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Cuicuilco

Print version ISSN 0185-1659

Cuicuilco vol.22 n.64 México Sep./Dec. 2015

 

Dossier: Infancia y crianza: perspectivas en antropología

 

A etnografia e a produção de conhecimento teórico e metodológico nas pesquisas em educação: apontamentos sobre o fracasso escolar

 

Ana Paula Ferreira da Silva1

 

Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

Recepción: 30 de abril de 2014.
Aprobación: 20 de octubre de 2014.

 

Resumo

O objetivo deste este artigo é demonstrar a importância da etnografia nas pesquisas educacionais. Para tanto, apresenta alguns aspectos metodológicos que precisam ser considerados no momento em que se propõe uma pesquisa etnográfica com crianças e jovens, bem como os aspectos teóricos necessários para que a pesquisa não se restrinja apenas a uma descrição detalhada. A fundamentação baseou-se em Collins [1988], Elias [2005], Geertz [2008] e Woods [1987]. Em um segundo momento, o texto apresenta o excerto de uma pesquisa, que buscou contemplar as indicações teóricas e metodológicas apresentadas anteriormente. Ao longo de três anos foram recolhidos dados, com crianças entre 09 e 14 anos, matriculadas em uma escola pública da cidade de São Paulo/Brasil. A pesquisa tinha como um de seus objetivos compreender como as crianças e jovens se percebiam dentro do processo de escolarização, já que vivenciaram, pelo menos uma vez, a experiência da reprovação. A clareza com que os alunos compreendem os processos de escolarização é proporcionalmente surpreendente em relação às práticas pouco comprometidas de alguns dos profissionais da escola.

Palavras-chave: pesquisa etnográfica, aspectos teóricos e metodológicos, escolarização, alunos de séries iniciais, reprovação.

 

Abstract

The purpose of this article is to show the importance of ethnography on the educational researches. To do so, it presents some methodological aspects that need to be considered when an ethnographic research among kids and teenagers is proposed, as well as the necessary theoretical aspects to ensure that this research will be more than just a detailed description. The substantiation was based on Collins [1988], Elias [2005], Geertz [2008] and Woods [1987]. As a second step, this text presents the excerpt of a research, which aims to discuss about theoretical and methodological indications previously presented. During 3 years, data had been collected regarding children between 9 and 14 years old, attending to a public school in the city of São Paulo/Brazil. One of the targets of this research was to understand how kids and teenagers perceived themselves within the schooling process, since they had experienced, at least once, school failure. The clarification that the students understand the schooling process is surprisingly proportional to the slightly committed behavior of some School professionals.

Keywords: ethnographic research, theoretical and methodological aspects, schooling process, first grade students, school failure.

 

A etnografia enquanto ferramenta teórica e metodológica de pesquisa

A etnografia como produtora de conhecimento sobre o universo escolar possibilita compreender e refletir sobre como o cotidiano de crianças, jovens, professores e equipe técnica, se compõe, dia a dia, criando, reproduzindo ou resistindo às diversas construções sociais, que circulam sobre esses sujeitos e esse espaço. Neste sentido, tomá-la como uma perspectiva analítica e não apenas como uma ferramenta de coleta de dados possibilita, tanto para as pesquisas em educação quanto para a formação de professores, uma compreensão microscópica.

A proposta deste artigo é destacar e explicar alguns cuidados teóricos e metodológicos para o uso da etnografia em pesquisas com crianças e jovens. Para tanto, o texto será organizado em duas partes: a primeira apresentará os aspectos teóricos, baseado em Collins [1988], Elias [2005], Geertz [2008] e Woods [1987]. A segunda parte irá expor o excerto de uma pesquisa, realizada com alunos de educação inicial, que buscou contemplar tais cuidados metodológicos e teóricos e que aborda a compreensão do fracasso escolar pela perspectiva dos alunos que acumulam reprovações.

Diferentes áreas do conhecimento, como Antropologia, Sociologia, Psicologia, História, valem-se da etnografia e, portanto, ao analisá-la, torna-se necessário abordar questões como a necessidade de distanciamento com o objeto de pesquisa, as estratégias e recursos que garantirão um efetivo mergulho para a coleta de dados, a organização e sistematização necessária para o registro, o embasamento teórico, que norteia todo esse processo e que fundamentará as análises, bem como compreender o papel das pesquisas empíricas para a compreensão dos fenômenos sociais.

Para alguns autores, como Elias [2005], a compreensão de sociedade fundamenta-se em uma trama de indivíduos que se constituem, ao mesmo tempo em que constituem o 'outro', a partir de relações de interdependência.

Tal perspectiva considera o pesquisador como um sujeito em relação com os outros, viabilizando o reconhecimento de sua vulnerabilidade diante da pesquisa de fatos sociais. Essa consideração destaca a necessidade permanente da vigilância e do distanciamento, de modo a garantir que a análise não seja determinada pelo espaço social que o pesquisador ocupa [Bourdieu, Chamboredon, Passeron 2005].

Ao empreender uma pesquisa do tipo etnográfica, é recorrente, portanto, estabelecer o distanciamento do pesquisador em relação ao campo pesquisado, por constituir-se na chave principal para que a análise não se perca entre experiências pessoais. Woods [1987: 33] ao propor a investigação da prática educativa ressalta que

[...] es imprescindible ser capaz de mantenerse fuera de uno mismo, de cultivar el distanciamiento del papel, de verse a sí mismo y de ver el proprio papel, la instrucción y a los demás como un sistema analizable, en el que las motivaciones y los intereses propios pueden identificarse como parte del sistema y no orienten el análisis de éste.

A vulnerabilidade do distanciamento do pesquisador diante do fato a pesquisar não está restrita ao professor que estuda a prática escolar, mas deve ser uma preocupação de todo aquele que pretende compreender fatos sociais.

A Antropologia, por vezes, toma objetos de estudo estranhos ao cotidiano dos pesquisadores, o que poderia dar a impressão de facilidade para exercer o distanciamento, no entanto, a situação corriqueira, assim como aquela que é totalmente estranha ao etnógrafo, traz implicações metodológicas. Nesse sentido, vale resgatar os conceitos de distanciamento, exótico e familiar.

La antropología, inevitablemente, implica un encuentro con el otro. Con excesiva frecuencia, sin embargo, la distancia etnográfica que separa al lector de los textos antropológicos y al antropólogo mismo del otro, se mantiene de manera rígida, y aún se la exagera de forma artificial. En muchos casos, este distanciamiento conduce a una focalización exclusiva del otro como algo primitivo, curioso y exótico. La brecha entre el familiar "nosotros" y el "ellos" es un obstáculo fundamental para la comprensión significativa del otro obstáculo que sólo puede superarse mediante algún tipo de participación en el mundo del otro [Geertz 1989: 24].

Esse movimento implica estranhar aquilo que compõe nosso cotidiano, questionando quais as práticas, crenças, valores e impactos que tais ações geram em relação à organização coletiva, bem como tornar "natural" aquelas expressões que são culturalmente tão distantes do pesquisador, possibilitando analisar a situação pela perspectiva do nativo.

Conforme nos lembra Velho [1997: 18]:

É possível, para o antropólogo, verificar como os próprios nativos, indivíduos do universo investigado, percebem e definem tais domínios para não cairmos na armadilha muito comum de impormos nossas classificações a culturas cujos critérios e crenças possam ser inteiramente diferentes dos nossos ou que possam parecer semelhantes em certos contextos para diferirem radicalmente em outros. Isso não significa, obviamente, que o pesquisador só possa analisar uma sociedade a partir do próprio sistema classificatório nativo.

Considerar o entendimento nativo nas análises, especialmente escolares, possibilita aproximar-se, por exemplo, do modo como os alunos compreendem seus processos de escolarização, suas relações de aprendizagem, ou mesmo o uso que fazem desse espaço que vivem tanto tempo de suas vidas. Metodologicamente isso requer cuidar tanto para não tratar o objeto pesquisado como algo independente e separado das relações sociais mais abrangentes quanto para identificarmos aquilo que desejamos que aconteça e o que realmente é fato. Essa diferenciação é fundamental, pois separa a análise espontânea da pesquisa efetivamente científica. "É especialmente importante não nos deixarmos levar pelos desejos e ideais a confundir equivocadamente o que desejamos como ideal com o que de fato está acontecendo" [Elias 2005: 137].

Bueno [2007: 448], ao apresentar a contribuição de Rockwell e Ezpeleta para a etnografia educacional na América Latina destaca que

[...] o trabalho de campo, por mais aberto que seja, não pode ser aleatório. Deve, por isso, ser acompanhado de um constante trabalho analítico, que permita observar teoricamente o observável, pois os dados não falam por si mesmos. Assim, curiosamente, o "olhar etnográfico" é mais do que um simples olhar, pois supõe sempre um "diálogo". E não porque envolve diálogos e conversas com os sujeitos estudados, mas essencialmente porque pede um contínuo interrogar-se sobre os dados, sobre suas relações com os referenciais teóricos e destes com o referente empírico.

Diante dessas considerações, destaca-se a importância da etnografia para conhecer "por dentro" as questões estudadas. Essa proposta, não se limita a descrever o modo como as pessoas vivem ou compreendem as relações em que estão inseridas contrapondo-se a um modelo social, mas sim em analisar, à luz de um referencial teórico, o significado social que o grupo observado atribui a determinadas ações.

La etnografía [...] significa literalmente "descripción del modo de vida de una raza o grupo de individuos". Se interesa por lo que la gente hace, cómo se comporta, cómo interactúa. Se propone descubrir sus creencias, valores, perspectivas, motivaciones y el modo en que todo eso se desarrolla o cambia con el tiempo o de una situación a otra. Trata de hacer todo esto desde dentro del grupo y desde dentro de las perspectivas de los miembros del grupo. Lo que cuenta son sus significados e interpretaciones [...] Cada uno de estos grupos ha constituido sus propias realidades culturales netamente distintivas, y para comprenderlos hacemos de penetrar sus fronteras y observarlos desde el interior, lo cual resulta más o menos difícil de acuerdo con nuestra propia distancia cultural respecto del grupo que se quiere estudiar [...] El etnógrafo se interesa por lo que hay detrás, por el punto de vista del sujeto y la perspectiva con que éste ve a los demás. A partir de esto, el etnógrafo puede percibir en las explicaciones, o en las conductas observadas, pautas susceptibles de sugerir ciertas interpretaciones. De esta suerte, la realidad social aparece como formada por diferentes capas [...] El etnógrafo tiende, pues, a representar la realizad estudiada, con todas sus diversas capas de significado social en su plena riqueza [...] Dentro de los límites de la percepción y la capacidad personal, debiera tenderse a dar una descripción rigurosa de la relación entre todos los elementos característicos de un grupo singular, pues de lo contrario la representación puede parecer distorsionada [...] Esto no quiere decir que no se puedan realizar estudios limitados, sino que han de considerarse a la luz de un marco de referencia holístico [Woods 1987:18-19, itálico no original].

Para que o pesquisador possa compreender as questões que estuda do "ponto de vista do sujeito" é necessário que passe longos períodos junto aos pesquisados. Há, no entanto, aqueles que indicam que, no caso da pesquisa etnográfica em educação, existe:

[...] uma diferença de enfoque [...] o que faz com que certos requisitos da etnografia não sejam —nem necessitem ser— cumpridos pelos investigadores das questões educacionais. Requisitos sugeridos por Wolcott [1988], como por exemplo uma longa permanência do pesquisador em campo, o contato com outras culturas e o uso de amplas categorias sociais na análise dos dados. O que se tem feito, pois, é uma adaptação da etnografia à educação, o que me leva a concluir que fazemos estudos do tipo etnográfico e não etnografia no seu sentido estrito [André 2005: 28].

Ao se valer do termo "etnográfico" sem que suas bases metodológicas sejam respeitadas, começa-se um processo de fragilização do estudo. Com base em pesquisas anteriores [Silva 2005; 2009] percebe-se claramente que, no caso das pesquisas educacionais, esse tempo é necessário para que o pesquisador possa fazer o movimento de estranhar o obvio, ou, nas palavras de Geertz, transformar o familiar em exótico, bem como para que possa superar eventuais barreias nas relações sociais, como por exemplo, o professor sentir-se seguro para comentar sobre determinados assuntos ou mesmo para que a presença do pesquisador não altere as relações pedagógicas e de interação dos alunos —ou seja minimizada— para compreender o objeto de pesquisa em diferentes momentos do ano letivo e, principalmente, para que os registros sejam capazes de indicar possíveis regularidades para subsidiar as posteriores análises.

Al participar se actúa sobre el medio y al mismo tiempo se recibe la acción del medio. Pero debemos tratar de combinar la profunda implicación personal con un cierto distanciamiento. Sin esto último, se corre el riesgo de "volverse nativo", es decir, de identificarse hasta tal punto con los miembros que la defensa de sus valores prevalezca por encima de su estudio real. Lo que nos preserva de esto peligro es el tomar cuidadosas "notas de campo" y una actitud reflexiva capaz de alertarnos acerca de nuestros propios cambios de opinión o puntos de vista [Woods 1987: 50].

Sobre as notas de campo, ou os registros de pesquisa, cabe destacar:

Los antropólogos están poseídos por la idea de que los problemas metodológicos centrales implícitos en la descripción etnográfica tienen que ver con la mecánica del conocimiento: la legitimidad de la "intuición", de la "empatía", y demás formas similares de cognición: la verificabilidad de los informes internalistas sobre los sentimientos y pensamientos de otros pueblos; el estatuto ontológico de la cultura. Consecuentemente, han hecho remontar las dificultades que experimentan a la hora de construir tales descripciones a la problemática del trabajo de campo, en vez de a la del discurso. La idea es que, si la relación entre observador y observado (informe) puede llegar a controlarse, la relación entre autor y texto (firma) se aclarará por sí sola [Geertz 1989: 19].

A consideração de Geertz sinaliza para a necessidade do autor —ou seja, o pesquisador que redige as notas de campo— reconhecer as dificuldades e a própria vulnerabilidade do registro escrito, pois esse também é resultado de um processo de cultura e de conhecimento específico. As mesmas palavras podem ter significados culturais diferentes para pesquisador e pesquisado, bem como o texto elaborado pode não conseguir explicitar para o leitor a fidedignidade dos fatos.

Não basta apenas transformar palavras em caracteres, é imprescindível possibilitar àquele, que evidentemente não assistiu à cena descrita, "visualizá-la". Pequenos detalhes, como as pausas entre as falas, as entonações de voz, os olhares, as expressões, enfim, todo o "clima" constitui a "resposta" do sujeito à pergunta que lhe foi feita, por isso, quanto maior for o detalhamento desses outros fatores no momento das anotações de campo, mais ricas tornar-se-ão as análises [Bourdieu 2003].

A importância desses registros serve tanto para reduzir as vulnerabilidades de uma análise baseada na observação, quanto na relevância dos dados para outros pesquisadores e para futuros estudos. Woods [1987: 60] ressalta que:

[...] las notas de campo son, en lo fundamental, apuntes realizados durante el día para refrescar la memoria acerca de lo que se ha visto y se desea registrar y notas más extensas escritas con posterioridad, cuando se dispone de más tiempo para hacerlo.

Essa estratégia de anotações possibilita ao pesquisador indicar pequenos trechos de "falas" ou relatos de ações que auxiliem a construção do caderno de campo. O que difere as notas de campo do caderno de campo é a profundidade descritiva que cada um oferecerá, embora uma seja imprescindível à outra. A primeira não passa de fragmentos, a segunda trata-se de um relato detalhado, capaz de colocar o leitor diante da cena vivida pelo pesquisador.

As notas de campo são fundamentais, para que o pesquisador não perca o fato em suas lembranças ou memórias, no entanto, longas anotações em campo podem ser negativas.

Sin embargo, puede no ser conveniente ni deseable tomar abiertamente [las notas de campo] [...] Los presentes pueden sentirse espiados, o, de alguna manera, juzgados y evaluados [...] Los etnógrafos tienen siempre a mano trozos de papel y habilidad para no dejar escapar las oportunidades adecuadas para anotar palabras clave, nombres y frases capaces de agilizar luego la memoria [...] El etnógrafo desarrolla una facilidad para escenas y parlamentos [...] se cultiva más especialmente la capacidad para recrear escenas en la mente y reproducir el diálogo, de modo que, en cierto sentido, se vuelve a vivir la parte relevante de la acción [...] Las pautas que esperamos descubrir y las explicaciones que aspiramos introducir no llegarán hasta que nos hayamos sumergido en fragmentos de la vida real [Woods 1987: 60-63].

Uma estratégia utilizada, na pesquisa de doutoramento, para minimizar a utilização das notas de campo ou mesmo de instrumentos digitais, foi gravar o meu próprio relato, ao sair da escola, "contando" os fatos que ocorreram naquele dia. Essa forma de registro auxiliou na elaboração de um caderno de campo detalhado, que tentou se aproximar ao máximo, das experiências vivenciadas na escola.

Outra estratégia que visa minimizar possíveis análises incorretas ou tendenciosas é tornar pública as anotações de campo. Isso permite socializar a pesquisa etnográfica para que se possa compreender metodologicamente como a pesquisa foi realizada, além de apresentar o contexto em que os dados foram coletados, encontrar reiterações de fatos ou, ainda, construir, a partir da soma de diversas pesquisas sobre temáticas semelhantes, análises mais abrangentes.2

Na mesma direção, Woods [1987: 135] ressalta que "en etnografía el análisis se da simultáneamente con la recogida de datos. Cuando se observa, se entrevista, se toman notas de campo y se confecciona el diario de investigación, la labor del etnógrafo no se limita a 'registrar'". A busca de literatura sobre a produção de conhecimentos referentes ao objeto, o embasamento teórico necessário para a coleta de dados, o refinamento do referencial para a análise e para a compreensão ampla do campo a ser estudado, são condições fundamentais durante todo o processo de construção da pesquisa.

Ao final do período de coleta de dados, tem-se grande volume de material e é primordial que tudo esteja organizado com precisão. Muitas questões, por mais relevantes que sejam, serão desprezadas se não contemplarem os objetivos da pesquisa. Nesse ponto, na realidade, tem-se um ganho e não uma perda: se a coleta foi bem feita e os registros detalhados fielmente ou "descritos densamente" [Geertz 2008], o trabalho de alguns anos poderá render inúmeros estudos, por retratar o cotidiano escolar, com suas riquezas e dificuldades.

Como visto até aqui, a coleta de dados pressupõem um grande embasamento teórico para nortear o modo como os fatos serão observados, registrados e sistematizados. No entanto, uma das críticas à etnografia voltada para o cotidiano escolar vem no sentido de questionar a validade de seus relatos na medida em que se restringe a uma profunda e detalhada descrição.

A pesquisa etnográfica não pode se limitar à descrição de situações, ambientes, pessoas ou à reprodução de suas falas e de seus depoimentos. Deve ir muito além e tentar reconstruir as ações e interações dos atores sociais segundo seus pontos de vista, suas categorias de pensamento, sua lógica. [...] Duas condições, no entanto, são essenciais para que a aproximação —sempre parcial e gradativa— se efetive. Por um lado, as categorias de análise não podem ser impostas de fora para dentro, mas devem ser construídas ao longo do estudo, com base em um diálogo muito intenso com a teoria e em um transitar constante desta para os dados e vice-versa [André 2005: 45, itálico no original].

Remeter a etnografia a uma pesquisa microscópica não significa compreendê-la como um esforço de análise pontual ou restrito. Ao contrário, é assumir que ela é a "parte mais sólida" do mundo social.

Nós deveríamos traduzir os fenômenos macro-sociológicos, tanto quanto possível, dentro de micro realidades das quais eles são compostos (Aviso, entretanto, que eu digo "transferência", não a máxima redução, porque há macro-traços irredutíveis, em arranjos espaciais, temporais e numéricos, entre micro-situações.) [...] O objetivo da micro-transferência não é dedicar-se a colocar tudo no menor nível possível, como se nós estivéssemos tratando das instituições sociais separadas das interações sociais [...] Mas o objetivo aqui é construir uma sociologia explicativa. Idealizações, ilusões e ideologias podem influenciar, mas, principalmente, como algo a ser explicado, não como uma última explicação. Eu estou fazendo a reivindicação prática de que a micro-sociologia —os princípios de como as pessoas interagem como corpos humanos visíveis, sons e cheiros de cada um— é a mais sólida parte do que nós sabemos sobre o mundo social, e que nós entendemos os padrões mais amplos e de mais longo prazo, quando nós vemos como eles são compostos de tantas micro-situações [Collins 1988: 1 y 2, tradução livre].

Tendo as interações humanas como a menor parte da microssociologia, devemos atentar que nem todas as ações humanas são relevantes para a pesquisa social, mas somente aquelas que compõem uma rede de micro eventos.

Essa rede baseia-se na frequência com que ocorre e, portanto, palavras como reiteração, repetição, rotina, negociação, conexão demarcam que esses micro eventos devem ser considerado relevante.

De um lado, há um evento particular; do outro, nós estamos falando que toda uma estrutura está determinada por esse evento. Um evento, com certeza, é algo que acontece somente uma vez, em um breve tempo. Estrutura é repetição, é o padrão dos mesmos tipos de eventos que acontecem repetidas vezes, envolvendo muitas pessoas diferentes espalhadas por diversos lugares. O mundo social é feito desses eventos, circundados temporal e espacialmente por outros eventos [Collins 1988: 4, tradução livre].

No entanto, é possível entender a regularidade como algo que está para além das relações sociais, como uma forma de manipulação dos indivíduos pela sociedade. Para desconstruir essa ideia Elias introduz os conceitos de relações e funções.

A regularidade, acostumamo-nos a pensar, é algo próprio das substâncias, objetos ou corpos diretamente perceptíveis pelos sentidos [...] Uma vez que esses grupos só conseguem conceber regularidades como sendo regularidades das substâncias ou de forças substanciais, eles inconscientemente atribuem às regularidades que observam nas relações humanas uma substância própria que transcende os indivíduos [...] Esses e muitos outros fenômenos têm uma coisa em comum, por mais diferentes que sejam em todos os outros aspectos: para compreendê-los, é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e funções. E nosso pensamento só fica plenamente instrumentado para compreender nossa experiência social depois de fazermos essa troca [Elias 1994: 24-25, itálico no original].

Compreender que não existe um macro que determina todas as ações do micro significa assumir que nossas ações —ou as ações dos sujeitos que estudamos— têm impacto sobre as estruturas e as instituições.

A transferência micro-macro mostra que tudo o que é macro é composto do micro. Inversamente, qualquer coisa micro é uma parte de uma composição macro; existe em um macro contexto, que consiste, precisamente, em ramificações de e para outras micro-situações espalhadas no espaço e no tempo [Collins 1988: 5 y 6].

O estudo antropológico, deste modo, assume um papel fundamental ao possibilitar compreender os fatos de diferentes pontos de vista ou, nas palavras de Elias, diferentes perspectivas.

[...] já foi sugerido que a relação AB entre duas pessoas compreende na realidade duas relações distintas —a relação AB vista da perspectiva de A e a relação BA vista da perspectiva de B. Ao trabalhar com conceitos que fazem as relações regulares parecer objetos estáticos, é difícil fazer justiça à natureza perspectivacional de todas as relações humanas [Elias 2005: 137].

Uma das condições primeiras da pesquisa etnográfica é a compreensão dos fatos do ponto de vista nativo. A necessidade analítica da perspectiva torna-se ainda mais fundamental quando observamos que ela é capaz de instrumentalizar o pesquisador de forma a "compreender os fatos" a partir do ponto de análise do outro.

Buscar dados que possam compor o quadro de compreensão de cada um dos sujeitos sobre um mesmo evento é fundamental para que se compreenda a rede de relações a que cada um faz parte, especialmente quando se realiza pesquisa cujos sujeitos estão em condições sociais muito distantes da realidade vivida pelo pesquisador, ou ainda quando há grandes diferenças hierárquicas (professor – alunos, por exemplo).

Feitas essas breves considerações, propõem-se, na próxima sessão, a apresentação do resultado analítico do excerto de uma pesquisa, realizada ao longo de 3 anos, em quatro turmas diferentes, com pelo menos uma visita por semana, em uma escola pública da cidade de São Paulo/Brasil, com alunos que concluíam a primeira etapa do ensino fundamental/elementar (4º ano) e que viveram a experiência da reprovação.

 

Por que fracassamos? O fracasso escolar na perspectiva do aluno

Atendendo às questões relacionadas à necessidade de distanciamento, apresentadas anteriormente, foi selecionada uma escola pública municipal, pois, anos antes, atuei nessa rede de ensino, de modo que já conhecia algumas dinâmicas e lógicas institucionais —cuidando, assim, para tornar o familiar em exótico— mas em uma unidade em que nunca fui professora, para que não houvesse relações de amizade que pudessem atrapalhar as análises —e, portanto, precisando transformar o exótico em familiar.3

Pesquisar o cotidiano e as práticas escolares apresenta uma dificuldade específica, pois, ainda que os cuidados anteriormente descritos sejam essenciais, eles não minimizam o fato de que os pesquisadores, possivelmente, passaram por processos de escolarização muito próximos ao modelo observado, fazendo com que o exercício de transformar o familiar em exótico demande questionar, a todo o momento, os aspectos próprios da cultura escolar.

Conforme define Julia [2001: 10, itálico no original]:

Poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos, normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

A etnografia, portanto, tem um papel fundamental nas pesquisas em educação por captar os valores, práticas e formas de agir que são próprias de um grupo, de uma sociedade e de uma época. No entanto, compreender essa trama é de grande complexidade, pois o pesquisador precisa, a todo o momento, desvencilhar-se de suas próprias crenças fundadas na cultura escolar.

Um desses aspectos próprios de nossa cultura escolar refere-se à reprovação. Estudos históricos salientam que os processos de reprovação e evasão escolar compuseram a constituição do modelo escolar brasileiro. Segundo afirmava Campos [1958: 127], "a nossa escola primária, seletiva e propedêutica, serve, assim, a uma minoria destinada a prosseguir os estudos em níveis pós-primários. Os que não se revelam capazes, são reprovados, tornando-se ou repetentes, ou excluídos".

A seletividade não era compreendida socialmente como uma estratégia de exclusão, mas sim como um processo capaz de "selecionar os melhores", ou seja, as causas do sucesso escolar, nessa perspectiva, estão na adequação dos alunos aos procedimentos de ensino - aprendizagem e na organização escolar, de modo que apenas os que possuem mais habilidades e maturidade é que são aprovados. Não há questionamento sobre a forma escolar e as práticas docentes, por exemplo.

Tais concepções ainda estão presentes nos repertórios escolares que explicam os motivos pelos quais alguns alunos não conseguem aprender a partir da identificação de inabilidades individuais.

É certo que compreender o fenômeno "fracasso escolar" demanda observar uma grande quantidade de fatores que, em maior ou menor grau, podem influenciar o desempenho escolar de crianças e jovens. No entanto, a proposta desse item é apenas ilustrar algumas questões da cultura escolar que foram captados por esta pesquisa etnográfica, bem como apontar para possíveis eventos reiterados que podem, a partir da soma de outras pesquisas microscópicas, vir a identificar padrões [Collins 1988].

Desse modo, os dados coletados sobre o cotidiano escolar sugerem, por exemplo, que para a equipe de professores e coordenadora, as dificuldades de aprendizagem e de adequação às regras escolares estão bastante relacionadas às questões de cunho biológico —justificadas pelo encaminhamento dos alunos para diagnósticos médicos e possíveis tratamentos especializados com pediatras, fonoaudiólogos, oftalmologistas, psicopedagogos, psicólogos—, ou à ineficiência da educação familiar.4

Ambas foram explicitadas durante a reunião de conselho de classe, ocorrida em 04/12/2007 (Caderno de Campo:5 116-123), quando elaborou-se dois termos de comprometimento a serem encaminhados para os pais: o primeiro, tratava sobre as faltas e o segundo, transcrito abaixo, solicitava o encaminhamento das crianças para uma "avaliação multidisciplinar".

Tendo em vista a dificuldade de seu filho, pedimos uma avaliação por psicólogo, psicopedagogo, pediatra, oftalmologista e fonoaudiólogo para atendê-lo melhor, para que tenhamos um desenvolvimento mais significativo [Anexo I: 116].

Certamente, a preocupação da escola era manter sob controle os problemas relacionados às faltas e ao baixo rendimento escolar, pois quando a direção não é comunicada a tempo sobre essas ocorrências, medidas cabíveis deixam de ser providenciadas e, ao final do ano, a escola vê-se obrigada a tomar para si a "culpa" pelo fracasso dos alunos. No que se refere às faltas, a coordenadora afirmava que ainda que o caso não seja solucionado pelo Conselho Tutelar, a escola isenta-se da responsabilidade sobre o aluno e, principalmente, tem respaldo legal para reprová-lo no final do ano (Caderno de Campo: 117). Já sobre a avaliação multidisciplinar, ela considerava ser fundamental para pedir aos pais que procurassem profissionais especializados capazes de identificar possíveis limitações, deficiências ou doenças; e para orientar as professoras a anotar os nomes dos alunos que, segundo elas, tinham algum tipo de problema, para que, no início do ano seguinte, esse grupo fizesse uma avaliação detalhada com a professora responsável pela Sala de Apoio às Necessidades Especiais.

No entanto, algumas famílias que procuraram atendimento médico, a fim de identificar as causas da inadequação dos filhos à escola, retornaram com a afirmativa de que não existiam quaisquer dificuldades de desenvolvimento ou de socialização e com a recomendação de que os professores dessem mais atenção às crianças e fossem mais pacientes.6

A relação entre o fracasso escolar e a identificação de problemas de saúde e/ou de desenvolvimento das crianças já estava presente no discurso escolar brasileiro desde o início do século xx. Pesquisas como a de Arthur Ramos [1939] e algumas realizadas pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (cbpe) [Consorte 1959] demonstram que diversos esforços foram empreendidos para desmistificar as justificativas individuais como causas do fracasso escolar, mas a ideia das incompletudes jamais deixou de ser acionada, especialmente quando o aluno advinha dos agrupamentos sociais mais pobres.

Surge, assim, uma verdadeira "teoria da deficiência cultural" e uma "psicologia da pobreza", que "patologizaram" a pobreza, isto é, responsabilizaram-na por gerar "doenças", "defeitos", "deficiências". Obviamente, essa "teoria da deficiência cultural", ao assim explicar, "cientificamente", a "desigualdade" de que vinha sendo vítima a criança pobre na escola – culpando disso a própria criança e seu contexto cultural – confortavelmente dissimulou as verdadeiras razões sócio-político-econômicas da desigualdade [Soares 1991: 19].

Ao longo do século xx essas explicações compuseram a cultura escolar que, de antemão, justificava o fracasso como resultado de diversas causas relacionadas ao indivíduo: fossem biológicas, sociais, econômicas ou familiares. Conforme veremos a seguir, a escola parece preocupar-se muito em encontrar os culpados pelo fracasso, mas esforça-se pouco revendo e analisando como as práticas pedagógicas podem gerar a baixa aprendizagem dos alunos, ou ao contrário, possibilitar o sucesso escolar.

A pesquisa etnográfica possibilitou observar e conversar com os alunos dos anos iniciais, que já haviam passado pela experiência da reprovação pelo menos uma vez ao longo de sua vida escolar, e identificou, na perspectiva do olhar nativo, duas possíveis causas do fracasso escolar: as práticas pedagógicas inadequadas de alguns professores, que implicam em posturas impróprias que sonegam possibilidades de aprendizagem a alguns alunos; e a rotatividade docente, gerando a descontinuidade dos trabalhos escolares.

No primeiro caso —práticas pedagógicas inadequadas— são várias as situações identificadas ao longo da imersão no campo, o que pode sugerir que não se trata de um fato isolado, mas sim uma reiteração ou uma regularidade de fatos [Collins 1988]. Alguns relatos foram selecionados do Caderno de Campo:

Em 31/10/2007, durante a saída dos alunos, a mãe de Ld,7 um dos alunos do 2º ano, procurou a professora, por perceber que seu filho voltou a demonstrar interesse pelas atividades escolares. A professora confirmou sua sensível melhora, adiantando que, se mantivesse o ritmo, estaria bem preparado para acompanhar a 3ª série. A mãe atribuiu-lhe o motivo desse progresso, queixando-se que, no ano anterior, a professora não gostava dele e sempre mandava bilhetes dizendo que havia se comportado mal. Como durante o período da Educação Infantil, o menino era muito elogiado, várias vezes ela foi à escola para brigar com a professora da 1ª série, o que só gerava mais atrito. Naquele ano, como Ld gostava da professora e ela também o considerava um "bom aluno", ele voltou a se interessar pelas atividades escolares (Caderno de Campo: 108).

Em consonância a essa situação observada, as entrevistas realizadas com os alunos revelam a complexidade existente no trinômio professores-alunos-famílias, capazes de explicar a queda na aprendizagem e o desinteresse pela escola. Infelizmente relatos semelhantes já foram objetos de estudos anteriores, em outros países. Charlot, por exemplo, ao pesquisar alunos de bairros populares franceses, encontrou respostas sobre as qualidades do professor que em muito se aproximam das citadas pelos sujeitos desta pesquisa: "a primeira qualidade do professor é explicar, sem insultar o aluno, explicar de novo, com palavras novas, até que todos entendam" [Charlot 2002: 29].

Sobre a necessidade de explicar "sem insultar os alunos", temos os relatos8 de Ad (aluno do 3º ano – 2008) cuja justificativa para não gostar da professora da 2ª série era o fato de que o "xingava de pamonha9 e gritava" (Caderno de Campo:188) e de As (4º ano – 2008), contando que, na 3ª série, a professora "falava um monte" e puxava sua orelha porque demorava para copiar as lições da lousa. Disse que chegou a reclamar, mas a direção só acreditou depois que sua mãe foi à escola. Revelou que, no ano seguinte, "aprendeu porque a professora era boa" (Caderno de Campo: 223).

A professora de As (aluno do 4º ano– 2008) narrou que, depois de muito esforço para conseguir sentar-se próximo a sua mesa, ele confidenciou: Professora, vou falar uma coisa: eu achei que eu nunca ia aprender a ler! Nos outros anos a professora pedia para os alunos lerem em voz alta e quando chegava em mim ela dizia para pular porque eu não conseguia! Só você acreditou em mim!" (Caderno de Campo: 156). Ainda segundo a professora, está todo feliz porque está aprendendo.10 Durante a entrevista,11 As afirmou: achei bom [ter sido reprovado], porque na 1ª e na 2ª série eu só fiquei bagunçando porque sabia que eu ia passar, mas não aprendi nada. No ano passado eu estudava, mas a professora só dava livrinho e eu não copiava a lição da lousa (Caderno de Campo: 226). Está claro, para ele, que este foi o motivo de sua retenção, mas reafirma que preferiu ter ficado no 4º ano, já que não dava para ir para a 5ª série, sem saber nada. Em vários momentos declarou que adora essa professora porque no ano passado ficou quase um mês sentado na 1ª fileira e, quando a professora viu que eu não sabia nada, ela me colocou no fundo e eu não gostava de ficar lá (Caderno de Campo: 226). Apesar de, em sua primeira fala, atribuir a si a responsabilidade por sua reprovação —o que pode sugerir um processo de inculcação do discurso escolar pelos alunos— , ela aponta como a prática docente foi determinante na sua possibilidade de aprender e, consequentemente, gostar da escola.

Outro aluno que acredita não ter conseguido passar de ano pela ineficiência da professora é Gb (aluno do 4º ano– 2008). Ao ser perguntado sobre o que é preciso para ser uma boa professora, ele afirmou que tem que ser igual à professora AL [a atual]. Não sai para bater papo com as outras professoras, se você tem alguma dificuldade, ela ajuda. Ela é duas em uma! (Caderno de Campo: 240). Considera que professora da 1ª série também era boa, mas a que deu aula na 3ª série era ruim: Não estou lendo por causa dela, pois não era uma boa professora. [Para ele, uma professora ruim é aquela que] quando você está quase terminando a lição ela passa com a caneta e quase rasga seu caderno, grita, fala palavrão, fica 'batendo papo' no corredor, depois volta, passa meia tabuada e vai novamente conversar e ainda diz ser "a melhor professora" (Anexo V: 240).

Conforme ressalta Giovanni [2006: 322], "causa impacto o desequilíbrio nas opiniões que alunos e professores(as) expressam e nas imagens que constroem a respeito um do outro":

Como podem dois atores conviverem 200 dias letivos, 4 a 8 horas por dia, com imagens tão pouco precisas um do outro? Causa estranheza principalmente o fato de que são os alunos que conseguem realizar, com maior clareza, o esforço de compreender e justificar as atitudes e práticas das professoras e não o contrário! As professoras expressam, quase sempre, certezas pré-concebidas a respeito dos (as) alunos (as) e sua família. Nenhuma delas questiona suas próprias "impressões" sobre o universo desses (as) alunos (as) [Daher 2004: 174].

No segundo caso - rotatividade docente - o aluno Rf (4º ano– 2008) justificou que, no ano anterior, a turma começou com uma professora idosa que depois de um tempo se aposentou (Caderno de Campo: 255). Por um período houve uma professora substituta e só então é que veio a professora que assumiu a sala até o final do ano. Considera que foi uma boa professora, mas atribuiu a essas trocas seu baixo rendimento escolar.

Esse fator normalmente não é levado em consideração quando se busca as causas da repetência ou evasão escolar, pois:

[...] carência de professores, absenteísmo docente,12 etc. (conseqüência, em grande medida dos baixos salários) [...] se o aluno não teve professor por anos seguidos numa matéria ou se houve diversas interrupções e substituições, o resultado cumulativo —especialmente em algumas disciplinas básicas— pode ser a impossibilidade de aprender (Paiva, Guimarães, Paiva e Durão 1998: 92).

Novamente os estudos de Consorte nos ajudam a perceber o quanto essa questão da rotatividade docente fazem parte da cultura escolar. Na obra "A criança favelada e a escola pública" (1959) a autora relata que a escola se organizava de modo que assumissem a "Série Preliminar"13 as professoras com prévio conhecimento de que se afastariam no decorrer do ano letivo. Este procedimento era adotado porque as trocas constantes serviriam como justificativa para o fracasso daquela turma, sem comprometer a avaliação das professoras perante à escola. Dada a mobilidade docente, não se teria a quem atribuir o baixo desempenho dos alunos. Outro critério era nomear essas classes a professores "pouco experientes ou de rendimento baixo".

Diante de tudo isto não é de estranhar que, como regra, as crianças consideradas imaturas e entre as quais se encontra a maioria das crianças faveladas, repitam a primeira série, uma, duas, três e até quatro vezes, e que constituam exceção as crianças que ingressando na escola pela primeira vez, vençam a primeira série num ano apenas [Consorte 1959: 56].

Ao imputar os problemas de baixo rendimento e mau comportamento à ineficiência dos alunos e suas famílias, a escola exime-se da análise de questões importantes, como a avaliação dos seus procedimentos de ensino e, principalmente, do tratamento dispensado aos alunos pelos professores e pela equipe escolar.

Diante das dificuldades para aprender as crianças e jovens são encaminhados para outros profissionais —internos e externos à escola— que devem, implicitamente, ensinar-lhes o que é necessário para se adaptarem ao mundo escolar. Conforme Sampaio [2004: 102-3] salienta:

A expectativa é que os alunos venham prontos, com pré-requisitos, como boas maneiras, disciplina para assistir e participar das aulas, hábitos de estudo, competência para ler e escrever bem, e que resolvam seus problemas fora da escola [...] E como isto não acontece, instala-se um sutil mecanismo de discriminação, pois nada se faz para mudar o quadro e a clientela fica sempre aquém do esperado [...].

Parece que se está dizendo que essas pessoas são assim mesmo, e se o desinteresse e as dificuldades fazem parte da reação do público, não há o que fazer com o serviço oferecido, ele não está em discussão.

Encaminhamentos para atendimento multidisciplinar, aulas de reforço, Sala de Apoio Pedagógico, turmas de projeto, recuperação de final de ano, são recursos que ajudam alguns alunos a aprender o que não conseguiram em sala de aula, mas obscurecem outros problemas que os alunos nos indicaram: como aprender a ler, se a professora não o solicita ou, ainda pior, classifica-o como "incapaz" perante a turma? Como obter resultados satisfatórios se o trabalho docente é descontinuado devido a sequentes trocas dos profissionais? Como é possível gostar da escola —e, por conseguinte de estudar— se a professora bate, ofende, torna-o desacreditado [Goffman 1988], não explica os conteúdos ou sequer fica dentro da sala de aula?

Essas denúncias demonstram que os alunos —embora considerados fracassados pelo sistema— conseguem perceber com mais clareza o que está certo ou errado, pois ao mesmo tempo em que não gostam da professora que os chama de "pamonha", valorizam aquela que os incentiva e acredita em suas capacidades; da mesma forma em que há professoras que batem nos alunos, há as que abraçam e elogiam.

O resultado desta relação, que pode ser conflituosa ou amigável, parece ser um fator muito importante para o sucesso ou o fracasso. A maioria dos alunos do 4º ano - 2008 elogia e demonstra gostar muito da professora, pois encontraram um modelo de profissional: exigente, que passa muita lição, inclusive para casa, frequentemente olha os cadernos, está atenta às necessidades de cada um e sempre disponível para conversar, reconhece os avanços, incentiva-os e demonstra acreditar que serão capazes de aprender.

Isso não é pouco! Mas também não é nada além do que um profissional do ensino deveria fazer como obrigação das suas atribuições docentes. São essas as práticas que deveriam constituir-se efetivamente em cultura escolar.

 

Conclusão

A proposta deste artigo foi discutir as possibilidades da pesquisa etnográfica, não apenas como uma ferramenta de coleta de dado, mas como uma perspectiva efetivamente analítica. Tentou-se demonstrar alguns dos cuidados metodológicos e teóricos necessários para que a etnografia possa contribuir para a compreensão micro e macro dos fatos sociais.

Microscopicamente a Antropologia e a etnografia possibilitam entender as questões educacionais, por fundamentarem um profundo mergulho no cotidiano de escolas, de salas de aula, de reuniões pedagógicas, nos horários de intervalo dos alunos ou de trabalho coletivo dos professores, compreendendo e analisando de que modo cada um desses espaços, tempos e sujeitos efetiva, reforça, aceita, rejeita e reinventa as propostas educacionais, as políticas públicas, as organizações curriculares ou ainda os discursos que circulam nos meios de comunicação – sendo estes exemplos de análises macrossociais.

Infelizmente o reducionismo de procedimentos etnográficos, seja nos cursos de formação de professores, seja na realização de pesquisas com fraco referencial teórico-metodológico, disseminam estratégias que pouco se aproximam dos sujeitos e das situações investigadas, gerando dados superficiais e banalizando a etnografia enquanto possibilidade de pesquisa científica.

Pesquisar a escolarização de crianças e jovens reservando um tempo especial para estar dentro da escola é um empreendimento que acrescenta ao investigador uma quantidade tão expressiva de surpresas que, ao final, ainda que a experiência ofereça a quem "arriscou aproximar-se" [Mead 1968] um "gosto amargo de escola" [Sampaio 2004] torna-se difícil compreender porque os que pesquisam a escolarização da infância e da juventude são chamam para si a responsabilidade de dialogar seriamente com os procedimentos etnográficos, de modo a escoimá-los de algumas superficialidades cometidas em nome da aproximação e do estudo de caso, de modo a fazer com que conhecer a escola seja um pré-requisito para falar academicamente da escolarização e da cultura escolar [Freitas e Silva 2006: 25].

Que esse espaço de discussão desdobre-se em muitas outras reflexões.

 

Referências

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Notas

1 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil). Professora Assistente-Doutor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e do curso de Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São Paulo (São Paulo/Brasil). Assistente de Pesquisa na Fundação Carlos Chagas.

2 Todo o caderno de campo da pesquisa que deu origem a esse artigo está disponível no link http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=9900 [Silva 2009].

3 A descrição que caracteriza o funcionamento da escola, a dinâmica dos profissionais e as relações entre esses profissionais e os alunos, bem como a convivência entre pares foram suprimidas neste texto, devido à limitação de espaço. No entanto, esse material está disponível em http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=9900.

4 A "ineficiência da educação familiar" não será tratada nesse artigo devido à extensão que tal questão demanda para sua compreensão histórica e social. Entende-se, também, que essa discussão prescinde de uma pesquisa etnográfica capaz de captar as relações e o cotidiano extra-escolares desses alunos, para que generalizações, identificação de fatos reiterados e análise possam ser realizados com maior precisão.

5 Ao longo dessa parte do texto, em diversos momentos, aparecerá indicação do registro original, no caderno de campo, anexo à tese. Esse material está disponível no link http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=9900 [Silva 2009].

6 Essa questão foi tratada também em outra parte da pesquisa original, apontando os descontentamentos e o sentimento de desvalorização dos professores diante desses retornos.

7 Todos os alunos foram identificados no texto analítico e no caderno de campo por duas letras de seu nome, de modo a resguardar o sigilo, mas ser possível ao pesquisador relacioná-los facilmente.

8 Todos os relatos a seguir constam dos anexos IV e V desta pesquisa.

9 "Pamonha" é uma comida brasileira feita de milho. No contexto da frase, a professora fazia referência a um aluno idiota, bobo, apático.

10 Conforme registro no caderno de campo, anexo I, visita 59 de 03/06/2008,156.

11 Todos os alunos foram entrevistados individualmente e esses relatos estão registrados no anexo V do caderno de campo.

12 Sobre o absenteísmo docente, conferir anexo I: 21.

13 A série preliminar era indicada aos alunos considerados imaturos pelo Teste ABC (Lourenço Filho). Ela uma turma cuja função docente era preparar para o ingresso no 1º ano escolar.

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