Introdução
O tratamento de fotografias tem passado ao largo do arcabouço teórico metodológico da Arquivologia, sobretudo nos arquivos privados. Entretanto, a articulação entre pesquisadores interessados nas questões que envolvem esses documentos tem possibilitado a ampliação das discussões e da bibliografia correlata. Neste artigo se discute a gênese arquivística de documentos fotográficos pela perspectiva da Fotodocumentação, campo conceitual que tem se consolidado por meio das discussões do Grupo de Pesquisas em Acervos Fotográficos (GPAF), criado em 2008. O objetivo é delimitar a gênese arquivística de documentos fotográficos como abordagem aplicável a arquivos utilizando o fundamento teórico do Ciclo da Informação. As hipóteses levantadas consideram que documentos fotográficos de arquivo são produzidos como informação orgânica e sua gênese arquivística se relaciona diretamente com a organização da informação que, por sua vez se reflete na recuperação e comunicação da informação.
A metodologia de investigação é de estudo de caso de um arquivo privado, representado no instrumento de pesquisa Catálogo do Arquivo Fotográfico de Mário de Andrade, com foco na série fotografias e suas subdivisões. Esta estratégia possibilita explorar as peculiaridades de um conjunto fotográfico que passou por processamento técnico (aquisição, classificação, descrição e difusão) e é parte relevante de um acervo que, apesar da origem privada, tornou-se público ao ser adquirido da família do escritor Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). A aquisição inclui a biblioteca, obras de arte, manuscritos de obras literárias, correspondências, fotografias, negativos e discos, entre outros documentos. Além de relevante fonte de pesquisa é também um marco na consolidação das atribuições do centro de pesquisa em história e estudos de cultura brasileira.
Documentos fotográficos nos arquivos
A Arquivística se fundamenta na noção de arquivo, entendido como produto das atividades desenvolvidas por um criador (produtor) que o mantém como um todo indivisível. Para Camargo e Bellotto (1996, 5) ”arquivo é o conjunto de documentos que, independentemente da natureza ou do suporte, são reunidos por acumulação ao longo das atividades de pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas”. Há uma vinculação original e necessária entre funções, competências e atividades do seu produtor que os acumula e mantém para diferentes finalidades: servir de evidência, de responsabilização administrativa, legal, fiscal ou fonte de informações.
Aleida Assmann (2011, 367) condiciona a existência de arquivos a sistemas de registros que funcionavam como meios de armazenamento externo à memória e ressalta que “o arquivo está ligado desde o seu princípio com a escrita, a burocracia, a administração e os atos administrativos”. Assim, os arquivos estabelecem relações íntimas tanto à origem quanto às intencionalidades do seu criador.
Carol Couture e Jean Yves Rousseau (1998, 90) concebem o fundo de arquivo como “um agrupamento intelectual de informações registradas em suportes de toda a espécie que estão, a maior parte das vezes, material e fisicamente dispensas”. Nessa concepção está embutido o duplo valor dos documentos de arquivo: o valor informativo, contido em cada documento; e o valor de prova, que se subdivide em valor de prova legal, financeira, administrativa e histórica. Ambos valores são encontrados em cada documento que, no entanto, se constitui no tempo e no espaço em função de determinada pessoa ou organismo em específico contexto.
Os princípios que orientam a disciplina arquivística são: o princípio da proveniência e o da ordem original. O primeiro “permite isolar e circunscrever a entidade que constitui um fundo de arquivo no que respeita ao modo como este se distingue de qualquer outro” (Rousseaul y Couture 1998, 83). Por sua vez, a ordem original ou ordem primitiva se aplica na interrelação entre os documentos, “diz respeito, em última análise, às relações entre documentos e atividades, partindo-se da premissa de que as relações internas existentes num conjunto de documentos estão diretamente ligadas ao exercício de atividades específicas que lhes deu origem” (Meehan 2018, 314).
A proveniência vincula o produtor ao seu arquivo e delimita as relações externas com outros arquivos, no entanto, não prevê como serão as subdivisões internas possíveis de serem feitas. Os critérios de subdivisão devem refletir a característica orgânica dos conjuntos arquivísticos, conforme indica Heloisa Bellotto (2005, 165): “na arquitetura orgânica dos documentos de arquivo, os pilares são o fundo, a série e o documento (unitário ou composto), numa relação hierárquica similar à própria entidade acumuladora”.
A ordem original ou origem funcional tem como ponto de partida a criação de documentos singulares e a existência de relações internas significativas ou mesmo hierarquizadas entre as subdivisões do fundo. Não se confunde com o sistema de arquivamento empregado ou os hábitos de organização do titular do arquivo, pois tratar-se de uma abordagem que parte do geral para o específico com o objetivo de preservar o contexto de origem dos documentos.
As intervenções nos arquivos sob a perspectiva dos princípios arquivísticos visa preservar a condição probatória. Como o “fundo de arquivo não pode existir sem que o princípio da proveniência seja aplicado” (Rousseau y Couture 1998, 82) os dois princípios são tributários do conceito de fundo de arquivo, pois, a condição probatória dos documentos não se estabelece sem eles e transcende a informação.
A valorização dos documentos fotográficos como fonte de pesquisa vem se ampliando desde o início do século XX, também por seu valor cultural e informativo. Integrantes de conjuntos documentais constituídos por pessoas ou famílias, as fotografias foram incorporadas aos acervos de instituições públicas com enfoque na disponibilização dos registros visuais de épocas e pessoas. Apesar do interesse e da criação de instituições de guarda voltadas para a preservação desses documentos, nem sempre eles foram objeto de adequado tratamento técnico, como descreve Aline Lacerda (2013, 55):
Embora presentes na maioria dos arquivos - públicos e privados, institucionais e pessoais - e submetidas a tratamento de identificação, arranjo ou classificação e descrição nesses espaços, as fotografias têm sido, no entanto pouco problematizadas, tanto no que diz respeito às suas características de registro visual quanto em relação aos papéis que lhe são conferidos no processo de constituição dos próprios arquivos.
Discussão relacionadas ao tratamento dos documentos fotográficos nos arquivos se encaminham por dois pontos de vista. Primeiro, envolve divergências teórico metodológicas entre as ciências documentais que, embora admitam algum consenso sobre a necessidade de preservação dos suportes, se diferenciam na “maneira de definir e tratar o universo documental de cada uma das áreas” (Camargo 2016, 3). Isso se deve à finalidade das áreas e à origem dos acervos. É comum documentos fotográficos de arquivo serem apartados dos demais e tratados pela perspectiva bibliográfica ou museológica, na qual o item documental é individualizado pelo conteúdo informacional, com prejuízos para a organicidade e a proveniência. A possibilidade de ampliação do acesso aos acervos e o atendimento às demandas dos usuários estimularam a busca por informações pontuais, muitas vezes, em detrimento do contexto.
Segundo ponto: a constatação feita por Antonia Heredia Herrera (2016), em conferência realizada no ano de 1993, sobre a necessidade de entendimento das fotografias nos arquivos sob a ótica dos princípios arquivísticos. O principal de sua exposição foi a abordagem que os profissionais de diferentes áreas faziam da fotografia:
Ainda que se diga que a fotografia é um “certificado de presença” ante ela o arquivista sente nascer a suspeita da veracidade, o jurista a nega a capacidade de prova, para o conservador de museu lhe falta status cultural e artístico, o historiador lhe premiou um papel decorativo em seus trabalhos de investigação e nenhuma opção há para os diplomatistas. Tudo isso, a despeito daqueles que acreditam que não existe fotografia que não seja um documento magnífico, e que a fotografia deixou de ser mera ilustração para ser fonte decisiva para a história (Herrera 2016, 2).
O alerta dela foi no sentido de que os arquivistas compreendessem os documentos não textuais e suas distintas formas de armazenamento para que pudessem estabelecer as diferenças e vínculos com os demais documentos de arquivo. O que ressalta a necessidade de compreensão da gênese arquivística para que o resultado do tratamento técnico, não seja apenas pelo viés da qualidade de sua informação ou do seu suporte. Não se deve desprezar o valor informativo das fotografias, porém, suas especificidades precisam ser consideradas no contexto informacional.
As questões identificadas por Heredia Herrera ainda reverberam. Talvez porque, apesar de as fotografias estarem inseridas organicamente nos arquivos, sua condição de documento especial1 ainda não foi superada. Problema apontado por André P. Ancona Lopez (2000, 16) acerca da conceituação que implicaria numa confusão “com o suporte (negativos de vidro, acetato, etc.) ou com a técnica empregada para sua produção (ex.: fotografia)” - expressões que ora definem os critérios, ora os termos da classificação sem indicar as funções para as quais esses documentos foram produzidos.
A Fotodocumentação e o Ciclo da Informação
A Fotodocumentação propõe discussões epistemológicas e abordagens teóricas que contemplem as especificidades da fotografia, incluindo o tratamento que é dado quando integram acervos arquivísticos e não arquivísticos. O intuito é abordá-las no sentido que os espanhóis dão para o termo ciências da documentação2, que se interessa pelas características informacionais do patrimônio fotográfico (GPAF 2021). Essas características estão relacionadas à linguagem da fotografia, sua associação com a arte, análise documentária da imagem, coleta, representação e recuperação da informação, da memória, fatos, circunstâncias, banco de dados voltados para o tema da fotografia, etc. (Araújo 2018, 44), mas também sua dimensão documental.
Ao propor o exame de problemas para além da conservação dos suportes e do tratamento de acervos isolados a Fotodocumentação desloca sua preocupação para a necessidade do estabelecimento de estratégias para gestão eficaz do patrimônio fotográfico, noção proposta por Joan Boadas I Rasset (2008; 2014), sugerindo uma visão mais ampla que articule o documento fotográfico com seu contexto e outros documentos que “de alguna manera se relaciona con una colección, un fotógrafo, un archivo, un productor, una función, una manera de registrar el presente, un valor social, un hecho histórico, etc.” (Lopez 2016, 41). Embora se utilize dos conceitos fundamentais da Arquivologia, não se limita a ela, tampouco à Ciência da Informação, assim, o que se propõe é uma: “mudança de foco na relação fenômeno-objeto-teoria que consiga discutir, não os fenômenos de outras áreas, tendo a fotografia como objeto, mas discutir a fotografia como se fosse uma área. A partir do ponto de vista da fotografia. ” (GPAF 2021)
Quanto às características informacionais, são percebidas sob dois aspectos: do tratamento físico e do tratamento informacional. O primeiro inclui o desenvolvimento de teorias e técnicas de preservação, conservação, restauração, etc. de fotografias. E o segundo, com mais possibilidades, trata de estudos relacionados a técnicas e materiais, autores (pessoais e institucionais), funções originais e posteriores, contextos (históricos, sócio culturais, administrativo e arquivístico), acesso e divulgação, cópias e direitos, etc.
O tratamento informacional aborda a “informação plasmada num documento, uma informação registrada num documento” (GPAF 2021). Pesquisas no campo da Fotodocumentação ocupam-se dos impactos relacionados a aspectos sócio culturais, construção de identidades, manutenção ou perda de direitos, envolvidos na produção de fotografias. São inúmeras as possibilidades de tratamento informacional, mas o importante é entender como é feita a gestão documental.
A Ciência da Informação adota a concepção de fluxo da informação desde que Borko (1968) lançou os fundamentos desse conceito. Dodebei (2002), Floridi (2002), Le Coadic (2004) e Tarapanoff (2006) o atualizaram numa visão sistêmica, consolidando a expressão Ciclo da Informação que é dividido em fases (etapas) pelas quais a informação registrada transita e é usada. Vários modelos foram discutidos, aplicados e reelaborados. O GPAF utiliza a versão elaborada por Saraiva (2017), baseada na proposta de Tarapanoff, conforme o gráfico a seguir (Figura 1):
Nessa representação o documento fotográfico é analisado numa perspectiva cíclico que se reinicia cada vez que uma fotografia é gerada ou a cada novo uso possível de um documento já existente. As etapas são assim descritas:
Gênese da informação (geração): criação administrativa e intelectual, implica entender como se cria o documento e, consequentemente, a informação. Essa etapa está ligada à identificação do produtor, suas atribuições e atividades e os fins que o levaram a criar o documento, não apenas a informação isolada.
Organização da informação (seleção, aquisição, representação): organização integrada e por conteúdos que, no ambiente de gestão é feita para os outros, se subdivide em fases que resultam na disposição dos documentos conforme as funções e interesses (quem, como, porquê) do produtor do arquivo. Procura-se entender como a informação se torna documento de arquivo, o que pretende provar e como essa informação se reflete no sistema organizacional.
Recuperação da informação (recuperação): pode ser feita para remontar a atividade ou para usar o conteúdo informacional do documento. Desenvolvimento de estratégias que facilitem a recuperação da informação que foi organizada, de modo a promover uma ponte entre a organização original e o interesse que poderá surgir em relação à informação. A recuperação deve conter os dados arquivísticos e o conteúdo visual do documento fotográfico para possibilitar o acesso.
Comunicação da informação (distribuição, uso): pode ser feita a partir dos dados contextuais, mas também quando não há contexto. A distribuição implica em dar acesso à recuperação da informação e também em dar a conhecer ao público a existência dos documentos contextualizados. Pensando não só no que o documento é, mas também no interesse que o usuário possa ter, independentemente do documento. Considerando que o gestor não tem ingerência sobre os procedimentos referentes ao uso da informação, nem do documento, a fase de uso é tratada à parte.
O uso, é a utilização, via consulta, reprodução e/ou reciclagem do documento (e suas informações) pelo usuário, para seus interesses específicos. Pode não ter relação direta com os motivos pelos quais os documentos foram criados. O uso pode ser múltiplo e não ter relação direta com os motivos pelos quais os documentos e as informações são criados, ficando totalmente a cargo do usuário que pode, inclusive, subverter o uso do documento.
No gráfico as etapas estão sobrepostas por círculos que indicam intersecção entre os procedimentos técnicos que podem acontecer concomitantemente. Destacamos que a etapa de comunicação da informação se subdivide em duas outras: distribuição e uso da informação. Porém nas fases uso (final do ciclo) e identificação (início do ciclo) não há intersecção, elas não se interpenetram, pois não acontecem simultaneamente. A explicação é que no uso do documento fotográfico ocorre o encerramento do ciclo, com o alcance da finalidade para a qual o documento foi criado. E quando se inicia novo ciclo, mesmo com um documento com as mesmas características visuais, temos a produção de um novo documento fotográfico com outra finalidade, outra função. A gênese desse novo documento surgirá de outro contexto de produção, dando início a um novo ciclo.
A importância do Ciclo da Informação como arcabouço teórico da Fotodocumentação permite a análise dos documentos fotográficos de modo mais amplo, sem desconsiderar as funções arquivísticas clássicas de criação, aquisição, classificação, descrição e difusão, mas resgatando o contexto informacional no qual eles estão inseridos.
Trataremos somente da primeira etapa do ciclo, a gênese da informação que equiparamos à gênese arquivística: a criação do documento, pois não se restringem às informações apartadas de documentos. O processo de criação de documentos fotográficos de arquivo incorpora desde a identificação e definição do produtor arquivístico, suas funções e atividades, até a discussão acerca dos procedimentos de protocolo, registro ou captura de documentos.
A identificação da gênese arquivística em fotografias, sejam elas de origem pública ou privada (institucionais e pessoais), geralmente segmentadas em séries organizadas por critérios que invizibilizam as relações orgânicas, exige do gestor de arquivo a articulação com outras áreas do conhecimento. Além disso, é necessário desenvolver estratégias de compreensão do tratamento dado, sem precisar desconstruí-lo, porém, tentando evidenciar a sua condição probatória. O caso do arquivo de Mário de Andrade é representativo disso.
O Catálogo de Fotografias
A organização das fotografias resultou no “Catálogo de Fotografias do Arquivo Mário de Andrade” (1988), por se tratar de exemplar único obtivemos acesso a cópia digitalizada. O trabalho, realizado em duas fases, a primeira (1970-1971) de indexação, descrição analítica, notas de pesquisa e arranjo provisório. E a segunda (1982-1986) de organização definitiva das fotografias, tratadas separadamente dos demais documentos e agrupadas segundo os conteúdos visuais. O catálogo traz informações gerais sobre o produtor, apresenta a série, detalha as opões metodológicas, os materiais utilizados, as atividades desenvolvidas e ainda inclui as respectivas reproduções, em tamanho reduzido, de todas as fotos do arquivo. O documento está dividido em quatro volumes como mostra a Tabela 1.
Volumes | Fotografias nº | Datas-limites |
---|---|---|
Volume 1 | 1-692 | 189? - 1927 |
Volume 2 | 693 - 1299 | 1927 - 1929 |
Volume 3 | 1300 - 1898 | Déc.1920 - 1939 |
Volume 4 | 1899 - 2449 | 1939 - 1945 |
Fonte: elaboração própria.
Composto por mais de duas mil fotografias, parte delas oriunda da atividade colecionista, porém a maioria feita pelo próprio MA, um fotógrafo modernista. Nestas ele criou legendadas com referências técnicas (local, luz, data, etc.) e expressões poéticas características de seu estilo literário. A série é formada por:
Imagens que, além de se reportarem à história de nosso modernismo literário, musical, das artes plásticas e da arquitetura, à história de vida de Mário, a sua experiência de fotógrafo ou a seus estudos e ideias estéticas, marcam profundamente o percurso da fotografia profissional e amadora, usos e costumes, cidade e campo, manifestações da cultura popular ou monumentos da arquitetura no Brasil. Aqui estão dados importantes para a memória nacional - fisionomia de cidades e construções, moda, personalidades (Ancona López 1988, i).
Pesquisas biográficas indicam que ele atuou em diferentes áreas: escritor, poeta, músico, jornalista, professor, fotógrafo, crítico musical, político, pesquisador cultural, entre outras. Ao relacionar cada uma dessas funções aos documentos fotográficos produzidos e acumulados com suas respectivas ligações contextuais (cronológicas, correspondências, outros documentos, etc.) criaram-se agrupamentos temáticos coerentes com o conteúdo das imagens. A Tabela 2 apresenta a classificação por subséries:
Subsérie | Temática | Descrição |
---|---|---|
Documentação de estudos MA (DEMA) | Arquitetura | - |
Arte Pré-Colombiana México | - | |
Arte Sacra | - | |
Artes Plásticas | - | |
Cidades | - | |
Cinema | - | |
Cultura Popular | - | |
Etnografia | - | |
Folclore | - | |
Imaginária Religiosa Candomblé | - | |
Imaginária Religiosa Católica | - | |
Índios | Lote de 23 cartões-postais e 1 foto tipo postal, reunindo aspectos de interesse; obtidos por Mário de Andrade durante a “Primeira viagem etnográfica”; positivo. | |
Instituições | - | |
Mobiliário religioso | - | |
Música | - | |
Músicos | - | |
Fotografia como arte (FA) | - | Seja como fotógrafo amador, seja como artista, Mário de Andrade retratou cenas cotidianas, nas quais seu olhar apurado e senso estético transpuseram suas imagens a um novo patamar. Esse traço marca o conjunto Fotografia como Arte. |
Instantâneos (I) | - | - |
Mário de Andrade Fotógrafo (MAF) | - | - |
Fonte: elaboração própria.
Observa-se que a série foi subdividida em quatro subséries. Três decorrentes das atividades do titular do arquivo (DEMA, FA, MAF) e uma (I), aparentemente, ligada à técnica fotográfica de capturar uma imagem por meio de breve abertura do diafragma, sem grande preocupação artística. Como o catálogo não apresenta subdivisão temática, nem descrição, não é possível identificar o que é esse conjunto.
A subsérie DEMA, única com subdivisões temáticas, revela os assuntos de interesse do fotógrafo. Entre esses, destaque para a subdivisão Índios e também para as subséries FA e MAF que apresentam as respectivas descrições3, fornecendo informações contextuais. No caso da subsérie Índios as referências remetem à origem dos registros fotográficos e possibilita, inclusive, especulações sobre os motivos (por quê, para quê, onde, quando) de sua produção. Cotejando com documentos sobre as viagens de MA pelo interior do Brasil, identifica-se a função de pesquisador cultural no exercício da atividade de pesquisa antropológica, na qual ele registrou manifestações culturais das populações interioranas, conforme explica Telê Ancona Lopez:
Entre 1927 e 1929 Mário de Andrade fez suas duas “viagens etnográficas” como “turista aprendiz”. As viagens são etnográficas porque correspondem a seu desejo de conhecer o Brasil através do povo, num enfoque que hoje chamaríamos de antropológico. Em sua época, entretanto, não estavam nítidas as atribuições específicas da Etnografia e da Antropologia, valendo uma pela outra no conceito geral. Viajando, o escritor vai pesquisar usos e costumes, danças dramáticas e colher melodias populares [...] iriam ao norte, Amazonas e Pará, chegando até o Peru e a Bolívia (Ancona Lopez 1972, 139).
Assim, a proveniência da fotografia é identificada e se vincula aos relatórios, correspondências, comprovantes de despesas e outros documentos do mesmo período, evidenciando o valor de prova do conjunto fotográfico. Sem perder seu valor informativo, cultural e histórico.
Sobre as subséries FA e MAF, sem subdivisões temáticas, a descrição da primeira as conecta remetendo a duas facetas de Mário: a de fotógrafo, e também, a de artista com sensibilidade estética e perspicácia para fazer fotografias e criar legendas poéticas. Esses documentos, assim como sua produção textual literária, estariam ligados às diferentes atividades artísticas dele e, consequentemente, poderiam ser considerados documentos arquivísticos, pois provam a execução da atividade artística (fotógrafo, escritor, poeta) pelo produtor do arquivo. No entanto, as versões acabadas desses documentos, também poderiam ser consideradas como obras de arte por seus atributos intangíveis capazes de tocar o senso estético do público.
Esse duplo entendimento não é excludente, ambos podem coexistir, o problema é que a gênese arquivística geralmente é desprezada nas análises de fotografias de arquivo. Principalmente quando pertencem ao arquivo de pessoas.
Conclusões
No Ciclo da Informação a gênese arquivística passa pela identificação do produtor, suas atribuições e atividades. Identificação que se diferencia conforme o arquivo seja privado institucional ou de pessoas, nestes ela ocorre a posteriori devido ao caráter informal estabelecido pela inexistência de normativas (leis, regulamentos, diretrizes, entre outros) que delimitem a atuação dos indivíduos no contexto de suas escolhas pessoais. Geralmente a identificação (biográfica, segmento de atuação, ocupações públicas, etc.) é feita após o reconhecimento do valor informativo do acervo, da indicação do interesse público e seu envio para instituições de preservação e difusão, onde é tecnicamente tratado. O acervo de Mário de Andrade, apesar do seu reconhecimento em vida como escritor e intelectual relevante para o Brasil, só foi institucionalizado vinte anos após sua morte.
A apropriação de uma obra (fotografia, pintura, livro, etc.) pelo público acontece após sua divulgação e os significados que ela adquire raramente coincidem com os que o autor esperava, podendo chegar até a ser totalmente diferentes do intencionado. O significado cultural é conferido pela sociedade, diferentemente daquele oriundo da gênese arquivística que nasce fixo para cada produtor, de acordo com suas funções específicas, seja ele pessoa ou instituição. Eventualmente, quando um arquivo se converte de interesse público, como o de Mário de Andrade, ele ganha significado cultural para além das origens arquivísticas e se torna fonte de pesquisa para outros estudos, o que não invalida sua dimensão documental, probatória.
Portanto, ao estudarmos o caso de um arquivo fotográfico representado num instrumento de pesquisa que apresenta uma série e suas subdivisões temáticas, constatamos que a informação orgânica se evidencia no documento fotográfico. Além disso, verificamos que a gênese arquivística desses documentos pode ser identificada por meio da utilização do conceito de Ciclo da Informação, fundamento da Fotodocumentação. Concluímos que na fase inicial do ciclo, a identificação do produtor arquivístico é fundamental para a compreensão das funções e atividades que o relacionam aos documentos e às informações. Assim, a gênese arquivística se interconecta com os procedimentos de organização da informação, que se reflete na recuperação e na comunicação das informações, pois as fases se complementam. O encerramento do ciclo acontece com o uso do documento fotográfico, com o alcance da finalidade para a qual ele foi criado. O ciclo se reinicia quando novo documento fotográfico é criado, mesmo que tenha as mesmas características visuais, porque oriundo de outra função, outra finalidade. A gênese desse novo documento surgirá de um outro contexto de produção, dando início a um novo ciclo.