é requisitada para realizar uma pesquisa para a Société d´Encouragement pour l´Industrie Nationale3 sobre as propriedades magnéticas de diversos metais (Zantinga-Coppes; Coppes, 1998). Em um chá organizado por um casal de amigos a fim de conversarem sobre como encontrar um laboratório maior para realizar tal pesquisa, Marie encontra pela primeira vez com Pierre Curie, um professor da École Municipale de Physique et de Chimie de Paris4. Pierre logo se interessa pela jovem e, em 26 de julho de 1895, os dois estudiosos se casam. (Curie, 1938)

Em 1896, Marie adquiriu o certificado para ministrar aulas para o ensino secundário de meninas. A formação na área pedagógica fora instituída com a criação das escolas normais de ensino secundário (1795). No começo da terceira república na França, o ensino secundário tinha um cunho preparatório para os jovens que gostariam ou poderiam ingressar, no futuro, em uma universidade, era, portanto, destinado às elites o ensino primário, cujo currículo era diferenciado, era oferecido a toda a população. (Margadant, 1990)

No último quartel do século XIX, o sistema de ensino francês havia passado por algumas mudanças: a criação das escolas públicas secundárias para meninas, como a escola de Sèvres fundada em 1881, apesar de limitar os saberes que deveriam ser transmitidos, trazia muitas novidades na educação de mulheres. Os professores vinham da Universidade Sorbonne e do Collège de France. Em 1900, Madame Curie ingressa como a primeira mulher a participar deste corpo docente. (Quinn, 1997)

Antes das mudanças educacionais impostas por Napoleão, quando o ensino secundário feminino ainda estava sob a tutela da igreja católica, mulheres só poderiam estudar literatura francesa e linguagem, sendo a maior parte do dia dedicado ao desenvolvimento de habilidades domésticas, arte, música, dança, história e alguns conceitos de ciências biológicas. (Derossi e Freitas-Reis, 2013)

Isto porque, na visão religiosa, a mulher instruída seria um perigo para a sociedade. Um possível motivo para esta concepção seria o receio de que elas poderiam querer ocupar um cargo público e deixasse o que era tido como o seu papel, que era ser esposa, mãe e dona de casa. O domínio do grego e do latim, por exemplo, era visto como “fonte da masculinidade” e, obviamente, não lhes era permitido. (Margadant, 1990)

Talvez por isso, as alunas de Marie tenham, a princípio, encontrado algumas dificuldades para acompanharem ou se interessarem pelas aulas de física. Entretanto, desde sua infância, quando estudava com seu pai, ela lamentava a falta de um laboratório para os ensinamentos de química e na Escola de Sèvres sua postura acerca da experimentação fez toda a diferença para as suas alunas, como pode ser visto no seguinte relato: “Até chegarmos a Sèvres pensávamos que a física fosse inteiramente aprendida nos livros, onde encontrávamos fotos dos aparelhos usados para estabelecer as leis que estudávamos”. (Eugénie Feytis apudQuinn, 1997, p.234)

As alunas não possuíam um contato regular com equipamentos nem experimentos, os professores algumas vezes lhes mostravam aparelhos similares àqueles que eram utilizados nas grandes universidades, mas não permitiam que as estudantes os tocassem. Marie, entretanto, aumentou o tempo de suas aulas e produzia o próprio material prático chegando a levar suas aprendizes para conhecer o laboratório de pesquisa onde ela e Pierre trabalhavam, deixando-as encantadas com os equipamentos e a serenidade e acessibilidade do cientista.

A 19 de abril de 1906, morre tragicamente Pierre Curie. Apenas em novembro, após buscarem por sete meses um cientista do sexo masculino para substituí-lo, a renomada universidade Sorbonne cede e Marie assume a cadeira de Pierre na instituição se tornando a primeira mulher a fazer parte do seu corpo docente. (Quinn, 1997)

Episódios sexistas vivenciados pela cientista

Por não poder frequentar uma universidade em seu país, já que só era permitido o ingresso de homens, conforme mencionado, com a cumplicidade de sua irmã, Bronia e Marya começaram a frequentar a escola de ensino superior clandestina local. Nesse ambiente, elas tiveram contato com as ideias de Auguste Comte (1798-1857) e o positivismo, que em sua versão polonesa trazia implícito a igualdade entre os sexos perante a educação e a importância da razão e da ciência para a sociedade, sem envolver questões religiosas (Reid, 1974; Quinn, 1997).

Essa universidade clandestina chamada de Universidade Volante foi criada por Jadwiga Szczasinska-Dawidowa (1864-1910), com o intuito de inserir as mulheres no ensino superior, iniciou-se em 1882 e teve seus tempos áureos quando as aulas eram ministradas por grandes cientistas, filósofos e historiadores de literatura e da cultura polaca, mas só se formalizou como academia em 1886. Lamentavelmente, no ano de 1883, ano em que as irmãs Sklodowska frequentaram a Universidade Volante de Varsóvia, muitos professores foram deportados. (Quinn, 1997)

Porém, podemos considerar que talvez tenha sido durante a indicação conjunta ao prêmio Nobel de 1903, que Marie Curie tenha sofrido sua primeira grande injúria pessoal por questões sexistas, quando tentaram de várias formas excluí-la do direito a maior honraria concedida a um cientista pela descoberta da radioatividade e premiar apenas ao seu esposo e a Becquerel.

A imprensa francesa divulgava um estranhamento em se ter um casal trabalhando junto e em muitos momentos associavam a participação de Marie apenas como apoio ou até mesmo como uma oportunista, conforme pode ser visto no trecho da versão francesa do jornal New York Herald em vinte e um de dezembro de 1903: “A Sra. Curie é uma dedicada companheira de trabalho, nas pesquisas do marido, e associou seu nome às descobertas dele.” (Quinn, 1997, p. 211)

Seletos eram aqueles que conseguiam enxergar a parceria existente entre o casal Curie e a paixão pela ciência em comum, como um jornalista do jornal Nouvelles Illustreés que escreveu em dezessete de dezembro de 1903:

Seria um erro acreditar que é por causa de um sentimento de gentileza conjugal que Monsieur Curie quis associar sua mulher à honra de sua descoberta. Nesse lar de cientistas casados... a mulher não é uma auxiliar mas, com toda a força da palavra, uma colaboradora e, na verdade, frequentemente, a inspiradora de seu marido. (Quinn, 1997, p. 212)

A mulher era vista como tendo um papel instransponível de mãe, dona de casa, esposa, sendo rotulada como incapaz de assumir outras funções. Com essas convicções, os jornalistas cercavam a vida pessoal de Marie, para descobrir se ela, mesmo se dedicando à ciência, cumpria o seu papel pré-determinado de “mulher”, já que, segundo eles, a maioria das mulheres que trabalhavam era solteira e haviam abandonado sua “feminilidade”, não era concebível que a mulher pudesse ocupar as duas posições: a de trabalhar e a de construir uma família (Margadant, 1990). De acordo com a pesquisadora Elizabeth B. Silva (2005), essa mentalidade se perpetua até o século XXI, ela diz que:

Por exemplo, os desenvolvimentos tecnológicos do século dezenove foram apropriados para manter a ordem de gênero dominante (COCKBURN, 1988), com a domesticidade (i.e., como ser uma boa esposa e mãe) ocupando lugar central na educação de meninas das classes médias e pobres. Ainda quando entramos no século vinte e um as tecnologias do lar são desenhadas por homens concebendo uma mulher que é hábil e que tem desejo de fazer trabalho doméstico como uma ocupação integral e como um trabalho de amor. Minha pesquisa mostra que isto está longe de ser verdadeiro para a maioria das mulheres (SILVA, 1998).

Diante desse panorama, o exemplo de Marie, que conseguiu conciliar a vida profissional e familiar, era tido como um mau exemplo, pois incitava as mulheres a irem a busca de empregos e a sociedade machista da época alegava que com isso os homens iriam perder suas oportunidades5, ou seja, haveriam de competir com as mulheres. (Margadant, 1990; Derossi e Freitas-Reis, 2013)

Outro momento que abordaremos é a sua candidatura a uma cadeira da Academia de Ciências. Mesmo já possuindo um prêmio Nobel, as regras eram de não aceitarem mulheres. Apesar da declaração do secretário permanente Jean-Gaston Darboux (1842-1917), ao jornal Le Temps, de que necessitavam de Marie Curie para a avaliação dos trabalhos sobre radioatividade que eram enviados para apreciação da academia. A imprensa francesa destacava que essa não seria apenas uma disputa acadêmica e sim uma briga de gênero. O jornal Le temps de dezembro de 1910 e de julho de 1929 aborda não só a questão da candidatura de Marie, mas de outras mulheres que pleitearam um cargo dentro da academia, com uma sessão com o título Les Femmes À L’Institut6. (Les temps, 1910; 1929)

Não era a primeira vez que mulheres se candidatavam a uma Academia: George Sand (pseudônimo usado por Amandine Aurore Lucile Dupin) (1804-1876) se candidatou a uma cadeira no importante instituto de letras francês Académie Française7; Rosa Bonheur (1822-1899) à Académie Arts8 e Sophie Germain (1776-1831) à Académie des Sciences9 e não foram aceitas. (Schiebinger, 2001)

A princípio, na votação do dia 4 de julho de 1911, Madame Curie havia conseguido a cadeira com três votos contra um de seu oponente, Edouard Branly (1844-1940). Porém, sob a alegação de ilegalidade de Émile Hilaire Amagat (1841-1915) que utiliza do argumento de “para não quebrar a unidade deste corpo de elite” (Les temps, 1929, p.4), e apesar de muitos membros da academia serem a favor da cientista, dentre eles, Henri Poincaré (1854-1912), Emile Picard (1856-1941), Dr. Emile Roux (1853-1933), e Darboux que defenderam publicamente as suas realizações cientificas em detrimento de ser mulher, como no trecho do jornal Le Temps, que dizia que:

Seus leitores conhecerão o nome e a reputação de Madame Curie, mas talvez seja útil lembrar as qualificações que ela adquiriu em tempos recentes. Durante catorze anos, ela executou com incansável ardor, fosse sozinha ou com o marido, um número admirável de projetos de pesquisa... Podemos opor-nos àqueles que talvez acreditem que ela foi apenas ajudante de seu marido lembrando o discurso muito tocante que lhe foi feito pelo próprio Pierre Curie.... em sua apresentação [do Prêmio Nobel]... Além disso, desde sua morte trágica, a produtividade de Marie Curie não diminuiu nem um pouco. Citaremos apenas seu recente sucesso no isolamento do rádio em estado puro e também os dois belos volumes que ela acabou de publicar nos quais recapitula, com admirável clareza e precisão, não apenas sua própria pesquisa, mas também a de seus concorrentes e colaboradores. (Darboux apudQuinn, 1997, p. 306)

Uma nova assembleia foi convocada e ficou determinado que:

O conjunto consultado sobre a questão da elegibilidade das mulheres para o Instituto, sem reconhecer o direito de impor sua decisão às várias academias individualmente, apenas observa que esta questão é essencialmente de interesse geral e há uma tradição imutável que parece bastante sensato para respeitar. (Les temps, 1929, p.4)

Novas eleições são convocadas para o dia vinte e três de janeiro do mesmo ano. Com trinta votos favoráveis à sua eleição, contra vinte e oito a favor da eleição de Marie, Branly tornase membro da academia, em vez de sua concorrente.

A quase eleição de uma mulher para a Academia causou preocupação nos membros conservadores, que se reuniram e decidiram (90 votos a favor e 52 contra) que nenhuma mulher poderia ser eleita como membro do Institut de France10 e isso perdurou até 1979.

A então renomada cientista - já sem o marido e companheiro de trabalho ao seu lado - sentiu fortemente o preconceito, mais uma vez, quando fora indicada para receber o segundo prêmio Nobel. O seu prêmio esteve ameaçado por conta de um relacionamento com Paul Langevin (1872-1946), em meados de 1911. Embora Marie estivesse viúva há quase 5 anos, Paul permanecia casado com Jeanne Langevin (1874-1970). Segundo os biógrafos de Marie Curie, o relacionamento de Paul com a esposa já estava bastante desgastado, entretanto eles permaneciam juntos devido aos filhos e por pressão social11.

Após o relacionamento ser divulgado na imprensa por familiares da esposa de Langevin, de acordo com a biógrafa Susan Quinn, Svante Arrhenius (1859-1927) por quem Marie tinha muita estima, lhe encaminha uma carta em nome dos outros membros da academia, aconselhando que seria melhor que ela não fosse receber o prêmio que lhe era de direito: “todos os meus colegas me disseram que é preferível que a senhora não venha até aqui, em 10 de dezembro [...]”. Entristecida, ela responde à carta de seu até então amigo e se mostra indignada com o fato de darem maior importância a sua vida pessoal do que a sua contribuição para o progresso científico (Quinn, 1997, p. 355):

Sugere-me que eu desista de aceitar o Premio Nobel que acaba de me ser concedido, e dá a explicação de que a Academia de Estocolmo, caso fosse avisada com antecedência, provavelmente decidiria não me dar o prêmio, a menos que eu pudesse explicar publicamente os ataques de que fui objeto. Se esse fosse o sentimento geral da Academia, eu ficaria profundamente desapontada. Mas não acredito que caiba a mim conjeturar sobre as intenções e opiniões da Academia. Devo, portanto, agir de acordo com minhas próprias convicções.

A ação que me aconselha me parece que seria um grave erro de minha parte. De fato, o prêmio foi concedido pela descoberta do rádio e do polônio. Acredito que não existe ligação alguma entre meu trabalho cientifico e os fatos da minha vida particular... Não posso aceitar a ideia, em princípio, de que a apreciação do valor de trabalho científico deva ser influenciada pela difamação e pela calunia referentes à vida particular. Estou convencida de que esta opinião é partilhada por muitas pessoas. Estou muito triste com o fato de que o senhor mesmo não pense assim. (Curie, M. apudQuinn, 1997, p. 356)

Diante de tanta falta de reconhecimento e preconceito, o discurso de Marie na cerimônia de entrega do prêmio foi dirigido a todos que a condenavam, que diziam que ela estava recebendo um Nobel devido ao trabalho de seu falecido marido. Marie fez questão de ressaltar os “eus”12 em seu pronunciamento, para que ficasse evidente que até aquele momento tinha sido tolerante com tantas injúrias e injustiças, mas que estava disposta a demonstrar que era forte e capaz, que apesar de ter sempre publicado junto com Pierre, sua participação nos trabalhos científicos havia sido de suma importância e todos deveriam estar cientes disto, ela ressaltou:

A história da descoberta e do isolamento dessa substância forneceu provas da hipótese que eu formulei segundo a qual a radioatividade é uma propriedade atômica da matéria e pode proporcionar um método para a descoberta de novos elementos. [...] o isolamento do rádio como sal puro... foi empreendido por mim, sozinha [...] Eu medi [...] Eu pensei. (Curie, M. apudQuinn, 1997, p. 357) (grifo nosso)

Mesmo diante de todo esse cenário de discriminação, de ser condenada pelos franceses durante o seu relacionamento com Langevin, quando começou a guerra, Marie fez questão de servir àquele país que havia permitido que ela realizasse o sonho de se tornar uma cientista. Aquele era também o país da família que construiu. Dessarte, Marie enviou suas filhas para um local seguro, uma casa de campo alugada na Grã-Bretanha e ficou em Paris cuidando do laboratório e de sua valiosa porção de Rádio13 até que esse fosse remanejado para Bordeaux em segurança. (Curie, E., 1957)

Os hospitais militares improvisados possuíam poucos aparelhos de raios X, Marie durante a sua estadia nos hospitais aprendeu o básico sobre como utilizá-los para fazer os exames e a noção de ética e cidadania levou-a a assumir um papel de liderança. Consciente da utilidade destes aparelhos e do seu papel social reúne, com o consentimento de seus colegas, todos os equipamentos existentes na universidade e os coloca à disposição para serem utilizados da melhor maneira possível, ajudando a salvar vidas.

Sabendo que os soldados não conseguiriam chegar até as poucas unidades hospitalares equipadas e com os seus conhecimentos e a sua criatividade, resolve desenvolver viaturas radiológicas móveis, mas deparou-se com alguns obstáculos que variavam desde o carro até os equipamentos, como os geradores que pesavam aproximadamente cem quilos, já que nos postos de emergência não havia eletricidade. (Quinn, 1997)

A Union des Femmes de France14 e a Cruz Vermelha da França designaram-lhe o primeiro carro que ela equipou para as radiografias e a própria cientista o guiava até o front de batalhas. Outros se seguiram a esse e ficaram conhecidos como “minicuries”. Quando conseguiu construir o segundo veículo de raios X, chefes militares não queriam permitir que ela comandasse os veículos que havia aprovisionado por ser mulher, alegaram que era perigoso e inadequado, mesmo assim Marie continuou salvando vidas, viajando para levar aparelhos de raios X, treinando outros técnicos em radiologia. Sua filha Irène, que almejava ajudar, ao voltar para Paris, fez um curso e tornou-se enfermeira e muito auxiliou sua mãe nesta jornada humanitária. Graças aos carros desenvolvidos por Madame Curie, muitos feridos foram examinados, estima-se que mais de um milhão. A guerra termina em 1918 e com a sensação de ter ajudado da melhor forma possível, Madame Curie volta a seus estudos e a dedicar-se ao rádio. (Curie, E., 1957)

Considerações finais

Pode-se perceber que muitos desses acontecimentos na vida da cientista não são divulgados e torna-se desconhecido para o público não acadêmico, deixando de ser exposto o quão preconceituoso era, e ainda é, este ambiente, principalmente na área de ciências naturais que possui um histórico de ciência tradicionalmente masculina. (Ferreira, 2003; Gilbert e Calvert, 2003; Tindall e Hamil, 2004; Ostermann e Santos, 2007)

Marie se abalou muitas vezes com as resistências que lhe foram impostas, indignandose com o fato de lhe impedirem de fazer o seu trabalho e contribuir para uma sociedade melhor, através do progresso da ciência, por motivos sexistas.

Hoje, Madame Curie é mundialmente reconhecida pelos seus trabalhos científicos, mas nota-se que pouco se fala sobre o seu perfil, como pessoa do gênero feminino, assim como pouco se aborda sobre outras mulheres premiadas ou não, que estiveram ou estão envolvidas com as ciências, como: Maria Göppert-Mayer (1906-1972), que propôs um novo modelo do envoltório do núcleo atômico; Ida Noddack (1896-1978), que foi a primeira cientista a mencionar a ideia de fissão nuclear; Ada Yonath (1939 -), que pesquisou a estrutura atômica dos ribossomos, entre outras.

Sabemos que ainda são poucas as mulheres que estão envolvidas com as ciências, principalmente as exatas, porém esse número vem aumentando e, mesmo assim, é pouco divulgado, o que causa uma visão equivocada, fazendo com que, as meninas, ainda no ensino médio, desistam de seguir uma carreira cientifica, por acharem que não possuem um futuro, não compreenderem a ciência da forma que é ensinada, não serem incentivadas pelos próprios professores, familiares, livros... (Costa, 2006; Ostermann e Santos, 2007)

Desta forma, a relação de gênero e ciência deve ser trabalhada também na formação docente, para que no momento em que estejam atuando em sala de aula, não cometam diferenciações entre meninos e meninas, oferecendo mais momentos de fala para meninos do que para meninas, não fiquem reféns de livros didáticos, que em sua grande maioria, reforça a visão de ciência masculina e possam trabalhar de uma forma mais igualitária. (Kahle e Lakes, 2003; Tindall e Hamil, 2004)

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2Seu nome é traduzido para o francês ao chegar em Paris e a partir deste ponto trataremos Marya por Marie neste trabalho.

3Sociedade de Incentivo a Indústria Nacional.

4Escola Municipal de Física e Química de Paris.

5Eram oferecidos salários mais baixos para as mulheres, então os homens para não ficarem sem emprego aceitavam trabalhar por menos. (Margadant, 1990)

6Mulheres no Instituto

7Academia Francesa

8Academia de Artes

9Academia de Ciências

10O Institut de France englobava todas as academias. (http://www. institut-de-france.fr/fr/une-institution)

11Em um determinado momento, Paul saíra de casa com seus dois filhos alegando sofrer agressões da esposa. (Quinn, 1997)

12Em todos os discursos anteriores, tanto de Marie, quanto de Pierre, chamava a atenção o fato de que eles sempre falavam utilizando o pronome nós: “nós trabalhamos”, “nós descobrimos”, “vamos dar o nome ao elemento em homenagem ao país de um de nós”

13Marie havia conseguido isolar um grama de rádio, o qual ela doou ao governo francês, dizendo que por sua preciosa ação para a saúde humana o elemento deveria pertencer a humanidade e não há uma só pessoa, mormente o enorme valor de mercado do precioso metal. (Quinn, 1997)

14União Feminina da França

Recebido: 18 de Fevereiro de 2019; Aceito: 08 de Julho de 2019

1 Doutora em Educação Química na área de História da Química pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora da área de Ensino de Química e Coordenadora de Ensino da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

2 Doutora em História da Ciência pela PUC-SP. Professora Associada I da Universidade Federal de Juiz de Fora. Atuando em História da Ciência e Ensino, Educação Inclusiva em Ciências, Metodologias de Ensino Emergentes para o Ensino de Química/Ciências.

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