Introdução
A ditadura civil-militar brasileira, assim como as demais ditaduras que se instauraram na América Latina, se insere historicamente entre os traumáticos eventos do século XX. Naquele cenário, a violência de estado foi camuflada através de mecanismos do sistema, como a censura, e a tortura foi escondida e negada ao público (Fico, 2012).
Nos anos que se seguiram ao regime, implementado em 1964, o não enfrentamento de seus legados como a falta de julgamento de agentes públicos acusados por crimes, tornou deficiente o processo de transição para um sistema democrático. Com o fim da ditadura, em 1985, os primeiros anos da intitulada Nova República foram marcados pela ausência de investigações e por políticas de esquecimento (Motta, 2017).
Contudo, a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) ocorreu em um período distinto cujo cenário político brasileiro, de centro-esquerda, apresentava lideranças interessadas no avanço do processo de “justiça de transição” no país (Motta, 2017).
Nesse contexto, a CNV, instituída em 2012, inaugura um sistema governamental para apuração das graves violações contra os direitos humanos, praticadas durante o período ditatorial (Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2014). A partir da lei de criação da Comissão Nacional, foram instauradas no país comissões similares em níveis estaduais e municipais, bem como em diversas instituições, especialmente as de caráter público (UFSC, 2018).
Nesse sentido, com base no fenômeno da memória e do esquecimento, essa pesquisa tem como objetivo central analisar, a partir do prisma da Ciência a Informação, a disponibilização dos acervos digitais de seis comissões da verdade, estaduais e universitárias, do Sul do Brasil. Para tanto, foram definidos três objetivos específicos: a) Abordar o binômio “informação e memória”, a partir do prisma interdisciplinar da Ciência da Informação, em sua relação com os acervos da ditadura; b) Analisar em produção científica da área de Ciência da Informação discussões relacionadas a acervos digitais de ditaduras militares; e c) Levantar as formas de constituição e real disponibilização desses acervos.1
Essa temática de estudos bastante relevante no campo da Ciência da Informação (CI), que é o binômio informação e memória, se conecta nessa pesquisa a questões ligadas ao ciberespaço e a conceitos como patrimônio digital e virtualização da memória.
Os estudos que envolvem a memória, o patrimônio e o documento, se desenharam nos últimos anos como uma subárea na CI. Aliado a isso, o crescimento vertiginoso das tecnologias digitais compõe, entre outros, os desafios que a área vem se deparando desde fins do século XX (Araújo, 2018).
Compreende-se também, o quão essencial é a participação de profissionais e pesquisadores da área da Ciência da Informação em torno dessa temática, no sentido de fortalecer os pilares democráticos, por meio da garantia de acesso à informação e à memória. Isso porque a CI detém o aporte teórico e instrumental específico para o estudo da organização, gestão e difusão da informação, inerentes a essa área de estudo.
Metodologia
Para alcance do objetivo geral proposto optou-se por uma pesquisa de natureza qualitativa relacionada à seleção e ao estudo dos acervos, exploratória através do levantamento de dados (survey), e descritiva a partir da análise sobre a disponibilização dos acervos e descrição dos websites. Nesse sentido, os procedimentos técnicos adotados foram a pesquisa bibliográfica (para atendimento dos objetivos ‘a’ e ‘b’) e a pesquisa documental (para o objetivo ‘c’).
Para o objetivo específico “a” foram abordados como referencial teórico autores como Lévy (1999) com estudos sobre o ciberespaço, Dodebei (2006) com o conceito de patrimônio digital e Ricoeur (2007) em uma perspectiva sobre memória e esquecimento.
Para o objetivo específico “b”, serviram como fontes de informação bases de dados de relevância nacional e internacional:
1. Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal (Redalyc): publica artigos de revistas científicas latino americanas e da península ibérica;
2. Scopus: apresenta um número significativo de periódicos internacionais indexados na área multidisciplinar;
3. Base de Dados Referencial de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (Brapci): referência brasileira na indexação de artigos de periódicos da área da Ciência da Informação.
Optou-se por um termo de busca abrangente, “Ditadura” em português. Esse termo recuperou artigos com temas mais relevantes e relacionados com o objetivo dessa pesquisa, quando comparados aos resultados a partir das palavras-chave em inglês ou espanhol “dictadura” ou “dictatorship”.
O Quadro 1 apresenta os parâmetros do levantamento. O recorte temporal para essa revisão foi do período de 2012, quando foi instituída a Comissão Nacional da Verdade, até o ano de 2020.
Base de dados | Campo | Termo | Tipo de documento | Área | Qtd |
---|---|---|---|---|---|
Redalyc | Artículos | “Ditadura” | Artículos | Ciencias de la Información | 26 |
Brapci | Todos | “Ditadura” | Todos | Todas as áreas | 94 |
Scopus | Article title, Abstract, Keywords | “Ditadura” | Article “All open access” | Todas as áreas | 132 |
Total | 252 |
O total de 252 artigos foi exportado para verificação e exclusão das duplicatas e de outros idiomas que não o português, o inglês e o espanhol. Filtrando para 226 publicações. Para seleção de um corpus específico realizou-se a leitura dos títulos, resumos dos trabalhos e palavras-chave excluindo-se: 1. Documentos cujo tema não se referia a arquivos e acervos de períodos ditatoriais; 2. Documentos que não adviessem de pesquisas aplicadas, e 3. Documentos que, nos resumos, não apresentassem resultados da pesquisa. Após a aplicação desses critérios, resultaram 11 artigos para a análise, elencados a seguir nos resultados da pesquisa.
Por fim, no que se refere ao objetivo específico “c”, voltado ao aspecto aplicado desse estudo, para levantamento da disponibilização dos acervos digitais dessas comissões da verdade, foram realizadas pesquisas na internet, e contatos telefônicos e por e-mail em busca de informações. E, quando acessíveis os acervos, foram descritas as formas de consulta disponíveis e as opções de busca nas plataformas digitais. Do mesmo modo, os casos de impossibilidade de acesso também foram relatados.
Apresentação e análise de resultados
No que se refere ao binômio “informação e memória” essa pesquisa traz reflexões que abrangem o campo do conhecimento da memória social e a articulação entre memória, tecnologia e informação. Além disso, o tema envolve outros aspectos como a memória e o esquecimento (Ricoeur, 2007), e a memória no ciberespaço e sua virtualização (Lévy, 1999; Dodebei, 2006) que, nesse estudo, são inter-relacionados com a disponibilização de acervos digitais da ditadura na rede.
A memória arquivada e o silenciamento da memória: o esquecimento
Para o filósofo Paul Ricoeur (1913-2005), essa vinculação entre a memória e registro documental é explorada por meio do conceito de “memória arquivada”. Para ele, o arquivo, a partir de seu caráter de preservação da memória, pode ser tido como um espaço tanto físico como social.
Em torno da memória, Ricoeur (2007) aborda a perspectiva do esquecimento, que pode ser relacionada nesse estudo aos documentos gerados no escopo das comissões da verdade, já que os acervos são compostos, em parte, por documentos oficiais produzidos pelo regime ditatorial.
Tais fontes carregam consigo questões como a veracidade de seu conteúdo, na possibilidade de se tratarem de uma produção documental adulterada ou forjada, com intuito de encobertar crimes de estado. Ou seja, nesse caso, a intenção é que a criação de uma memória falsa, única e oficial, anule a memória dos fatos reais, propositalmente esquecidos (Passarin e Karpinski, 2019).
Esse papel ativo no esquecimento, o de cumplicidade apontado por Ricoeur (2007), deslinda uma questão dolorosa sobre o regime militar no Brasil, quando visto em sua realidade de uma ditadura civil-militar. Conforme exposto por Motta (2017), os civis tiveram um papel-chave durante o regime, para ele, o apoio da população se faz essencial para estabilidade de um governo, inclusive os ditatoriais.
Nesse cenário político do período ditatorial deve-se considerar também outra categoria, a dos excluídos das lutas políticas e dos que permaneceram indiferentes. Esses grupos não possuem memória do regime (Motta, 2017). Nesse campo de controle seletivo da memória está “o esquecimento comandado: a anistia”, que quando assume o papel de “esquecimento institucional”, gera uma proibição do passado, uma amnésia induzida (Ricoeur, 2007).
Nesse aspecto da memória e do esquecimento, o perdão histórico é consentido diante da expectativa e da confiança de que a memória não seja novamente silenciada, especialmente para as gerações futuras.
Ainda explorando a temática da memória e informação, tem-se a questão de sua articulação com a tecnologia, tema abordado no tópico a seguir.
A memória no ciberespaço: virtualização da memória e patrimônio digital
O filósofo Lévy (1999) trata dos impactos culturais provenientes do crescimento das tecnologias digitais de comunicação e informação. O autor entende o ciberespaço como a “rede” de comunicação resultante da conexão mundial entre os computadores. Já a cibercultura se refere ao conjunto de valores, práticas, técnicas (tanto intelectuais como materiais), de atitudes e de pensamento que se formam simultaneamente ao desenvolvimento do ciberespaço. Para o autor, a partir da digitalização, a informação se acerca de um caráter virtual e pode se tornar presente em todos os pontos da rede onde seja demandada.
Essa possibilidade de virtualização da memória está relacionada ao objeto dessa pesquisa no que se refere à possibilidade de disponibilização do conteúdo dos acervos em plataformas virtuais. Nesse aspecto, conforme Dodebei (2006), os documentos digitalizados e/ou virtualizados podem ser considerados como uma “memória arquivada” no ciberespaço, transformando-se em patrimônio digital.
A salvaguarda e o acesso ao patrimônio mundial e à memória no espaço virtual apresentam-se como um desafio e envolvem questões políticas, econômicas e culturais. Essa disponibilização de fontes em ambientes virtuais se torna uma maneira de coletivizar acervos que até então, em decorrência de sua fragilidade, eram destinados somente à preservação (Cavalcante, 2007).
Contudo, a disponibilização de documentos virtuais em ambiente Web não resolve a questão social do esquecimento. Para Dodebei e Gouveia (2008), a discussão entre lembrar e esquecer no ciberespaço ainda é um exercício em curso. Ao longo do século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, houve uma preocupação em se produzir registros de memória. A exemplo do Holocausto e das ditaduras militares na América Latina, a partir dos quais surgiram instituições com o objetivo de manter presente essa temática da memória.
Outro ponto a se considerar quando a referência é patrimônio digital é a acessibilidade a partir de um viés social. Existem muitas limitações em torno da democratização e salvaguarda desse patrimônio em países africanos e latino-americanos, por exemplo. Devido à sua diversidade linguística, cultural e de exclusão digital (Cavalcante, 2007).
Como justificado nessa pesquisa, essa relação entre memória e arquivos da ditadura civil-militar brasileira vem sendo alvo de estudos e de produção científica. Com o intuito de demonstrar os escritos recentes sobre o tema, o tópico seguinte elenca e descreve os resultados da pesquisa bibliográfica.
Acervos da ditadura em plataformas digitais na produção científica de da Ciência da Informação
Com intuito de responder o objetivo específico “b”, é apresentada nesse tópico a análise da produção científica selecionada sobre Memória e Ditadura Civil-Militar, com um corpus de 11 artigos relacionados ao tema dessa pesquisa elencados (Quadro 2).
Autor | Título | Recuperado em | |
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1. | Moura e Karpinski (2020) | “Memória e Ditadura Militar no Brasil: a produção científica do tema na Ciência da Informação” | Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação - Brapci |
2. | Di Pietro (2020) | “Ocorrências típicas de fotografias relacionadas à violação dos direitos humanos das ditaduras militares Latino-Americanas” | Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação - Redalyc |
3. | Tenaglia e Rodrigues (2020) | “Negação, ocultamento e (falta de) gestão documental: o acesso aos arquivos nos relatórios finais das comissões da verdade no Brasil” | Informação & Informação - Brapci |
4. | Passarin e Karpinski (2019) | “Arquivos da ditadura e acesso à informação: Acervo memória e direitos humanos da Universidade Federal de Santa Catarina” | Perspectivas em Ciência da Informação - Scopus |
5. | Orrico e Silva (2019) | “Divulgação científica nos arquivos do Brasil: representação arquivística na construção da memória e identidade” | Revista Em Questão - Redalyc |
6. | Tenaglia e Rodrigues (2018a) | “As recomendações das comissões da verdade no Brasil sobre os arquivos da ditadura militar (1964-1985): uma análise dos relatórios finais” | Revista Em Questão - Redalyc |
7. | Salcedo e Costa (2018)) | “Rosas de chumbo: da censura ao acesso informacional de documentos sigilosos na ditadura brasileira” | Informação & Informação - Brapci |
8. | Tenaglia e Rodrigues (2018b)) | “Comissões da Verdade Brasileiras: das dificuldades de acesso aos arquivos às parcerias com as universidades” | XIX Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação - Brapci |
9. | Massoni et al. (2015) | “Transparência no acesso à informação e as memórias virtuais da ditadura militar no site Brasil: Nunca Mais Digit@l” | Biblionline - Brapci |
10. | Groppo (2014) | “Os arquivos das associações de defesa dos direitos humanos no Chile e na Argentina” | Acervo - Revista do Arquivo Nacional - Brapci |
11. | Rodrigues (2011) | “Legislação de Acesso aos Arquivos no Brasil: Um terreno de disputas políticas pela memória e pela história” | Acervo - Revista do Arquivo Nacional - Brapci |
Após a análise dos estudos selecionados, se fez possível a definição dos seguintes critérios para a comparação entre os artigos: Coluna 1. Apresenta pesquisa em torno de acervos arquivísticos e construção da memória; Coluna 2. Trata de documentos que envolvem a temática específica de ditaduras militares; Coluna 3. Aborda aspectos da disponibilização desses acervos em plataformas digitais.
Trabalho | C1 | C2 | C3 |
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Moura e Karpinski (2020) | XX | XX | -- |
Di Pietro (2020)) | XX | XX | -- |
Tenaglia e Rodrigues (2020) | XX | XX | -- |
Passarin e Karpinski (2019) | XX | XX | XX |
Orrico e Silva (2019) | XX | XX | -- |
Tenaglia e Rodrigues (2018a) | XX | XX | -- |
Salcedo e Costa (2018) | XX | XX | -- |
Tenaglia e Rodrigues (2018b) | XX | XX | -- |
Massoni et al. (2015) | XX | XX | XX |
Groppo (2014) | XX | XX | -- |
Rodrigues (2011) | XX | XX | -- |
Conforme exposto, apenas esses dois trabalhos atenderam a todos os critérios de correspondência com a temática dessa pesquisa. Nesse sentido, esses dados evidenciam a carência de trabalhos sobre o tema, especialmente no campo da Ciência da Informação.
No tópico a seguir são apresentados os acervos digitais das comissões da verdade analisadas e investigada a sua acessibilidade.
Disponibilização e acesso aos acervos digitais das comissões da verdade do sul do Brasil
Este item se refere ao objetivo específico “c”. Trata do levantamento sobre a forma de disponibilização dos conjuntos documentais e as condições de acessibilidade dos acervos digitais das seis comissões da verdade, tanto estaduais como universitárias, delimitadas geograficamente para o Sul do Brasil. No Quadro 4 estão elencadas as respectivas comissões, as formas de contato realizadas e as informações obtidas.
Nome da Comissão | Localização da informação | Situação de acesso ao acervo |
---|---|---|
1. Comissão Estadual da Verdade - Teresa Urban (CEV-PR) | Não foram localizadas informações na internet, foi necessário contato telefônico e por e-mail. | Conforme resposta por e-mail, o conjunto documental encontra-se em processo de digitalização e a consulta pode ser realizada somente fisicamente e mediante autorização do Comitê Estadual da CEV-PR. |
2. Comissão da Verdade da Universidade Federal do Paraná (CEV-UFPR) | A comissão possui um portal na internet (link disponível na referência) com informações a respeito de suas atividades, contudo, o acervo não está disponível nessa página (UFPR, 2021). Para obtenção de informações, foram realizadas tentativas de contato através de e-mail. | A partir de buscas na internet não foi possível localizar informações a respeito do atual processo de constituição e digitalização desse acervo. As tentativas de contato também não foram respondidas. |
3. Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright (CEV-SC) | Foram realizadas buscas na internet, por e-mail e contatos telefônicos. | Não foram encontradas informações a respeito da atual fase de digitalização do arquivo. |
4. Comissão do Acervo sobre Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina | A partir de buscas na internet foi localizada uma plataforma em um site específico para o acervo (UFSC, 2021). | O acervo digital dispõe de ferramentas de pesquisa e verifica-se um processo de gestão e organização documental. |
5. Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul (CEV-RS) | Foram realizadas buscas na internet e tentativas de contato por e-mail. | Verificou-se que o acervo está abrigado no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Observa-se que o fundo passou por um tratamento técnico arquivístico, e se faz possível o acesso virtual aos arquivos (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, 2021). |
6. Comissão de Memória e Verdade da Universidade Federal de Santa Maria (CV-UFSM) | Foram realizadas buscas na internet e tentativas de contato por e-mail. | Não foi localizado na internet um site específico da comissão nem vinculação de perfil em redes sociais. Também não houve retorno das tentativas de contato. |
Observa-se, portanto, que das seis comissões analisadas, apenas duas disponibilizam acesso para consulta digital aos seus acervos, e uma permite a consulta apenas fisicamente e mediante autorização. Dessa forma, é demonstrada a dificuldade de acesso e a deficiência na disponibilização ao público da maior parte desses arquivos, demonstrando a necessidade de tornar acessíveis seus conteúdos no sentido de democratizar suas informações.
Acervos digitais da ditadura: discussões em trânsito
Observando os dados levantados nas subseções anteriores, nota-se que apesar das dificuldades no processo de obtenção de informações a respeito dos acervos de algumas dessas comissões, as informações foram relevantes ao objetivo proposto. Entende-se que a pesquisa aplicada, apesar de suas limitações, contribui para as reflexões acerca do alcance dos conceitos de informação e memória na interface dos documentos levantados pelas comissões da verdade do Sul do Brasil.
Nesse aspecto, a informação compreendida como objeto científico da Ciência da Informação possibilita um diálogo interdisciplinar do fenômeno “memória” com os objetos de sua materialidade, os documentos. Em distintos suportes, os documentos podem servir tanto para a lembrança quanto para o esquecimento. Servem para a lembrança quando registrados, geridos, preservados e acessados. Ao esquecimento, quando são deliberadamente forjados, omitidos, descartados ou inacessíveis (Karpinski e Vieira, 2020).
Assim, compreender a informação como uma “coisa” insere a Ciência da Informação no debate acerca dos processos de produção, organização, gestão, preservação e acesso às fontes documentais sobre um período importante da história do país. A informação contida nesses arquivos da ditadura, sem o devido processamento, está sujeita a um caráter passivo, como abordado por Buckland (1991) no sentido de “informação como coisa”. Ou seja, essa fonte documental se tratada como evidência, sem a devida problematização, estará sujeita à percepção de quem a absorve ou à manipulação de quem a produz. Podendo inclusive ser alterada, destruída ou escondida. Ainda nesse sentido, o processo de gestão desses documentos e sua organização em acervos temáticos, podem fornecer uma perspectiva de análise a essas fontes, além de inúmeras possibilidades de investigação a partir de pesquisas possibilitadas pela acessibilidade a essa informação.
A dificuldade encontrada na busca por informações a respeito de alguns acervos das comissões analisadas reforça a conclusão obtida na investigação das comissões da verdade do Brasil apresentada na tese de Tenaglia (2019: 204): “A grande maioria das páginas online que identificamos outrora já não está “no ar” e muitos dos websites oficiais, apresentados nos relatórios finais, não funcionam. Uma rápida pesquisa no Facebook sobre “comissões da verdade” localiza pouquíssimas páginas, a maior parte delas sem atualização há muitos meses”.
Os estudos de Ricoeur (2007) também apontam para a perpetuação de situações históricas em decorrência do esquecimento, enquanto uma prática institucional. Daí a importância de disponibilizar ao público acervos relacionados ao regime, como os centralizados pelas referidas comissões nesse estudo. Nesse sentido, além de garantir à população seu direito fundamental de acesso à informação, essa disponibilização abre espaço para a produção de pesquisas e formação de pensamento crítico em torno da ditadura civil-militar brasileira. Em especial para a análise de seus reflexos no tempo presente.
Considerações finais
Por razões políticas e acadêmicas se fazem necessárias reflexões em torno da ditadura militar para fortalecer a luta democrática no país (Motta, 2017). Um importante avanço nesse sentido foi a criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012 e o surgimento das demais comissões derivadas em todo o Brasil. Os registros levantados por essas comissões geraram diversos arquivos, e o estudo a respeito de sua disponibilização e acesso foi o objeto central dessa pesquisa, especificamente no que se refere aos acervos digitais das comissões da verdade dos três estados do sul do país.
Os resultados da análise demonstraram que apenas dois dos seis acervos investigados apresentam arquivos digitalizados disponíveis para consulta online, e um somente para consulta física. Destaca-se também a dificuldade na obtenção de informações a respeito da situação dos demais acervos.
Quando digitalizados e disponibilizados no ciberespaço, acervos como esses, ampliam imensuravelmente seu alcance de acesso, antes limitado ao espaço físico, através de consultas locais e com deterioração dos documentos devido à natureza do suporte em papel.
Em relação à análise da produção científica a respeito de acervos de ditaduras militares em plataformas digitais, levantou-se que a temática é consideravelmente escassa na produção científica da área de Ciência da Informação.
Nesse sentido, a partir dessa pesquisa foi verificada a possibilidade/necessidade de novos estudos em torno do tema. Além da importância político-social em manter presentes estudos que dizem respeito às ditaduras militares latino-americanas. Especialmente para reflexões críticas dos legamos desses governos, a exemplo da emergência, nos últimos anos, de movimentos sociais favoráveis à volta de um regime ditatorial no Brasil.