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Nova tellus

versión impresa ISSN 0185-3058

Nova tellus vol.40 no.1 Ciudad de México ene./jun. 2022  Epub 08-Abr-2022

https://doi.org/10.19130/iifl.nt.2022.40.1.432577 

Artículos

Aelredo de Rivelaux e Goderico de Finchale: austeridade e observância monástica em pespectiva (século XII)

Aelred of Rievaulx and Goderico of Finchal: austerity and monastic observance in perspective (12th century)

Raimundo Carvalho Moura Filhoa  *
http://orcid.org/0000-0001-5262-6919

aUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil, raimundo.hist.cesi@gmail.com


Resumo

No curso do século XII, com o surgimento das novas ordens monásticas, entre as quais a de Cister (1098 d. C.), o tema da austeridade tornou-se central na discussão sobre a melhor forma de observância da A Regra de São Bento, documento canônico sobre a vida regular oriundo do século VI. As concepções sobre a austeridade podem ser verificadas, por um lado, no O Espelho da Caridade, do abade cisterciense Aelredo de Rivelaux (1110-1167 d. C.), e, por outro, na hagiografia A Vida de São Goderico, cujo lugar sociocultural é o priorado de Durham, também na Anglia. Assim, este artigo busca argumentar, para provar, que houve aproximações e distanciamentos no que se refere à melhor maneira de executar austeridade monástica no norte da Anglia, no centro da renovação religiosa no curso do século XII.

Palavras chave: Ascetismo; Anglia; monaquismo; austeridade; observância

Abstract

In the course of the 12th century, with the emergence of new monastic orders, including that of Cistercian (1098 AD), the theme of austerity became central to the discussion on the best way of observing the Rule of Saint Benedict, a canonical document on regular life from the 6th century. Conceptions about austerity can be verified, on the one hand, in the Mirror of Charity, by the Cistercian abbot Aelredo de Rivelaux (1110-1167 AD), and, on the other, in the hagiography The life of saint Godric, whose socio-cultural place is the priory from Durham, also in Anglia. Thus, this article intends to prove that there were approaching and distancing concerning the best way to carry out monastic austerity in northern Anglia, at the center of religious renewal in the course of the 12th century.

Keywords: Asceticism; Anglia; Monasticism; Austerity; Observance

I. Introdução

No curso do século XII, a prática da vida ascética, cuja doutrina é vasta dentro do monaquismo ocidental, tornou-se objeto de discussão no centro das transformações religiosas. Destaca-se o ideal de vita apostolica que elegeu a pobreza voluntária como tema central, por meio da qual foi idealizado como um requisito para o retorno às fontes da Igreja primitiva. Com efeito, o clero oficial propôs reformar a Igreja e também a sociedade, apoiando a perseguição do modo de vida dos Apóstolos para que assim fosse revivido o modelo de vita primitiva(Lawrence 1999, p. 201; Leyser 1984, p. 27).

A melhor maneira de perseguir esse ideal de austeridade religiosa não foi consensual, pois, mesmo entre as ordens monásticas recém-fundadas, houve divergências quanto ao tema. O monaquismo tradicional, representado pelos beneditinos de Cluny e suas ramificações no Ocidente latino, tornou-se o alvo privilegiado das críticas dos promotores da renovação monástica. As críticas dirigiam-se ao que se considerava como relaxamento em tema de observância, bem como do abandono do rigor austero em detrimento de boas vestimentas, alimentação desregrada e suntuosidade de suas casas. As novas ordens monásticas, e o fenômeno eremítico do século XI do qual assimilou o sentido do ascetismo rigoroso, propunham reestabelecer o modelo primitivo, principalmente pelo cumprimento de uma agenda de trabalho manual, conciliada com o ofício, e do afastamento do convívio social, representado pela preferência por lugares longe de cidades e aldeias.

Este artigo objetiva discutir as concepções sobre austeridade na Anglia no século XII, tendo como ponto de partida duas fontes de natureza distinta: o tratado espiritual O Espelho da Caridade (EC) (ed. 2019), escrito pelo abade cisterciense Aelredo de Rivelaux (1110-1167 d. C.) entre 1163 e 1166 d. C., a partir do qual é possível verificar a proposição de um representante da renovação monástica sobre os espaços legítimos da ascese; e a Vida de São Goderico (VSG), que foi editada por Joseph Stevenson (1847), e é uma hagiografia também do século XII, composta na comunidade beneditina de Durham (Alexander 2000).

II. O eremita de Finchale: Goderico e as práticas da ascese não regulamentada

Na história do cristianismo, a busca pela solitude no eremus (deserto) estava em sintonia com o ideal cristão de renúncia, que é fundamentado nos evangelhos. Foi assim que João Batista, considerado o padroeiro dos eremitas, clamou no deserto; Jesus retirou-se para o deserto antes de iniciar a sua pregação e evangelização (Mc 8, 20).1 Além das heranças testamentárias e neotestamentárias sobre a retirada do mundo, outras influências alcançaram o medievo, como as experiências dos anacoretas orientais que fizeram carreira na Antiguidade Tardia, cujas Vitae circularam no Ocidente desde pelo menos as traduções do grego para o latim empreendidas por João Cassiano (360-435 d. C.), Paulino de Nola (354-431 d. C.) e Sulpício Severo (?-655 d. C.).

No curso do século XII, a busca pela solitude integrou as mudanças ocasionadas pela religião dos novos tempos, que primou pelas formas não institucionalizadas de espiritualidade, como foi o caso do eremitismo. Foi influenciada, ainda que em certa medida para recusá-las, pelas mudanças sociais e econômicas que estavam em curso no período supracitado. Os novos eremitas foram percebidos como aqueles que encararam, de forma heroica, os desígnios de Deus. Perseguidos por multidões ou vivendo mais ou menos isolados em bosques e cavernas, considerados como sendo o eremus do Ocidente, os ascetas despojaram-se das convenções sociais e tinham um objetivo sublime: viver a fé na intimidade com Deus. Homens e mulheres de origem leiga buscaram esse ideal, o que contribuiu para a constituição de um contexto de admiração popular pela austeridade (Duff 2011, p. 88).

No norte da Anglia, ao lado de outros eremitas estabelecidos pela região, Goderico de Finchale (1067-1170 d. C.) atraiu atenção dos beneditinos de Durham, uma comunidade ela mesma fundada em 1083 d. C. por um grupo de eremitas oriundos do sul. Foi nessa jovem comunidade de monges beneditinos que a VSG foi confeccionada pelo monge Reginaldo de Durham (?-1190), que também foi um amigo próximo e confidente de Goderico. Narra a Vita que o hagiografado foi mercador antes de seguir a vida de um solitário em Finchale, uma localidade inabitada a poucos metros do priorado de Durham (Alexander 2000, pp. 28-71).

Por ter sido iniciada quando o eremita ainda era vivo, a VSG assinala uma particularidade, pois com frequência no medievo predominou o registro do itinerário daquele/daquelas considerados/consideradas santos/santas após a morte. Embora não tenha sido canonizado, Goderico foi considerado um santo local, tendo a ele sido atribuídas visões, profecias e curas milagrosas (Alexander 2000, pp. 123-4, p. 186).

Com efeito, é no interior da retórica hagiográfica que se encontram as concepções sobre a ascese não regulamentada, a qual os beneditinos buscaram reorientar. O ascetismo do eremita girou em torno de uma rigorosa dieta, baseada em raízes, frutos, leite e pães, além de orações ininterruptas durante a noite (Alexander 2000, pp. 88-90). O interesse em perpetuar a memória, por meio da promoção do culto, indica que os monges de Durham desde cedo reconheceram o status sagrado do asceta de Finchale. Por se tratar de uma hagiografia, é preciso destacar, no entanto, que não se trata de um registro fidedigno, pois a figura do Goderico ideal absorveu a do personagem real. A hagiografia medieval pode ser caraterizada, em linhas gerais, como uma narrativa destinada a preservar e construir modelos de santidade em torno de personagens consideradas eleitas e exemplares.

A atenção dada aos anos iniciais no eremitério indica a postura relutante dos monges regulares frente às práticas do asceta de origem leiga. Nos primeiros anos, Goderico seguiu uma autodisciplina (em oposição à disciplina regular) e evitou a aproximação de pessoas. Não obstante essa recusa do contato humano, registra a vita que, em suas orações, clamou para que Deus abençoasse aqueles que tentaram entrar em contato pessoalmente. Entre as preces, o asceta pediu que Jesus aceitasse as ofertas dos fiéis e que satisfizesse os seus desejos (Alexander 2000, p. 61). O afastamento e a recusa em se relacionar com as pessoas, inclusive refugiando-se nos bosques ao sinal de aproximação humana, integrou os topos do eremita como alguém alheio às convenções sociais; estava também a serviço da retórica hagiográfica que instituiu a imagem de que, morto para o mundo em uma espécie de sepultamento vivo, teria mais tempo para dedicar às batalhas espirituais.

Essa primeira fase compreende os anos entre 1112 d. C. e 1145 d. C. e parece ter incomodado os beneditinos de Durham, pois a austeridade de Goderico destoava dos princípios de vida regulamentada, entre os quais a necessidade de uma formação regular no cenóbio e de submissão a uma regra escrita. Na A Regra de São Bento (RSB) (ed. 1992), documento datado do século VI d. C. e considerado uma das principais fontes sobre a doutrina ascética no Ocidente, a retirada para o ermo é tratada como algo excepcional, pois o combate solitário contra o demônio tem como condição sine qua non a experiência comunitária, que é a instrução ao lado de outros irmãos (RSB, Cap. I, p. 21). Essa definição indica as suspeitas que marcaram o processo de organização do monaquismo no Ocidente acerca de empreendimentos individuais, o que se confirmaria no medievo a partir da predominância da organização em cenóbios.

É por isso que na VSG há uma avaliação negativa sobre a ascese que podemos nomear de não regulamentada, da qual Goderico foi um praticante, segundo a perspectiva monástica ortodoxa a respeito de obediência à regra escrita. Por um lado, não há registros de milagres nessa fase, o que mudou quando o asceta finalmente aceitou os monges de Durham como seus mestres espirituais, alguns anos depois. Outro aspecto que indica a relutância dos beneditinos sobre a ascese individual é a evocação em termos extremos do modus operandi do eremita de Finchale. No que diz respeito à bebida e à comida, por exemplo, é colocada ênfase na ideia de sofrimento que o teria atingido, o que constitui uma estratégia para lembrar aos leitores e ouvintes da Vita acerca dos sofrimentos no inferno, e que o eremitério constituiu um purgatório na Terra (Alexander 2000, pp. 80-108).

A sua bebida era exclusivamente água, consumida apenas nos casos extremos de sede; a sua roupa era de pelo de animal, além de ter adotado correntes envoltas de seu corpo. Para Goderico, essas vestimentas reforçaram as práticas ascéticas, mas foram avaliadas de forma negativa pelos monásticos, pois prevaleceu a imagem textual de alguém que se aproximou mais da condição selvagem do que humana:

A corrente em ocasiões penetrava em sua carne enquanto ele dormia, e causava feridas que o irritavam ainda mais durante o dia, e tanto as correntes como a camisa de pelo tornavam o trabalho mais rigoroso. No inverno, a corrente esfriava em seu corpo nu; enquanto no calor do verão a camisa de pelo tornou-se um local de reprodução de vermes. Nem mesmo isso, porém, faria Goderico alterar as suas práticas (Alexander 2000, pp. 71-2).

A virtus que Goderico exercia era incomum para a maioria das pessoas, inclusive para os monges. Mesmo sendo excepcional, o seu modus operandi não derivou de uma formação monástica, a qual a RSB preconiza como indispensável para o modo de vida eremítico. É por isso que os beneditinos de Durham não incentivaram uma espiritualidade passível de ser indexada pela Regra, como os girovagos e sarabaítas. A autorregulamentação, assim, foi notada como potencialmente perigosa, e por isso impuseram deliberadamente a ideia de excesso degradante, evidenciado pela presença de vermes em sua roupa de pelo e os elementos selvagens que integravam o cotidiano do asceta, como a alimentação e o corpo parcialmente coberto. Reginaldo e os monges de Durham pintaram assim um quadro de mortificação corporal severa não aceitável para o padrão de vida regular.

III. Aereldo de Rivelaux: A austeridade contra o relaxamento

Localizada também no norte da Anglia, a comunidade cisterciense de Rivelaux, à qual pertencia Aelredo, propunha uma espiritualidade fundamentada na austeridade religiosa. A expansão da Ordem de Cister nas Ilhas Britânicas iniciou-se em 1128, quando o bispo de Winchester, William Giffard, estabeleceu em Waverley monges da casa francesa de L’Aumône. No norte especificamente, a casa de Rivelaux, em Yorkshire, foi fundada entre 1131-1132 d. C. por monges trazidos de Claraval, sob as ordens do abade daquela casa continental, Bernardo de Claraval (1090-1153 d. C.). A negociação envolveu o rei Henrique I e o arcebispo de York Thurstan, o que resultou na concessão de um local no vale de Rye, nas proximidades do castelo do juiz real Walter Espec, em Helmsley.

A primeira geração de monges de Rivelaux atraiu atenção pela sua rigorosa austeridade e simplicidade, além do projeto reformador, entendido como tentativa de seguir (e fazer seguir) ipsis litteris a RSB. Foi o caso, por exemplo, da abadia beneditina de Santa Maria, a qual os monges cistercienses criticaram por sua riqueza, que deveria ser doada, para assim adotar a pobreza voluntária. Esse embate indica o contraste entre a concepção de observância dos cistercienses e a orientação religiosa e cultural do monaquismo cluniacense, de tradição carolíngia, que não dissociou em absoluto o conforto material e a vida claustral, ou o envolvimento com o mundo.2

Nesse cenário de fazer ressurgirem os costumes primitivos, Aelredo de Rivelaux ocupa um lugar central pela sua ampla produção literária, que compreende tratados espirituais, hagiografias e trabalhos históricos. No Livro II do EC, empreende uma detalhada e panfletária definição de austeridade, indo das relações entre exterior e interior, carne e espírito. Para o abade, o estado de ânimo (mens, em latim) influencia os sinais externos do corpo, como a fadiga, a tristeza e as doenças. Isso significa que algo não é bom ou mal per se, pois, depende por princípio da interioridade para sentir se esse algo é agradável ou aborrecedor:

De fato, o alimento que aumenta o mal-estar de alguém reforça a saúde de outro, e o sol que tira luz do olho embaçado, resplandece com mais alegria pelo olho saudável. Da mesma forma como para o corpo as coisas que vêm do externo resultam saudáveis ou nocivas segundo o estado de ânimo interior, assim também as indicações apenas consideradas nos fazem ver muito facilmente como dependa da disposição interior da alma que a um derive o repouso e a outro o cansaço. (De Rievaulx, EC, L. II, Cap. III, 6, ed. 2019, p. 150).

Na prática, Aelredo acredita que o interior pode transformar as preocupações de modo que não se tornem uma perturbação capaz de tirar o foco dos progressos espirituais. No capítulo V, intitulado Sobre a opinião daqueles que dizem que as fadigas exteriores são contrárias à caridade e à doçura interior, ele aprofunda a questão ao argumentar que as vigílias contínuas, o trabalho manual e o consumo de alimento de má qualidade geram fadiga capaz de impedir a doçura espiritual: “Esta é a opinião ridícula de alguns que colocam doçura espiritual num certo bem-estar da carne e afirmam que atormentar o corpo é contrário ao espírito, e que os sofrimentos do homem exterior diminuem a santidade daquele interior” (De Rievaulx, EC, L. II, Cap. V, 8, ed. 2019, p. 154).

A santidade interior não é diminuída pelos sofrimentos do homem externo. A comunicação entre carne e espírito não se dá de forma direta, e também não é recíproca, pois do contrário as perturbações exteriores afetariam o espírito. Este tem, seguindo Aelredo, a sua própria energia: a sua força vital é a alegria espiritual, expressa pela doçura e também pelo choro. A independência do espírito em relação ao corpo vai de encontro ao discurso médico então predominante, como as regras de Hipócrates, considerado a maior autoridade médica da Antiguidade, cuja doutrina ecoa para Aelredo na fórmula generalizante mens sana in corpore sano. Em seu argumento, o abade entende que o discurso médico estava preocupado preferencialmente com o bem-estar do corpo, o que para ele não corresponde ao fardo da Cruz, que exige, por sua vez, assim como o próprio Cristo, sacrifício e mortificações. Esse fardo não é macio, suave ou refinado, o que significa que é pseudoperspicaz a sabedoria dos seguidores de Hipócrates. A mortificação da carne, portanto, não é contrária ao espírito, mas algo necessário, pois a tribulação externa é acompanhada pela consolação interna.

A pobreza comunitária é posta por Aelredo em sua crítica dirigida ao monaquismo tradicional associado ao relaxamento: banquetes suntuosos, bebidas e conversas ociosas. O ideal austero cisterciense foi buscado nas vestimentas, feitas de material simples, como pele de ovelha; na arquitetura dos edifícios, à base de madeira e pedra, que também evidenciou aversão à arte decorativa. Esses aspectos contrastam com as edificações cluniacenses, marcadas pelo esplendor e riqueza decorativa, a qual os cistercienses buscaram explorar para argumentar sobre a correta observância da regra beneditina.

A busca pela graça divina ocorre através das vigílias frequentes, da fome e da sede, do frio e da nudez, bem como por meio do cansaço cotidiano e da mortificação da própria vontade. O convite ao desprezo pelo mundo e a desconsideração da carne integra-se à participação na Paixão de Cristo, um ponto evocado por Aereldo em seu argumento sobre a correspondência entre sofrimento exterior e o espírito (De Rievaulx, EC, Cap. VI, 13-15, ed. 2019, pp. 158-160). Dessa forma, para incorporar a vida de Cristo e dos apóstolos, as práticas espirituais ligaram-se ao engajamento das mortificações corporais (Plunkett-Latimer 2016, p. 91).

IV. Goderico e Aelredo: Aproximações e distanciamentos

A austeridade evidenciada na VSG e no tratado o EC joga luz sobre como esse tema, antes de ser consensual no meio monástico, veiculava perspectivas divergentes sobre a observância monástica. O priorado de Durham, uma instituição beneditina que foi fundada no norte da Anglia em um contexto de efervescência do ideal de vita apostolica e da espiritualidade eremítica, uma forma alternativa de viver a fé no curso do século XII, buscou adaptar esses ideais à identidade da ordem.

Foi nesse contexto que Goderico atuou como eremita em Finchale e tornou-se alguém suficientemente conhecido para passar despercebido pelo priorado de Durham. Depois de passada a fase de independência ascética, discutida acima, que foi marcada pala austeridade autoimposta, o eremita reconheceu, por volta de 1145 d. C., que os esforços para alcançar a perfeição não eram o suficiente, como é indicado no trecho que segue da VSG:

Veio algum outro ensinar-lhe, e ele aprendeu um pouco que todo trabalho da religião teria sido de perfeição muito pequena na ausência da obediência à disciplina magistral de Deus. Portanto, dentre as ordens religiosas, ele escolheu o priorado de Durham porque esses homens estavam ao lado do beato Cuteberto.3 (Alexander 2000, p. 134).

Era preciso cumprir com a prática monástica de obediência à regra, o que conduziu ao processo de instrução monástica. Embora não fosse um monge professo, pois não tinha uma formação monástica, Goderico exerceu atração sobre os beneditinos, o que contribuiu para o fluxo de monge em Finchale a partir de 1145 d. C. As visitas ao eremitério de Finchale interessavam aos monásticos porque eram a oportunidade da comemoração das festas litúrgicas, realização de missas e também para colher informações para a confecção da Vita, que, como observamos, estava em curso.

O contato com o priorado de Durham, por meio do qual sabemos da existência daquela asceta, contribuiu para a difusão das histórias sobre o seu ascetismo, inclusive tendo alcançado a abadia de Rivelaux. Assim, na VSG é registrado que Aelredo, então abade de Rivelaux, foi a Finchale muitas vezes visitar Goderico (Alexander 2000, pp. 175-177). Embora a fonte não detalhe essas visitas, é possível destacar que o ideal de vida austero perseguido por Goderico estava no centro da renovação monástica cisterciense: a austeridade como fundamento da vida regular.

Assim, de forma análoga aos beneditinos, os cistercienses de Rivelaux identificaram o eremitério como um posto avançado em termos de ascetismo. A disparidade cultural entre ambos (Goderico como um leigo sem educação formal, e Aelredo como um monge e abade erudito) não parece ter impedido uma frutuosa relação, pois em diversas ocasiões Goderico sugeriu às pessoas que o visitaram em Finchale que fossem a Rivelaux, onde poderiam ser aceitas como conversus.4 No prefácio da VSG, é registrado que Aelredo encomendou a confecção da Vita, além de ter solicitado que o priorado de Durham enviasse a Rivelaux um exemplar quando estivesse concluída (Alexander 2000, pp. 83-85).

A defesa panfletária do abade acerca da austeridade evidenciada no EC encontrou no caso do eremita um exemplo prático, pois ao abade ele encarnava o ideal de ascese e mortificação, aspectos que acusavam o monaquismo tradicional de ter abandonado. É preciso ponderar, por outro lado, que a emergência do eremitismo entre os séculos XI e XII, do qual Goderico foi um sintoma, não significou que o monaquismo tradicional declinou. A perspectiva historiográfica que estabeleceu uma relação de causalidade entre o entusiasmo eremítico e a crise monástica remonta às primeiras décadas do século XX. Destacam-se as pesquisas do historiador Germain Morin 1928, p. 112, um dos precursores dessa perspectiva, para quem a crítica ao monaquismo tradicional indicada pelo fenômeno eremítico e pelo surgimento de novas ordens monásticas foi uma resposta direta ao apego às liturgias e à suntuosidade dos mosteiros do monaquismo tradicional (Morin 1928, pp. 99-115).

De fato, houve uma insatisfação com a vida regular, observada em diversos setores da sociedade. A busca por formas alternativas de viver a espiritualidade, então, aumentou as possibilidades para aqueles/aquelas que desejaram viver a fé, seja em comunidades eremíticas, como ocorreu no noroeste da Francia, seja no caso dos eremitas individuais que atuaram na Anglia(Duff 2011, p. 88). Nessa perspectiva, as críticas veiculavam, e também camuflavam, uma interpretação diferente da observância da RSB,5 como fica evidente nos comentários de Bernardo de Claraval na Apologia(ed. 1997), escrita entre 1124 d. C. e 1155 d. C., e dirigida a Guilherme de São Teodorico (Saint Thierry). No opúsculo referido, o abade reformador, de quem Aelredo era próximo, contesta a alimentação e o desregramento no preparar dos ovos e no consumo de vinhos. Critica os monges cluniacenses por proporem que havia uma interrela-ção entre abundância e fidelidade à regra monástica, entre relaxamento e virtude:

Admiro-me, por isso, como é que pôde introduzir-se entre os monges uma tão grande intemperança nas comidas e bebidas, nas vestes e roupas de dormir, nos apetrechos de cavalgar e na construção de edifícios; e onde isso se faz com mais zelo, com mais gosto e com mais abundância aí se afirme que a ordem melhor está, aí se julgue que há mais religião. A ser assim, a parcimónia é tida como avareza, a sobriedade julgada como austeridade, o silêncio reputado como tristeza. Pelo contrário, o relaxamento diz-se discreção, o desperdício liberalidade, a loquacidade afabilidade, a gargalhada alegria, a delicadeza das vestes e o adorno dos cavalos dignidade, o cuidado supérfluo das camas limpeza e darmos isto uns aos outros chama-se caridade. Esta caridade destrói a caridade, esta discreção confunde a discrição (De Claraval, Apologia, Cap. VIII, ed. 1997, p. 47, destaques do autor do artigo).

A aproximação com a teorização de Aelredo sobre a relação à carne e ao espírito indica que para Bernardo o relaxamento constituía um desprezo pelo espírito, pois servia ao corpo, mas estrangulava a alma. A concupiscência da carne é irracional e infrutífera, enquanto cuidar da alma, a qual os monges devem priorizar, consiste em cultivar as virtudes, “capazes da herança incorruptível e celeste, se, de facto, tiverem um cultor piedoso e zeloso” (De Claraval, Apologia, Cap. VIII, ed. 1997, p. 49). O jejum é considerado o pão da alma, o que, para o abade, não se encontra entre os monges cluniacenses, uma vez que entre esses o fastio é prevenido pela preparação cuidadosa dos alimentos, inclusive por meio da decoração, fazendo com que “o estômago, que nem conhece as cores nem aprecia os sabores, é obrigado a receber tudo” (De Claraval, Apologia, Cap. IX, 20, ed. 1997, p. 53).

Para Aelredo, o prazer associado às vontades da carne é a antítese da prática da virtude. Em sua crítica, ele considera a chave antitética do externo/interno, por meio da qual enfatiza que o cansaço físico não é curado verdadeiramente pelo relaxamento. A cura está no esforço espiritual, que é o cansaço interior, enquanto esforço pedido para praticar a virtude. Com efeito, a austeridade compõe a medicina da alma, entendida como a escrutação da interioridade e dos exercícios espirituais que evitam a concupiscência mundana, e, ao mesmo tempo, mundo se cenere celsiorem, ou seja, é o ato de colocar-se numa perspectiva mais elevada no que diz respeito às coisas mundanas (De Claraval, Apologia, Livro I, Cap. XXXI, 87, pp. 119-120). Os cuidados excessivos com o corpo são tidos como características do exteriorismo do monaquismo tradicional, pois reflete o abandono do cultivo das virtudes do espírito, o que precisava passar por uma reforma no sentido de seguir ipsis litteris a RSB.

V. Considerações finais

No curso do século XII, o campo de exercícios da austeridade religiosa teve uma expansão. Novos atores sociais, a partir do fenômeno eremítico, bem como do surgimento de novas ordens monásticas, buscaram o desenvolvimento da ascese ao lado da vida monástica tradicional. Esta, por sua vez, foi objeto de críticas por segmentos da sociedade e no interior da própria Igreja que almejaram seguir um estilo de vida mais rigoroso.

Nesse contexto de mudanças, o eremus ganhou também um significado novo para as novas ordens. Embora não abdicasse da vida comunitária, os cistercienses, cujo ideal de vida austero o abade de Rivelaux, Aelredo, foi um obstinado promotor, enfatizou a necessidade do rigor e do despojamento social, ao lado da metáfora do deserto com o significado de isolamento consigo mesmo. A busca pelo deserto interior atendeu à proposta de austeridade que conduzisse à aproximação com Deus, importando menos a retirada para um lugar físico (floresta, ilhas ou bosques) do que a busca do homem interior e do conhecimento de Deus. Para os cistercienses em geral, e para Aelredo em particular, a austeridade expressou-se também nas vestimentas e na arquitetura dos primeiros mosteiros, tendo valorizado as formas simples de indumentárias e de disposição decorativa dos edifícios. As proposições sobre a melhor maneira de pôr em prática a austeridade foram direcionadas refletidamente às críticas genéricas, veiculadas por outras famílias monásticas no curso do século XII, de que os cistercienses eram excessivamente severos.

A partir de dois exemplos de atores socais com formação distinta, Goderico de Finchale, o eremita de origem leiga, e Aelredo de Rivelaux, o abade erudito de Rivelaux, pudemos discutir as perspectivas sobre a austeridade no norte da Anglia, que também foi influenciada pelas correntes continentais de renovação monástica. Assim, objeto de mortificações, aos quais os cistercienses fizeram o seu modus vivendi, o corpo físico pode ser entendido também como ligado às sensibilidades e ao sistema de crenças, ou seja, tinha uma posição na dinâmica dos imaginários sociais. Para Aelredo, os progressos espirituais pressupõem uma alma ordenada e um corpo disciplinado, especialmente pela purgação. Se por um lado a Queda foi causada pela má vontade, a da desobediência humana, a austeridade é a boa vontade corrigida, pela qual a humanidade tem a oportunidade de redenção, o que indica que a dialética do confronto entre carne e espírito seja, para Aelredo, uma representação acerca da salvação individual.

Goderico, por seu turno, expressou um ideal de austeridade que incomodou os monges tradicionais de Durham, em parte porque os beneditinos suspeitavam da ascese não ortodoxa, ou seja, que não cumprisse com o princípio de vida regular. Ainda assim, o eremita não deixou de ser procurado por pessoas que acreditavam em sua condição de eleito, justamente pela sua fama de asceta. Isso significa que a sua popularidade estava envolta em uma rede devoção leiga nas circunstâncias da valorização do tema da austeridade.

O exercício de experimentação aqui proposto, embora não aprofunde os contatos diretos que ocorreram entre os dois religiosos, Goderico de Finchale e Aelredo de Rivelaux, demonstrou que a apropriação dos ideais de austeridade estava atrelada às motivações diversas. Essa heterogeneidade, como foi discutida ao longo deste artigo, foi atravessada por aproximações e distanciamentos no que se refere à melhor maneira de executar a austeridade religiosa no norte da Anglia no curso do século XII.

BIBLIOGRAFIA

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2Em 1131, o embate resultou na expulsão de treze monges de Santa Maria que eram adeptos das reformas propostas pelos cistercienses.

3São Cuteberto de Lindisfarne (634-687 d. C.), também lembrado como o principal eremita do norte. No século xii, os monges de Durham tornaram-se os guardiões das relíquias do santo, substituindo os antigos responsáveis, a Congregatio, um grupo de clérigos seculares.

4O sistema de conversi (conversos) significou a integração de indivíduos leigos adultos, inclusive iletrados, às estruturas da instituição monástica. Foram recrutados principalmente entre os camponeses, e integram a mão de obra do mosteiro, constituindo frequentemente a parte mais numerosa do mosteiro. Em Rivelaux, cerca de 1167 d. C., quando da morte de Aelredo, constava com quinhentos irmãos leigos e cento e quarenta monges de coro (Lawrence 1999, p. 217).

5Um ponto que os monásticos cluniacenses defendia é que não havia contradição entre esplendor material e graça divina. O valor da riqueza e da beleza era, assim, uma maneira de homenagear a fé. A decoração dos mosteiros estava a serviço da glorificação do poder de Deus, e não como aspectos do relaxamento da Regra, como passaram a criticar as novas ordens monásticas no processo de stabilitas.

Recebido: 06 de Abril de 2021; Revisado: 15 de Junho de 2021; Aceito: 01 de Agosto de 2021

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Raimundo Carvalho Moura Filho é licenciado em História pela Universidade Estadual do Maranhão; mestre em História pela Universidade Estadual de Goiás e doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. É professor efetivo de História na rede de ensino básico desde 2020. É membro e pesquisador do Núcleo de Estudos Multidisciplinares de História Antiga e Medieval (NEMHAM-CNPq/UEMA) e do Laboratório de Estudos Medievais (LEME/UFG). É pesquisador na Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM). No mestrado estudou as representações acerca dos ideais de vida religiosa eremítico e cenobítico, a partir de discursos hagiográficos (vida de santos) entre os séculos XI e XII. Tem experiência em História da Igreja medieval e em História da Filosofia, com ênfase em Filosofia Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: antropologia afetiva, as concepções acerca da alma e do corpo, e relações interpessoais nos escritos do abade cisterciense Aelredo de Rivelaux (1110-1167 d. C.). Entre as suas últimas publicações, destacam-se: “Uma metáfora para o comportamento humano: a vida de São Goderico e a interação santa com os animais de Finchale, no Norte da Anglia (séculos XI e XII)”, Revista Politéia (UESB), v.19, p.52-64, 2021, e “Os eremitérios de Inner Farne e Finchale: a institucionalização do deserto no norte da Inglaterra nos séculos XI e XII”, Revista Labirinto (UNIR), v.30, p.145-159, 2019.

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