INTRODUÇÃO1
Há algum tempo me inquieta a ideia de vanguarda. Esse interesse começou com algumas leituras que fui realizando em torno dos movimentos culturais durante a ditadura civil-militar imposta ao Brasil em 1964 e sentindo a distância que os CPCS da UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes) tinham do que era realmente popular.
Entretanto esse tema nunca foi alvo de alguma escrita de minha parte, nem de uma reflexão mais profunda acerca dessa lógica de vanguarda. Entretanto o incômodo sobre essa espécie de paternalismo político, e aí não só, voltou a me angustiar devido alguns trabalhos que demonstram a diferença do que está posto de forma hegemônica entre os historiadores e o que é apontado por parcelas significativas da população, de forma geral.2
Ainda um outro aspecto que reascendeu a chama do questionamento acerca da ideia de vanguarda foi a música, não à toa homenageada no título do presente texto, Classe Operária de Tom Zé.3 A letra dessa canção é uma crítica a vanguarda que é feita por artistas e intelectuais frente à classe trabalhadora, portando-se como vozes dos oprimidos e quem, mesmo de longe, pode cuidar dos interesses daqueles que são incapazes de entender sobre seus próprios interesses.
Essa inquietação juntou-se a outra que era trabalhar de alguma forma com o núcleo habitacional “31 de Março” na cidade de Ponta Grossa, uma vez que este foi criado como uma auto-homenagem à ditadura civil-militar, que é mantida até hoje.
Frente a esses problemas postos queremos aqui debruçar-nos acerca do movimento autointitulado 31 pelo 15, que se originou em torno da preocupação com esse monumento à memória da ditadura civil-militar que ainda é a nomenclatura do bairro 31 de Março. Para isso filiamos nossa abordagem ao campo da história dos intelectuais, ou história intelectual, acreditando ser o aporte teórico capaz de nos dar ferramentas para a análise dos fatos em torno desse movimento relacionando-o a lógica de vanguarda.
É preciso deixar claro que não objetivamos aqui contar a história do movimento e seu desenrolar, o que já foi feito em outras oportunidades por outros autores, no caso Demeneck e Oliveira. Nosso principal intuito nesse texto é refletir sobre a distância da academia e a população comum; e sobre o posicionamento dos acadêmicos frente a esse fosso.
Chartier (2002, p. 47) discute e reflete um pouco sobre esse processo de separação entre aquilo que é erudito e o que é popular. A princípio o conceito de popular está como antônimo do erudito, ou seja, o popular ele é definido como não-erudito. Chartier (2002, p. 49) ainda nos chama atenção afirmando que o que importa é “a identificação da maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, cruzam-se e imbricam-se diferentes figuras culturais”.
Embora Chartier nos aponte esse caminho, queremos aqui pensar o popular em contraponto ao erudito não por lermos que assim o estejam no cotidiano social, mas porque partimos da identificação apresentada pelos sujeitos que aqui nos dispomos a trabalhar. Dessa forma, a partir do momento que existe uma ideia/sentimento de vanguarda é possível pensar a diferenciação entre o popular identificado como sem conhecimento científico e sem reflexões políticas mais profundas e o erudito identificado como o detentor do capital cultural capaz de lhe autorizar a orientar àqueles que não conseguiram conquistar esse status.
Essa contraposição ainda é visível atualmente devido a hierarquização pautada no capital cultural, que “é o ter que se tornou ser” (Bourdieu, 2013, p. 83). Isso fica evidenciado quando, por exemplo, Anitta vai aos Estados Unidos da América falar em Harvard4 e, por estar em Harvard, ganha espaço na grande mídia para expor a sua leitura de mundo, que vem muito da empiria e pouco dos conceitos e arcabouços teóricos acadêmicos. O fato de ser favelado não é o suficiente para falar de favela5, precisar ter o capital cultural, econômico, intelectual e social de estar em um lugar fora do cotidiano para apontar com autorização problemas e soluções que a vivência que possibilitou perceber.
Como fontes para esse trabalho utilizaremos os resumos estendidos publicados em anais de eventos científicos que falam acerca do movimento e os artigos de jornais que o discutiram principalmente quando do seu lançamento no ano de 2010. Essas escolhas foram feitas em detrimento da fonte oral, por exemplo, por percebermos a cultura escrita como o principal meio de divulgação de ideias dos intelectuais; também porque os debates se travaram dessa maneira no ano de 2010 (ano de lançamento do movimento).6
Num primeiro momento do texto nos ateremos à questão da história intelectual, desta forma situando nosso trabalho dentro desse campo. Após essa reflexão apresentaremos os intelectuais do movimento 31 pelo 15 e os objetivos do movimento. Também dedicaremos parte do trabalho para pensarmos sobre a toponímia e a identificação da população do bairro com o mesmo, inclusive sua nomenclatura. Por fim, discutiremos o distanciamento dos intelectuais da população, de uma maneira geral, e a autoimagem de vanguarda alimentada pelos mesmos.
HISTÓRIA INTELECTUAL
Embora o termo intelectual tenha surgido no território francês em torno do Caso Dreyfus (Silva, 2002, pp. 14-15), a história intelectual rompe com essa fronteira e é praticada e construída em outros países também. Névio de Campos (2009, p. 95) chega a afirmar que “é possível discutir história intelectual a partir de diferentes horizontes teóricos, seja das tradições alemã, inglesa, estadunidense, entre outras”.
Dosse nos ajuda compreender melhor essas diferenciações no seu livro La marcha de las ideas. Nessa obra o pensador francês vai fazer um panorama geral da história dos intelectuais e da história intelectual, abrangendo principalmente as tendências francesas (história intelectual), anglo-saxãs (contextualismo) e alemãs (semântica histórica).7 As discussões acerca dessas tendências nos oportunizam compreender que o objeto especifico, o intelectual, e o seu mundo acabam por ser compreendidos e analisados de maneiras bastante diversificadas dependendo da filiação teórica do pesquisador.
Nesse texto utilizaremos principalmente a base teórica francesa, mas não nos ateremos apenas a esta. Também daremos um espaço um pouco maior para a tendência alemã, principalmente a teoria da História proposta por Jörn Rüsen.
Quanto ao termo intelectual é importante pontuar que, num primeiro momento essa palavra tinha um aspecto pejorativo, entretanto passou-se a ser relacionada a todos que trabalham através do pensamento, da formação e da propagação de ideias (Silva, 2002, p. 15). Frente a isso Helenice Rodrigues da Silva (2002, p. 17) salienta que: “a tentação ideológica ameaça os intelectuais a partir do momento em que eles tendem a considerar o saber como uma ideologia e esta última como uma verdade. Se o intelectual tem por dever criticar os mitos e as ideologias, sua crença na ideologia do progresso leva-o a produzir novos mitos”.
Embora o mito do progresso pareça algumas vezes ter sido destruído pelas guerras do século XX, ainda é possível percebe-lo em nosso meio quando confiamos de forma dogmática que, por exemplo, o saber científico é suficiente para libertar as pessoas de sua ignorância e que a educação, sozinha, é capaz de transformar o mundo.
Nos intelectuais a força da ideia de progresso ainda é bastante forte, muito provavelmente pela influência da Modernidade baseado no racionalismo iluminista na qual se baseia a maior parte das ciências, principalmente as humanas e sociais. Heller e Fehér (1994) colocam que a centralidade da dinâmica moderna é a dialética e a dialética traz em si o germe da crença no progresso.
Estudar os intelectuais nos permite compreender a dimensão política por um olhar diferenciado, por um olhar do sujeito. Leclerc (2004, p. 12) chega a afirmar que os historiadores sentem-se mais a vontade do que o sociólogo para trabalhar com os intelectuais justamente porque a história permite essa liberdade de acompanhar mais individualmente o sujeito, valorizando suas ações e sensibilidades,8 coisa que a sociologia com seus olhares mais estruturais tem mais dificuldade de fazer.
O caso Dreyfus se desenrola no final do século XIX, entretanto é apenas na segunda metade da década de 1970 que os intelectuais começam a fazer parte de forma digna como objeto de estudo histórico (Sirinelli, 2003, p. 237). Desta forma, é com “o outono dos maîtres à penser, ou seja, dos grandes líderes intelectuais, fez, portanto, a primavera dos historiadores dos intelectuais” (Sirinelli, 2003, p. 240).
Um dos motivos para essa demora do olhar do historiador sobre o intelectual se deve ao fato de se tratar de uma história do tempo presente, desta forma sendo problemático “apreender as ideias, os afetos ou as paixões, ligados aos engajamentos, ainda recentes” (Silva, 2002, p. 22). Há também que se referenciar a dificuldade gerada pelas simpatias e as antipatias pelos sujeitos a serem investigados, o que torna ainda mais complexo esse campo de estudo (Sirinelli, 2003, p. 239).
Para finalizar essa seção gostaríamos de destacar que compreendemos aqui os intelectuais como atores políticos, desta forma também valorizamos a ideia de trajetória que pede interpretação para ser útil de fato aos estudos históricos (Sirinelli, 2003, pp. 244-247). Dosse (2007, p. 46) destaca que é o estudo de Sirinelli acerca de Sartre e Aron que permite perceber a fecundidade do conceito de itinerário. Esse conceito nos permite compreender que os intelectuais não criam seus posicionamentos de repente, pelo contrário, é através dos diálogos e das suas relações sociais por afinidades e intelectuais, filiações a partidos políticos e correntes teóricas, participações em grupos de estudos e periódicos que permitem-nos compreender os motivos para certos posicionamentos, omissões, estética de discursos, etcétera.
Aqui quero pensar que esse conceito de trajetória, ou itinerário, pode estar ligado de forma bastante próxima ao conceito, bastante utilizado e defendido por Rüsen, de “Cultura histórica”,9 desta forma sendo um ponto de contato entre as correntes francesas e alemães. Cultura histórica refere-se às práticas culturais de orientação do ser humano no tempo (Rüsen, 2015, p. 217), ou seja, contempla a criação artística, a luta política, a educação, o ócio e tantos outros mais procedimentos de formação histórica.
Complementando o conceito de “cultura histórica” podemos também apontar o de experiência que é tão caro a Koselleck (2006) . Para esse autor alemão “a experiência é o haver elaborado acontecimentos passados, é o poder torná-los presentes, o estar saturada de realidade, o incluir em seu próprio comportamento as possibilidades realizadas ou falhas” (p. 312). Frente ao conceito de experiência e de cultura histórica podemos perceber que são praticamente equivalentes à perspectiva de trajetória.
Procuramos a seguir, na próxima seção, traçar os itinerários acerca dos intelectuais que objetivamos estudar aqui para compreendermos os motivos para suas ideias e seus modos de ação na sociedade.10
OS INTELECTUAIS DO 31 PELO 15
Como nosso foco aqui nesse texto não é necessariamente o movimento em si, mas a relação de intelectuais escolhemos assim, antes de discutirmos o 31 pelo 15, apresentarmos os intelectuais envolvidos. Se “o substantivo intelectual qualifica sobretudo uma atitude e uma maneira de se posicionar no mundo” (Silva, 2002, p. 16) é isso que buscamos apreender durante o processo de escrita e reflexão desse texto.
Os personagens que nos dedicaremos aqui com mais atenção são os proponentes do movimento 31 pelo 15. Foram três sujeitos que estiveram à frente das organizações Thiago Augusto Divardim de Oliveira, Ben-Hur Demeneck e James Robson França (Oliveira e Demeneck, 2016, p. 11).
James Robson França é “paizão da Ciça, maridão da Josi, desenhos, skate, bateria e confusões”, essa é a apresentação do nosso personagem em sua página do Facebook. James é cartunista, chargista e ilustrador, além de baterista. Tem seus trabalhos desenvolvidos sempre com essa questão da imagem e da identificação através da mesma, inclusive fazendo estampas para roupas.11 Sua assinatura em suas obras é Sadco12 e por isso, a partir daqui o trataremos por esse nome.
Sadco também nunca foi à universidade e afirma que o seu curso superior foi a vivência do skate. Segundo ele, sua relação com o skate começou por ter que trabalhar desde cedo e não ter muito tempo para a escola. Dessa maneira acabou se aproximando do círculo de pessoas que tinham o skate como algo em comum e se envolveu com a questão do desenho e da arte. Para Sadco universidade não lhe fez falta, pois aprendeu a desenhar desde de casa, com referências ao pai e ao avô.13
Ben-Hur Demeneck, por sua vez, tem formação em jornalismo, graduado pela UEPG (2000-2004), tendo uma especialização pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (2004-2005) em estudos de jornalismo e outra pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (2007-2008) em jornalismo literário, o mestrado em jornalismo pela UFSC (2007-2009) e o doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) (2012-2016). Em seu currículo no site Likedin ele coloca que escreveu para o periódico Jornal da Manhã, primeiro como cronista e depois como parte do Conselho da Comunidade,14 o que é interessante observar é que essa atuação não consta no seu currículo Lattes.15 A carreira acadêmica de Ben-Hur é bastante vinculada à Universidade, tanto que teve bolsa para pesquisa no mestrado e doutorado e trabalhou desde 2009 em instituições de ensino superior da região dos Campos Gerais.
Thiago de Oliveira16 também tem carreira acadêmica, só que na área de história e educação, mais especificamente com a didática da história e educação histórica.17 Recebeu bolsa na graduação e no mestrado. No ano de 2010 entrou para o mestrado em Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e já havia trabalhado como professor de História do setor público e privado da cidade de Ponta Grossa.
Sadco, assinando as tirinhas As aventuras do Super Homem Bunda, e Ben-Hur Demeneck, como editor, estiveram juntos no projeto Jornal Grimpa18 que circulou entre os anos de 2005 e 2006. Esse projeto apontava para uma direção mais alternativa e cultural, trazendo aspectos e vivências da própria cidade de Ponta Grossa como seu foco central. Ben-Hur, segundo seu currículo no Linkedin, manteve relações com o periódico Jornal da Manhã entre os anos de 2006 a 2010, e Sadco desde 2008 atua como cartunista do mesmo periódico. Através desses pontos é possível observar relações entre esses dois personagens. Mais à frente é possível percebe-los juntos em outros projetos, como o Clube de Humor, mas como são posteriores ao ano de 2010 não trataremos deles nessa ocasião.
A relação entre esses dois personagens, Sadco e Demeneck, e Thiago Augusto Divardim de Oliveira foi um pouco mais complicada de fazer, mas nos utilizamos aqui do paradigma indiciário para tal. Entre 2009 e 2010 Thiago de Oliveira fez uma especialização em Mídia, Política e Atores Sociais na Universidade Estadual do Ponta Grossa (UEPG) sob orientação de Karina Janz Woitowicz.
Karina Janz Woitowicz19 fez sua graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela UEPG e seu doutorado pela UFSC, este entre os anos de 2006 e 2010. Ou seja, quando orientou a especialização de Thiago de Oliveira estava terminando o seu doutoramento. Já Demeneck fez seu mestrado, também na UFSC, durante os anos de 2007 e 2009. Tanto Demeneck quanto Karina Woitowicz eram bolsista da capes. Levando em conta que ambos eram jornalista, bolsista da capes, sua relação de formação com a UEPG e seus estudos na UFSC é muito possível que Karina e Demeneck se conhecessem e possivelmente ela foi o elo entre Demeneck e Thiago de Oliveira.20
São essas redes que nos ajudarão a compreender as heranças que formam os intelectuais. Sirinelli (2003, pp. 254-255) destaca que “um intelectual se define sempre por referência a uma herança, como legatário ou como filho pródigo” e Leclerc (2004, p. 22) complementa essa ideia afirmando que “toda obra é ao mesmo tempo o prolongamento e a ultrapassagem crítica de uma tradição”.
Tendo em conta o caso que aqui estamos estudando, é possível observar essa tradição e a importância da trajetória dos sujeitos envolvidos quando paramos para pensar porque esses três sujeitos, que não estavam21 e depois continuaram sem estar ligados às discussões acerca da ditadura civil-militar imposta aos brasileiros a partir de 1964, nem mesmo em relação à questões ligadas diretamente a cidade de Ponta Grossa, resolvem empunhar a bandeira da troca de nome do bairro.
Como sujeito central para compreendermos o olhar desses intelectuais para a questão ditatorial e da toponímia colocamos Luis Fernando Cerri. Cerri22 é professor de História na UEPG desde 1995, tendo seus trabalhos voltados principalmente para a área da didática da história e do ensino de história. Ele também é líder do Grupo de Estudo em Didática da História (GEDHI), o qual Thiago de Oliveira integrou durante a graduação.
Embora Cerri tenha essa forte relação com a didática da história e com a educação, seu mestrado e doutorado são na Universidad Estadual de Campinas (UNICAMP) no programa de Educação, há um interesse também pela ditadura em sua trajetória. Esse fato fica evidenciado em sua tese de doutoramento, que aproxima o período ditatorial e a discussão acerca do ensino de história, além de ser possível ler em outros textos o interesse pelo tema do governo dos militares.
Em texto assinado por Thiago de Oliveira e Demeneck, p. 487)23 há destaque para as aulas de Cerri, que Thiago de Oliveira foi aluno durante a graduação, apontando que esse professor “já dialogava com a turma de licenciandos [...] sobre os entulhos autoritários que compunham o cenário cultural de Ponta Grossa”.
Ou seja, é possível perceber as falas de Cerri em sala de aula acabaram por ecoar e, de certa forma, incentivar a atitude de Thiago de Oliveira de encampar a questão da mudança de nome do bairro 31 de Março. Desta forma, o 31 pelo 15 pode ser considerado como herdeiro da tradição difundida de criticar os entulhos autoritários que resistiram à redemocratização, mas supera essa tradição justamente por propor algo mais além do que as falas em meios acadêmicos e/ou jornalísticos e as reflexões oriundas daí.
É possível que esse incomodo que era de Cerri tenha sido compartilhado também entre os colegas jornalistas, isso porque havia intercâmbio entre os cursos de história e jornalismo. Por exemplo, Thiago de Oliveira entre os anos de 2009 e 2010 fez especialização no jornalismo, enquanto no ano de 2008 Cerri orientou iniciação científica de uma graduanda, Fabiana Genestra de Oliveira, do curso de jornalismo.
Pensando a questão da trajetória é possível também associar a relação de Thiago de Oliveira com o tema do 31 de Março porque esse sujeito integrou o Grupo de Estudos em Didática da História (GEDHI), altamente influenciado por Rüsen. Sendo assim, a teoria da história proposta por Rüsen é de uma abertura de pensamento histórico, preocupando-se assim com a formação do conhecimento histórico na sociedade. Com as leituras do autor alemão o incômodo sobre o papel da história na sociedade mais presente pode ter tido um espaço maior nas reflexões de Thiago de Oliveira.
Demeneck por sua vez discutia no período do movimento a questão da objetividade jornalística e nos textos publicados acerca do 31 pelo 15 fica evidenciado a sua preocupação quanto a relação do jornalismo e da democracia. Além de também discutir conceitos como o de opinião pública e a legitimidade do jornalismo.
É possível caracterizar os líderes do movimento aqui abordado, principalmente Demeneck e Thiago de Oliveira, como intelectuais graças a alguns aspectos. Aqui temos dado foco nesses dois sujeitos por eles se enquadrarem de forma mais específica no conceito de intelectuais que desenvolveremos a seguir.24
Primeiramente, intelectuais tem como meios de colocar suas ideias a cultura escrita e o magistério (Bega, 2013, p. 24). Frente a essa afirmação não podemos considerar como coincidência o fato de Demeneck ser jornalista e Thiago de Oliveira professor.25 Também não podemos deixar de destacar que entre as reportagens que falam sobre o assunto, sendo elas do Portal Comunitário ou da Gazeta, e os textos publicados em anais de eventos só há duas referências26 a Sadco e essas apenas indicam que ele participou da organização, não trazendo nenhum detalhe a mais sobre como isso ocorreu. Inclusive não é mencionado em nenhum lugar a elaboração, por Sadco, do panfleto que, frente ao seu teor, era para ser distribuído, talvez tenha realmente sido, no bairro.27
Não conseguimos encontrar nada a mais que demonstrasse o envolvimento de Sadco no movimento. Mesmo observando o espaço que ele ocupava, e ainda ocupa, de chargista do Jornal da Manhã não é possível praticamente observar referências ao período ditatorial durante os meses de março e abril de 2010 (período em que havia um debate mais intenso acerca do movimento), sendo a maior parte de suas charges acera do Operário Ferroviário (time de futebol da cidade). A única manifestação que encontramos é a charge publicada na edição do dia 1 de maio de 2010 que critica a manutenção, pelo STF (Supremo Tribunal Federal), da Lei de Anistia que continua a proteger os torturadores do período ditatorial.
A falta de fontes não nos permite ter uma noção mais clara do papel desempenhado por Sadco na construção da ideia e no desenvolvimento do 31 pelo 15. O que é possível apontar é que há uma ausência de referências ao seu papel como um dos idealizadores podendo ser o motivo para isso a diferença clara na formação não acadêmica de Sadco.
Também é preciso enxergar o intelectual como um mediador cultural, como é o caso do professor, do jornalista e do chargista, e como atuante na sociedade em que está inserido, ou seja, engajado (Sirinelli, 2003, pp. 242-243). E aqui concordamos com Sirinelli de que não se pode contrapor a função de mediador cultural com a de sujeito engajado, pelo contrário elas se complementam.
Dosse (2007, p. 28) também aponta que o ser intelectual depende de uma acepção cultural e social, mas que mantêm relação com o fato de ser criador e mediador cultural frente a uma determinada sociedade, essa visão acerca do intelectual fez aumentar o número de intelectuais.28 Dosse (2007, pp. 28-30) ainda deixa claro que há discussão sobre o que seria o intelectual, entretanto aqui trabalharemos com a concepção de intelectual que está, como sua identificação central, ligado às instituições formais.
Leclerc (2004, p. 17) também destaca que o “intelectual ultrapassa o campo de sua competência profissional”, sendo assim “um indivíduo intrometido”. Desta forma percebemos que é isso que ocorre com Thiago de Oliveira e Demeneck quando se propõem a agir frente a uma área que não é especificamente a sua. Vemos claramente que não é a área de Demeneck e de Thiago Oliveira porque eles não exibiram, nos textos apresentados em eventos, nenhuma bibliografia específica referente à ditadura civil-militar e nem acerca das toponímias. Ou seja, a discussão científica feita pelos autores frente ao 31 pelo 15 foi realizada apenas com as leituras que eles já traziam de seus estudos universitários não havendo um esforço de adentrar às discussões científicas a respeito do tema em si.
A relação intrínseca do intelectual com a instituição (Pécaut, 1990, p. 34) pode ser percebida, por exemplo, quando no Paraná ainda não haviam universidades e os intelectuais fundaram instituições (Centro de Letras do Paraná, Academia Paranaense de Letras e Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Paraná) para reconhecimento do campo literário (Bega, 2013, p. 22).
Mais uma vez conseguimos identificar Demeneck e Thiago de Oliveira no conceito de intelectuais, uma vez que tem as suas trajetórias profissionais e estudantis ligada à Universidade, participando de grupos de estudos e recebendo bolsas e prêmios para e por pesquisas.
Essa relação com a universidade é tão intrínseca que o projeto foi apresentado para a discussão dentro da universidade em um colóquio intitulado O que Resta da Ditadura. É legítimo que se leve essa discussão para ser discutido entre os pares na academia, mas a questão é que houve cobertura acerca desse evento29 e não foi encontrada nenhuma cobertura sobre a ida do movimento ao bairro para a discussão das propostas.30
31 PELO 15, SEUS OBJETIVOS E LEGITIMIDADE
O movimento autointitulado 31 pelo 15 “propôs publicamente a mudança do nome do logradouro ‘31 de Março’, entendido como homenagem a ditadura, pelo nome ‘15 de Março’ data da redemocratização” (Oliveira e Demeneck, 2016, p. 478). Em outro texto Demeneck e Oliveira (2011) mantiveram a afirmação de que O 31 pelo 15 surgiu com a proposta de mudar o nome do núcleo habitacional de 31 de Março para 15 de Março. O que é possível perceber pelos textos publicados em anais de eventos e citados acima é que o objetivo central do movimento era o de propor a mudança do nome do bairro. Entretanto mais à frente no texto de 2016 os autores afirmam que pensavam à época provocar o debate político e público sobre o tema (Oliveira e Demeneck, 2016, p. 487).
Há ainda um texto, dessa feita não escrito pelos personagens que aqui focamos, que alega que o objetivo do movimento era conscientizar a “comunidade sobre o significado da data para posteriormente formalizar a ação”.31 Mesmo Demeneck afirmando, segundo a reportagem supracitada, que não havia por parte do movimento interesse de atropelar os moradores, sendo apenas uma medida propositiva a resistência à mudança foi forte.
Com as citações anteriores torna muito confuso saber o que realmente era o objetivo central do movimento. O que apontamos, com base nas leituras, é que a ideia era realmente propiciar um debate, não entorno da problemática da ditadura sofrida no Brasil, mas em torno da proposta dos organizadores.
Mesmo sob a alegação de que seria uma medida propositiva, o movimento apresentou uma postura vanguardista. Isso porque o 31 pelo 15 propôs primeiramente a mudança de nome e depois uma campanha informativa. Deste modo, deixando bem claro que o intuito não era dialogar com a comunidade em questão e construir junto as reflexões sobre a ditadura, mas convence-la das certezas dos líderes do movimento.
No panfleto32 que Sadco elaborou sobre o movimento é possível, mais uma vez, perceber que o objetivo central era convencer acerca da necessidade de trocar o nome do logradouro. O panfleto começa afirmando que “queremos trocar essa homenagem à sangrenta ditadura, instalada em 31 de março de 1964, pelo início da redemocratização, 15 de março de 1985”.
Se o movimento, tivesse outro nome, e houvesse criado conversas com os moradores e estratégias para abordar a importância de se ter homenagens, ou auto-homenagens, ao regime ditatorial com a comunidade e apenas depois desses projetos tivesse proposto a mudança do nome, provavelmente as reações poderiam ser diferentes.
E quando digo diferente não quero afirmar que teriam alcançado necessariamente sucesso, mas que pelo menos haveria uma discussão mais ampla na própria comunidade quanto ao assunto. Porque o que houve foi um posicionamento defensivo por parte dos moradores, fato que não permitiu uma discussão mais ampla, apenas defesas de pontos de vista sem abertura ampla ao diálogo. Um dos principais motivos que gerou resistência dos moradores ao movimento foi exatamente o fato dos líderes não serem da comunidade em questão.33 Ou seja, os líderes do movimento não apresentavam legitimidade para fazer a proposição.34
Pensamos essa a legitimidade através das cinco dimensões da cultura histórica propostas por Rüsen (2015, p. 235) , sendo elas: cognitiva, estética, política, moral e religiosa. A cognitiva refere-se ao conhecimento sobre o passado, e nesse aspecto parece que os moradores não negaram a relação do bairro com a ditadura civil-militar;35 a estética é quando humaniza-se o conhecimento, tornando-o palatável ao outro, nesse aspecto o movimento também apresentou o tema de modo controverso, digamos assim, aos moradores da comunidade em questão, prova disto foi a recusa à discussão; a dimensão política é a responsável por dar legitimidade a determinada interpretação e a essa dimensão o 31 pelo 15 pareceu estar enfraquecido, pois a interpretação de que o nome do bairro era algo negativo não convenceu; a dimensão moral trata da questão da responsabilidade histórica, que é quando o sujeito se sente responsável por algo feito no passado e que não foi feito por ele mesmo, desta forma os posicionamentos contrários dos moradores apresentam que eles não se veem ligados à ditadura, não quanto à tortura, por exemplo;36 por fim, a dimensão religiosa refere-se ao crer, a ideia de um salvador, e essa dimensão parece muito presente nos próprios líderes do movimento por crer que seu papel seria ir até o bairro e conscientizar as pessoas presumindo uma ignorância delas frente a identidade do seu próprio bairro.37
Aqui escolhemos utilizar Rüsen para pensar a falta de legitimidade, mas podemos utilizar os conceitos de Bourdieu, tal qual Bega (2013, pp. 36-37) o faz, para afirmar que os intelectuais se desenvolvem no capital cultural, entretanto não conseguem o mesmo sucesso frente ao capital político. A falta de capital político, ou de legitimidade, é ponto chave para explicar o motivo pelo qual o 31 pelo 15 não consegue garantir algum sucesso.
Não queremos aqui, de modo algum, desmerecer a iniciativa de troca do nome do bairro. Pelo contrário é necessário que haja essa reflexão na cidade de Ponta Grossa, esses enfrentamentos são ricos e possibilitam avanços na consciência histórica das pessoas. O fato do 31 pelo 15 ter conseguido levantar esse debate na sociedade pontagrossense é central em uma cidade que é tradicionalmente conservadora.
Esse conservadorismo foi exposto, há pouco tempo, na mídia nacional.38 Também é possível perceber o conservadorismo e a identificação ainda presente na cidade de Ponta Grossa frente ao regime instalado em 1964 através da quantidade de referências ao período, de forma positiva, na seção Linotipo (de janeiro a abril de 2010 foram publicadas 3). Essa parte do jornal reproduz matérias antigas que foram publicadas no periódico.
Concordamos que a toponímia é reveladora da memória coletiva de um determinado local (Comard-Rentz, 2006, p. 35), logo, se a população pontagrossense não se sente incomodada com o nome 31 de Março é um dos sinais que a ditadura ainda está de certa forma na memória local como algo positivo. Justamente por isso é necessário que se estabeleçam ações que visem tratar a causa, a identificação pontagrossense com à ditadura, e não o efeito, no caso a nomenclatura do bairro.
“Pode-se afirmar que os topônimos são reveladores da vida de uma comunidade, das escolhas feitas pelos homens e das vicissitudes por eles vividas” (Faggion, Corno e Frosi, 2008, p. 295). Desta forma é preciso pensar a denominação do bairro 31 de Março frente a relação íntima com os próprios habitantes, sim ligados à ditadura. E essa relação fica evidente quando os moradores relatam de forma saudosa nas reportagens o período em que os militares estiveram no poder e como o bairro era bom de se viver,39 há quem afirme que “quem mora e vive na ‘31’ só quer fazer festa pelo aniversário da fundação da vila e nada mais”.40
Nos jornais da cidade também saíram algumas publicações que visavam defender a manutenção do nome do bairro. Um articulista que assina como Klaus Writer adjetiva de forma depreciativa os líderes do movimento 31 pelo 15 como “jovens intelectuais”, afirmando que o movimento visava apagar o passado.41 Nesse mesmo texto a defesa da manutenção do nome passa pela argumentação que não existe monumentos ao regime instalado em 1964, nem há participação das Forças Armadas nas comemorações do aniversário do bairro.
Em artigo intitulado Temos orgulho do “31 de março”, Douglas Fonseca42 defende de forma aberta a permanência da toponímia por ver no movimento que derrubou João Goulart do poder como democrático e que livrou o Brasil de ditaduras totalitárias de esquerda. Inclusive o autor vai mais adiante e propõe o banimento de símbolos comunistas. O artigo se encerra afirmando que é uma honra ter um ônibus que ostente “o glorioso 31 de março”.
A mudança de toponímias se dá principalmente por três motivos: devido a grandes eventos, a eventos pontuais e devido à vontade popular (Comard-Rentz, 2006). A possibilidade de mudar o nome do bairro devido a eventos passou-se, pois deveria ter sido aproveitada o processo de redemocratização. Desta forma a mudança deveria ocorrer por vontade da população, o que também não ocorreu, os parágrafos acima dão conta de demonstrar esse fator. Essa mudança por vontade da população seria a representação de efetiva mudança da cultura história da população do bairro.
Há dois aspectos que tem relação com esses motivos: vontade política e vetor memorial (Guillon, 1999, p. 139). Os dois estão interligados, sendo o primeiro mais voltado para a questão dos representantes e da política institucional. Já o segundo é o reflexo da própria mudança de identificação da população. Frente a esses dois motivos, Grinberg (2013, p. 12) afirma que a toponímia tem como função primeira ser vetor memorial.
O 31 pelo 15, como chegou inclusive ir a Câmara de Vereadores da cidade de Ponta Grossa, optou por uma mudança levando em conta mais o motivo político do que a vontade da população. Só que, como não tinha representatividade dos moradores do bairro e da cidade, acabou não gerando o impacto de haver uma mudança efetiva na toponímia em questão.
IDENTIFICAÇÃO E DISTANCIAMENTO DO INTELECTUAL, MOTIVOS PARA RECHAÇA
Nas matérias publicadas acerca do movimento de mudança de nome foi possível perceber que os moradores se contrapuseram por motivos de identificação. Os moradores afirmaram que há tempos o nome do bairro já era aquele e que havia outras coisas para serem mudadas na sociedade;43 também não se viam ligados às torturas realizadas pela ditadura;44 e tinham como memória as boas casas que compunham o conjunto.45
Thiago de Oliveira afirmou que o motivo para mudar o nome do bairro era de que era uma auto-homenagem à ditadura civil-militar e que seria “uma falta de solidariedade por parte dos moradores não se conscientizar sobre isso, porque muita gente desapareceu, foi torturada na época”, afirmou Demeneck.46
Dessa forma é possível perceber que os líderes, no caso Demeneck e Thiago de Oliveira, julgam de forma veemente os moradores por se colocarem contra a alteração do nome, mesmo antes Thiago de Oliveira ter afirmado que essa não era a intenção.47 Isso ocorre devido ao distanciamento desses sujeitos da referida comunidade, não levando em conta as lembranças e construção de identidades que estão naquele bairro.
Para mostrar a força da identificação gostaríamos de destacar as referências que Thiago de Oliveira e Demeneck (2016, p. 487) fazem ao texto publicado por Claudio Ferreira Clarindo. Clarindo, segundo os autores, faz um relato marcado por um “ar nostálgico e que dá a entender que as restrições do articulista ao movimento se motivam mais pelo apego identitário que por ideologias políticas”. Não é apenas Clarindo que se posiciona desta forma, Onadir da Cruz, presidente da associação de moradores do bairro à época, também afirma que os moradores gostam do nome e isso não tem relação alguma com a questão política.48
O caso de Clarindo é mais significativo porque ele tem formação em história, inclusive foi colega de orientação de Thiago de Oliveira, pois ambos foram, na mesma época, orientados pelo professor Luis Fernando Cerri (Oliveira e Demeneck, 2016, p. 487). Ou seja, olhando de forma fria Clarindo tenderia simpatizar com o movimento, entretanto não é isso que ocorre.
Para compreender esse fenômeno utilizaremos Stuart Hall (2006, p. 12) quando ele explica que os sujeitos têm se tornando cada vez mais fragmentados, com várias identidades, muitas vezes contraditórias entre si. Por isso o autor propõe que não tratemos mais de identidades, mas de identificações, como processo em mutação constante (Hall, 2006, p. 39).
Provavelmente Clarindo tinha consciência das crueldades do período ditatorial liderado pelos militares e sabia também da importância de se romper com esses entulhos autoritários que permanecem em nossa sociedade. Entretanto, a identidade de historiador provavelmente se contrapôs a de morador do bairro49 e o resultado foi um texto publicado em um dos periódicos da cidade em que ele não se posicionou de forma clara quanto ao 31 pelo 15, mas que valorizou a memória da vila e trouxe em seu título o nome 31 de Março.50
Helenice Rodrigues da Silva (2002, p. 40) aponta, sobre os anos de 1980 e 1990, que “o retorno do intelectual a seu objeto de estudo transforma-o em especialista e expert, substituindo o intelectual engajado”. Essa especialização acaba por afastar o intelectual de uma militância mais extensiva como vinha ocorrendo entre os anos de 1945 e 1980, principalmente na França. Esse processo de especialização dos intelectuais ocorre na migração da imagem do intelectual revestido como possuidor de uma consciência crítica e que poderia ensinar e moralizar o mundo, para intelectual que não tem mais grandes ideologias para defender, nem grandes dogmatismos para combater. Desta forma, nos anos de 1980, o mundo assiste a um silêncio dos intelectuais (Rodrigues, 2005, p. 397).
Dosse (2007, pp. 94-96) acha em Foucault o principal teórico a explicar e enunciar essa transição entre o intelectual engajado e o especialista. Essa transformação ocorre quando o intelectual deixa de encarar-se como responsável por descobrir verdades ocultas ou dar conselhos sobre as áreas mais variadas do cotidiano social e subjetivo e passa a ver-se como para identificar-se como o sábio de uma determinada área específica, onde sacraliza-se a erudição.
Esse rompimento com a representação de um intelectual engajado acaba por criar uma crise de identificação do intelectual. Esse afastamento faz com que o intelectual acabe por ter uma vivência cada vez mais solitária, onde encontra sua legitimidade longe das barricadas, mas nos salões, nos lugares de palavras, de controvérsias, dentre outros (Dosse, 2007, p. 25).
No Brasil os grupos de intelectuais também se representavam como líderes na construção da nação brasileira. Pécaut (1990, p. 15) afirma, sobre a geração de 1954-1964, que os “intelectuais já não precisam reivindicar uma posição de elite: sua legitimidade decorre justamente de se fazerem intérpretes das massas populares”. E anteriormente a essa geração da década de 1950 e 1960, a de 1930, defendia que não haveria outro “caminho para o progresso senão o que consiste em agir ‘de cima’ e ‘dar forma’ à sociedade” (Pécaut, 1990, p. 15).
Questões reflexivas acerca dessa situação são colocadas por Leclerc (2004) quando ele questiona:
A questão da representação discursiva e política dos que devem então ser considerados como sem-voz, dos silenciosos, dos mudos leva a encarar o problema da origem desse silencio suposto das classes inferiores [...] O que é que funda a legitimidade da pretensão dos intelectuais de representarem o povo e em que seu discurso tem mais crédito que o dos políticos? (pp. 57-58).
Para responder a essas indagações, Leclerc (2004, p. 58) utilizamos Gramsci para afirmar que o intelectual trai a sua classe, que é a dominante, e se coloca, através do engajamento, a serviço das classes populares. Essa explicação dá conta de compreender a autoimagem criada pelo intelectual, mas não resolve as questões sobre o fato desses sujeitos verem a população como uma massa carente de um porta-voz, de um líder que a represente.
Esse tipo de postura intelectual acaba por afastar ainda mais esses sujeitos da população, pois fortalece a imagem de aquele que tem estudo, institucionalizado, é mais sábio e digno de confiança do que os que não galgaram carreiras acadêmicas. O que é preciso perceber que um fator não exclui o outro, necessariamente.
Desta forma, queremos pensar aqui, o fortalecimento de sujeitos formadores de opinião como Leandro Karnal, Olavo de Carvalho, Nando Moura, Marcelo Madureira, dentre outros youtubers e comentaristas, como uma resposta clara a essa postura pedante e vanguardistas dos intelectuais integrantes da lógica universitária atual. Afinal, os nomes citados acima até podem ter formações acadêmica e uma carreira dentro da Universidade, mas quando falam à população em seus vídeos e/ou palestras não o fazem evocando sua titularidade acadêmica, muito menos seu currículo lattes e suas especializações.
A consequência desse afastamento dos universitários como formadores de opinião e reflexão acerca do mundo é o ressurgimento de teorias como o terraplanismo, fortalecimento de discursos que defendem o nazi-fascismo como movimento de esquerda, o crescente fortalecimento político de ideias ditatoriais e contra os direitos humanos e, acima de tudo, o enfraquecimento do discurso científico.51
De qualquer forma, não conseguimos enquadrar os intelectuais, nem mesmo os que aqui estamos abordando, em outro lugar social que não o de elite. Mas é preciso destacar: uma “fração dominada da classe dominante” (Bega, 2013, p. 37). Esse status de elite faz com que o capital cultural adquirido pelos intelectuais afaste ainda mais esses sujeitos da população de uma maneira geral.
Esse movimento pode ser reconhecido até mesmo no campo educacional, quando Bourdieu aponta que a escola, formada por professores que se enquadram no conceito de intelectuais que estamos utilizando no presente texto, serve à reprodução do capital cultural, perpetuando as desigualdades e, até mesmo, as legitimando por meio dessa hierarquização de saberes, ou capitais (Bourdieu, 2013, p. 65). Desta forma o intelectual se torna mais igual entre os iguais, vendo-se a si mesmo como o libertador e o capacitado para fazer algo em prol dos indefesos subalternos.
Erasmo de Rotterdam (2012) com seu Elogio da Loucura nos possibilita uma reflexão interessante. Ele, dando voz a Loucura, afirma que “o sábio, com o nariz sempre colado nos livros antigos, aprende apenas palavras sutilmente combinadas; o louco, ao contrário, exposto constantemente a todos os caprichos da fortuna, aprende em meio aos revezes, penso eu, a conhecer a verdadeira prudência” (p. 40).
Ou seja, parece faltar um pouco de loucura aos intelectuais. Essa loucura refere-se à vivência cotidiana, experenciar o dia-a-dia fora das instituições, principalmente a Universidade. Essa subjetividade faz diferença no momento que o intelectual vai tratar com outras pessoas que não tem a mesma carga de leitura que ele e nem estão preocupadas com a produtividade do Lattes.
Ainda na literatura, só que de maneira mais próxima geograficamente e cronologicamente, queremos também destacar Bacamarte, o alienista de Machado de Assis (2008) . Depois de ter examinado praticamente todos os habitantes de Itaguaí acaba por se perceber como o único louco da cidade, justamente por ser extremamente racional e com suas ideias logicamente organizadas, sem espaço para a variação, a emoção e o desvario que acaba por ser parte constituinte do ser humano.
Esse aspecto é muito importante de ser destacado, porque muitas vezes o universitário não tem tempo nem mesmo de se informar sobre outros assuntos que não sejam o da sua pesquisa científica. Desde os assuntos mais superficiais como o que está sendo tratado nos jornais locais, até fazer leituras de outras áreas que possam aumentar sua visão e permitir-lhe ter uma leitura de mundo mais ampla. Com tanta produção de tantas áreas diferentes o intelectual se vê preso a uma lógica de produtividade que o afasta da vida cotidiana que está no seu entorno.
Por fim, ainda gostaria de destacar um intelectual que assim o foi antes mesmo de existir o termo. Helenice Rodrigues da Silva (2002, p. 14) aponta que “o intelectual pode parecer mais um comportamento -ele está ligado à cultura de seu tempo”, sendo assim ela coloca que os clérigos no fim da Idade Média eram esses homens de cultura, com o Iluminismo os intelectuais passam a cultuar a razão (Rodrigues, 2005, p. 398).
Sobre essa postura de vanguarda gostaríamos de destacar Platão (2003, pp. 210-215) ao propor o famoso Mito da Caverna. Essa alegoria aponta que o sujeito depois de ter ganho a liberdade e chegado a luz do conhecimento passa a enxergar tudo de forma muito mais clara.
Lembro-me de ter discutido no ensino médio e na universidade, em aulas de filosofia, essa alegoria da antiguidade. Embora a ideia de que o conhecimento liberte seja bastante importante até para a força das ciências frente à sociedade moderna, a discussão acerca da vanguarda gira em torno do processo da construção do conhecimento.
Na alegoria o sujeito que sai da caverna sente dificuldades ao ter os primeiros contatos com a luz, assim bem como ao voltar para falar aos seus ex-companheiros de prisão sente dificuldades de enxergar no escuro ao qual não está mais acostumado, inclusive podendo ser morto pelos que não saíram do cárcere. Desta forma é possível observar uma diferença de visão, não que uma fosse melhor que a outra, mas diferentes.
Sendo assim, a educação não pode funcionar “como se introduzissem vista a olhos cegos” (Platão, 2003, p. 213) . Pelo contrário “a educação seria, por conseguinte a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso” (Platão, 2003, p. 214).
Essa lógica proposta por Platão permite o rompimento com a ideia de vanguarda, afinal, o fato de considerar que o outro tem sim uma visão, tem algum tipo de conhecimento muda a abordagem de qualquer assunto.
O movimento que aqui nos atentamos de forma específica parece ter tentado libertar os moradores do 31 de Março sem ter ao menos tempo para acostumar a visão. Dessa forma o 31 pelo 15 acabou morto pelos próprios sujeitos aos quais pretendia curar da cegueira.
De forma mais recente, podemos destacar os ensinamentos de Paulo Freire: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (Freire, 1996, p. 25).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não foi nossa intenção nesse texto colocar os intelectuais responsáveis pelo 31 pelo 15 no banco dos réus e julgar o movimento. O foco que procuramos manter durante o trabalho foi refletir a distância entre intelectuais e a sociedade de maneira geral. Concordamos com Sirinelli (2003, p. 261) quando ele afirma que “nem complacente, nem membro, a contrário, de qualquer pelotão de fuzilamento da história, o historiador dos intelectuais não tem como tarefa nem construir um Panteão, nem cavar uma fossa comum”.
Talvez se a postura dos líderes do movimento tivesse sido de construir junto à população o 31 pelo 15 e não o apresentar esperando simples adesão os resultados poderiam ter sido diferentes. Embora na narrativa da história não tratemos do se ou do talvez essas reflexões são necessárias para que possamos pensar os meios pelos quais participamos da formação do conhecimento histórico na sociedade.
Mas antes de encerrar o texto é preciso destacar que ações como a do 31 pelo 15 são importantes, pois lançam luz a quão pouco é feito pelos setores acadêmicos frente a sociedade. Mesmo não concordando com o modelo de ação empregado o esforço de sair das fronteiras dos feudos institucionais deve ser louvado.
Não quero ser hipócrita, pois também tenho construído uma carreira acadêmica por dentro da Universidade. O texto aqui apresentado é uma autocrítica também, pois a vivência institucional nos engole como areia movediça, já que, parece, que quanto mais tentamos nos desvencilhar dela mais afundamos nas burocracias institucionais que não nos dão tempo para vivermos.
A universidade está organizada dentro de uma lógica produtivista e imediatista que impossibilita trabalhos educacionais de longo prazo nas comunidades no seu entorno. É preciso que se rompa com essa dinâmica para que possa haver uma aproximação onde haja uma construção dialógica entre comunidade e intelectuais de saberes que visem resolver questões práticas, filosóficas e até mesmo interiores das pessoas em seus cotidianos.
É preciso que nós, como intelectuais, afastemo-nos dessa autoimagem vinculada ao pensamento salvífico de que somos responsáveis pela redenção de todos e a libertação das classes menos favorecidas. E percebamos que é preciso sempre construir através do diálogo e nunca da imposição, sempre por meio do reconhecimento e não da hierarquização. É preciso compreender que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Freire, 1996, p. 25).