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Boletín mexicano de derecho comparado

versão On-line ISSN 2448-4873versão impressa ISSN 0041-8633

Bol. Mex. Der. Comp. vol.41 no.122 Ciudad de México Mai./Ago. 2008

 

Artículos

 

A nova lei brasileira de biossegurança e o instituto da responsabilidade civil*

 

Reinaldo Pereira e Silva**

 

** Doutor em direito. Professor de Direito constitucional nos cursos de graduação e mestrado em direito da Universidade Federal de Santa Catarina —UFSC— e no curso de mestrado em direito da Universidade do Sul de Santa Catarina —UNISUL—. Membro Efetivo da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

 

* Artículo recibido el 14 de mayo de 2007
Aceptado el 18 de octubre de 2007.

 

Resumen

El artículo analiza críticamente la disciplina del instituto de la responsabilidad civil en la nueva ley brasileña de bioseguridad, y propone que su comprensión, en la modalidad objetiva agravada, se profundice para asegurar el desarrollo de una efectiva función disuasiva, capaz de impedir la práctica de comportamientos dañosos.

Palabras clave: Bioseguridad; responsabilidad civil; irresponsabilidad.

 

Abstract

The article analyzes critically, the discipline of The Civil Responsibility Institute included in the new Brazilian biosecurity law, proposing that its scope, in the form objectively compounded, is broadened in order to ensure that it develops an effective deterrent role, capable of preventing the practice of harmful behaviors.

Key words: Biosecurity; civil responsibility; irresponsibility.

 

Sumario

I. Introdução. II. Biossegurança. III. O Instituto da Responsabilidade Civil. IV. A irresponsabilidade institucionalizada. V. Provocaçõesfinais. VI. Bibliografia.

 

I. Introdução

Biossegurança é tema de trato multidisciplinar, razão pela qual uma abordagem conseqüente de suas implicações, inclusive pela ciência jurídica, não prescinde da doutrina moral. Não obstante o costume recente da doutrina moral de afirmar que o cerne da reflexão bioética não deve ser a beneficência (realizar o bem), mas a não-maleficência (evitar causar o mal), a verdade é que, na área de biossegurança, as políticas e as ações correspondentes se encontram perigosamente envolvidas com uma concepção moral de menor-maleficência (realizar o mal menor). A profissionalização da reflexão bioética, levada a cabo pelos auto-denominados bioeticistas, inclusive alguns brasileiros, não tem cumprido outro papel senão o de legitimar políticas e ações que contrariam abertamente a beneficência e não promovem, ainda que indiretamente, a não-maleficência.1 A menor-maleficência, instrumentalizada pelo argumento do mal menor, se realiza mediante escolhas entre o ruim e o pior; o bem não entra em questão. Hannah Arendt ensina que "a fraqueza do argumento sempre foi que aqueles que escolhem o mal menor esquecem muito rapidamente que escolhem o mal".2 Em outras palavras, a menor-maleficência é uma concepção moral complacente com o mal, já que o mal menor não é o bem, assim como não é o não-mal. Desse modo, a análise crítica da disciplina do instituto da responsabilidade civil na nova lei brasileira de biossegurança deve, num primeiro momento, identificar os argumentos jurídicos que incorporam a concepção moral de menor-maleficência, para, numa segunda etapa e em relação a tópicos destacados da nova legislação, desenvolver uma interpretação bioética em conformidade à não-maleficência.

 

II. Biossegurança

Biossegurança é o conjunto de políticas e de ações públicas e privadas voltado para a prevenção de danos graves e/ou irreversíveis à saúde humana, à hereditariedade e ao meio ambiente mediante a disciplina jurídica dos riscos decorrentes do emprego e/ou desenvolvimento de modernas tecnologias.3 A nova lei brasileira (Lei Federal no. 11.105, de 24 de março de 2005), ao disciplinar a biossegurança, fê-lo de maneira restritiva, estabelecendo apenas "normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de Organismos Geneticamente Modificados —OGMs— e seus derivados".4 Por conseguinte, no Brasil, o conceito legal de biossegurança engloba, basicamente, a disciplina dos riscos decorrentes do emprego e/ou do desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante.5 Não ingressam, portanto, no conceito brasileiro de biossegurança a disciplina jurídica da tecnologia da fissão nuclear, a disciplina jurídica da tecnologia da inteligência artificial e a disciplina jurídica da nanotecnologia, dentre outras. Da mesma forma, está excluída de seu âmbito a disciplina jurídica das tecnologias de reprodução humana, à exceção da pesquisa e das geneterapias envolvendo a utilização de células-tronco obtidas de embriões humanos.6

A exceção da nova lei brasileira de biossegurança à pesquisa e às geneterapias envolvendo a utilização de células-tronco obtidas de embriões humanos não representa uma verdadeira disciplina jurídica da matéria, consistindo, mais propriamente, numa simples permissão de fazer de questionável constitucionalidade. Para efeito de utilização em pesquisa e geneterapias, dispõe a Lei Federal no. 11.105 que os embriões humanos, gerados por fertilização in vitro, devem ser inviáveis, ou devem estar criopreservados há três anos ou mais, na data de publicação da lei, ou, estando criopreservados até o dia 28 de março de 2005, devem completar três anos contados a partir da data da criopreservação.7 Duas, portanto, são as fontes de células-tronco embrionárias humanas: uma transitória e uma permanente. A fonte transitória são os embriões criopreservados há três anos ou mais na data da publicação da lei ou que venham a completar dito prazo após a publicação, desde que o início da criopreservação lhe anteceda. Ultrapassados os prazos legais, a utilização de embriões "viáveis" volta a ser proibida, caracterizando, inclusive, o tipo penal do artigo 25.8 A fonte permanente são os embriões gerados por fertilização in vitro e considerados legalmente inviáveis.9

Ora, o que significa inviabilidade? Como já se disse em outra oportunidade, "uma das conseqüências mais desumanas do mercado da reprodução humana é que as condições pessoais e sociais para a acolhida de um filho tornam-se extremamente exigentes e as razões para sua rejeição, assustadoramente banais".10

A tecnologia da recombinação do DNA, objeto da nova lei brasileira de biossegurança, é um conjunto de técnicas de engenharia genética cujo processo principal se denomina clonagem gênica. A clonagem gênica consiste no isolamento e na propagação de moléculas de DNA idênticas, compreendendo, pelo menos, dois estágios: no primeiro, o fragmento do DNA de interesse, chamado de inserto, é ligado a uma outra molécula de DNA, o vetor, para formar a molécula de DNA recombinante; no segundo, a molécula do DNA recombinante é introduzida numa célula hospedeira compatível, num processo chamado de transformação. A célula hospedeira, que adquiriu a molécula do DNA recombinante, conhecida então como "transformante" ou célula transformada, em condições ideais, sofre muitos ciclos de divisão celular, produzindo uma colônia que contém milhares de cópias do DNA recombinante.11

Como a nova lei brasileira de biossegurança relaciona a engenharia genética a toda atividade de produção e manipulação de moléculas de DNA recombinante,12 os OGMs podem ser definidos como organismos cujo material genético tenha sido manipulado pelas técnicas de engenharia genética.13 Segundo Rafaela Di Sabato Guerrante, "todo organismo transgênico é um OGM, mas nem todo OGM é um organismo transgênico. Isto ocorre porque se considera transgênico o organismo cujo genoma modificado por meio da tecnologia do DNA recombinante sofreu a introdução de fragmentos exógenos de DNA, ou seja, genes provenientes de organismos de espécie diferente da espécie do organismo alvo".14 OGMs transgênicos são, assim, organismos modificados mediante a adição em seu genoma de genes provenientes de outros organismos, sem qualquer consideração às barreiras naturais que separam as espécies.15

Os OGMs podem ser classificados em três gerações. Os OGMs de primeira geração estão situados no reino monera (bactérias geneticamente modificadas) e são os organismos decorrentes do desenvolvimento de culturas microbianas capazes de produzir substâncias úteis, como a insulina humana, o hormônio de crescimento, as vacinas e as enzimas de uso industrial. Os OGMs de segunda geração estão situados no reino vegetal. É importante ressaltar, mais uma vez, que nem toda planta geneticamente modificada é um organismo transgênico, a exemplo do tomate Flavr Savr.16 Os OGMs de segunda geração podem ser classificados em três diferentes classes: a primeira reúne as plantas com características agronômicas de resistência a herbicidas, pestes e vírus;17 a segunda reúne as plantas cujas características nutricionais foram aprimoradas qualitativa e/ou quantitativamente; e a terceira reúne as plantas destinadas à síntese de produtos especiais, como vacinas, hormônios, anticorpos e plásticos.18 Os OGMs de terceira geração estão situados nos reinos animal e monera. Dentre suas aplicações, vislumbram-se a modificação genética de animais para a produção de alimentos, de substâncias de interesse farmacêutico e, até mesmo, para transplantes humanos, e a geração de bactérias geneticamente modificadas para converter materiais tóxicos em substâncias menos nocivas.19

A médio e longo prazos, não são conhecidos os efeitos indesejáveis dos OGMs, incluídos os organismos transgênicos, na saúde humana, na hereditariedade e no meio ambiente.20 Do ponto de vista do meio ambiente, dentre os riscos relacionados às plantas geneticamente modificadas, Rubens Onofre Nodari e Miguel Pedro Guerra destacam a eliminação de espécies não-alvo, a exposição de espécies a novos agentes tóxicos, a geração de plantas daninhas e pragas resistentes, a contaminação de solo e água e a interrupção da reciclagem de nutrientes e energia. Um exemplo de efeito indesejável dos OGMs no meio ambiente é o estudo sobre a alta da taxa de mortalidade das lagartas da borboleta monarca quando alimentadas com o pólen de uma variedade de milho transgênico resistente aos insetos, o milho Bt, em cujo genoma foi introduzido um gene procedente da bactéria Bacillus Thuringiensis. Especificamente sobre as plantas Bt, Corinne Vacher aponta os três principais riscos associados: a evolução da resistência às toxinas Bt na população de insetos fitófagos (insectes phytophages), a propagação dos transgenes Bt na população de plantas silvestres (plantes sauvages) e a mortalidade de organismos não-alvo (organismes non-cibles).21 Rubens Onofre Nodari e Miguel Pedro Guerra também ressaltam os riscos dos OGMs para a saúde humana com o exemplo do antibiótico estreptomicina, cujo emprego em suínos, após um ano, revelou que genes a ele resistentes já estavam presentes em bactérias que viviam na garganta e no estômago dos animais. Um ano mais tarde, a mesma resistência foi detectada em bactérias presentes no organismo de seres humanos que cuidavam dos animais.22 Trata-se de prova inequívoca do risco que representa para a saúde humana a transferência horizontal de genes entre bactérias.23 Além da geração de novas bactérias infecciosas e da dispersão de genes resistentes a antibióticos, os riscos dos OGMs para a saúde humana se relacionam, ainda, à geração de novos vírus causadores de doenças, à inserção, ao acaso, de material genético estranho, com efeitos cancerígenos, e à reativação de vírus adormecidos.24

Variados são os riscos envolvidos no emprego e/ou desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante. Para enfrentá-los, dois são os princípios que, aparentemente, norteiam as políticas e as ações na área de biossegurança: o princípio da prevenção (principe de prévention) e o princípio da precaução (principe de précaution).25 Na verdade, trata-se de um princípio apenas, o princípio da não-maleficência, sujeito a dois diferentes graus de exigência. Diante da certeza do risco, isto é, diante de riscos demonstrados (risques avérés),26 o princípio da prevenção preconiza que medidas sejam adotadas para evitar o dano. Na área de biossegurança, quando os riscos não dependem do querer humano, ou seja, quando não é possível evitar um potencial dano, o princípio da prevenção preconiza a adoção de medidas de proteção, visando à redução das conseqüências danosas.27 Tanto num quanto n'outro caso, o modelo de decisão é fundado na segurança. Considerando as hipóteses em que impera a incerteza e as informações existentes não são conclusivas, isto é, em face de riscos hipotéticos (risques hypothétiques),28 o princípio da precaução preconiza a adoção de medidas tendentes a não gerar o dano.29 É importante ressaltar que o princípio da precaução somente se aplica aos casos em que o risco depende do querer humano. Diferentemente do modelo de decisão fundado na segurança, o princípio da precaução se vale dos modelos de decisão fundados na gestão de riscos.

Muito embora os modelos de gestão de riscos ainda privilegiem a participação exclusiva de "especialistas" (experts) nas instâncias de avaliação e deliberação, não há dúvida de que a adequada compreensão do princípio da precaução também exige, nessas mesmas instâncias, a participação de "não-especialistas", isto é, a participação plural da sociedade.30 E o exige, dentre outras razões, porque, em contextos de incerteza científica, os "especialistas" estão em um estado próximo da ignorância (état proche de l'ignorance).31 Não existe, nesta constatação contextualizada, nenhuma conotação depreciativa; trata-se, apenas, da consciência de uma condição igualitária entre "especialistas" e "não-especialistas", condição incapaz de justificar a exclusão da sociedade, em sua expressão plural, das instâncias de avaliação e deliberação.

Como medida de prudência redobrada, o princípio da precaução orienta a não execução de uma ação se ela apresenta um risco incerto de dano grave e/ou irreversível, impondo àqueles que desejam empreendê-la o ônus de provar-lhe o caráter não danoso.32 Nas palavras de Hans Jonas, "ante o potencial quase escatológico dos atuais processos tecnológicos, a ignorância das conseqüências últimas é razão suficiente para uma moderação responsável".33 O artigo 1o., da Lei Federal no. 11.105, na parte final de seu caput, determina, unicamente, a "observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente".34 É claro que a opção legislativa pela economia de palavras não deve corromper a lógica que rege a biossegurança, razão pela qual o princípio da precaução, na nova lei brasileira, deve ser extensivamente interpretado, abrangendo a proteção da saúde humana e da hereditariedade.35 Também na experiência internacional, desde sua primeira formulação no âmbito da disciplina das chuvas ácidas (pluies acides), o princípio da precaução "foi progressivamente se estendendo do meio ambiente para a segurança alimentar e, depois da crise da vaca louca (vache folle), para a saúde pública".36

 

III. O Instituto da Responsabilidade Civil

A biossegurança e o instituto da responsabilidade civil lidam com lógicas bastante distintas e, em grande medida, inconciliáveis: enquanto a primeira visa à prevenção da ocorrência de dano, o segundo se propõe a reparar o dano já acontecido.37 Na lição de Fernando Noronha, "a responsabilidade civil é sempre uma obrigação de reparar danos: danos causados à pessoa ou ao patrimônio de outrem, ou danos causados a interesses coletivos, ou transindividuais, sejam estes difusos, sejam coletivos stricto sensu".38 Entretanto, o instituto da responsabilidade civil pretende desempenhar duas funções no ordenamento jurídico: uma função reparatória, considerada primacial, e uma função dissuasiva, considerada secundária.39 A função reparatória espelha a própria definição da responsabilidade civil como obrigação de reparar danos, já a função dissuasiva, ao imprimir um caráter pedagógico à obrigação de reparar danos, se propõe a coibir comportamentos danosos. Nesse último aspecto, poder-se-ia pensar numa possível conciliação entre a biossegurança e o instituto da responsabilidade civil.

Antes de demonstrar as insuficiências do instituto da responsabilidade civil, até mesmo como meio de reparação de dano acontecido ao longo do emprego e/ou desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante, convém distingui-lo do instituto da responsabilidade negocial.40 Enquanto a responsabilidade negocial é a obrigação de reparar os danos resultantes da violação do dever de adimplir o negócio jurídico, "a responsabilidade civil é a obrigação de reparar os danos resultantes da violação, ainda que muitas vezes não culposa, do dever geral de neminem laedere (não lesar ninguém) ou, como também se diz, de alterum non laedere (não lesar outrem)".41

Regra geral, o nexo de imputação da responsabilidade civil é uma atuação culposa do responsável. Trata-se da concepção segundo a qual "não há liberdade sem responsabilidade, assim como não pode haver, em princípio, responsabilidade sem liberdade".42 Excepcionalmente, o nexo de imputação é o risco da atividade em causa. Na primeira hipótese, fala-se de responsabilidade subjetiva. Na segunda hipótese, fala-se de responsabilidade objetiva, isto é, responsabilidade sem culpa.43 No âmbito da responsabilidade objetiva, que é a hipótese prevista na Lei Federal no. 11.105,44 é possível distinguir duas modalidades: a responsabilidade objetiva comum e a responsabilidade objetiva agravada. Segundo Fernando Noronha:

Em ambas prescinde-se da culpa; as duas têm por fundamento o risco da atividade, mas este é diferente numa e noutra. Na comum, exige-se que o dano seja resultante de ação ou omissão do responsável, ou de ação ou omissão de pessoa a ele ligada, ou ainda de fato de coisas de que ele seja detentor. Na agravada vai-se mais longe e o responsável fica obrigado a reparar danos não causados por si mesmo, nem por pessoa ou coisa a ele vinculados; são danos simplesmente acontecidos durante a atividade que o responsável desenvolve.45

A responsabilidade objetiva agravada, além de prescindir da culpa, dispensa a comprovação do nexo de causalidade, muito embora exija que o dano acontecido guarde estreita relação com a atividade do responsável.46 Em outras palavras, a responsabilidade objetiva agravada exige, como condição para a obrigação de reparar, que o dano acontecido possa ser considerado o resultado de riscos inerentes à atividade em causa. Por sua configuração congruente com as exigências de acautelamento próprias da área de biossegurança, a modalidade agravada da responsabilidade objetiva é a que mais se coaduna com os propósitos da Lei Federal no. 11.105.

Apesar disto e apenas para melhor explorar as insuficiências do instituto da responsabilidade civil, admite-se, a título provisório, que a modalidade de responsabilidade objetiva prevista na nova lei brasileira de biossegurança seja a comum. Assim, três são os pressupostos da responsabilidade objetiva comum: a) Que haja um dano; b) Que esse dano tenha acontecido no decurso de uma atividade realizada no interesse do responsável (nexo de imputação); e c) Que o dano seja resultante de ação ou omissão do responsável, ou de ação ou omissão de pessoa a ele ligada, ou ainda de fato de coisas de que ele seja detentor (nexo de causalidade).

Para afastar, desde logo, persistentes ilusões, a demonstração das insuficiências do instituto da responsabilidade civil, até mesmo como meio de reparação de dano, deve ser precedida pela demonstração de um possível esvaziamento de sua função dissuasiva. Começa a manifestar-se na doutrina brasileira firme adesão ao alargamento da teoria da coletivização da responsabilidade.47 Um exemplo é a defesa do seguro de responsabilidade civil como meio eficiente de garantia da reparação do dano ambiental.48 Por tal mecanismo de reparação, a responsabilidade pelo dano resultante de riscos inerentes à atividade é transferida do responsável para "a coletividade das pessoas que exercem a mesma atividade, e que são quem paga os prêmios relativos ao seguro respectivo".49 O que se constata é que o pretenso caráter pedagógico da obrigação de reparar danos simplesmente se dissipa com a implementação do seguro de responsabilidade civil, já que o responsável pelo dano acontecido passa a ser mero responsável nominal e o "verdadeiro obrigado" a repará-lo passa a ser o segurador.

O conhecido princípio do poluidor-pagador (principe pollueur-payeur), segundo o qual os efeitos não desejados do processo produtivo, a exemplo dos danos ambientais acontecidos, devem ser considerados como custos da produção, já propõe uma forma de coletivização da responsabilidade.50 À diferença da proposta do seguro de responsabilidade civil, o princípio do poluidor-pagador é mais sincero quando identifica os verdadeiros obrigados a reparar o dano: todos os indivíduos que venham a consumir os produtos ou serviços da atividade geradora de risco. E assim o é porque em seus respectivos preços já estão incluídos os custos dos comportamentos danosos.

Em verdade, no âmbito do seguro de responsabilidade civil, a coletividade a quem se atribui a responsabilidade pelo dano resultante de riscos inerentes à atividade não é outra senão a mesma a quem se aplica o princípio do poluidor-pagador: todos os indivíduos que venham a consumir os produtos ou serviços da atividade geradora de risco. O sistema de distribuição de custos do seguro de responsabilidade civil se constitui, assim, numa forma de subsídio (forma di sussidio) em favor do "responsável nominal".51

Na prática, tanto o seguro de responsabilidade civil quanto o princípio do poluidor-pagador terminam por legitimar comportamentos pessoais danosos e, na medida em que distribuem impessoalmente o ônus de seu exercício, retiram do instituto da responsabilidade civil qualquer traço de prevenção. Trata-se da transformação jurídica da responsabilidade impessoal em verdadeira irresponsabilidade pessoal.

Ainda que a coletivização da responsabilidade possa ser razoavelmente defendida em relação aos riscos próprios de variadas atividades, a exemplo do transporte aéreo, na área de biossegurança ela não encontra um único argumento razoável a seu favor, porque os riscos inerentes ao emprego e/ou desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante são de diferente ordem. Enquanto os riscos inerentes às atividades em geral correspondem a danos de efeitos indesejáveis conhecidos, os riscos, na área de biossegurança, regra geral, correspondem a danos de efeitos indesejáveis desconhecidos.52 O que significa dizer que certas atividades admitem que os riscos de danos sejam assumidos, porque conhecidos seus efeitos indesejáveis; outras, no entanto, não o admitem, porque desconhecidos seus efeitos. São as diferentes ordens de risco que fundamentam, em algumas situações, a instituição da responsabilidade impessoal e, especificamente na área de biossegurança, desautorizam a irresponsabilidade pessoal.

Daqui para adiante, cumpre analisar a função primacial do instituto da responsabilidade civil e demonstrar suas insuficiências.

Além da circunstância de a responsabilidade civil atuar em âmbito estadual e os potenciais danos relacionados à área de biossegurança ignorarem as fronteiras entre os Estados nacionais,53 as insuficiências do instituto também se expressam na impossibilidade de reparação de muitos danos acontecidos em razão de sua natureza irreversível, na dificuldade de quantificar os efeitos indesejáveis de certos comportamentos danosos em decorrência da ausência de limitação temporal, assim como na inadequada atribuição da responsabilidade nas hipóteses de autoria plural.

Em muitos casos, uma das insuficiências mais significativas do instituto da responsabilidade civil decorre, precisamente, de seu pressuposto de fato. Com efeito, a obrigação de reparar danos, decorrente da violação ao dever geral de não lesar outrem (alterum non laedere), pressupõe sua reparabilidade. Ora, um dano irreversível é, por definição, um dano irreparável. Logo, nos casos de danos irreversíveis, que seriam evitáveis pela lógica da biossegurança, o instituto da responsabilidade civil sequer pode cumprir sua função primacial.

O objeto de preocupação da responsabilidade civil é, sobretudo, uma ação de alcance espacial escasso, de realização temporal curta e de reduzidos desdobramentos pessoais e ambientais. Em outras palavras, o direito das obrigações ainda privilegia a disciplina de relações entre sujeitos determinados e de efeitos quantificáveis. Parafraseando Hans Jonas, o universo jurídico, a que se volta a responsabilidade civil, "se compõem dos contemporâneos e seu horizonte de futuro está limitado à previsível duração da vida. Algo parecido sucede com seu horizonte espacial onde o agente e o outro se encontram. Tudo se conforma a um estreito campo de ação e ninguém responde por conseqüências posteriores não previstas".54

O universo jurídico a que se volta a biossegurança é bastante distinto. As modernas tecnologias, segundo Hans Jonas, fazem desaparecer a limitação à proximidade espacial e aos contemporâneos. Muitos de seus efeitos não retornam ao status quo ante e se somam. Assim, "a situação para o fazer e o ser posteriores não é a mesma que era inicialmente; é progressivamente diferente e é cada vez mais o produto daquilo que já foi feito".55 Para Hans Jonas, "a capacidade tecnológica transformou o que antes eram jogos experimentais da razão especulativa em desenhos competitivos de projetos realizáveis. E, ao escolher entre eles, optou entre extremos, com efeitos, em grande parte, desconhecidos. A única certeza é o caráter extremo dessas opções".56 Isto demonstra a insuficiente elasticidade do objeto de preocupação da responsabilidade civil para lidar, por exemplo, com ações capazes de alterar a essência humana, mediante o emprego da tecnologia do DNA recombinante.57 Aliás, ainda que fosse possível alargar seu objeto de preocupação, insuficiente seria a resposta em termos de responsabilidade civil, pois a conseqüência indesejável da ação exemplificada corresponderia a um dano irreversível.

Nos casos de danos reparáveis ou, ao menos, remediáveis, decorrentes do emprego e/ou desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante, o instituto da responsabilidade civil até pode dar uma resposta eficiente. Nos casos de danos irreparáveis, a resposta do instituto é simplesmente ineficiente. Em algumas hipóteses que envolvem a autoria plural, tanto num caso quanto n'outro, as insuficiências do instituto da responsabilidade civil também podem evidenciar-se na inadequada atribuição da responsabilidade. Além disso, a insuficiente compreensão da autoria plural, em algumas hipóteses, esvazia por completo a função dissuasiva do instituto.

Para melhor demonstrar o que, de maneira sintética, restou afirmado, recorre-se, mais uma vez, à doutrina de Fernando Noronha: "um dano pode resultar de um só fato (isto é, pode ter uma causa única), ou de diversos fatos (havendo, portanto, multiplicidade de causas ou concorrência efetiva de causas); em ambos os casos pode-se ter a intervenção de uma só pessoa (autoria singular), ou de diversas (autoria plural)".58

As situações que suscitam os problemas cuja solução pode ser identificada como insuficiente são algumas hipóteses que envolvem autoria plural. A autoria plural ocorre quando diversas pessoas possam ser responsabilizadas, seja por terem participado do único fato gerador do dano acontecido (unicidade de causa), seja por haver diversos fatos geradores a elas relacionados (pluralidade de causas). Nas situações de unicidade de causa com autoria plural, isto é, nas situações de co-autoria de fato danoso, todos respondem solidariamente pela reparação.59 Nas situações de pluralidade de causas com autoria plural, merecem destaque as situações de causalidade complexa, que são aquelas situações em que cada pessoa age separadamente das demais para a realização do dano. Segundo Fernando Noronha, é possível distinguir "três hipóteses de causalidade complexa": a) A da prática, por cada pessoa, de fato que só por si seria suficiente para causar todo o dano verificado (causalidade colateral); b) A da prática, por cada pessoa, de fato que só por si não seria suficiente para causar o dano, ou todo ele, mas que somado aos outros foi causa necessária dele (causalidade propriamente concorrente); e c) A da prática, por cada pessoa, de uma parte delimitada do dano (causalidade cumulativa).60

Nas duas primeiras hipóteses, a doutrina tem sugerido a mesma resposta dada para as situações de unicidade de causa com autoria plural, sujeitando todos os responsáveis à reparação solidária do dano. Na terceira hipótese, a resposta é diferente, restringindo a reparação de cada responsável à parte do dano que efetivamente causou.

Das várias respostas, a menos eficiente, porque demonstra a insuficiente compreensão da autoria plural, é a dada à hipótese de causalidade colateral. Trata-se, em verdade, de mais uma perigosa aplicação da teoria da coletivização da responsabilidade.

Há causalidade colateral quando, agindo paralelamente, o comportamento de qualquer um dos responsáveis já é suficiente para causar o dano em toda sua extensão. Um exemplo que ilustra a hipótese é a eliminação de específicas espécies animais em decorrência da liberação no meio ambiente, por parte de centros de pesquisa independentes entre si, de diferentes rejeitos transgênicos. O fato significativo da causalidade colateral é que, embora haja pluralidade de responsáveis agindo paralelamente, a quantidade de substância, individualmente liberada, é causa bastante para a realização de todo o dano à biodiversidade então verificado.61

Pela resposta antes assinalada, os centros de pesquisa e seus correspondentes financiadores responderiam solidariamente pelo dano causado à biodiversidade. Assim, todos os comportamentos danosos equiparar-se-iam a uma única ação e o dever de reparar o dano —impossível no exemplo apresentado— pulverizar-se-ia.

Na causalidade colateral, não existe um dano apenas; existem vários danos que se sobrepõem na medida em que os comportamentos danosos se repetem. Se a ação de um único responsável é capaz de eliminar, no exemplo apresentado, específicas espécies animais, este fato não deve mitigar, mas agravar a responsabilidade pessoal. A resposta solidária, atentando contra a responsabilidade pessoal, acaba sendo um estímulo ao dano.

Com vistas a resgatar a função dissuasiva do instituto da responsabilidade civil, não há dúvida de que a mais eficiente resposta, na hipótese de causalidade colateral, é a atribuição de responsabilidade pessoal pelo dano acontecido, a despeito de sua sobreposição. Partindo da constatação de que a causalidade colateral não possui "reduzido interesse prático",62 impõe-se, com urgência, a revisão da doutrina da solidariedade, já que se trata de uma resposta incapaz de coibir comportamentos danosos. Com efeito, caso não se imprima à nova lei brasileira de biossegurança uma interpretação bioética conforme à não-maleficência, a tendência é que, diante do desenvolvimento progressivo e do emprego alargado da tecnologia da recombinação do DNA, os comportamentos danosos, estimulados pela pulverização do dever de reparar o dano, repitam-se com freqüência cada vez maior.

 

IV. A irresponsabilidade institucionalizada

Se é verdade que o desenvolvimento tecnológico tem proporcionado aos homens, pelo menos àqueles que suplantaram a linha da pobreza, o gozo de mais saúde e de uma existência com mais qualidade, não é menos verdade que as modernas tecnologias também têm a capacidade de criar danos irreversíveis em série, cuja gravidade dos efeitos desconhecidos só se perceberá a médio e longo prazos.

A capacidade de criar danos graves e/ou irreversíveis é um risco que acompanha o emprego e/ou desenvolvimento das modernas tecnologias. Em algumas situações, o risco é certo, em outras, incerto. Lidar com o risco, em qualquer situação, de modo a preveni-lo, é a função da biossegurança.

Há quem entenda que, diante de riscos incertos, o modelo de gestão, de que se socorre o princípio da precaução, não necessariamente objetiva a eliminação dos riscos, mas sim seu controle e, na melhor das hipóteses, sua diminuição. O que significa dizer que os modelos de decisão fundados na gestão de riscos admitem que riscos de danos graves e/ou irreversíveis possam ser assumidos quando da implementação de uma ação. No plano doutrinário, inclusive da doutrina moral, nada é mais errôneo e, no que concerne a certos doutrinadores, mal intencionado. Só no plano do mercado, em que o rigor terminológico não é condição de êxito dos interesses econômicos envolvidos, é que a erronia se justifica.

Quem se propõe a prevenir danos graves e/ou irreversíveis é a biossegurança, enquanto conjunto de políticas e de ações públicas e privadas. Na área de biossegurança, por existirem riscos certos e riscos incertos, são admitidos diferentes modelos de decisão. O modelo de gestão de riscos é um desses modelos e seu uso pressupõe a incerteza dos riscos. Duas são as instâncias deste modelo: uma de avaliação e outra de deliberação. Assim, a "diminuição", a que antes se fez referência como a melhor das hipóteses do modelo de gestão de riscos, relaciona-se à instância de avaliação e não diz respeito aos riscos em si. A "diminuição" diz respeito à avaliação do grau de incerteza dos riscos.

Dessa forma, após avaliados os riscos, mantido seu grau original de incerteza ou, na melhor das hipóteses, diminuído esse grau, passa-se, em seguida, à instância de deliberação, com a esperança de que ela seja a mais racional possível.

Marie-Angèle Hermitte e Virginie David também entendem que, diante da incerteza científica, é racional apoiar a deliberação "numa avaliação prévia da situação, avaliação teórica e experimental, que permite reduzir a incerteza, assim como situar a incerteza residual de forma a calculá-la".63 Lembram as doutrinadoras que o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança,64 da Convenção sobre Diversidade Biológica, celebrado em Montreal, em 29 de janeiro de 2000, "analisa as coisas de forma diferente: `a avaliação de riscos deve permitir uma decisão de acordo com o conhecimento'. Então, não há mais a racionalidade da decisão; porém, existirá informação, nos limites dos conhecimentos existentes".65 Em outras palavras, o Protocolo de Cartagena, ao mesmo tempo em que não identifica a incerteza com a falta de conhecimento, confunde a biossegurança com a informação que se conhece. Substitui-se, assim, a racionalidade da decisão contrária à proposta de assumir riscos incertos pela infirme idéia de "correr riscos".66

Acredita-se que a sociedade, diante das "vantagens" proporcionadas pelos OGMs e seus derivados, mesmo não participando do processo de avaliação e deliberação, está disposta a "correr riscos".67 É o que Renato Angelo Ricci denomina "relação riscos/benefícios (rapporto rischi/benefici)". Para o doutrinador, trata-se de um critério cientificamente e socialmente mais aceitável (scientificamente e socialmente piú accettabile) do que o princípio da precaução, que, segundo ele, é um critério puramente político.68 A desqualificação jurídica do princípio da precaução, identificado como mero critério político por Renato Angelo Ricci, visa a dissimular os interesses econômicos que se encontram por trás da defesa da idéia de "correr riscos". Por outro lado, qualificar como "cientificamente mais aceitável" a relação riscos/benefícios, ocultando a falta de conhecimento sobre os efeitos indesejáveis dos OGMs e seus derivados, é uma simulação rasa, que nada tem a ver com o conhecimento científico.

No Brasil, compete à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança —CTNBio— avaliar e deliberar sobre os riscos decorrentes do emprego e/ou desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante. Dentre outras, são suas atribuições legais: 1) Proceder à análise da avaliação de risco, caso a caso, relativamente a atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados; 2) Emitir decisão técnica, caso a caso, sobre biossegurança de OGM e seus derivados no âmbito das atividades de pesquisa e de uso comercial de OGM e seus derivados, inclusive a classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança exigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições ao uso; 3) Definir o nível de biossegurança a ser aplicado ao OGM e seus usos, e os respectivos procedimentos e medidas de segurança quanto ao seu uso, bem como quanto aos seus derivados; 4) Classificar os OGMs segundo a classe de risco; 5) identificar atividades e produtos decorrentes do uso de OGM e seus derivados potencialmente causadores de degradação ao meio ambiente ou que possam causar riscos à saúde humana.

Sabe-se que a composição da CTNBio não é plural, já que a sociedade, em sua maior expressão, nela não está incluída. Integram o colegiado da CTNBio apenas "especialistas" e representantes governamentais. A sociedade, eventualmente, pode ser chamada a participar de audiências públicas; com certa condescendência, pode até ser ouvida; mas não tem o direito de votar. E é esta mesma sociedade, excluída do processo de avaliação e deliberação, que, segundo alguns doutrinadores, está disposta a "correr riscos".

Não é demais lembrar que ainda não são conhecidos os efeitos indesejáveis dos OGMs, incluídos os organismos transgênicos, na saúde humana, na hereditariedade e no meio ambiente. No entanto, com base nesse desconhecimento dos riscos de danos graves e/ou irreversíveis, a CTNBio decide sobre biossegurança em nome da sociedade.

Além da circunstância de não representar a sociedade pluralmente, ostentando o indicativo de instituição não democrática,69 outro traço a considerar no exercício das competências legais da CTNBio é a possibilidade de sua irracionalidade.

Na maioria dos casos em que se identificam riscos incertos, a "informação que se conhece" não é capaz de afiançar uma decisão racional favorável aos OGMs, incluídos os organismos transgênicos; quando muito, é apta a fundamentar uma opinião interesseira. Com efeito, quando se fala em "informação que se conhece" não se avisa o estado em que se encontra o conhecimento, sequer se esclarece a origem dessa informação, muito menos se explicitam as controvérsias. Sim, porque há controvérsias. Riscos incertos são riscos controversos. Em suma, decidir no estágio primário de uma controvérsia não é outra coisa senão opinar interesseiramente.

Convém esclarecer que "nem todo dano se deve a um risco, assim como nem todo risco equivale a um dano".70 Na área de biossegurança, no entanto, assumir riscos incertos equivale a implementar danos graves e/ou irreversíveis. Tal equivalência não tem nada de arbitrário e se justifica no fato do desconhecimento dos efeitos indesejáveis dos OGMs, incluídos os organismos transgênicos, na saú de humana, na hereditariedade e no meio ambiente. "Correr riscos" de efeitos indesejáveis desconhecidos é comportamento que se distancia da liberdade responsável e muito se aproxima da pura e simples estupidez.

A idéia de "correr riscos" se insere na mesma perigosa tendência de coletivização anteriormente criticada. Enquanto na responsabilidade civil prega-se a coletivização da responsabilidade, a despeito da culpa, na idéia de "correr riscos" sugere-se a coletivização da culpa, a despeito da responsabilidade. A cruz e a espada, na área de biossegurança, é a seguinte: fica-se entre a responsabilidade de todos sem a atribuição da culpa a alguém e a culpa coletiva sem que alguém assuma a responsabilidade.

No caso do instituto da responsabilidade civil, a coletivização transforma juridicamente a responsabilidade impessoal em verdadeira irresponsabilidade pessoal. Já na idéia de "correr riscos", fala-se de uma irresponsabilidade muito mais grave, porque não apenas jurídica. Quando a culpa é atribuída a todos, indistintamente, institucionaliza-se a irresponsabilidade em seu sentido mais amplo, em seu sentido ético. Segundo Hannah Arendt, a coletivização da culpa "é uma caiação altamente eficaz para todos aqueles que realmente têm culpa, pois, quando todos são culpados, ninguém o é".71 Na prática, a irresponsabilidade institucionalizada, mediante a culpa impessoal, dissemina o anonimato como critério de identificação subjetiva e enobrece a malícia como critério objetivo de conduta. A culpa impessoal, portanto, é o veículo irracional de que se vale a idéia de "correr riscos" para, coletivizando a culpa, desculpar os culpados.

 

V. Provocações finais

Na área de biossegurança, falar que a responsabilidade objetiva está relacionada ao risco inerente a certas atividades é menos verdadeiro do que falar que ela se relaciona a certas atividades intrinsecamente danosas. Em face da nova lei brasileira de biossegurança, repensar o instituto da responsabilidade civil, para além de sua funç ão considerada primacial, se torna então uma necessidade impostergável.72 Dessa forma, a objetivação agravada da responsabilidade civil, admitida como a modalidade eleita pela nova legislação, deve aprofundar-se a ponto de não se contentar com uma função meramente reparatória, proporcionando, mediante uma interpretação bioética conforme à não-maleficência, o desenvolvimento de uma função capaz de impedir eficazmente a realização de danos graves e/ou irreversíveis.

Na área de biossegurança, as hipóteses de risco incerto de dano grave e/ou irreversível exigem que o princípio da precaução seja compreendido como medida de prudência redobrada. Diferentemente dos riscos próprios do emprego e/ou desenvolvimento de muitas tecnologias modernas que se relacionam a efeitos indesejáveis conhecidos, os riscos na área de biossegurança possuem um gravame, pois se relacionam, em inúmeras circunstâncias, a efeitos indesejáveis não conhecidos. No entanto, para satisfazer, em regra, os interesses imediatos do mercado, tornou-se lugar comum alegar que a sociedade está disposta a "correr riscos". Decidir, sem levar em conta o desconhecimento, é decidir de maneira imprudente. Para que não se desenvolva a insegurança biotecnológica, a pretexto de promover a biossegurança, o princípio da precaução tem que ser levado a sério.

 

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Notas:

1 "Afirmar o caráter aberto da epistemologia bioética não implica afirmar que qualquer arrazoado em tema de bioética possua enquanto tal a dignidade de discurso autêntico". D'Agostino, Francesco, Bioetica nella prospettiva della filosofia del diritto, Torino, G. Giappichelli Editore, 1998, pp. 77 y 78.

2 Arendt, Hannah, Responsabilidade e julgamento, trad. de Rosaura Eichenberg, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, pp. 98 y 99.

3 Nesse sentido amplo, o conceito jurídico mais próximo no direito brasileiro é o de vigilância sanitária. Com efeito, "entende-se por vigilância sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo: o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde" (artigo 6o., parágrafo 1o., incisos I e II, da Lei Federal no. 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências). Cfr. a revisão da definição constante de Silva, Reinaldo Pereira e, Biodireito: a nova fronteira dos direitos humanos, São Paulo, LTr, 2003, pp. 44 y 45. Cfr. , também, Silva, Reinaldo Pereira e, "A teoria dos direitos fundamentais e o ambiente natural como prerrogativa humana individual", Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, Montevideo, año 13, t. II, 2007, p. 563.

4 A Lei Federal no. 8.974, de 05 de janeiro de 1995, que anteriormente dispunha sobre o tema, também se restringia ao estabelecimento de "normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado, visando a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente".

5 Para reforçar a idéia constante de nota de rodapé antecedente, "consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária quaisquer produtos que envolvam a possibilidade de risco à saúde, dentre eles, os obtidos por engenharia genética, por outro procedimento ou ainda submetidos a fontes de radiação" (artigo 8o., parágrafo 1o., inciso X, da Lei Federal no. 9.782, de 26 de janeiro de 1999, que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e dá outras providências).

6 Cfr. artigo 5o., da Lei Federal no. 11.105, de 24 de março de 2005.

7 Cfr. artigo 3o., inciso XIV, do Decreto Federal no. 5.591, de 22 de novembro de 2005.

8 "Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o artigo 5o. desta lei, pena de detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa".

9 "Embriões inviáveis são aqueles embriões com alterações genéticas comprovadas por diagnóstico pré-implantacional, conforme normas específicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, que tiveram seu desenvolvimento interrompido por ausência espontânea de clivagem após período superior a vinte e quatro horas a partir da fertilização in vitro, ou com alterações morfológicas que comprometam seu pleno desenvolvimento" (artigo 3o., inciso XIII, do Decreto Federal no. 5.591, de 22 de novembro de 2005).

10 Silva, Reinaldo Pereira e, Biodireito: a nova fronteira... , cit., nota 3, p. 136.

11 Cfr. USP. Introdução sobre DNA - Apostila do curso de Genética Molecular e Tecnologia do DNA Recombinante. Genética Molecular e Tecnologia do DNA Recombinante. Disponível em:http://kathryn.fmrp.usp.br/td/apost1.html#20. Acesso em: 13 out. 2000.

12 Artigo 3o., inciso IV.

13 Artigo 3o., inciso V.

14 Guerrante, Rafaela Di Sabato, Transgênicos. Uma visão estratégica, Rio de Janeiro, Interciência, 2003, p. 4.

15 As técnicas tradicionais de cruzamento não são capazes de engendrar um organismo transgênico. Cfr. Silva, Reinaldo Pereira e, Biodireito: a nova fronteira... , cit., nota 3, p. 64.

16 Trata-se de uma planta geneticamente modificada que apresenta processo de maturação mais lento graças à inversão de uma seqüência gênica.

17 Pertence a esta primeira classe a maioria das sementes geneticamente modificadas atualmente comercializadas no mundo.

18 Cfr. Guerrante, Rafaela Di Sabato, op. cit., nota 14, p. 11.

19 Cfr. Guerrante, Rafaela Di Sabato, op. cit., nota 14, pp. 24-26.

20 Cfr. Lapa, Fernanda Brandão, "Ética e direitos humanos: um estudo introdutório sobre plantas transgênicas", in Silva, Reinaldo Pereira e y Lapa, Fernanda Brandão (org.), Bioética e direitos humanos, Florianópolis, OAB/SC Editora, 2002, pp. 191-221.

21 Vacher, Corinne, Evaluation des risques ecologiques associés aux plantes génétiquement modifiées, Université Montpellier II, 2004, Thèse pour obtenir le grade de docteur, p. 79.

22 Em 1990, a estreptomicina foi retirada do mercado por não mais ser eficiente.

23 Cfr. Nodari, Rubens Onofre y Guerra, Miguel Pedro, "Avaliação dos riscos ambientais de plantas transgênicas", Cadernos de Ciência e Tecnologia, Brasília, vol. 18, núm. 1, 2001, pp. 61 y ss.

24 Cfr. Guerrante, Rafaela Di Sabato, op. cit., nota 14, p. 39.

25 Diz-se, também, princípio da prudência. Aliás, a Lei Federal no. 8.974, de 05 de janeiro de 1995, não falava do princípio da precaução, mas falava do princípio da prudência em dois momentos. Por primeiro, quando excepcionava da vedação geral a intervenção in vivo em material genético de animais (artigo 8o., inciso V); e, num segundo momento, quando excepcionava o mesmo tema do tipo penal correspondente (artigo 13, inciso IV).

26 Diz-se que existem riscos demonstrados tão logo estabelecida a relação entre uma causa e um efeito. Cfr. Perret, Horace et al., "Approches du risque: une introduction", Les Cahiers du Réseau Interdisciplinaire Biosécurité , Genève, IUED, no. 2, 2005, pp. 9 y 41.

27 Cfr. Vacher, Corinne, op. cit., nota 21, p. 6.

28 Cfr. Perret, Horace et al., op. cit., nota 26, pp. 9 y 41. É importante esclarecer, no entanto, que "riscos hipotéticos" é expressão que diz respeito ao desconhecimento científico acerca dos riscos associados a um fenômeno, não ao caráter eventualmente aleatório do fenômeno considerado. Cfr. Sánchez, Karine, "La diversité des discours attachés au principe de précaution", Actes du VI Congrès Français de Droit Constitutionnel, Université de Montpellier I, del 9 al 11 de junio de 2007, p. 8.

29 Cfr. Lambert-Faivre, Yvonne, "L'éthique de la responsabilité", Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, Dalloz, núm. 1, enero-marzo de 1998, p. 10.

30 No Brasil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança —CTNBio— é composta por 18 (dezoito) especialistas e 9 (nove) representantes do Estado. A participação da sociedade, sempre excepcional e sem direito de voto, apenas ocorre em audiências públicas. Cfr. Artigos 6o. e 43, do Decreto Federal no. 5.591, de 22 de novembro de 2005.

31 Cfr. Perret, Horace et al., op. cit., nota 26, pp. 8 y ss., y 32.

32 Cfr. Jean Malafosse apud De Mattei, Roberto, "Indirizzo di saluto", Il principio di precauzione. I costi della non-scienza, Milano, Associazione Galileo 2001, 2004, p. 19; Lambert-Faivre, Yvonne, op. cit., nota 29, p. 10; Wolfrum, Rüdiger, "O princípio da precaução", in Varella, Marcelo Dias et al. (org.), Princípio da precaução, Belo Horizonte, Del Rey, 2004, pp. 16 y 18.

33 Jonas, Hans, El principio de responsabilidad. Ensayo de una ética para la civilización tecnológica, trad. de Andrés Sánchez Pascual, Barcelona, Herder, 1995, p. 56. "Antes se examinava a aplicação da técnica no âmbito não humano. Hoje, o próprio homem se vê incluído entre os objetos da técnica". Jonas, Hans, op. cit., en esta misma nota, p. 49.

34 A mesma redação se encontra no artigo 1o., do Decreto Federal no. 5.591, de 22 de novembro de 2005.

35 Trata-se de simples aplicação da regra hermenêutica segundo a qual a letra da lei deve ser interpretada de modo a se conformar com o espírito da lei.

36 A primeira formulação legislativa expressa do princípio da precaução ocorreu no ano de 1974, na lei alemã sobre chuvas ácidas, sob a denominação Vorsorgeprinzip. Em termos não expressos, é possível encontrar, no direito norte-americano, certa disciplina de precaução já no ano de 1958, mais especificamente na cláusula Delaney, no domínio da segurança alimentar. Cfr. Prieur, Michel, "Mondialisation et droit de l'environnement", Meio ambiente, Brasília, Escola Superior do Ministério Público da União, 2002, vol. I, p. 6; Lagadec, P. et al., Traité des nouveaux risques, Paris, Gallimard, 2002, p. 74; Perret, Horace et al., op. cit., nota 26, pp. 23 y 24.

37 "O risco, por si só, não basta para gerar a obrigação de indenizar, porque risco é perigo, é mera probabilidade de dano. Ninguém viola dever jurídico simplesmente porque exerce uma atividade perigosa, mormente quando socialmente admitida. A responsabilidade surge quando o exercício da atividade perigosa causa dano a outrem. Tanto é assim que a obrigação de indenizar tem por fundamento a violação de um dever jurídico, e não apenas o risco. Que dever jurídico é esse? Quando se fala em risco o que se tem em mente é a idéia de segurança. A vida moderna é cada vez mais arriscada, vive-se perigosamente de sorte que, quanto mais o homem fica exposto a perigo, mais experimenta a necessidade de segurança. Logo, o dever jurídico que se contrapõe ao risco é o dever de segurança". Cavalieri Filho, Sérgio, Programa de responsabilidade civil, São Paulo, Atlas, 2007, p. 158.

38 Noronha, Fernando, Direito das obrigações, São Paulo, Saraiva, 2003, vol. I, p. 429.

39 Há quem defenda uma terceira função para o instituto da responsabilidade civil, a função punitiva, "principalmente em casos de ofensas à honra, à privacidade e à imagem cometidos por ou em meios de comunicação social. A prática tem revelado ser esta a única maneira eficaz de impedir que o autor da lesão obtenha com ela um enriquecimento que ultrapasse em muito a indenização em que for condenado. Atento ao elevadíssimo valor das receitas obtidas com as práticas ilícitas e danosas, torna-se ridículo o valor das indenizações quando comparado com a receita que para o infrator emerge do ato ilícito. A prática de atos ilícitos torna-se lucrativa, o que conduz os infratores a persistir nela" (Vasconcelos, Pedro Pais de, Teoria geral do direito civil, Coimbra, Almedina, 2005, p. 19). Na área de biossegurança, desde que as políticas e as ações correspondentes não se orientem pela concepção moral de menor-maleficência, o aprimoramento da função dissuasiva pode dar conta desta terceira função defendida por Pedro Pais de Vasconcelos, de modo a inibir eficazmente comportamentos danosos.

40 Para uma crítica da summa divisio: Viney, Geneviève, Traité de droit civil. Introduction à la responsabilité , Paris, LGDJ, 1995, pp. 442-452.

41 Noronha, Fernando, op. cit., nota 38, p. 431. "Entre os deveres que um homem há de dispensar aos demais, por si mesmo e sem especial ordem prévia, justamente o primeiro é que não se cause dano a ninguém e que, em todo caso, os danos causados devem ser reparados". Samuel Pufendorf apud Hattenhauer, Hans, Conceptos fundamentales del derecho civil, trad. de Gonzalo Hernández, Barcelona, Ariel, 1987, p. 99.

42 Vasconcelos, Pedro Pais de, op. cit., nota 39, p. 16; Hattenhauer, Hans, op. cit., nota anterior, p. 100.

43 Cfr. Leite, José Rubens Morato, Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, pp. 133-135.

44 "Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta lei, os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa" (artigo 20).

45 Noronha, Fernando, op. cit., nota 38, pp. 487 y 521.

46 Cfr. Noronha, Fernando, op. cit., nota 38, p. 638; Cavalieri Filho, Sérgio, op. cit., nota 37, p. 166.

47 O tema não é novo. Cfr. Savatier, René, Les métamorphoses économiques et sociales du droit civile d'aujourd'hui, Paris, Dalloz, 1952, p. 263. Originalmente, o seguro de responsabilidade civil foi instituído no âmbito dos acidentes de trabalho e dos danos relacionados ao transporte aéreo.

48 Cfr. Machado, Paulo Afonso Leme, Direito ambiental brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2007, pp. 354-356; Freitas, Vladimir Passos de, A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, pp. 179-182; Milaré, Édis, Direito do ambiente, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004, pp. 768-770.

49 Noronha, Fernando, op. cit., nota 38, p. 544.

50 Cfr. Prieur, Michel, Droit de l'environnement, Paris, Dalloz, 2001, p. 136.

51 Cfr. Alpa, Guido y Bessone, Mario, La responsabilità civile, Milano, Dott. Giuffrè Editore, 2001, p. 540.

52 Infelizmente, muitos doutrinadores insistem em não reconhecer as diferentes ordens de risco e se valem, por tal razão, de argumentos muito genéricos a favor de suas teses pseudo-liberais. Por exemplo, De Mattei, Roberto, op. cit., nota 32, p. 20.

53 Cfr. Prieur, Michel, "Mondialisation et droit...", cit., nota 36, pp. 9 y 10.

54 Jonas, Hans, op. cit., nota 33, pp. 29-31.

55 Ibidem, p. 33.

56 Ibidem, p. 55.

57 Cfr. Chieffi, Lorenzo, "Ingegneria genetica e valori personalistici", in Santos, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.), Biodireito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, passim.

58 Noronha, Fernando, op. cit., nota 38, p. 639.

59 "Se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação" (artigo 942, caput, in fine, do Código Civil brasileiro de 2002).

60 Noronha, Fernando, op. cit., nota 38, p. 647.

61 Trata-se da adaptação de um exemplo citado por Noronha, Fernando, op. cit., nota 38, p. 648. Cfr. , também, Cavalieri Filho, Sérgio, op. cit., nota 37, p. 61.

62 Em sentido contrário, cfr. Noronha, Fernando, op. cit., nota 38, p. 648.

63 Hermitte, Marie-Angèle y David, Virginie, "Avaliação dos riscos e princípio da precaução", in Varella, Marcelo Dias et al. (org.), op. cit., nota 32, p. 98.

64 O Protocolo de Cartagena se aplica "ao movimento transfronteiriço, ao trânsito, à manipulação e à utilização de todos os organismos vivos modificados que possam ter efeitos indesejáveis na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando também em conta os riscos para a saúde humana" (artigo 4o.).

65 Hermitte, Marie-Angèle y David, Virginie, op. cit., nota 63, pp. 102 e 117.

66 Em defesa da idéia de "correr riscos", Regge, Tullio, "Il principio di precauzione: un trucco verbale"; Tirelli, Umberto, "Il principio di precauzione e la salute"; Pedrocchi, Ernesto, "Il principio di precauzione", in Il principio di precauzione. I costi della non-scienza, Milano, Associazione Galileo 2001, 2004, pp. 79, 81, 188, respectivamente.

67 Cfr. Cavalieri Filho, Sérgio, op. cit., nota 37, pp. 168 y 169.

68 Ricci, Renato Angelo, "Perché Galileo 2001", in op. cit. , nota 66, p. 26.

69 Cfr. Questiaux, Nicole, "Ethique, science et droits de l'homme", Droits Fondamentaux, Paris, nom. 4, janvier-décembre 2004, p. 12.

70 Padilla, René, Sistema de la responsabilidad civil, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1997, p. 52.

71 Arendt, Hannah, op. cit., nota 2, p. 83.

72 Cfr. Alpa, Guido y Bessone, Mario, op. cit., nota 51, pp. 566-578; Padilla, René, op. cit., nota 70, pp. 52-54.

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