Sumário: I. Introdução. II. Procedimentos metodológicos. III. Resultados e discussão. IV. Considerações finais. V. Referências.
I. Introdução
A constitucionalização do direito ao esporte trata-se de um fenômeno recente, originado a partir das Constituições de Cuba (1976a) e Portugal (1976a) (Pachot Zambrana 2016). No ano de 2018, como apontam Canan e Starepravo (2020), dentre um total de 14 países que apresentavam expressamente o direito constitucional ao esporte, o único não latino-americano ou não de língua portuguesa era o Egito. Os demais eram Angola (2010), Bolívia (2009), Brasil (1988), Cabo Verde (1980), Colômbia (1991), Cuba (1976b), Equador (2008), México (1917), Moçambique (2004), Nicarágua, Portugal, República Dominicana e Venezuela. Nesse rol não são inclusos os países que regulam constitucionalmente a matéria do esporte, mas que não o estabelecem expressamente como um direito.
Flores Fernández (2014; 2015; 2019), Castilla (2015) e Pachot Zambrana (2016) também apontam para prevalência latino-americana em relação ao direito constitucional ao esporte, ao passo que Meirim (2006) e Bem (2014) o tratam como um valor lusófono. Mesmo tendo em conta que a constitucionalização de um direito não significa sua garantia, é consenso entre os autores que contribui para sua valorização social e reivindicação em âmbito jurídico.
Daí a importância em conhecer, compreender e/ou construir sua dogmática ou desenvolvimento técnico-jurídico, que abrange os elementos constitutivos do direito, expressamente apontados por Pachot Zambrana (2008; 2016) como natureza jurídica, titulares, objeto, núcleo essencial e limites. Levando em conta também os trabalhos de Meirim (2006), Sarlet (2012), Toledo (2014), Flores Fernández (2014; 2015; 2019) e Castilla (2015), percebe-se que ao exercício de interpretação/construção dogmática podem ser acrescidos como elementos constitutivos, os destinatários, a institucionalidade e a fundamentalidade.
Resumidamente, com base nos autores citados, compreende-se que titular é aquele a quem deve ser garantido o direito; destinatário é quem deve garantir o direito; objeto refere-se ao que deve ser garantido; núcleo essencial diz respeito à parte indispensável do objeto, que não pode ser limitada pelos destinatários; limites referem-se a possibilidades de não garantia do direito por parte dos destinatários; natureza jurídica é a espécie/dimensão de direito fundamental do direito em tela; institucionalidade corresponde à concretude da norma, ao quanto ela subsidia a compreensão a respeito de como exercer e garantir o direito; fundamentalidade remete ao quão essencial é o direito para o Estado democrático e para a dignidade humana.
Esse tipo de análise pode ser construído teoricamente ou tendo como base um ordenamento jurídico (ou parte dele, como a Constituição ou uma lei, por exemplo) ou a comparação entre ordenamentos. O exercício comparado permite que se identifique como diferentes países interpretam e tratam determinado objeto, contribuindo para sua compreensão teórica e para o aperfeiçoamento dos ordenamentos jurídicos internos. Contribui também para verificação de padrões e proximidades jus-políticas entre os países, possibilitando a constituição de redes de discussão e construção coletiva.
Entretanto, apesar de já haver algum conhecimento acadêmico-científico produzido em relação ao direito ao esporte, verifica-se que esse direito ainda é bastante jovem (Cazorla Prieto 2013; Pachot Zambrana 2008; 2016; Castilla 2015) e sua interpretação, compreensão e construção acadêmico-científica ainda não informam suficientemente a sociedade em relação ao seu exercício e garantia (Pachot Zambrana 2008; 2016).
Embora esse quadro venha se modificando nos últimos anos, em busca de aprimoramento jurídico do direito ao esporte no âmbito dos países latino-americanos, como identifica-se nos trabalhos do próprio Pachot Zambrana e também de Serrano Lucero (2011), Flores Fernández (2014; 2015; 2016), Castilla (2015), Venegas Álvarez (2019), a lacuna acadêmico-científica ainda mostra-se bastante incidente no contexto de países de língua portuguesa. Em relação a esses países, apesar de alguns autores, tais como Miranda (2011), Bem (2014), Toledo (2014), Santos e Freitas (2015) e Fachada (2017) abordarem perifericamente o tema, apenas Meirim (2006) discute com maior profundidade questões dogmáticas do direito ao esporte.
Tendo em vista a existência de blocos político-culturais, a fertilidade de análises sob a lógica comparada, a prevalência do direito constitucional ao esporte no âmbito latino-americano e de países de língua portuguesa e a lacuna acadêmica existente especialmente em relação ao segundo grupo, chegou-se à questão-problema do presente artigo, que indaga: ¿quais são os padrões e as diferenças entre a previsão do direito ao esporte nas Constituições dos países de língua portuguesa?
Para responder à esta questão, adotou-se como objetivo geral construir a dogmática do direito ao esporte a partir da análise comparada das Constituições dos 10 países de língua portuguesa. Especificamente, busca-se compreender e comparar as características gerais das previsões constitucionais do esporte e direito ao esporte, identificando semelhanças e diferenças entre as Constituições e possíveis pontos em que uma pode contribuir para o aperfeiçoamento da outra.
Para tanto, parte-se da hipótese de que os ordenamentos jurídicos, Constituições nacionais e, principalmente, as ainda muito jovens previsões do direito ao esporte não são perfeitas, e podem ser aprimoradas por de múltiplas vias, dentre as quais, a de análise comparada. A partir do objetivo proposto e dos consequentes pontos comuns e divergentes identificados no grupo de Constituições analisadas, assim, espera-se que o presente artigo possa contribuir para subsidiar o aperfeiçoamento dos ordenamentos jurídicos internos de cada país, a construção de políticas públicas em prol da garantia do direito ao esporte e o fortalecimento de diálogos e redes de pesquisa e ação em função do aperfeiçoamento científico, jurídico e material ou práxico desse direito.
II. Procedimentos metodológicos
Adotou-se uma pesquisa de caráter descritivo-interpretativo e abordagem quali-quantitativa, pautada na análise de documentos (Gil 2008). Foram consultadas as Constituições de Angola (2010), Brasil (1988), Cabo Verde (1992), Guiné-Bissau (1996), Guiné Equatorial (2012), Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993),1 Moçambique (2004), Portugal (1976b), São Tomé e Príncipe (2003) e Timor-Leste (2002), todos os 10 países que apresentam o português como idioma ou um dos idiomas oficiais. Segundo a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (2019), eles são irmanados não apenas pelo idioma, mas também por uma herança histórica e visão compartilhada de desenvolvimento e democracia, o que permite entendê-los enquanto bloco cultural e político. A coleta acolheu a última versão de cada Constituição até o mês de junho de 2019, incluindo, portanto, emendas, revisões ou outros procedimentos de atualização dos textos originais.
Foram buscadas informações sobre o esporte e direito ao esporte a partir dos descritores “esport”, “físic”, “recre”, “atlet” e “ginast”, tendo em vista identificar os dispositivos constitucionais que tratassem do esporte, educação física, cultura física, atividade física, exercício físico, recreação, atletismo, ginástica, entre outros termos derivados dos prefixos adotados, tais como desporto, desportivo, atlético, etc.
Além da seleção do texto sobre o esporte em si, foi identificada sua localização dentro da Constituição, no que diz respeito ao título, capítulo ou seção. A análise comparativa deu-se em termos de identificação de linhas gerais, padrões e diferenças entre as Constituições, não apenas sobre o direito ao esporte, mas ao esporte de maneira geral. Nessa ótica, questões conceituais ou o local em que a matéria é regulada mostram-se importantes para compreensão da forma como determinado país perspectiva o esporte e, consequentemente, o direito ao esporte. Em termos quantitativos, a análise pautou-se em frequência absoluta e relativa. Em âmbito qualitativo, destinou-se especificamente à identificação ou interpretação dos elementos constitutivos da dogmática do direito ao esporte.
Ou seja, em âmbito qualitativo, buscou-se construir a dogmática do direito ao esporte a partir das Constituições dos países de língua portuguesa. Os elementos constitutivos do direito nem sempre aparecem expressos em todas elas, de forma que cada uma poderia ser objeto de uma análise interpretativa específica e pormenorizada, contemplando, em conjunto, outras fontes do direito, como as leis e costumes locais, por exemplo. Entretanto, tendo em vista a perspectiva comparada aqui proposta, buscando identificar a existência ou não de padrões em âmbito dos países de língua portuguesa, a análise interpretativa se dá de maneira mais generalizada, atendo-se exclusivamente aos textos constitucionais, sem levar em conta ordenamentos jurídicos infraconstitucionais ou outras fontes.
III. Resultados e discussão
1. Características gerais do esporte e do direito ao esporte nas Constituições dos países de língua portuguesa
Os textos sobre o esporte nas Constituições dos países de língua portuguesa encontram-se transcritos no quadro 01. Apenas as Constituições de Guiné Equatorial (2012) e Timor-Leste (2002), que representam 20% do total, não apresentam qualquer tipo de previsão relacionada ao esporte.
País / ano | Dispositivos sobre o esporte |
Angola (2010) |
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Brasil (1988) |
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Cabo Verde (1992) |
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Guiné-Bissau (1996) |
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Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993) |
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Moçambique (2004) |
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Portugal (1976b) |
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São Tomé e Príncipe (2003) |
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Fonte: Constituições citadas, adaptado pelos autores.
O fato da maioria das Constituições analisadas prever em alguma medida o esporte em âmbito constitucional corrobora a constatação de Pachot Zambrana (2016) de que há uma crescente tendência internacional de valorização e relevância social do esporte, além do entendimento de Meirim (2006) e Bem (2014), de que o tema goza de especial prestígio nos países de língua portuguesa.
No entanto, ressalvas devem ser feitas. A previsão do direito de imagem a atletas, encontrada nas Constituições de Angola (2010) e Brasil (1988) não se direciona à regulação do esporte. Previsões genéricas que tratam de direitos e liberdades gerais aos jovens, como as encontradas nas Constituições de Angola (2010), Cabo Verde (1992), Moçambique (2004) e Portugal (1976b), ou a previsão que adota o esporte como um dos meios de realização do direito à saúde, na Constituição portuguesa, da mesma forma, não se tratam de normas que regulam o esporte em si, ainda que dêem indícios sobre algumas das funções sociais sob as quais é concebido. Se não fossem complementadas por dispositivos que regulam o esporte propriamente dito, seriam insuficientes para informar a sociedade sobre o tema. Somente as Constituições de Guiné-Bissau (1996) e São Tomé e Príncipe (2003) não dedicam um artigo próprio ao esporte, mas o fazem a partir de um inciso que estabelece um dever específico ao Estado nessa seara.
Dos 8 (100%) países de língua portuguesa que preveem constitucionalmente o esporte de uma maneira específica, 5 (62.5%) são africanos, 1 (12.5%) americano, 1 (12.5%) asiático e 1 (12.5%) europeu. O direito ao esporte é estabelecido expressamente por 5 (62.5%) Constituições, sendo Angola (2010), Brasil (1988), Cabo Verde (1992), Moçambique (2004) e Portugal (1976b). No tocante à divisão continental, tem-se que 3 são africanos (60%), 1 americano (20%) e 1 europeu (20%).
Se levado em conta o total de 14 Constituições que prevê expressamente o direito ao esporte (Canan, Starepravo, 2020), verifica-se que as 5 de língua portuguesa representam 35.71%. Outras 8 são de língua espanhola, que representam 57.14% das 14. Tendo em conta os blocos de países por idioma, em termos absolutos, o maior contingente de Constituições que prevê expressamente o direito ao esporte encontra-se em países de língua espanhola, mas, em termos relativos/percentuais sobressaem-se os países de língua portuguesa. Veja-se:
As 5 Constituições de países de língua portuguesa representam 50% do total de 10 países desse idioma, ao passo que as 8 de países de língua espanhola representam 36.36% do total de 22 países desse idioma (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Equador, Espanha, Guatemala, Guiana, Guiné Equatorial, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai e Venezuela). Se esse dado não chega a confirmar o entendimento de Meirim (2006) e Bem (2014) de que o direito constitucional ao esporte é um valor lusófono, ao menos indica que se trata de um valor bastante importante nesse bloco de países.
Ao mesmo tempo, 7 (87.5%) Constituições dos países de língua portuguesa, incluídas as 5 que preveem expressamente o direito ao esporte, estabelecem um dever ao Estado em relação ao esporte. Apenas Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993) não o faz, embora aluda à autonomia relativa à política esportiva e subsídios ao esporte. As 5 Constituições que estabelecem expressamente o direito ao esporte representam 71.43% das 7 que estabelecem um dever ao Estado/poder público.
Bem (2014) compreende que a previsão constitucional de um dever do Estado é suficiente para se presumir o direito, mesmo que este não seja expressamente estabelecido. Cazorla Prieto (2013), Castilla (2015) e Pachot Zambrana (2016), por outro lado, compreendem que a previsão exclusiva do dever não permite que se interprete pela existência de um direito implícito.
A discussão perpassa a questão da fundamentalidade, que é maior no caso de uma previsão expressa do direito. A potencialidade de exigência da pessoa frente ao Estado é indubitavelmente maior no caso de haver um direito expresso. Ressalta-se que em casos de apenas haver inserção da regulação do esporte no título/capítulo destinado à previsão de direitos, mas sem que haja um direito ao esporte expresso, sua existência não deve presumida (Bem 2014). Dessa forma, para que não haja dúvida quanto à existência desse direito em cada país, ele precise ser expressamente estabelecido, como fazem as Constituições de Angola (2010), Brasil (1988), Cabo Verde (1992), Moçambique (2004) e Portugal (1976b).
Ainda assim, a posição em que o esporte é previsto dentro das Constituições pode creditar-lhe legitimidade. No caso do direito ao esporte, a posição pode creditar-lhe também fundamentalidade formal (Sarlet 2012). Dentre as 8 que regulam o esporte, 5 (62.5%) o fazem dentro de um título ou capítulo destinado à previsão de direitos. São exceções Guiné-Bissau (1996), Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993) e Brasil (1988), embora a primeira preveja o esporte dentro do título responsável pelo estabelecimento de princípios fundamentais e o último dentro do título que regula a ordem social. Sarlet (2012), Bem (2014) e Santos e Freitas (2015) entendem o título da ordem social como espaço constitucional destinado ao complemento ou desdobramento de direitos sociais, que, no caso brasileiro, são expressamente previstos no artigo 6 do capítulo II (Dos direitos sociais) do título II (Dos direitos e garantias fundamentais), onde o esporte não está expresso. Se consideradas apenas as 5 Constituições que estabelecem expressamente o direito ao esporte, verifica-se que 4 (80%) o fazem dentro de um título ou capítulo destinado à previsão de direitos, exceto, por óbvio, o Brasil.
Em relação ao conteúdo material dos textos constitucionais, o ponto inicial a ser abordado diz respeito à abrangência do termo “esporte”. O quadro 2 apresenta termos ou expressões relativas a práticas física/corporais que aparecem associadas ou em substituição ao termo esporte. O esforço de compreensão conceitual mostra-se importante para que não se trate fenômenos distintos como semelhantes (Cazorla Prieto 2013; Meirim 2006; Castilla 2015; Pachot Zambrana 2016; Canan 2018; Flores Fernández 2014; 2015; 2019; Venegas Álvarez, 2019). Como precisamente coloca Meirim (2006, 155), “[...] se diferentes forem os conceitos em causa, diferente será também o âmbito de proteção das normas [...]”.
Termo/expressão | Frequência e percentual | Constituições |
Esporte e cultura física | 3 (37.5%) | Cabo Verde (1992), Guiné-Bissau (1996) e São Tomé e Príncipe (2003) |
Somente esporte | 2 (25%) | Brasil (1988) e Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993) |
Esporte, cultura física e educação física | 2 (25%) | Moçambique (2004) e Portugal (1976b) |
Esporte e educação física | 1 (12.5%) | Angola (2010) |
Total | 8 (100%) | Todas |
Fonte: elaboração própria.
Se a análise levar em conta somente o termo/expressão isolado, identifica-se 8 (100%) vezes esporte, 5 (62.5%) vezes cultura física e 3 (37.5%) vezes educação física. A Constituição do Brasil não trata expressamente da educação física, mas prevê priorização de destinação de recursos ao que denomina “desporto educacional”. Termos relacionados à recreação, recreio, lazer ou tempo livre, com maior ou menor relação direta com o esporte, também se mostram incidentes em 5 (62.5%) Constituições, sendo elas as de Angola (2010), Brasil (1988), Cabo Verde (1992), Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993) e Moçambique (2004).
Ainda que a simples interpretação literal dos termos ou expressões não seja suficiente para indicar especificidades da previsão do esporte em cada Constituição, serve como primeiro ponto para verificação de sua abrangência. Percebe-se que o esporte tem sido perspectivado pela sua ótica estrita de prática corporal competitiva e regrada institucionalmente ideia que encontra um de seus maiores expoentes teóricos em Parlebas (2001).
Essa perspectiva é diferente da abrangente, que entende o esporte como sinônimo de práticas físicas/corporais em geral (Tubino 1987; Hartmann-Tews 2015; Canan, Starepravo 2019). Justamente pelo fato do esporte ser associado a alguma outra expressão na maioria das Constituições analisadas é que percebe-se que vem sendo compreendido em perspectiva estrita. Na prática, isso significa que, no bloco de países em análise, é importante a conjugação do esporte a outra expressão para que ele não seja assegurado à sociedade apenas em seu aspecto competitivo formal.
Em outras palavras, a complementaridade entre esporte e outra expressão indica uma preocupação ampla com práticas físicas/corporais em geral, comumente abarcadas pela expressão cultura física. Na Constituição do Brasil (1988) há menção a “práticas desportivas não-formais”, que, da mesma forma, podem ser entendidas para além do âmbito do esporte competitivo institucionalizado.
Meirim (2006) corrobora essa assertiva, inclusive a exemplificando a partir de uma proposta de revisão da Constituição portuguesa, que substituiria “cultura física” por “educação física”, mas que fora rejeitada pela maioria dos congressistas, com o argumento de que a cultura física seria o fenômeno maior, enquanto a educação física teria uma relação estrita com o sistema educacional. Essa perspectiva salienta a importância de que o direito, embora seja tradicionalmente tratado como direito ao “esporte”, não perca de vista nas Constituições que deve tratar-se de um direito à cultura física e à educação física.
A última é particularmente identificada em sua importância atribuída pelas Constituições como importante locus do esporte e da cultura física. Sua previsão expressa, a relação entre esporte e direitos dos jovens em algumas Constituições, a corresponsabilização de escolas como destinatárias para garantia do direito ao esporte nas Constituições de Cabo Verde (1992), Moçambique (2004) e Portugal (1976b) e a priorização do “desporto educacional” na Constituição brasileira a reforçam como espaço por excelência para o exercício do direito ao esporte.
Ou seja, percebe-se a educação física como importante e talvez o mais importante locus de exercício e garantia do direito ao esporte e à cultura física nos países de língua portuguesa. Meirim (2006) e Flores Fernández (2015) compreendem no mesmo sentido. A segunda autora, inclusive, cita a Lei Geral de Cultura Física e Esporte do México, que, em seu artigo 5o., inciso I, estabelece a educação física como “O meio fundamental para adquirir, transmitir e acrescentar a cultura física” (México 2013).
Essa assertiva da lei mexicana, inclusive, deixa claro que a educação física, assim como o direito ao esporte em si, não se restringe às práticas competitivas, abarcando, na realidade, a apresentação e inserção dos escolares no universo da cultura física, como já dirimia o Manifesto Mundial da Educação Física da Federação Internacional de Educação Física (1970). O direito ao esporte, assim, ao menos no que diz respeito à educação física escolar, acaba inclusive recebendo dupla proteção, por um lado da previsão do direito ao esporte e, por outro, da previsão do direito à educação, inclusive mais concreto e universalizado do que o primeiro.
Daí também a importância das Constituições expressamente associarem a expressão “educação física” ao direito ao esporte, diminuindo os riscos de que essa disciplina deixe de integrar os currículos escolares. Ao mesmo tempo, dentro da lógica de visão ampliada do direito ao esporte, ressalta-se a importância da previsão da expressão “cultura física”, tendo em vista evitar que a educação física e as políticas esportivas em geral restrinjam-se ao esporte competitivo e ao atendimento prioritário ou até exclusivo aos atletas de elite, fato já ocorrido no passado, como aponta Tubino (1987) e o próprio Manifesto Mundial da Educação Física (Federação Internacional de Educação Física 1970).
2. A dogmática do direito constitucional ao esporte nos países de língua portuguesa em perspectiva comparada
Questões como a abrangência da interpretação dada ao esporte e a posição na qual encontra-se nos textos constitucionais contribuem para intepretação do direito ao esporte, mas sua dogmática é construída concretamente a partir da análise de seus elementos constitutivos, de sua institucionalidade e de sua fundamentalidade.
Tendo os elementos constitutivos do direito como categorias de análise, verifica-se inicialmente que, no cômputo geral das Constituições dos países de língua portuguesa, o destinatário principal, à primeira vista, seria o Estado. Apenas a Constituição de Cabo Verde (1992) adota a expressão “poderes públicos”, atribuindo o dever de fomento ao esporte a um conjunto de instituições destinadas ao atendimento e defesa do interesse público. A Constituição de Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993), mesmo não prevendo expressamente o direito ao esporte, atribui ao seu governo (tratasse-se Macau de um país independente, o Governo seria o próprio Estado) a responsabilidade de definição da política esportiva. Na Constituição do Brasil (1988), embora o dever de fomento ao esporte seja estabelecido ao Estado, existe também, no mesmo artigo, a atribuição de incentivo ao lazer pelo poder público.
Contudo, como adverte Meirim (2006), uma atribuição de dever ao Estado não significa a estatização do esporte, até porque o conceito de Estado é variável, ora abrangendo o conjunto de entes, autoridades e entidades públicas, ora circunscrevendo-se à pessoa coletiva de direito público representada pelo governo. No texto esportivo da Constituição de Portugal (1976b), para o autor, o Estado é concebido no sentido amplo, abrangendo todo o rol de entes públicos. Em outros termos, Estado confunde-se com poder público, o que parece comum na maioria das demais Constituições em análise. Dessa forma, tendo em conta as Constituições dos países de língua portuguesa, é possível se interpretar que o principal destinatário do direito ao esporte é o poder público.
Essa ideia de poder público é reforçada porque encontram-se outras instituições elencadas pelas Constituições em apreço, muitas das quais que exercem funções públicas, como as escolas e as instituições dirigentes esportivas, por exemplo. As Constituições de Cabo Verde (1992), Moçambique (2004) e Portugal (1976b) elegem expressamente escolas e instituições esportivas como parceiras. Para Meirim (2006), as escolas particulares estão inclusas. As Constituições de Angola (2010), Brasil (1988), Cabo Verde (1992), Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993), Moçambique (2004) e Portugal (1976b) incentivam a atuação de associações esportivas privadas, o que significa não apenas uma possibilidade de parceria junto ao Estado, mas também de diminuição de sua atuação. Ao mesmo tempo, representa a própria garantia do direito, no sentido de liberdade de associação para prática. Canan, Rojo e Starepravo (2019) apresentam e analisam exemplos concretos de políticas multicêntricas e regulatórias tendo em vista a garantia do direito ao esporte, inclusive reforçando o papel de instituições esportivas, principalmente dirigentes, nesse sentido.
Em relação aos titulares, há um padrão nas Constituições, abrangendo todas as pessoas. Entendimento idêntico é apresentado por Meirim (2006) em relação a Portugal, Bem (2014) ao Brasil, Paipe (2015) a Moçambique, Pachot Zambrana (2008; 2016), Flores Fernández (2014; 2015; 2019), Castilla (2015) e Venegas Álvares (2019) a países latino-americanos que estabelecem o direito constitucional ao esporte e Canan e Starepravo (2020) a países em geral que estabelecem este direito. Nas Constituições dos países de língua portuguesa, é identificada, ainda, especial atenção ao público juvenil, atendido predominantemente a partir da auto-organização estimulada pelo Estado, da participação das escolas como destinatárias corresponsáveis e da associação da educação física ao esporte.
O objeto, como advertem Meirim (2006), Pachot Zambrana (2008; 2016), Flores Fernández (2014; 2015; 2019), Castilla (2015) e Venegas Álvarez (2019) não pode ser simplesmente o esporte, sem que antes haja uma especificação mínima sobre seu conceito e abrangência. Como já visto, na maioria das Constituições analisadas, o esporte é associado a outros termos/expressões que, ao mesmo tempo em que restringem seu conceito, ampliam a abrangência do direito. Dito de outro modo, a associação do esporte a termos/expressões como cultura física, educação física ou recreação indica que o esporte é concebido em sentido estrito, como apenas uma das manifestações do movimento humano, mas o direito incide também sobre outras manifestações, englobadas pelos temos/expressões citados. O direito, assim, é à cultura física, às práticas corporais em geral e não apenas ao esporte competitivo formalizado sob regras institucionalizadas internacionalmente, sem perder de vista o locus potencialmente universalizante caracterizado pela educação física.
Além disso, Pachot Zambrana (2008; 2016) explica que é indispensável que se tenha certeza sobre o direito abranger a prática esportiva ou o acesso à prática. O primeiro é um direito de liberdade e o segundo um direito social, exigindo prestações por parte do Estado. Ou seja, no direito à prática, basta o Estado/poder público não interferir, garantindo liberdade de associação e de prática espontânea aos titulares. O direito de acesso à prática, por sua vez, exige a garantia de criação de condições materiais de acesso à essa prática. Não basta garantir a liberdade se a condição social e cultural dos indivíduos não permite que acessem à prática. Educação física nas escolas e infraestrutura esportiva pública são preponderantes nesse sentido, como apontam Canan e Starepravo (2019) e reforçam Flores Fernandez (2015) e Paipe (2015).
Nas Constituições em análise, tanto o direito à prática quanto de aceso à prática encontram-se presentes. O primeiro é identificado principalmente no estímulo à organização e autonomia associativa, presente na maioria das Constituições. O segundo abarca a promoção, incentivo, apoio e/ou destinação recursos à oferta esportiva, de cultura física e educação física, também presente na maioria das Constituições.
Dentro do vasto objeto, que, no fim das contas, visa garantir a todas as pessoas, toda e qualquer possibilidade de prática e de acesso à prática, o que, devido à limitação de recursos, no sentido de reserva do possível, do poder público e demais destinatários, encontra-se o núcleo essencial, ou seja, o elemento indispensável do direito, o equivalente a um mínimo existencial do direito ao esporte. Nas Constituições em tela, ele consiste na liberdade, autonomia, incentivo e apoio ao associativismo e na oferta da prática físico-esportiva ao público infanto-juvenil, normalmente materializada na escola (prevista expressamente como destinatária em algumas Constituições), por meio da educação física (também expressamente prevista em algumas Constituições), como já argumentado.
Em menor medida, mas ainda como núcleo essencial, encontra-se a infraestruturação esportiva do país, sem a qual a própria liberdade de prática não poderia ser, de fato, efetiva. Além da Constituição de Cabo Verde (1992) prever expressamente esta última variante do núcleo essencial, ela apresenta-se tacitamente na ideia de fomento às práticas esportivas não formais encontrada na Constituição do Brasil (1988), nos verbos estimular, encorajar e promover encontrados em várias Constituições e na associação entre esporte e recreação, lazer ou tempo livre prevista nas Constituições de Angola (2010), Brasil (1988), Cabo Verde (1992), Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993) e Moçambique (2004), como já citado.
Pachot Zambrana (2008; 2016) também compreende que o núcleo essencial perpassa a dimensão abstencionista e a dimensão prestacional. Canan e Starepravo (2019; 2020) identificam padrão semelhante em análise dogmática tecida sobre documentos esportivos internacionais e sobre as Constituições dos 14 países que preveem expressamente o direito ao esporte, respectivamente. Meirim (2006) cita a Lei 69 de Portugal (1993), que estabelecia como metas para o desenvolvimento esportivo do país, a universalização do esporte escolar, a infraestruturação esportiva e a qualificação de recursos humanos. Flores Fernández (2015) cita lei mexicana, já apresentada, que estabelece a educação física como locus para desenvolvimento da cultura física dos mexicanos. Paipe (2006) cita como principal obstáculo à garantia do direito ao esporte em Moçambique, a carência de infraestrutura esportiva. Canan e Starepravo (2019) identificam que os documentos internacionais que difundiram a ideia de direito ao esporte ao longo da década de 1970 garantiam lugar de destaque à educação física e à infraestrutura físico-esportiva.
Os limites do direito comumente são estabelecidos pelo ordenamento jurídico de cada país, mas, tendo em conta o padrão identificado no exercício comparado, abarcam quaisquer medidas que não contrariem a liberdade e apoio à livre prática e associação, a oferta de educação física e a criação de condições mínimas de infraestrutura. Ou seja, sem perder de vista que diferentes ordenamentos jurídicos podem estabelecer limites diferentes, o padrão identificado na análise comparada indica que os limites à garantia do direito encontram seus próprios limites no núcleo essencial do direito.
A institucionalidade, a exemplo dos limites, depende muito do ordenamento jurídico infraconstitucional dos países, onde serão minudenciados ou, ao menos, direcionados os meios para organização das políticas esportivas em função do exercício e garantia do direito. Na análise em pauta e como aponta Meirim (2006), os países de língua portuguesa projetam o esporte a um considerável patamar jurídico, não apenas o inserindo nas Constituições, mas dando-lhe um espaço considerável nas mesmas, inclusive com atribuição de dever ao Estado e direito às pessoas. Dessa forma, em termos gerais, no que diz respeito ao direito constitucional ao esporte, é possível se compreender que os países de língua portuguesa apresentam relevante institucionalidade. Objetivamente, na análise comparada em si, verifica-se que Cabo Verde (1992) apresenta um texto mais concreto em relação às formas de exercício e garantia do direito, elencando expressamente meios para tal e destinatários corresponsáveis. Brasil (1988), Guiné-Bissau (1996), Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993) e São Tomé e Príncipe (2003), ao contrário, apresentam baixa institucionalidade em relação ao direito ao esporte, podendo valer-se de estudos como o presente para aprimoramentos em sua previsão.
No que diz respeito à natureza jurídica, o esporte enquadra-se inicialmente como direito individual no que diz respeito à liberdade de prática e de associação, bastante salientada, sobretudo, na Constituição do Brasil (1988) e de Macau (Região Administrativa Especial de Macau 1993). O direito ao esporte mostra-se também como direito social, porque exige prestações do Estado, eminentemente na forma de serviços e renda. Os serviços, como visto, são relativos principalmente à educação física e disponibilização de infraestrutura, e a renda refere-se eminentemente ao apoio para o associativismo. O direito social mostra-se patente também porque em 5 (62.5%) Constituições, incluindo São Tomé e Príncipe (2003), que não prevê expressamente o direito, o esporte é previsto no título/capítulo destinado à previsão de direitos sociais e/ou culturais, que, junto aos econômicos, compõem o grupo de direitos fundamentais de segunda dimensão, tratados genericamente apenas como sociais (Sarlet 2012).
Quanto à fundamentalidade, já foi verificado que 4 (80%) Constituições que expressamente estabelecem o direito ao esporte, o enquadram em algum título/capítulo relativo à previsão de direitos, sendo matéria cujo retrocesso é obstaculizado. Essa fundamentalidade, portanto, é formal. Além disso, o fato das 5 Constituições que expressamente estabelecem o direito representarem 50% de todas as 10 de países de língua portuguesa e 62.5% das 8 que preveem o esporte, além de 35.71% das 14 Constituições mundiais que preveem o direito ao esporte, sugere que, em termos gerais, este direito no bloco de países analisados goza de significante importância social, reconhecida como fundamentalidade material.
IV. Considerações finais
No âmbito dos países de língua portuguesa, o dever do Estado frente ao esporte é previsto na maioria das Constituições e o direito ao esporte na metade delas. Todas as Constituições que preveem o dever, estabelecem também o direito, que não abrange somente o esporte em sentido estrito, mas também as manifestações em geral da cultura física. O núcleo essencial do direito consiste na liberdade e apoio à associação e à prática, na oferta da educação física e na infraestruturação esportiva.
Tendo em conta a quantidade de Constituições de países de língua portuguesa que regulam a matéria do esporte e o privilegiado espaço que garantem a essa regulação, além do fato de muitas estabelecerem o esporte como direito das pessoas e dever do Estado/poder público, compreende-se também que o tema goza de institucionalidade e fundamentalidade material nesse bloco de países.
Tem-se clareza que cada país apresenta suas peculiaridades. Não obstante, verifica-se que padrões identificados em âmbito comparado podem contribuir para o aperfeiçoamento dos ordenamentos internos e respectiva construção de políticas garantidoras do direito ao esporte. A inclusão da cultura física e da educação física nas Constituições que ainda não o fazem, é um exemplo de possibilidades de aperfeiçoamento da previsão jurídica do direito ao esporte, aprimorando sua institucionalidade. A atribuição expressa de dever a escolas e instituições esportivas também contribui para uma maior possibilidade de garantia.
Estudos futuros que busquem comparações entre uma Constituição específica e outra e também entre os respectivos ordenamentos jurídicos infraconstitucionais podem agregar à compreensão da temática.