Sumário:
I. Introdução. II. Conceito de usos e costumes. Generalidades. III. Usos e costumes no direito brasileiro. IV. Usos e costumes em alguns diplomas estrangeiros. V. Seria possível voltarmos ao velho coração do direito comercial? VI. Conclusão. VII. Referências.
I. Introdução
Ao investigar-se, no ano que passou, o instigante tema das sociedades anônimas simplificadas, objeto de um outro estudo, tivemos contato com artigo elaborado por Marcelo Andrade Féres (2008), onde este autor fazia menção ao respeitado doutrinador argentino Efraín Hugo Richard (2002), que sustentava, diante da crise por que passa o comércio, dever-se-ia voltar ao velho coração do Direito Comercial. Nas palavras do ilustre jurista portenho, Professor Emérito da Universidade Nacional de Córdoba, “debe volverse al viejo corazón del derecho comercial: los usos y costumbres como ética de los negocios, y la justicia inmediata para devolver la riqueza al circuito económico”.
Esta afirmação apaixonada motivou as seguintes reflexões acerca da possibilidade ou não de voltar-se ao velho coração do direito comercial como forma de estimular o tráfego comercial. Para tanto, na primeira parte deste trabalho, conceituar-se-á usos e costumes, analisando-se, em seguida, seu regramento e valor no ordenamento brasileiro. Após, far-se-á referência aos usos e costumes em alguns diplomas estrangeiros, mais próximos à realidade brasileira. Por fim, enfrentar-se-á a questão proposta em tópico específico, verificando-se se existe espaço ou não para a utilização dos usos e costumes no mercado globalizado, onde se fala em uma nova lex mercatoria. A conclusão arremata as reflexões desenvolvidas.
A pesquisa realizada foi bibliográfica, enriquecida com a coleta de jurisprudência ilustrativa, escassa por sinal, do Superior Tribunal de Justiça, corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil. Adotou-se metodologia predominantemente histórico-jurídica, acompanhada, sempre que possível, daquela sistêmico-reflexiva.
Acredita-se que os usos e costumes, nos dias atuais, ainda não perderam sua importância para o comércio, especialmente o internacional.
II. Conceito de usos e costumes. Generalidades
Iniciando o presente estudo, José Náufel (1963 pp. 130 e 131), conceitua o costume como sendo “o direito não escrito, o que se baseia na prática longamente observada em determinadas relações, o uso consagrado por todos, a praxe aceita unanimemente”. Costumeiro ou consuetudinário seria, então, algo originário ou estabelecido pelo costume. Mais adiante em sua obra, ensina o autor (ibidem, p. 358) serem os usos e costumes “práticas habituais em determinado lugar, com natureza de normas gerais, que suprem a omissão da lei e se incorporam ao direito consuetudinário”.
Com boa técnica, Olavo Acyr de Lima Rocha (1975, pp. 271 e 272) diferencia os usos sociais (de etiqueta, cortesia, moda, etc), que não são obrigatórios do ponto de vista jurídico, dos usos convencionais, que são usos da atividade negocial, encontrados no comércio como práticas gerais, locais ou profissionais informais, permeadas de boa-fé e que contribuem para interpretar e completar a vontade das partes. Tais seriam, por exemplo, os usos relativos à locação de prédios, de serviços, contratos de trabalho, venda civil ou comercial, sociedade, cheques, operações de bolsas, de armazéns gerais, contratos marítimos, testamentos, que, em muitos casos, se transformam em regras de direito objetivo pela substituição gradual da vontade dos particulares pela vontade comum e de conjunto, criando o sentimento geral da necessidade jurídica.
Marta Vinagre (1988, p. 111), entretanto, diferencia usos de costumes, reconhecendo a distinção entre as figuras, embora alguns autores vislumbrem sinonímia entre os termos ou se refiram aos institutos englobadamente. Segundo a autora, “uso é a repetição de atos, a reiteração da conduta”, ao passo que o costume “vem a ser a regra que do uso decorre”, de sorte que “há usos que se transformam nos costumes e que formam o direito consuetudinário”.
A doutrina civilista normalmente observa nos costumes dois elementos que, conjugados, levariam à sua obrigatoriedade: um objetivo, externo, consistente na prática uniforme e reiterada de certos atos e outro subjetivo, interno, psicológico, correspondente à convicção jurídica, à certeza da imprescindibilidade da norma,1 sendo que, em relação à lei, o costume pode apresentar-se como praeter legem (tem cunho supletivo e só intervém na ausência ou omissão da lei), secundum legem (preceito não contido na norma, mas reconhecido e admitido com eficácia obrigatória) e contra legem (se revela como norma contrária à lei).2
Usos e costumes, via de regra, são estudados dentro das fontes do direito comercial, hoje direito empresarial. A este respeito, João Eunápio Borges (1964, p. 70) afirmava que “como as de qualquer direito, são fontes do Direito Comercial a lei e o costume,” destacando o jurista que o costume jurídico propriamente dito constitui fonte do Direito paralela à lei, já que provem do povo, porém é fonte extinta ou que tende a se extinguir.
Para Haroldo Verçosa (2011, p. 130), os usos e costumes “têm o peso de norma jurídica e correspondem a práticas criadas ao longo do tempo pelos comerciantes, as quais se tornam de aplicação geral e de ampla aceitação em determinados mercados”. Acrescenta que, hoje, suas referências mais abrangentes estão nos artigos 111 e 113 do Código Civil em vigor.
De seu lado, esclarece José Jairo Gomes (2006 p. 40), que, ainda hoje, os costumes são considerados fontes subsidiárias do direito,3 ao lado da analogia e dos princípios gerais, conforme prescreve o artigo 4o. da LINDB (nossa conhecida Lei de Introdução ao Código Civil), o que se deve ao reconhecimento da incompletude do sistema jurídico, o qual, naturalmente, não contém solução para todos os problemas que surgem na vida social.
Contudo, usos e costumes não são apenas fontes do direito.
A rigor, o reconhecimento dos usos e costumes comerciais constituiria verdadeiro princípio do direito comercial. Assim entendeu Marcelo Guedes Nunes em grupo de estudos preparatórios para o 1o. Congresso Brasileiro de Direito Comercial, ocorrido em 25 de março 2011 na Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), do qual participaram renomados painelistas, tais como Calixto Salomão Filho, Erasmo Valladão, Fábio Ulhoa Coelho, Jairo Saddi e Nelson Eizirik.
Certo é que Marcelo Guedes (2011) refletiu sobre o tema e fez valiosas considerações. O jurista partiu da compreensão de que a dinâmica da atividade comercial faz com que os negócios entabulados com empresários se desenvolvam num ambiente de informalidade, sendo a atividade empresarial composta de sucessivos negócios interconexos de pequeno porte, pautados pela prática, rapidez e relacionamento de longo prazo, ou seja, por sucessivas e pequenas contratações. É neste contexto que surge a importância dos usos e costumes na regulação dos negócios empresariais, pois é sobre a prática costumeira e habitual que se assenta a credibilidade do tráfico negocial. É nos usos e costumes, pois, que fica registrado o padrão informal de trabalho do empresariado e é neles que encontramos o repositório de boas práticas para a regulação das relações empresariais. Para além disso, o dinamismo e a criatividade do empresariado tornam complexa a tarefa de julgar controvérsias apenas com base em regras gerais e abstratas previamente estabelecidas. Os usos e costumes, por se originarem de práticas que se disseminaram espontaneamente, poderiam então oferecer uma solução mais tendente à paz social e à acomodação de interesses conflitantes.
Na verdade, a importância dos usos e costumes não é novidade para o Direito. Há mais de meio século atrás, Rubens Requião (1959, p. 27) já ensinava que o direito comercial foi se desenvolvendo, emergido dos costumes e das decisões dos juízes consulares. Nessa linha, reconheceu o Superior Tribunal de Justiça que “o comércio, enquanto atividade marcada pelo dinamismo e celeridade, precede em muito o direito comercial, que tem marcante fonte consuetudinária, incorporando, desde suas origens medievais, as práticas comerciais dos mercadores associados em corporações de ofício” (STJ, EREsp. 1.024.691/PR, Rel. Min. Raul Araújo, 2a. Seção, DJe 29/12/2012).
Observe-se que, já na primeira fase do direito comercial, compreendia ele os usos e costumes mercantis observados na disciplina das relações jurídico-comerciais, sem nenhuma participação estatal. Cada corporação de ofício tinha seus próprios usos e costumes, e os aplicava, por meio de cônsules eleitos pelos próprios associados, para reger as relações entre os seus membros. Foi nesse período que algumas características próprias do direito comercial começaram a se delinear, como o informalismo e a influência dos usos e costumes no processo de elaboração de suas regras, como nos lembra André Luiz Santa Cruz Ramos (2006, p. 223). Em qualquer caso, é bem de ver que as inovações ocorridas no direito comercial estão intimamente ligadas às práticas do comércio e mais, que os usos e costumes das pessoas que fazem comércio têm sido, até hoje, uma importante fonte do Direito Comercial (Rohrmann, 2000).
De outra sorte, a repercussão dos usos e costumes estudados no direito comercial vai além do direito privado, alcançando também o direito público.
Fazendo uma pertinente incursão interdisciplinar, que favorece a compreensão do direito como ciência dotada de um tronco único, Claus Roxin (2007, p. 21), penalista alemão de escol, indica como desdobramento do princípio da legalidade a proibição de utilização do direito consuetudinário para fundamentação da pena. Segundo ele, “no Direito Penal, proíbe-se a fundamentação da punibilidade fora da lei escrita, no direito consuetudinário, ou seja, por meio de usos duradouros, sustentados pela convicção de sua obrigatoriedade”. Entretanto, Mario Losano (2007, p. 375), apoiado em Giuseppe Bettiol, ensina que não obstante essa reserva legal, o costume encontra aplicação também no direito penal, já que entre as descriminantes está o exercício regular de um direito, e um direito subjetivo pode fundamentar-se tanto em uma norma quanto em um costume, ou seja, um costume reconhecido pode gerar um direito subjetivo que, por sua vez, fundamenta uma descriminante favorável ao autor do fato.4
Assim, por qualquer ângulo que se olhe, os costumes, oriundos que são de práticas sociais dotadas de continuidade, uniformidade, moralidade e conformidade com a lei, revelam importância e utilidade que não se limitam a um determinado ramo do direito, ou mesmo ao chamado direito privado, mas a todo o direito.
Conheçamos, agora, algo sobre o instituto dos usos e costumes no ordenamento nacional.
III. Usos e costumes no direito brasileiro
Após reconhecer a sua exígua atuação no direito civil brasileiro, limitada à disposição constante do artigo 4o. da LINDB (DL 4.657/1942), que consagra a sua aplicação no caso de falta ou omissão da lei (“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”), Washington de Barros Monteiro (1995, p. 18) esclarece que, no direito comercial, o costume abriu ensejo a mais amplas aplicações, tal como se observa no artigo 291 do revogado Código Comercial (Lei 556/1850), nos artigos 6o. a 8o. do Decreto 20.881/1931 (deu novo regulamento às Juntas dos Corretores de Mercadorias do Distrito Federal); no artigo 2o., letra “a”, do Decreto 24.636/1934 (Regulamento do Departamento Nacional da Indústria e Comércio) e, ainda, nos artigos 8o., inc. VI e 35 da Lei 8.934/1994,5 ora regulamentada pelo Decreto 1.800, de 30 de janeiro de 1996, artigos 87 e 88.
6A rigor, o Código Comercial de 1850 fez referência aos usos e costumes nos artigos 129, item 2 (estabelecia a nulidade dos contratos comerciais que recaíssem sobre objetos proibidos pela lei, ou cujo uso ou fim fosse manifestamente ofensivo à sã moral e bons costumes); 130 (estabelecia que as palavras constantes dos contratos e convenções mercantis deveriam ser entendidas segundo o costume e uso recebido no comércio, e pelo mesmo modo e sentido adotados pelos negociantes, para que não significassem coisa diversa); 131, item 4 (havendo necessidade de se interpretar as cláusulas do contrato, referida interpretação deveria se basear no uso e prática geralmente observados no comércio em casos de mesma natureza, especialmente o costume do lugar onde o contrato devesse ser executado, prevalecendo sobre qualquer outra compreensão a respeito); 154 (o comitente era obrigado a pagar ao mandatário todas as despesas e desembolsos que este fizesse na execução do mandato, bem como os salários ou comissões que fossem devidos por ajuste expresso, ou por uso e prática mercantil do lugar onde se cumprisse o mandato, na falta de ajuste); 169, item 2 (estabelecia que o comissário que se afastasse das instruções recebidas ou não satisfizesse, na execução do mandato, ao que fosse de estilo e uso do comércio, responderia por perdas e danos ao comitente, salvo se a medida não comportasse demora e agisse aquele de acordo com o costume geralmente praticado no comércio); 201 (sendo a venda feita com base em amostras, ou designando-se no contrato qualidade de mercadoria conhecida nos usos do comércio, não era lícito ao comprador recusar-se a recebê-la, se os gêneros correspondessem fielmente às amostras apresentadas ou à qualidade designada; havendo dúvida, seria a questão decidida por árbitros); 207, item 2 (corriam por conta do vendedor os danos que a coisa vendida sofresse antes de sua entrega, quando, por condição expressa no contrato, ou por uso praticado no comércio, o comprador tivesse o direito de a examinar e declarar se contenta com ela, antes que a venda fosse tida por perfeita e irrevogável); 234 (quanto à locação mercantil de coisa ou trabalho, uma vez concluída a obra na conformidade do ajuste, ou, não o havendo, na forma do costume geral, o que a encomendou seria obrigado a recebê-la; se, porém, a obra não tiver na forma do contrato, plano dado, ou costume geral, poderia enjeitá-la ou exigir que se fizesse o abatimento no preço); 291 (estabelecia que as leis particulares do comércio, a convenção das partes, sempre que lhes não fosse contrária, e os usos comerciais, regulariam toda a sorte de associação mercantil; não podendo recorrer-se ao direito civil para decisão de qualquer dúvida que se ofereça, senão na falta de lei ou uso comercial); 673, item 3 (quanto ao seguro marítimo, surgindo dúvida sobre a compreensão de alguma das condições ou cláusulas da apólice, a decisão seria determinada pelo costume geral, observado em casos idênticos na praça onde se celebrou o contrato, que prevaleceria sobre qualquer outra significação que as palavras pudessem ter em seu uso vulgar) e 742, item 1 (no que toca à “arribada forçada”, quando então um navio entra, por necessidade, em algum porto ou lugar distinto do planejado em viagem, tinha-se-lhe por injustificada quando a falta de víveres ou de aguada decorresse de imprevidência em face do costume e uso da navegação), sendo oportuno esclarecer que estes dois últimos dispositivos do Código ainda estão em vigor.7
Em caráter complementar ao código, porém relevante, os usos e costumes tiveram disciplina também nos artigos 2o., 3o. e 216 a 222 (versavam sobre a prova dos usos comerciais e do costume em geral) do Regulamento 737 (norma processual) e, somente os usos (não os costumes), nos artigos 12 e 22 a 27 do Regulamento 738, que versava sobre os Tribunais do Comércio, ambos de 25 de novembro de 1850.
Já no Código Civil de 1916, os usos e costumes aparecem nos artigos 588, §2o. (tratava do direito de tapagem e conceituava “tapume”, observadas as dimensões estabelecidas em posturas municipais, de acordo com os costumes de cada localidade); 1.192, inc. II (estabelecia a obrigação do locatório de pagar pontualmente o aluguel nos prazos ajustados e, na falta de ajuste, segundo o costume do lugar); 1.210 (dispunha que, não havendo estipulação em contrário, o tempo da locação de prédio urbano regular-se-ia pelos usos locais); 1.215 (estabelecia que o locatário que entrasse em um prédio rústico deveria facilitar ao que sai o uso do que fosse necessário para que este fizesse a colheita, segundo o costume do lugar); 1.218 (em se tratando de locação de serviços, se não houvesse estipulação ou acordo entre as partes, fixar-se-ia por arbitramento a retribuição devida segundo o costume do lugar, tempo de serviço e qualidade deste); 1.219 (a retribuição mencionada seria paga depois de prestado o serviço se, por convenção ou costume, não tivesse de ser adiantada ou paga em prestações); 1.221 (previa que não havendo prazo estipulado, nem se podendo inferir da natureza do contrato, ou do costume do lugar, qualquer das partes a seu arbítrio, mediante prévio aviso, poderia rescindir o contrato) e 1.242 (no que tange à empreitada, uma vez concluída a obra de acordo com o ajuste ou o costume do lugar, o dono ficaria obrigado a recebê-la, só podendo enjeitá-la se o empreiteiro se afastasse das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas inerentes ao trabalho).8
Quanto à lei adjetiva, usos e costumes encontraram regramento nos artigos 259 a 262 em nosso Código de Processo Civil de 1939, o Decreto-lei nº 1.608/1939, quando então podiam ser provados pelos meios admitidos em juízo. Os usos e costumes de natureza comercial, quando de praça nacional, poderiam ser provados por certidão das repartições incumbidas do respectivo registro; quando estrangeiros, seriam provados por ato autêntico, devidamente legalizado, do país de origem. Em qualquer caso, o juízo que julgasse provado o uso ou costume comercial remeteria cópia da decisão à repartição competente para que a mesma fosse registrada e arquivada.9
A Lei de Introdução ao Código Civil, que hoje se chama Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, além do que foi estabelecido em seu artigo 4o., também se refere aos costumes em seu artigo 17, ao dispor que “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”.10
Os costumes são mencionados no Código de Processo Civil de 1973 (Lei 5.869/1973) apenas nos artigos 126 (dispõe que o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei, de sorte que, no julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais e, não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes11 e aos princípios gerais de direito);12 337 (dispõe que a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência,13 se assim o determinar o juiz); 405, § 3o., inc. II (considera suspeito e, pois, não passível de depor como testemunha quem, por seus costumes -comportamento- não for digno de fé) e, por fim, no artigo 687, de onde se extrai que o edital será afixado no local do costume (de praxe, usual) e publicado, em resumo, com antecedência mínima de cinco dias, pelo menos uma vez em jornal de ampla circulação local.
A bem da verdade, os artigos 337 e 687 supracitados encontram identidade ou semelhança nos artigos 376 e 887, §3o., do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) que, aparentemente, é o estatuto processual mais pobre que o Brasil já teve no trato e valorização dos costumes.
No que pertine ao Código Civil em vigor (Lei 10.406/2002), os costumes estão presentes nos artigos 13 (proíbe o ato de disposição do próprio corpo quando isto contrariar os bons costumes); 111 (o silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa),14 113 (os negócios jurídi trárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes);15 187 (caracteriza como ilícito o excesso no exercício de um direito quando isto extrapolar os limites impostos também pelos bons costumes); 1.297, § 1o. (estabelece, em relação aos limites entre prédios e ao direito de tapagem, que os intervalos, muros, cercas e tapumes divisórios presumem-se pertencer a ambos os proprietários confinantes, que ficam obrigados, de acordo com os costumes da localidade, a concorrer, em partes iguais, para as despesas de sua construção e conservação); 1.336, inc. IV (estabelece como dever do condômino dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes); 1.638, inc. III (a prática de atos contrários à moral e aos bons costumes leva à perda, por ato judicial, do poder familiar, por qualquer dos pais) e 1.735, inc. IV (torna incompatíveis com a tutela as pessoas condenadas por crimes contra os costumes, dentre outros bens jurídicos) do Código Civil em vigor.
Usos e costumes estão presentes, ainda, no Projeto do Novo Código Comercial, o PL 1.572/2011, em seus artigos 303 (eleva o reconhecimento dos usos e costumes do comércio à condição de princípio do direito contratual empresarial); 308 (considera válidas e eficazes as cláusulas do contrato empresarial em que as partes contraem obrigações de acordo com os usos e costumes do comércio, internacional ou local); 318, inc. V (estabelece que o contrato empresarial deve ser interpretado de modo a considerar que os usos e costumes praticados no segmento da atividade econômica relativa ao objeto daquele ajuste sirvam de critério para interpretação das cláusulas contratadas, prevalecendo sobre os demais), 319 (dispõe que, no caso de omissão do contrato, presume-se que as partes acordaram em se submeter aos usos e costumes praticados no lugar da execução do mesmo) e 511, § 2o. (dispõe que a determinação do valor da moeda estrangeira, no caso de o pagamento ter sido estipulado em moeda sem curso legal no lugar do pagamento, será feita segundo os usos deste mesmo lugar).
Assim, como se vê, o instituto dos usos e costumes sempre esteve presente em nosso ordenamento, ora com mais força, como no passado, ora com menos intensidade, mostrando-se respeitável a intenção porventura manifestada em um novo e eventual diploma comercial no sentido de promover a revalorização dos usos e costumes, como forma de aperfeiçoar contratos e negócios.16
IV. Usos e costumes em alguns diplomas estrangeiros
No presente tópico, analisar-se-á brevemente algumas disposições normativas envolvendo as figuras dos usos e costumes em outros ordenamentos mais próximos ao brasileiro.
Nesse sentido, oportuno mencionar o Código de Comércio da Espanha, o Real Decreto datado de 22 de agosto de 1885 e recentemente alterado em 2014, onde os usos estão presentes nos artigos 2o. (os usos do comércio regerão os atos de comércio subsidiariamente ao Código) e 304 (versa sobre o contrato de depósito), enquanto que os costumes encontraram abrigo no artigo 261 (cuida do contrato de comissão mercantil).
Já o velho Código de Comércio da Argentina, Lei 2.637, de 5 de outubro de 1889, tratava dos usos nos artigos 187 (que cuidava dos transportadores, carregadores ou empresários de transporte), 216 (que dizia respeito aos contratos e obrigações em geral) e 456 (que tratava da compra e venda mercantil), fazendo menção aos costumes não só em seu importante Título Preliminar,17 mas também nos artigos 146 (reconhecia validade ao contrato firmado pelo gerente de um estabelecimento, mas não pelos meros auxiliares de comércio), 218 (trazia premissas relevantes para se fazer a interpretação de cláusulas contratuais) e 242 (cuidava do comissionista e das hipóteses capazes de justificar o excesso na execução do contrato), com destaque para o “Anexo A” do referido Código, que por assim dizer reproduz aquele mesmo Título Preliminar. Ao que parece, contudo, foi revogado pelo artigo ٤o. do Código Civil y Comercial de La Nación, Lei 26.994, del 7 de outubro de 2014.18
Interessante também é o Código de Comércio Mexicano de 1889, reformado em 2017,19 no qual o instituto dos usos está presente nos artigos 6 bis (impõe aos comerciantes o dever de realizar sua atividade de acordo com os usos honestos em matéria industrial ou comercial), 333 (os usos da praça em que se constituiu o depósito podem ser utilizados para fixar a remuneração do depositário) e 1445 (em todos as hipóteses mencionadas no dispositivo, o tribunal arbitral decidirá de acordo com as estipulações do que foi convencionado e levará em consideração os usos mercantis aplicáveis ao caso). Já a menção aos costumes é feita nos artigos 280 (o comissário poderá empregar, sob sua responsabilidade, no desempenho do mandato, subordinados para realizarem operações secundárias que, segundo o costume, se confiem a estes); 590, inc. III (no que diz respeito ao contrato mercantil de transporte terrestre, o transportador está obrigado a realizar a viagem desde logo, se não houver termo ajustado; e o mais próximo da data do contrato, se habituado a fazê-las periodicamente); 1.068, inc. IV (as notificações em procedimento judicial também podem ser feitas por editais fixados de forma ostensiva nos lugares públicos de costume) e 1.132, inc. IV (trata do impedimento judicial decorrente de relações íntimas entre o juiz e a parte interessada, em virtude de ato religioso ou civil chancelado pelo costume).
Entretanto, especialmente importante parece o Código de Comércio da Colômbia, (Decreto 410/1971), que dedicou aos usos quatros dispositivos, a saber, os artigos 640 (que trata da emissão de títulos por mandatários ou representantes), 1.524 (versa sobre o que não se considera avaria comum em direito marítimo); 1.697 (cuida da compra e venda marítima que compreenda custo, seguro e frete) e 1.698 (dispõe sobre a compra e venda marítima que compreenda custo e frete), dedicando também muitos artigos à valorização dos costumes.
Embora a essência do regramento esteja nos artigos 3o. a 9o. do Código, cuja leitura se recomenda,20 os costumes aparecem também, de uma forma ou de outra, nos artigos 86 (funções das câmaras de comércio), 96 (funções da confederação de câmaras de comércio), 606 (na disciplina das denominações que não podem ser utilizadas como nome empresarial), 827 (na assinatura ou firma por meio mecânico), 842 (na representação aparente), 871 (no trato do princípio da boa-fé), 909 (no regramento dos gastos relativos ao contrato de compra e venda), 911 e 912 (versam sobre a coisa que é ou pode ser vendida por “amostra”), 923 (nas modalidades de entrega da coisa), 933 (na presunção de venda com garantia), 935 (no ônus da prova em contrato de compra e venda), 969 (nas regras para estabelecer a quantidade do fornecimento), 971 (no pagamento do preço no contrato de fornecimento), 977 (no fim do contrato de fornecimento), 987 (no transporte multimodal, aquele que é feito por mais de um meio de transporte), 1.002 (na desistência do passageiro no contrato de transporte de pessoas), 1.016 (na redução ou diminuição natural da coisa transportada), 1.030 (na responsabilidade do transportador), 1.050 (na apólice flutuante e automática de seguro), 1.170 (na remuneração do contrato de depósito), 1.172 (nas proibições ao depositário), 1.180 (nos depósitos em armazéns gerais), 1.217 (na obrigatoriedade da inspeção, pelo credor, em caso de penhor sem posse deste), 1.249 (no encerramento da conta corrente e liquidação do saldo respectivo), 1.267 (na conduta do mandatário em casos não previstos pelo mandante), 1.291 (no desempenho pessoal e na delegação do contrato de comissão), 1.377 (no contrato de consignação ou estimatório), 1.417 (na responsabilidade e deveres dos bancos em relação ao que foi guardado em seus cofres), 1.501 (nas funções e obrigações dos capitães dos navios), 1.502 (nas proibições ao capitão), 1.513 (na definição de acidente ou sinistro marítimo), 1.538 (na indenização dos danos que uma embarcação cause a outra), 1.621 (na retirada da coisa transportada durante a viagem), 1.655 (na entrega e recebimento de coisas), 1.657 (no término da estadia de uma embarcação no porto), 1.658 (na contagem dos dias desta estadia), 1.659 (no término da sobrestadia dos navios), 1.661 (na compensação em razão de sobrestadia), 1.663 (no vencimento do prazo de sobrestadia para carregamento do navio), 1.666 (na definição do contrato de fretamento marítimo), 1.672 (no pagamento do frete), 1.688 (na obrigação do vendedor no caso de desembarque de coisa objeto de compra e venda marítima), 1.691 (na indicação do navio em caso de compra e venda marítima), 1.702 (no pagamento do preço por meio de um banco), 1.725 (na alteração da rota estipulada para o navio), 1.727 (no caso de se ter vários portos para desembarque da mercadoria) e 2.031 (na decisão do juiz em caso de divergência entre os peritos).
A esta altura, curioso observar que, a despeito das peculiaridades de cada país e cultura, determinados institutos jurídicos estão presentes nos diversos ordenamentos, a exemplo do que se verifica em algumas espécies de contratos comerciais (depósito, transporte, comissão mercantil, etc.) e do direito marítimo,21 recebendo, não raras vezes, regramento semelhante, seja por tradição histórica, necessidade premente de disciplina jurídica, deficiência institucional, dependência cultural ou simplesmente por se tomar a mesma fonte de inspiração para o direito legislado, replicando-o. Em qualquer caso, não é difícil perceber como o termo costume pode se revelar polissêmico para o direito.
Notável, ainda, que embora a necessidade de fortalecimento do comércio seja problema comum a todos os países em desenvolvimento, o velho e o novo direito comercial se apresentem como alternativas válidas para alcançar-se o desejado avanço social e econômico.
V. Seria possível voltarmos ao velho coraçãodo direito comercial?
Para responder a esta indagação, é preciso compreendamos o que quis dizer Efraín Richard ao pregar a necessidade de voltarmos ao velho coração do direito comercial. Segundo aquele jurista, seria preciso
Voltar àquilo que nós chamamos de “velho coração do direito comercial”, sempre renovado, num duplo esforço: um direito substancial mais simples, configurando o que chamamos de economia do direito, com menos normas mas mais efetivas, deixando as condutas à autonomia da vontade enquanto não infrinjam a ordem social pretendida, e, quando se mostrem desvios ou a necessidade de regulação, dispor de técnicas normativas mais que perfeitas. Ao mesmo tempo, uma justiça imediata, ou pelo menos mais eficiente... (Richard apud Féres, 2008, pp.117-119).22
E arremata o autor em outro estudo (2010):
Claro que tudo é ilusório se a reparação jurisdicional não for oportuna, o que implicaria voltar ao velho coração do direito comercial: os usos e costumes como ética dos negócios, e a justiça rápida para dissuadir o descumprimento planejado, para restabelecer a relação afetada e devolver a riqueza ao circuito econômico (Richard, 2010, p. 144).
Assim, numa primeira impressão, é autorizado entender que o velho coração do direito comercial se encontra num direito objetivo mais enxuto e eficaz, permeado de maior autonomia da vontade, limitada apenas pela necessidade de regulação e pelo interesse público, fazendo-se acompanhar de uma Justiça rápida e eficiente.
Voltar ao velho coração do direito comercial seria, nas palavras do professor Efraín, adotar os usos e costumes como ética dos negócios, a fim de devolver-se a riqueza ao mercado23 e à sociedade.
Esta afirmação parece encontrar apoio não só no artigo 25 do regulamento 738/1850 (nosso velho direito comercial), mas também em João Eunápio Borges (1964) quando este explica como seriam tais usos e costumes:
A exigência de serem os usos conformes aos princípios da boa-fé e máximas comerciais, traduzida em termos jurídicos, significaria simplesmente a proibição de usos contrários a normas ou princípios de ordem pública. Mas, evidentemente, tem ela um alcance de ordem moral, de sorte que os usos comerciais não possam ser admitidos, se, embora lícitos, não forem honestos (Borges, 1964, p. 75).
Desta forma, entende-se que, num plano ideal, onde se tivesse boa-fé, honestidade24 e respeito às leis, seria possível, sim, voltarmos ao velho coração do direito comercial, adotando-se os usos e costumes como ética dos negócios,25 desde que se contasse também com uma Justiça rápida e capaz de promover o reequilíbrio das relações jurídicas atingidas por eventuais comportamentos desviantes.
Contudo, a realidade brasileira é muito menos romântica. Nesse sentido, Eduardo Goulart Pimenta (2005) aponta um drama muito comum em nosso país:
Um grande número de pessoas não absorvidas pelo mercado de trabalho ou que de repente se veem desempregadas, buscam no exercício da atividade empresarial, por conta própria, uma forma de manter dignamente a si próprio e a sua família. Essa massa de trabalhadores passa a exercer micro ou pequenos empreendimentos empresariais sob a forma de empresários individuais --muitas vezes à margem das formalidades e requisitos legais-- ou por meio de sociedades limitadas. Estas últimas, por sua vez, apresentam, via de regra, o número mínimo de integrantes e, na maioria dos casos, têm seu capital quase totalmente concentrado nas mãos de um único sócio que, motivado pelas circunstâncias mencionadas constitui a pessoa jurídica.
O que se percebe, entretanto, é que o destino econômico de tais empreendimentos tende, quase de forma inarredável, ao insucesso. Sem a devida capacidade técnica e orientação administrativa, vitimados pela excessiva burocracia e tributação, tais empresários acabam por gerir de forma inadequada a atividade que, em pouco tempo, já se mostrará inviabilizada economicamente (Pimenta, 2005, p. 6).
Assim, crise econômica, burocracia, excessiva carga tributária e insegurança jurídica não apenas desestimulam, mas inibem realmente o desenvolvimento do comércio e do mercado. Entretanto, se considerarmos as leis como normas exógenas que também fazem parte da ordem jurídica do mercado, vocacionadas à realização de políticas públicas, e deixando de lado um perfil ultrapassado de direito comercial, como se o mercado funcionasse bem livremente --ilusão que devemos rechaçar-- seria possível ver naquelas, as leis, catalisadores de relações econômicas, capazes de reduzir custos de transação, aumentar o grau de segurança jurídica e até mesmo eliminar falhas de mercado (Forgioni, 2009, p. 234).
Em tempos de globalização e de uma nova lex mercatoria --conjunto de regras, princípios e costumes oriundos da prática comercial, sem vinculação a qualquer direito nacional--26em que se busca segurança jurídica para o comércio, especialmente o internacional, novas soluções precisam ser pensadas para dar fim à crise que atinge os países atualmente. Exige-se, para tanto, uma nova ordem econômica internacional mais harmoniosa, um denominador comum para a legislação comercial mundial.
Atente-se, porém, para o fato de que a nova lex mercatoria não se confunde com a antiga, ou seja, a lex mercatoria de origem medieval não guarda efetiva identificação com o novo fenômeno globalizante contemporâneo, diretamente relacionado à internacionalização da economia e descodificação do direito. Frederico Glitz (2012) bem o explica:
Ainda que se pudessem localizar entre a “antiga Lex mercatoria” e o novo fenômeno normativo paralelos interessantes, não se pode duvidar de suas notáveis diferenças. De um lado, ambos os movimentos seriam formados por usos, usos comerciais e Direito espontâneo uniforme e se prestariam a superar dificuldades decorrentes da estrita aplicação da técnica de conflito de leis. Por outro lado, o movimento contemporâneo não só teria fontes próprias, como método de solução de controvérsias específica, à margem do sistema estatal e internacional. Além disso, ao contrário da Lex mercatoria medieval, o movimento contemporâneo não seria totalmente espontâneo nem desinteressado, nem os costumes reconhecidos e julgados pelos seus produtores... Some-se a isso o fato de os momentos históricos serem distintos. Enquanto a lex mercatoria medieval se apresenta em um momento de fragmentação do império romano e sua substituição, pelo menos na Europa ocidental, por um sistema feudal de produção; o fenômeno contemporâneo se insere em um momento de internacionalização da economia, descodificação do Direito comercial e mudança da postura do Estado frente à atividade econômica (Glitz, 2012, p. 126-127).
Conforme lição de Ana Paula Martins Amaral (2002, p. 88), três correntes tentam explicar a nova lex mercatoria enquanto ordem jurídica singular, autônoma e aplicável especificamente nos negócios e transações internacionais. A primeira delas, a considera um (a) direito anacional ou ordem jurídica autônoma, criada espontaneamente pelos agentes do comércio internacional, cuja existência independe dos ordenamentos jurídicos estatais; para a segunda (b), a lex mercatoria seria uma alternativa para a ordem jurídica aplicável, por constituir um corpo suficiente de regras jurídicas que permitem decidir um litígio entre agentes do comércio internacional; por fim, a terceira corrente (c) entende que a lex mercatoria se destinaria a complementar o direito nacional aplicável, constituindo-se numa consolidação dos usos e costumes do comércio internacional.27
Refletindo sobre a nova lex mercatoria enquanto moderno direito espontâneo do comércio internacional, essencialmente consuetudinário e que desconhece fronteiras, María Silvia Gómez Bausela (2003) afirma que os usos e costumes são a mais importante fonte de produção jurídica daquele ordenamento, gerado pela força das necessidades do comércio internacional. Segundo a autora,
Este novo ordenamento surgiu apesar das assimetrias e diferenças assinaladas e se mostra como um direito autônomo do comércio, gerado pela força de suas necessidades, que se tem desenvolvido e que o continua fazendo independentemente dos sistemas jurídicos nacionais. Assim, pois, a aceitação desta ordem jurídica particular é fator de estabilidade, de cooperação e de segurança jurídica no tráfego comercial. Implica a revalorização dos usos e costumes “como também da ética dos negócios” e da “justiça imediata”. Essa revalorização é um “voltar ao coração do direito comercial”. Os usos e costumes são a fonte mais importante de produção da nova lex mercatoria. Compreende desde a simples habitualidade individual até o próprio costume jurídico (Bausela, 2003, pp. 10 e 11). 28
Por conta desta afirmação, entende-se que a mencionada jurista foi quem melhor compreendeu e traduziu o pensamento de Efraín H. Richard, fazendo-o com maestria.
Voltar ao velho coração do direito comercial --o que parece bom, mas não se crê possível-- seria, hoje, o equivalente a seguir uma receita ancestral, na qual já se confiou para curar uma velha doença, bastante diferente, porém, dos novos e sofisticados males decorrentes da globalização e da modernidade. Isto porque, a rigor, a nova lex mercatoria não poderia ser tão costumeira quanto foi a antiga, e nem aplicada de forma tão célere, por mais desejável isto fosse.
Esta compreensão encontra amparo em estudo de João Luís Nogueira Matias (2000, pp. 111 e 112), para quem a nova lex mercatoria foi chamada a exercer um papel de direito comum do comércio internacional, não podendo, por isso, ser de natureza costumeira, como o antigo jus mercatorum, mas de natureza legislativa, para colocar os Estados diante de suas responsabilidades e obrigações. Assim, embora fascinante, careceria de aplicação prática, principalmente por não possuir uma perfeita sistematização, carecendo também de obrigatoriedade, motivo pelo qual ainda não atenderia, em seu estágio atual, às expectativas dos operadores econômicos. Nem por isso, entretanto, deixa de reconhecer o autor que a lex mercatoria goza, muitas vezes, de uma efetividade bem maior do que a legislação interna ou mesmo internacional.
Outra questão que se descortina hodiernamente é a possibilidade ou não de utilização da lex mercatoria como forma de resolução dos litígios no comércio internacional, contrapondo-se os que defendem a incompatibilidade desta com o direito nacional àqueles que advogam a tese da sua aplicação consentânea com o direito emanado do Estado. É o que explica Pedro Pontes de Azevedo (2006), no trecho abaixo:
Para a primeira corrente, o fato de a lex mercatoria não ser uma lei formal, que não se apoia em um sistema legal, retiraria qualquer autoridade de sua base jurídica. Assim, não seria possível a resolução de conflitos tendo por base os seus preceitos, ante a ausência da chancela estatal. Postulam ainda pela ineficácia da lex mercatoria em face da ausência de princípios gerais comuns a todos os Estados-nações, o que gera a incompletude do sistema, possibilitando, inclusive, a existência de lacunas e, via de consequência, a prolação de decisões arbitrárias e conflitantes, em casos análogos. Já os que defendem a aplicação da lex mercatoria, baseiam-se no argumento de que todos os sistemas podem se apresentar lacunosos, não deixando de ter aplicabilidade por tal razão. Ademais, soluções conflitantes existem em qualquer ordenamento jurídico, por mais positivadas que estejam as normas jurídicas. Acrescentam ainda que as questões relacionadas ao comércio internacional apresentam-se como de grande complexidade, o que quase sempre impossibilita um julgamento técnico satisfatório por intermédio do Poder Judiciário, sendo mais propício o estabelecimento de soluções via juízo arbitral, composto por especialistas nas áreas especificamente tratadas nos pactos ou contratos empreendidos nas relações comerciais supranacionais. Entendemos ser mais consentâneo com a realidade do mercado global o entendimento segundo o qual a lex mercatoria é aplicável quando as partes assim dispuserem, segundo o princípio que lhes assegura a autonomia da vontade quando da negociação (Azevedo, 2006, p. 98).29
Entende-se, contudo, que a imposição vinculativa de uma nova lex mercatoria, apartada dos controles e limitações inerentes à soberania estatal, pode ser desastrosa, sobretudo se desatenta às desigualdades econômicas entre as nações, motivo pelo qual parece razoável a concepção do autor mencionado, no sentido de que a lex mercatoria é aplicável quando as partes assim o dispuserem, segundo o princípio que lhes assegura a autonomia da vontade quando da negociação realizada.
Por outro lado, e, numa perspectiva do direito interno, não se acredita que a aprovação de um novo Código Comercial para o Brasil serviria realmente para impulsionar o processo de restauração dos valores do direito empresarial. Afinal, ao que parece, poucos são os que anseiam por tal diploma. Melhor seria, talvez, pôr de lado o que é arcaico e remendar o velho texto, como fizeram outras nações. Atualizar-lhe a redação, sem estragá-lo ou retirar-lhe a alma, avançando para a construção de um direito objetivo mais enxuto e eficaz, com mais espaço para a autonomia da vontade, limitada tão somente pela efetiva necessidade de regulação e pelo verdadeiro interesse público, acompanhado de uma justiça célere e especializada.
Contudo, é de se reconhecer que precisamos mesmo modernizar nossa legislação empresarial, a fim de que o país se torne mais competitivo na disputa por investimentos.30 Nesse sentido, parece correto o prof. Fábio Ulhoa Coelho (2011, p. 14) quando diz que “normas claras e adequadas, estabelecidas na justa medida da distribuição da proteção dos interesses, têm maior chance de granjear o respeito dos agentes econômicos e de serem aplicadas pelo Poder Judiciário”.
Ao fim destas despretensiosas considerações, reconhece-se a autoridade daquele grande jurista argentino, Efraín Hugo Richard, que recentemente sintetizou de forma irrepreensível:
O direito deve garantir a convivência e a paz social. O direito comercial deve facilitar e promover a atividade produtiva e o trabalho digno, desestimulando os descumprimentos. Segurança jurídica, previsibilidade e solução rápida dos conflitos, “com boa-fé observada e verdade sabida” são os pilares de um sistema jurídico equilibrado para o desenvolvimento do país e de sua comunidade (Richard, 2014, p. 29).
Eis o que importa.
VI. Conclusão
A esta altura, não é difícil entender que uma das funções mais importantes do direito, além da solução de conflitos, consiste em viabilizar o desenvolvimento, induzindo o comportamento dos agentes econômicos de modo a criar um ambiente institucional favorável à maior eficiência do mercado.
Para tanto, exige-se flexibilidade, dinamismo e até mesmo certa dose de informalidade, quando esta for admissível, o que não se consegue com um ordenamento jurídico excessivamente rígido, impermeável ou mesmo distanciado das práticas sociais.
Daí a contribuição que usos e costumes impregnados de força normativa podem oferecer aos sistemas jurídicos, mesmo àqueles que se acreditam autossuficientes, diante de uma realidade cada vez mais dinâmica e complexa, para que tais ordenamentos possam atender continuamente às necessidades sociais, sobretudo no que diz respeito às relações contratuais que, por sua própria natureza, sofram constantes modificações no tempo e no espaço.
Os usos e costumes, oriundos que são de práticas sociais dotadas de continuidade, uniformidade, moralidade e conformidade com a lei, revelam importância e utilidade que não se limitam a um determinado ramo do direito, ou mesmo ao chamado direito privado, mas a todo o direito. Por se originarem de práticas que se disseminaram espontaneamente, podem oferecer uma solução mais tendente à paz social e à acomodação de interesses conflitantes.
É nesse contexto que se destaca a importância dos usos e costumes na regulação dos negócios empresariais, pois é sobre a prática costumeira e habitual que se assenta a credibilidade do tráfico negocial. É nos usos e costumes que fica registrado o padrão informal de trabalho do empresariado e é neles que se encontra o repositório de boas práticas para a regulação das relações empresariais.
Aqui, entende-se que um conjunto forte e organizado de normas costumeiras, por vezes afastando a aplicação de preceitos legais, o que se observa mais facilmente em mercados com pequeno número de agentes --mas homogêneos entre si-- pode operar com sucesso, chegando ao ponto de tornar desnecessária e mesmo indesejável a intervenção estatal, quase sempre artificial e heterônoma. Isto reforçará a segurança jurídica e, indiretamente, o próprio direito objetivo. Afinal, suprindo mais adequadamente as lacunas da legislação empresarial, promovendo a integração contratual e facilitando sua interpretação, os usos e costumes comerciais garantiriam, com mais efetividade e permanência, a atualidade do ordenamento.
Infelizmente, com a crescente intervenção do Estado sobre a economia, como agente normativo, os órgãos da administração pública tomaram para si a tarefa de regular as minúcias das relações econômicas privadas. E, por isso, os costumes porventura criados (ou em criação) foram percebidos e assimilados pelo ente normatizador, sendo incorporados nas normas por ele baixadas. Dessa forma, o poder público passa a influenciar, inclusive, o mecanismo de “seleção natural” dos costumes, o que não se afigura correto.
Ora, enquanto o Estado se sentir livre para editar atos normativos de cunho econômico, muitas vezes de forma excessiva, minuciosa e dissociada das reais necessidades de seus destinatários, interferindo até mesmo na formação de um costume ou prática comercial, não haverá espaço para um desenvolvimento “natural” da economia. Ao contrário, estar-se-á alimentando o velho cordão umbilical que nos liga ao tradicional capitalismo de Estado brasileiro.
A rigor, o instituto dos usos e costumes sempre esteve presente em nosso ordenamento, ora com mais força, como no passado, ora com menos intensidade, mostrando-se respeitável a intenção porventura manifestada em um novo e eventual diploma comercial no sentido de promover a revalorização dos usos e costumes, como forma de aperfeiçoar contratos e negócios. Curioso observar, entretanto, como o termo costume se revelou polissêmico para o direito.
Contudo, forçoso é reconhecer a aplicabilidade ainda limitada dos usos e costumes no ordenamento pátrio, considerando a nossa já enraizada tradição codificante, sempre a reclamar, compreensivelmente, sistematização e obrigatoriedade que, em uma nova ordem econômica mundial, precisa necessariamente ser flexibilizada para atender às expectativas dos mais variados agentes produtivos.
Em contrapartida, os usos e costumes foram revigorados em função do fenômeno contemporâneo e globalizante da nova lex mercatoria, um direito transnacional do comércio, que tem naqueles uma de suas principais fontes.
Destaque-se, entretanto, que a imposição vinculativa de uma nova lex mercatoria aos países, apartada dos controles e limitações inerentes à soberania estatal, pode ser desastrosa, sobretudo se desatenta às desigualdades econômicas entre as nações, motivo pelo qual parece razoável a compreensão no sentido de que a lex mercatoria é aplicável quando as partes assim o dispuserem, segundo o princípio que lhes assegura a autonomia da vontade quando da negociação realizada.
Por todo o exposto, não é ir longe demais afirmar que, num plano ideal, onde se tivesse boa-fé, honestidade e respeito às leis, seria possível, sim, voltar ao velho coração do direito comercial, adotando-se os usos e costumes como ética dos negócios, desde que se contasse também com uma justiça rápida e capaz de promover o reequilíbrio das relações jurídicas atingidas por comportamentos desviantes.
Porém, a realidade brasileira é bem mais hostil. Assim, por mais justas tenham sido as palavras do reconhecido jurista portenho e retas suas intenções, a verdade é que ainda estamos muito distantes de ter um regime jurídico verdadeiramente democrático e suficientemente preparado para autorizar a aplicação madura e saudável, generalizada e atual, dos usos e costumes comerciais.