Introdução
Este artigo tem por objetivo analisar o processo de internacionalização da Construtora Norberto Odebrecht (cno) à luz da estratégia da política externa levada a cabo pelo Estado brasileiro nos anos 1970 e 1980 que buscou projetar o país enquanto um paymaster regional. Objetivamos demonstrar como o início da internacionalização da construtora se ancorou em relações privilegiadas junto ao Estado brasileiro que abriram caminho para a atuação da empreiteira junto à órbita geopolítica brasileira. Por fim, pretendemos argumentar de que forma a construtora foi importante para a consolidação de uma política externa regional, no período supracitado, que projetava o país enquanto uma liderança local.
Este artigo tem por objetivo analisar o processo de internacionalização da Construtora Norberto Odebrecht (cno) à luz da estratégia da política externa levada a cabo pelo Estado brasileiro nos anos 1970 e 1980 que buscou projetar o país enquanto um paymaster regional. Objetivamos demonstrar como o início da internacionalização da construtora se ancorou em relações privilegiadas junto ao Estado brasileiro que abriram caminho para a atuação da empreiteira junto à órbita geopolítica brasileira. Por fim, pretendemos argumentar de que forma a construtora foi importante para a consolidação de uma política externa regional, no período supracitado, que projetava o país enquanto uma liderança local.
Partimos aqui do paradigma da historiografia empresarial de Witold Kula (1977), para quem as empresas devem ser consideradas enquanto unidades de produção inseridas em uma estrutura social mais ampla. Logo, torna-se imperioso, para analisar esse objeto, considerar seu desenvolvimento histórico a partir de interconexões com um contexto social, econômico, político –nacional e internacional– particular (Kula, 1977, pp. 140, 180). Dessa maneira, é possível um fazer histórico que não se paute por uma hiper valorização dos empresários-líderes e que não os encare enquanto responsáveis máximos pelo sucesso ou fracasso das empresas (Kula, 1977, pp. 158-160).
Entendemos por internacionalização a primeira etapa de atuação da empreiteira fora de seu país de origem, ao longo dos anos 1980 –um ano após a assinatura do seu primeiro contrato internacional– até os anos 1990, quando a Organização se consolida enquanto uma empresa transnacional1 (Moura, 2020, pp. 95-105). Assim que, o recorte temporal proposto –as décadas 1970 e 1980–, se explica pela congruência entre a conformação de uma política externa regional em que o Brasil se projetava enquanto um paymaster e uma primeira etapa da atuação internacional da construtora.2 Argumentamos que, entre a segunda metade dos anos 1970 e primeira dos anos 1980, três elementos conjunturais atuam de forma preponderante para a análise do nosso objeto. Sob um prisma mais geral, esse recorte temporal representa o que Barbero (2014, p. 9) considerou enquanto a segunda onda de inversões externas de firmas provenientes de países em desenvolvimento. Apesar de concentrar-se majoritariamente no sudeste asiático, a atuação da cno é um dos exemplos de internacionalização de firmas na região latino-americana no período. Já sob um ponto de vista do mercado interno de obras, o final da década de 1970 foi marcado por um refluxo no mercado de grandes obras (Odebrecht, 1988a, p. 19), o que representou um estímulo para a internacionalização da cno.
Por fim, também nesse período, em um cenário de solapamento das tímidas iniciativas da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (alalc), a partir de 1960, e, posteriormente, da Associação Latino-Americana de Integração (aladi), em 1980, para a promoção de uma integração regional (Lima, 2013, pp. 84-87), as empreiteiras se conformam, para o governo brasileiro, enquanto um setor estratégico para, simultaneamente, gerar divisas para o país e contribuir com uma aproximação geopolítica brasileira com seus vizinhos, o que poderia facilitar o estabelecimento de acordos comerciais.3 Com esse intuito, nos debruçamos sobre o estudo de duas obras específicas da cno: a Usina Hidrelétrica de Charcani V, em Arequipa, no Peru (1979) e o conjunto de obras de irrigação da península de Santa Elena, no Equador (1988). A escolha dessas duas obras é justificada por: a) cronologicamente representarem a entrada da empreiteira nos dois países com maior projeção até os anos 2000; b) contarem ambas com decisiva participação do Estado brasileiro, mediante financiamentos e contatos privilegiados, e c) serem obras com boa disponibilidade de fontes para análise. Assim que, ante a impossibilidade de abarcar toda internacionalização da construtora (Moura, 2020), opta-se por esse estudo de caso.
Para tanto, nos valemos enquanto fonte principal das revistas Odebrecht Informa, materiais internos da organização publicados desde 1973. Essas revistas têm por objetivo não apenas melhor informar os funcionários sobre os rumos da empresa e o alcance geográfico de suas obras, como também difundir os preceitos da tecnologia empresarial Odebrecht, espécie de conjunto de valores morais a serem assimilados pelos colaboradores da organização (Odebrecht, 2002). A essas revistas –e outros materiais da holding, como relatórios anuais e conteúdos disponibilizados em seu site–, foi importante somar outras fontes que dessem conta, especialmente, de tratar da política externa brasileira do período. Sobre essas, destacamos a entrevista concedida por Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979 e formulador da política externa do pragmatismo responsável (D’Araujo e Castro, 1997), além de bibliografia sobre a política externa brasileira no período. Buscamos aqui nos distanciar de categorizações que visualizam a atuação do Estado brasileiro enquanto um subimperialismo (Marini, 1977, p. 17) e, em seu lugar, privilegiar interpretações que enxerguem as movimentações entre Estado brasileiro junto às suas empreiteiras sob os marcos do conceito de paymaster regional, desenvolvido por Marcelo Mariano (2014).
Assim, o artigo é pensado em três partes. A primeira, de natureza mais teórica, após uma contextualização histórica das tratativas de integração regional, se debruça sobre a conceituação da categoria de paymaster como justificativa da política externa brasileira no período. Na segunda parte, nos debruçamos sobre o histórico da cno e sua internacionalização, em 1979, analisando as duas obras anteriormente citadas e explicitando sua importância. Já na terceira, à guisa de conclusão, tomamos algumas notas sobre a relação que se dá entre o Estado brasileiro e a construtora.
Integração regional sul-americana: o Brasil enquanto paymaster?
Ao longo dos anos 1960, no bojo do fortalecimento das tentativas europeias pelo adensamento de medidas pela liberalização comercial (Almeida e Chaloult, 1999, p. 147), consolida-se na literatura do desenvolvimento latino-americana a perspectiva da complementariedade entre desenvolvimento e integração4 (Prebisch, 2011, pp. 343-350).
Integração e desenvolvimento, portanto, estão interligados. Ao promover uma transformação para todos os seus participantes, através da irradiação dos progressos industriais adquiridos e, ao mesmo tempo, capacitar os atores regionais para formar um bloco com possibilidade de maior atuação a nível geopolítico, a integração seria uma forma fundamental para a promoção do desenvolvimento.
Historicamente, no entanto, a integração regional não foi um consenso por não se apresentar enquanto um conjunto de políticas defendidas irrestritamente ao largo dos anos pelos atores políticos e sociais locais. Além de disputas econômicas e territoriais, é impossível tratar da integração regional sem levar em conta a presença de atores exógenos com potencial altamente desestabilizador na região –com especial destaque à atuação dos Estados Unidos ao longo do século xx. Tomando por ponto de partida o pressuposto realista de Gideon Rose (1998), para quem uma boa teoria de política externa deve, primeiramente, perguntar o quão efetivo é o impacto do sistema internacional no comportamento nacional –porque a mais importante característica de um Estado nas relações internacionais é sua posição relativa no sistema internacional (Rose, 1998)–, não podemos analisar a política externa desenvolvida pelos agentes políticos regionais como, apenas, consequência de sua vontade própria. Devemos, por outro lado, contextualizá-la dentro dos limites de atuação de determinado Estado (ou ator), com base em sua posição no sistema internacional.
Por sua vez, a posição ocupada no sistema internacional pelos países latino-americanos é historicamente interligada à posição política desempenhada pelos Estados Unidos na região. Quanto ao papel desempenhado pelo imperialismo estadunidense no século xx, relembremos que, Moniz Bandeira (2003), ao postular um livro sobre o processo de integração do continente, partindo da Guerra do Paraguai até a chegada ao Mercosul, logo no título de sua obra faz menção, para além de Brasil e Argentina, aos Estados Unidos. Compreende o autor, dessa forma, que não há história concreta da América Latina sem levar em consideração esse ator exógeno à região. Por extensão, a história dessa integração regional é resultado da interação endógena dos países locais permeada pela atuação do imperialismo estadunidense (Bandeira, 2003). Assim que, ao longo do século xx, os Estados Unidos não só exercem pressão e adotam medidas visando seus interesses econômicos e geopolíticos, como atuam constantemente com o intuito de fomentar disputas regionais. Estas buscam, simultaneamente, minar a possibilidade de um avanço na integração regional e catapultar os Estados Unidos à condição do solucionador dos conflitos locais, fortalecendo a bilateralidade país-Estados Unidos em detrimento da atuação blocos regionais-Estados Unidos.5 Dessa forma, até mesmo medidas integrativas recuadas são amplamente rechaçadas pelos Estados Unidos, a despeito de sua potencialidade para o desenvolvimento regional. Como exemplo, temos o Pacto ABC, prejudicado em parte pela declaração de neutralidade de Juan Domingo Perón na segunda guerra mundial, e retomado nos anos 1950, com a tentativa de Perón em promover aproximações com Brasil e Chile para a construção de um polo alternativo às pretensões de hegemonia estadunidense na região, em um contexto de guerra fria e de fortalecimento do desenvolvimento econômico dos países do Cone-Sul (Bandeira, 2003, p. 250).
É a luz dessa condicionante exógena e de sua consequência mais concreta, os diversos golpes militares orquestrados a partir de 1954 −data do golpe guatemalteco sobre o nacionalista Jacob Arbenz (Grandin, 2002)− que visualizamos o início de tímidas tentativas integrativas regionais. A primeira delas foi a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (alalc), a partir de 1960, que, anos mais tarde, em 1980, é atualizada enquanto Associação Latino Americana para Integração (aladi). Buscando à criação de uma zona de preferência tarifária, responsável por assegurar níveis tarifários preferenciais ao grupo de países que conformam a zona em relação aos cobrados para países não membros, o mais básico dos processos de integração, a alalc tinha por meta final a conformação de uma área de livre comércio, em um prazo máximo de doze anos, dentro dos marcos postulados pela Unctad.6
Dessa forma, essas tratativas estão duplamente concebidas dentro do espírito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (gatt), de 1947. Primeiro por seu objetivo, isto é, a liberalização mais do que propriamente o estabelecimento de uma União Aduaneira, e, também, por seus processos operacionais. Estes consistem em negociações bilaterais produto por produto, lógica distinta daquela aplicada, por exemplo, na União Europeia (Furtado, 1970, p. 287).
A crítica de Furtado acerca da insuficiência da alalc ganha sentido a partir de um balanço de seus resultados alcançados. Com o passar dos anos, a alalc parecia perder sua função. Primeiro, não podemos deixar de apontar como a sucessão de golpes militares na América Latina entre as décadas de 1960 e 1970 desestabilizaram politicamente a região. Embora esses golpes não tenham representado um alinhamento automático dos governos aos Estados Unidos –Geisel e Roberto Campos relatam inúmeros casos de conflitos envolvendo posições brasileiras e estadunidenses (Campos, 1994, p. 1013; D’Araujo e Castro, 1997, pp. 434-442)–, implicaram em um rearranjo governamental regional.
Em segundo lugar, o enfraquecimento da alalc e das tratativas de integração entram em refluxo porque muitos dos produtos incluídos nas listas nacionais já eram anteriormente negociados em acordos bilaterais, o que esvaziava a importância alçada ao bloco. Terceiro, em 1969, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru firmam o Pacto Andino, com o intuito de oferecer maior dinamismo ao processo de desgravação tarifária e melhorar alguns pontos do Tratado de Montevidéu, enfraquecendo a representação da alalc (Araujo e Filho, 2015, p. 105).
Por fim, aponta-se que a alalc sofre com a dificuldade de chegar a um denominador comum para negociações entre Brasil e Argentina, os dois países centrais para o estabelecimento de um acordo duradouro na região. Uma União Aduaneira naquele momento, por exemplo, poderia impactar de forma negativa a Argentina, já que reproduziria, em escala microssômica, a deterioração dos termos de intercâmbio entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Afinal, o Brasil atuaria como uma espécie de exportador de aço, enquanto à Argentina caberia um papel menor de produção de gêneros alimentícios nesse intercâmbio de trocas (Bandeira, 2003, p. 375).
Celso Furtado, escrevendo em 1969, já apontara que as tentativas de integração limitadas à liberalização do comércio, na tradição de zonas livres de comércio, podem ter alguma significação em situações particulares, como nos países centro-americanos, que se caracterizam por um grau de desenvolvimento similar entre si. Entretanto, para países com algum grau de industrialização, esses esquemas são de pouca utilidade. Mais que isso, o autor alerta que, muitas vezes, eles acabam apenas criando condições privilegiadas para consórcios internacionais a ponto de já conseguir planificar o próprio desenvolvimento em escala regional. Logo, afirma que esses sistemas podem levar a formas de integração –se é que assim podemos chamá-las– que prescindam de centros nacionais de decisão, ou tendam a esvaziá-los. Assim, seriam incapazes de dotar a região de um autêntico planejamento plurinacional que abarque um projeto de desenvolvimento comum aos seus participantes (Furtado, 1970, pp. 290-291).
No caso sul-americano uma integração regional profunda ou, mesmo a adoção de um modelo nos moldes do Nafta estadunidense, como apontado por Soares de Lima (2013, p. 188), pressuporia, para seu sucesso, uma ativa atuação dos dois países centrais do Cone Sul –Brasil e Argentina. Assim, o estabelecimento de uma União Aduaneira –um mercado comum com uma tarifa externa comum– regional se daria, apenas e unicamente, numa conjuntura em que as políticas externas brasileira e argentina atuassem com o objetivo comum de promover uma redução das tarifas e maior abertura econômica.
Especialmente o Brasil é um país possuidor das três características capazes de lhe conformar enquanto poder regional capaz de liderar um processo integrativo. Primeiro, capacidades materiais e organizacionais (políticas) para projeção de poder regional; segundo, demonstração de vontade em assumir esse papel, expressa pela existência de uma concepção ou visão própria da estrutura de governança regional; por fim, influência política real na região para obter o reconhecimento e a aceitação dos vizinhos no exercício desse papel, tendo em vista que o status de poder regional é uma categoria social (Lima, 2013, p. 188).
Essa ausência de projetos que normatizassem a integração regional implica, historicamente, com uma baixa formação de uma infraestrutura local que adensasse tratativas integrativas. Para se ter uma ideia: foi somente a partir da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (iirsa), nos anos 2000, que a região passou a ter um centro supranacional de direcionamento de financiamentos para obras de infraestrutura (especialmente estradas) (Barros, 2018, p. 45); até os anos 2000 não havia qualquer oleoduto ligando dois ou mais países na região; a primeira obra de integração energética do continente foi um gasoduto ligando Bolívia e Argentina somente em 1988 (Sennes e Narciso, 2009).
É justamente diante desse hiato integrativo, desse vazio de obras que conferissem alguma infraestrutura para o desenvolvimento regional, que o Brasil passa a se utilizar de suas grandes empresas de engenharia (Andrade Gutierrez, Camargo Correa e Odebrecht, principalmente) para, mais que dotar países vizinhos de maior infraestrutura, se projetar enquanto uma liderança regional. Pedro Campos (2014), comentando sobre a internacionalização das construtoras brasileiras no período aponta que:
[com o] choque do petróleo de 1973 e a recondução das políticas domésticas do período Geisel de incentivo à exportação de manufaturados e de serviços e, principalmente, com a criação de mecanismos de política econômica de favorecimento das empresas de engenharia que atuassem no exterior a partir de 1975 Campos, 2010, o que se nota é que o movimento [de internacionalização de construtoras] ganha mais vigor a partir de 1976, e se prolonga até o ano de 1983. [...] as empresas a estabelecer contratos no exterior foram justamente as maiores do país, as quais mantiveram um nível de atividade interna razoável no período, ancoradas nos grandes projetos da ditadura, ainda em andamento, como as hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí, as usinas nucleares de Angra e o projeto Carajás Campos, 2014, p. 115.
Assim que, em um cenário dos anos 1980, marcado por tentativas de aproximações com países vizinhos em busca de ampliação de acordos comerciais, tarifários e integrativos em geral, a cno e as demais firmas construtoras atuam como um importante instrumento de aproximação a essas nações. Além disso, a atividade de exportação de serviços de engenharia, naturalmente, reverte-se em benefícios diversos para o próprio país, desde geração de divisas, empregos à desenvolvimento tecnológico (LCA Consultoria, 2014).
É a partir dessa compreensão que identificamos uma movimentação brasileira, a partir de meados dos anos 1970, para se projetar enquanto uma liderança regional.
Tal protagonismo brasileiro foi caracterizado por alguns autores como uma espécie de reprodução do imperialismo estadunidense adequada a singularidades regionais. Ruy Mauro Marini foi um dos primeiros a utilizar a adjetivação do Brasil enquanto potência subimperialista. O subimperialismo seria a forma assumida pela economia dependente ao alcançar a etapa de conformação de monopólios e do capital financeiro. Assim, reage-se à estreiteza do mercado interno mediante a adoção de um exercício de política expansionista relativamente autônomo (Marini, 1977, p. 17).
O Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, seria, segundo essa visão, uma espécie de secretário dos interesses dos Estados Unidos, que então adotavam a diretriz de contenção da "ameaça comunista", por meio da disseminação da doutrina de segurança nacional e do combate aos supostos inimigos internos vinculados a tal ameaça, apoiando uma sequência de golpes militares pelo continente. Essa condição privilegiada, por sua vez, possibilitaria uma ofensiva brasileira sobre a América do Sul e a África, no intuito de assegurar zonas de influência e mercados, inaugurando a chamada política externa de cooperação antagônica (Bueno e Seabra, 2009, pp. 3-4).
Ora, nos parece, contudo, que a postulação dessa matriz teórica, tomando por base Marini, incorre em dois equívocos importantes. Em primeiro lugar, alegar que, de alguma forma, as indústrias, mesmo as brasileiras –e, portanto, as mais desenvolvidas do continente–, haveriam chegado a uma etapa de conformação de monopólios econômicos, ou seja, o "terceiro estágio" braudeliano do capitalismo (Braudel, 1987, p. 46), nos parece uma leitura que amplifica o real tamanho dessas indústrias. Além do mais, o próprio conceito de cooperação antagônica, apesar de pontuar a existência de conflitos, retira sua importância, ao tratá-los como espécie de cortina de fumaça lançada pelo Brasil para conseguir barganhar melhores posições junto aos Estados Unidos. Em diversos momentos históricos, mesmo sob a batuta da operação Condor, o Brasil assume posições conflituosas contra os Estados Unidos, como argumentamos acima com relação ao governo Juscelino Kubitschek e a operação Pan-Americana ou mesmo a posição adotada por João Goulart em votar contrário ao embargo de Cuba nos anos 1960 (Bandeira, 2003, pp. 356-366; D’Araujo e Castro, 1997, p. 442).
Em contrapartida, como instrumento de análise do papel brasileiro no processo de integração regional, parece-nos mais interessante, em vista do nosso objeto de estudo, uma aproximação ao conceito apontado por Mariano, isto é, a conformação do Brasil enquanto paymaster regional. De acordo com essa caracterização, vemos o Brasil como o país na região com capacidade econômica e geopolítica suficiente para estimular um processo de integração, à revelia do interesse de outras grandes potências –levando, inclusive, a episódios de conflito com os próprios Estados Unidos. Segundo Mariano (2014):
nos processos com maior capacidade de aprofundamento, ou seja, nos quais as instituições regionais criadas absorveram uma maior quantidade de funções governamentais --antes desenvolvidas plenamente no âmbito do Estado nacional-- e essas funções foram legitimadas no seu exercício, houve a atuação central de um Estado com disposição e capacidade de arcar com a maior parte dos custos da integração (p. 262).
Em outras palavras, para o desenvolvimento de um processo de partilha de soberania nacional, torna-se imperioso a liderança de um Estado com poder. Poder esse político, como, por exemplo, na atuação pontualmente contrária a determinadas pretensões estadunidenses na região, mas, principalmente, poder econômico, sendo o Brasil principal economia da região.
As empresas de engenharia, assim, eram utilizadas enquanto estratégia de política externa para garantir uma posição de comando para o Estado brasileiro na região latino-americana. O que era importante para, simultaneamente, promover o desenvolvimento econômico nacional e garantir melhores condições de negociação com as potências do hemisfério norte, os dois principais objetivos de Geisel (D’Avila e Castro, 1997, pp. 436, 459). Para tanto, valer-se desse background com capacidade tecnológica de operar sobre uma lacuna continental –a questão da infraestrutura– era uma forma de construir uma diplomacia do diálogo sendo aceito pelos demais países.
Essa construção da projeção do país enquanto um paymaster dialoga fortemente com postulados de Nye (2004). O autor diferencia o exercício do poder mediante o par conceitual hard power e soft power. Enquanto o primeiro seria marcado pelo exercício do poder mediante liderança militar e econômica, o segundo −pautado mais pela noção de "cooptação" do que de "coação"− seria caracterizado pela construção de uma liderança em três esferas: cultural, valores políticos e política externa (Nye, 2004, p. 26). Sobre esse último, pontua o autor que a legitimidade da política externa se constrói a partir de uma autoridade moral. Portanto, para o caso brasileiro, as empreiteiras atuariam, justamente, como importante elo para construção uma autoridade moral que capacita a projeção regional do país enquanto um paymaster.
Dessa forma, notamos como o não avanço de projetos integrativos na região leva a um hiato de projetos de infraestrutura locais. E é sobre esse hiato que o Brasil se apresenta, também através de suas empreiteiras, enquanto liderança regional significativa. Nesse ínterim, a cno assume uma destacada importância para a construção de uma agenda externa nacional para a região. Nos voltemos a esse tópico.
Charcani e Santa Elena: a Construtora Norberto Odebrecht na América Latina
Concomitante aos movimentos descritos na primeira sessão do artigo, os anos 1960-1970 assistiam à consolidação da engenharia pesada7 como setor industrial de destaque no Brasil.
Tema de amplo debate, recentes estudos vêm demonstrando como, já na transição do século xix para o xx, há um fortalecimento da indústria nacional, especialmente em São Paulo, especialmente a partir da bolsa de valores local (Hanley, 2001, pp. 116-117). Apesar de divergências na literatura sobre o papel desempenhado por Vargas na industrialização nacional, Sonia Draibe (1985, p. 15) aponta que é a partir dos anos 1930 que se conforma uma burocracia estatal composta por instituições de regulação e controle das atividades econômicas do país.
Especificamente para o caso da engenharia pesada nacional, são significativas as medidas adotadas no governo Juscelino Kubitschek. Na visão de Draibe (1985, p. 13) o Plano de Metas, em 1956, representou um conjunto de investimentos complementares e concentrados capaz de promover uma alteração radical na estrutura do sistema produtivo, simultaneamente ao exponencial aumento da capacidade produtiva. Para o setor das empreiteiras, a intervenção estatal nos ramos do transporte e energia, somado à construção de Brasília, levam à abertura de um mercado para a engenharia pesada de grande potencialidade e dinamismo (Ferraz Filho, 1981, p. 64).
Embora não tenha participado da construção da obra de Brasília,8 a cno se aproveita desse grande ciclo de obras para se projetar enquanto uma construtora nacional.
Fundada por Norberto Odebrecht em 1944, os primeiros anos da construtora a caracterizaram enquanto uma empresa local de pequenos empreendimentos. Sua primeira obra de relevância regional foi a Usina de Correntina, na Bahia, em 1952 (Odebrecht, 1985, p. 27).
Tendo em vista o contexto da formulação do Plano de Desenvolvimento da Bahia (Plandeb), nos anos 1955 e 1961 foram lançadas as bases para a diversificação econômica do Estado, o que culminaria com iniciativas como o Polo Petroquímico de Camaçari, em fins dos anos 1960. Nesse cenário, são implementados segmentos isolados da indústria, o que leva a um processo de acumulação de capital com baixo potencial de irradiação para o estado, mas altamente lucrativos para segmentos como o da construção civil. É aí que situamos o surgimento e o fortalecimento de uma empresa de engenharia como a cno na Bahia (Barbosa, 2017, pp. 532-533).
Essa atuação ainda restrita, no entanto, tornava a cno incapaz de ingressar no "clube dos barrageiros", o grupo das empreiteiras −Mendes Júnior, Cetenco, Camargo Correa e Andrade Gutierrez− habilitadas a realizar grandes obras no Brasil, especialmente hidrelétricas. Para se habilitar aos empreendimentos de grande porte, fazia-se necessário comprovar experiência nesse tipo de construção e deter uma soma elevada de capital comprovado. Condições essas que, na prática, restringiam o mercado de grandes obras para seletos grupos. Malu Gaspar argumenta que Norberto Odebrecht, então comandante da cno: "em várias oportunidades, tentou convencer o governo a alterar a lei e incorporar a ideia de que, em obras especiais, que exigem tecnologia, era mais importante o conhecimento técnico do que o volume de concreto assentado. Encontrou muita resistência" (Gaspar, 2020, p. 47).
A mudança de patamar da construtora se inicia em 1954, com a "conquista" da Petrobras (criada um ano antes) como cliente para a construção de instalações de apoio, estações de tratamento de água, plataformas marítimas, pontes, canais, barragens, armazéns, casas de força, dragagens, laboratórios, residências, clubes, oficinas e rodovias.
Essa interlocução é, também, resultante do intercâmbio entre quadros da cno e de esferas do planejamento estatal, como funcionários da Petrobras ou que atuaram no Plandeb. Ângelo Calmon de Sá, que assume a secretaria de Indústria e Comércio no governo Luiz Vianna Filho (1967-1971), Luiz Almeida e Victor Gradin são alguns desses exemplos de interlocução (Barbosa, 2017, p. 533). Geisel recorda-se que a Petrobras tinha cursos de formação em que "engenheiros civis se inscreviam, faziam um concurso e, se aprovados, passavam de seis meses ou um ano fazendo cursos" (D’Araujo e Castro, 1997, p. 315).
Ainda sobre essa relação, Dantas (2007) afirma que:
O início do relacionamento com a Petrobrás aconteceu quando a Construtora Norberto Odebrecht participou da construção do oleoduto Catu-Candeias, em 1954. A capacidade técnica demonstrada na conclusão dessa obra a capacitou para realizar outras mais complexas, em especial na extração de petróleo no mar. A construção do edifício-sede da Petrobrás no Rio de Janeiro [posteriormente] em 1969 significou para Construtora Norberto Odebrecht um símbolo da parceria conquistada com aquela que seria a maior empresa do Brasil anos depois. A obra foi erguida em 36 meses, tempo considerado curto para a época (p. 80).
Além de ampliação de seu portfólio de obras, as obras junto à estatal garantiram à cno um contato direto com Geisel, homem forte da construtora nos anos 1950-1960 e presidente a partir de 1969. Esta ligação, por sua vez, foi fundamental para a vitória na licitação para a obra do Aeroporto do Galeão (Rio de Janeiro), derrotando nove competidoras, dentre as quais as paulistas Companhia Brasileira de Projetos e Obras (cbpo) e Camargo Correa. Geisel, a pedido de Norberto Odebrecht, interveio na disputa em favor da construtora baiana junto ao Brigadeiro Araripe Machado, responsável pela licitação (Gaspar, 2020, p. 49).
Assim que, a consolidação da cno no Nordeste –com a abertura de uma filial no Recife, em 1961, e as construções das fábricas da Willys Overland, Coperbo, Alpargata Confecções e das Tintas Coral, em 1963– junto à costura de uma relação privilegiada com a Petrobras, garantiu o acesso ao importante mercado de obras do sudeste brasileiro. 1970 foi o ano das vitórias para a construção do campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Usina Termonuclear Angra, que alçam a cno a um novo status. A obra da Usina de Angra é vista como uma etapa importante dessa nacionalização, celebrado no próprio material disponibilizado pela Organização em seu site.9 A seu respeito, Dantas afirma que o edital exigia um elevado grau de experiência, diversidade e constituição de contratos com empresas estrangeiras, o que não representou um impeditivo para a vitória da cno em parceria com a firma estadunidense J. A. Jones Construction Company (Dantas, 2007, p. 82).
A despeito de algumas inovações que garantiram seu crescimento, como, por exemplo, a realização simultânea de todas as etapas de suas construções, responsável por maior agilidade na entrega das obras (Dantas, 2007, p. 77), é notório que os vínculos políticos estabelecidos com os órgãos de governos estatais foram condição imperiosa para a ascensão da construtora. No início dos anos 1970, a então 19ª maior construtora brasileira (atrás, entre outras, da também nordestina Queiroz Galvão) muda de patamar, deixando de ser uma construtora com respaldo regional para se nacionalizar (Odebrecht, 2020).
Paralelo a esse aumento de magnitude nacional, a organização passa por um processo de diversificação dos negócios da empresa. Em 1979, cria-se a Odebrecht Perfurações Ltda., responsável pela perfuração de poços de petróleo e adquire-se 1/3 do capital da Companhia Petroquímica Camaçari (cpc), marcando o ingresso do Grupo no setor petroquímico). Dois anos depois, em 1981, é criada, com o intuito de unificar o comando das atividades, a holding Odebrecht (Odebrecht, 2020).
Também no ano de 1979 é assinado o primeiro contrato internacional da construtora, com a obra da Usina hidrelétrica de Charcani V, em Arequipa (Peru). A ideia da internacionalização já era discutida anteriormente dentro da empresa, como aponta a obra de Norberto Odebrecht (Odebrecht, 2002). Na visão do autor, por vivermos em uma era na qual "o conhecimento passa a ser um valor mais importante do que o próprio patrimônio tangível", seria essencial, para a sobrevivência, o crescimento e a perpetuação da empresa, a constante busca pela "inovação" e pela "criatividade" de suas equipes, elevando assim o patamar da Odebrecht (Odebrecht, 2002, pp. 22-23).
A escolha da região geográfica sul-americana como ponto de partida para o processo de internacionalização é explicada por Renato Martins, então responsável pelo Desenvolvimento de Negócios na holding Odebrecht:
Vários fatores determinaram nossa caminhada rumo a outros países a partir da América do Sul: proximidade geográfica, melhor possibilidade de coordenação e apoio, maior suporte do Governo brasileiro naquela época e proximidade de idioma e cultura. Identificamos países que desejavam receber uma colaboração, efetivada por meio de nosso trabalho e da aplicação de nossa tecnologia (Odebrecht, 1995, p. 4).
A proximidade geográfica, como apontada por Martins, é um fator chave para o início do processo de internacionalização. Isso se justifica não só pela questão da proximidade cultural, mas, também, pelas dificuldades logísticas intrínsecas à atuação de uma construtora em solo estrangeiro –como é possível de depreender através da análise da própria complexidade que assumem as bases de apoio internacional da empresa. A Base de Apoio Internacional (bai) da holding, localizada na zona norte do Rio de Janeiro, ilustra bem esse nível de complexidade. São 2 000 m² só de área coberta, nos quais se despacham desde peças, materiais e equipamentos destinados à execução de obras, tais como tratores ou vigas, até objetos de uso particular, como frutas ou objetos de higiene pessoal (Odebrecht, 2004, p. 30). Dessa forma, o estabelecimento de contratos em localidades próximas constitui enorme facilitador à logística do transporte dessa vasta gama de materiais necessários e à continuidade das atividades da empresa em solo estrangeiro. Além desse fator de ordem da dinâmica interna da própria empresa, convém destacar outro, também apontado por Martins, de ordem mais geopolítica: o estímulo e o suporte oferecidos pelo governo brasileiro ao crescimento interno, em um primeiro momento; e, num segundo momento, seu apoio ao estabelecimento de atividades em países da região (Odebrecht, 1995, p. 5).
Roberto Campos, diplomata brasileiro, ao analisar a política externa que se conforma no Brasil a partir da chegada de Geisel ao poder, em 1974, e que, em boa medida, se mantém no governo Figueiredo, reforça como o chanceler Silveira coordenou uma agenda de forte apelo terceiro-mundista, inclusive com o apoio para a independência de Angola e choques com os Estados Unidos. Fato esse que seria aproveitado pelas empreiteiras nacionais (Campos, 1994, p. 1011).
A respeito dessa vinculação entre empresa e poder estatal, não é acaso que a assinatura do primeiro contrato internacional da cno –a construção da Hidrelétrica de Charcani, na região de Arequipa, no Peru– seja parte integrante da declaração conjunta entre os presidentes João Figueiredo e Morales Bermúdez, do Peru, durante visita deste ao Brasil. Objetivando reafirmar a importância de se manter a integração dos países sul-americanos, o contrato assinado entre a Electroperu e a cno, em consórcio com a Harrison Overseas Construction (Canadá) –que detinha 10% da obra–, estipula um crédito entre o Banco do Brasil e o Governo do Peru, no valor de US$ 89 milhões (Odebrecht, 1980, p. 11). O financiamento da obra contou também com apoio da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (cacex), mesma instância utilizada pela Braspetro (Petrobrás Internacional S. A.) em seu processo de atuação internacional a partir de 1972 (D’Araujo e Castro, 1997, pp. 317-318).
Situada 35km a nordeste de Arequipa, segunda cidade mais importante do Peru, a Usina Charcani V, com capacidade geradora de 135Mw, rapidamente torna-se a principal Usina do Rio Chili, importante veio local. A demanda pela obra, por parte do governo peruano, é explicada pela incapacidade das cinco outras usinas da região (Charcani I, II, III, IV e VI) de abastecer Arequipa e as indústrias de mineração locais, já que totalizam um potencial de 35Mw, insuficiente para uma demanda local ao redor de 60Mw.
A obra é considerada de grande dificuldade técnica: 95% das atividades realizadas seriam subterrâneas, em uma região da Cordilheira dos Andes constantemente sujeita a abalos sísmicos (10 por dia, em média). Além disso, houve uma obra prévia à sua construção: um teleférico de 1 200m de extensão para o transporte de funcionários até a parte alta da obra, situada entre 3 000 e 4 000 metros de altitude, com uma temperatura de até -18C (Odebrecht, 1980, p. 12). Charcani é, portanto, a primeira obra da construtora na região e o início da ampliação geográfica de seu escopo de atuação 10.
Se Charcani marca a entrada da construtora no Peru −país com maior presença da construtora até a deflagração da operação Lava-Jato, nos anos 2000−, um segundo país de destaque, em que a construtora não só realiza obras, mas mantém-se vinculada organicamente ao Estado local, é o Equador, a partir de 1988. O Estado equatoriano era então um país cuja área propícia para agricultura era de apenas 6% –com culturas como banana, cacau, café, mandioca e batata. Tal setor representava 12% do pib local e era responsável por absorver metade da população economicamente ativa do país (Odebrecht, 1988a, p. 16).
É nesse ínterim que o governo adota um amplo programa de irrigação para o país, com destaque especial para a península de Santa Elena, na costa equatoriana, área considerada estratégica para o país. Com 45 000 hectares, a região enfrenta fortes problemas climáticos, já que 90% de suas precipitações se dão entre os meses de janeiro e abril. Aproveitando as águas do Rio Daule, o projeto visava o alargamento das fronteiras agropecuárias do país, atendendo à crescente demanda interna de alimentos. Contribuiu, também, para o desenvolvimento industrial e turístico regional, transformando Santa Elena em um novo foco de ocupação populacional, com alívio para o impacto migratório a Quito e Guayaquil (Odebrecht, 1988a, p. 17).
A obra da península de Santa Elena não apenas marca a entrada da cno em mais um país sul-americano, como consolida um modelo de atuação característico, com envolvimento direto de órgãos do Estado brasileiro como facilitadores dessa empreitada. Orçada, à época, em US$ 200 milhões, a obra conta –novamente– com financiamento do Banco do Brasil, mediante a cacex. Em contrapartida, além da projeção de uma empresa nacional no exterior e o posterior pagamento do financiamento, ela gera exportações brasileiras de bens de capital de aproximadamente US$ 48mi, e de bens intermediários e de consumo durável de quase US$ 33mi (Odebrecht, 1988b, p. 9). Dessa forma, em um contexto dos anos 1980, marcado por escassez de moeda estrangeira, crise de endividamento externo e baixa demanda interna por obras, Santa Elena foi representativa de uma política de exportação de bens sofisticados típica dos governos militares.
Mas não só: o apoio dado pelo Estado brasileiro não se restringe apenas ao aporte financeiro, como assinalado por Roberto Abdenur, então embaixador brasileiro em Quito. A exportação de serviços manufaturados, afirma o embaixador, transforma o Brasil em um dos quatro principais parceiros comerciais do Equador, sendo responsável pelo estabelecimento de uma rápida integração com o país andino.
A diplomacia brasileira, assim, mantém atuação direta no apoio aos exportadores de produtos e serviços. A própria obra de Santa Elena é detectada e comunicada pela embaixada brasileira em Quito às empresas nacionais de construção pesada. Ademais, completa o diplomata, a embaixada é responsável direta pela criação de redes de contato entre o empresariado nacional e o governo equatoriano, ao promover missões comerciais e eventos como feiras de catálogos, bem como, principalmente, por importante lobby junto ao governo brasileiro. Assim, facilita-se a importação de produtos equatorianos (evitando uma possível retaliação comercial). Isso culmina em um acordo em que a Petrobras se responsabiliza pela compra de dez mil barris/dia de petróleo provenientes daquela nacionalidade (Odebrecht, 1988b, p. 11).
A importância do papel jogado pela diplomacia brasileira, ao conquistar essa aproximação da cno ao "ambiente nacional" local, é reconhecida por Jurandir Almeida dos Santos, então diretor da cno no Equador:
Um contrato como este necessita da presença do prestador de serviço próximo ao cliente desde o primeiro momento. (...) A integração da equipe da Odebrecht à comunidade empresarial, ao ambiente político e aos hábitos equatorianos permitiu obter a rápida capacitação exigida pelo contrato, complexo e de grande porte Odebrecht, 1988b, p. 9.
Tal como no Peru, com o passar do tempo a cno passa a construir pontes significativas com atores da alta sociedade local, como expresso na comemoração dos dez anos da presença da construtora no país, em 1998. Comemorado na Casa de la Cultura Ecquatoriana, importante centro cultural de Quito, a celebração conta com a presença de cerca de 500 convidados, dentre os quais, importantes autoridades civis e militares –destaca-se a presença de Fabián Alarcón, presidente do país, acompanhado de Renato Baiardi, líder empresarial do Grupo, e Luiz Antonio Mameri, superintendente da cno no Equador (Odebrecht, 1998, p. 35).
As duas obras, assim, se convertem em uma espécie de pavimentação para atuação internacional da construtora. O peso da América do Sul, nesse processo, paulatinamente vai se tornando evidente. Desde fins dos anos 1990 o baklog de obras sul-americano começa a superar o brasileiro. A partir dos anos 2000 tal situação se consolida (ver gráfico 1).
A América Latina converte-se, assim, em parte mais significativa da composição de receita da construtora, superando, inclusive, o Brasil. Dessa forma, nota-se como, de fato, Charcani (e, depois, Santa Elena) foram o "Jardim de infância" da cno em território sul-americano (Odebrecht, 1994, p. 18). Percebe-se o mesmo modelo de contatos privilegiados para a aquisição de novos empreendimentos –via embaixada brasileira no Equador ou via o próprio Presidente da República, no Peru– seguido por uma eficiente condução de obras, ampliada pela descentralização e pela criação de pontes com empresas locais. Estas, por sua vez, são a ponta de lança de um mais amplo projeto de fixação de raízes na sociedade –seja com a presença de expatriados ou com a condução de projetos que extrapolam a esfera da construção civil, buscando uma afirmação enquanto atores sociais locais. Tal repetição indica um sólido padrão de atuação internacional da empresa: ao construir essas relações com instâncias de poder e grupos da alta sociedade locais, ela é capaz de se afirmar enquanto liderança regional de destaque.
cno e a política externa brasileira
Se, na primeira parte do artigo, argumentamos em favor da ideia de uma ausência histórica de projeto integrativos na região sul-americana, na segunda parte buscamos demonstrar como a cno se aproveita desses hiatos para projetar sua atuação internacional, a partir de 1979. O Estado brasileiro, nesse ínterim, se vale da construtora (e de outras) para se projetar enquanto uma espécie de paymaster regional.
Essa afirmação, no entanto, poderia nos levar a concluir, erroneamente, que Estado brasileiro e cno se converteriam em uma espécie de bloco homogêneo com mesmos interesses. A afirmação de Luiz Almeida, integrante do Conselho de Administração da Odebrecht S.A. desde os anos 1980, poderia reforçar tal ideia. Argumenta ele que "[ A cno estaria] onde houvesse interesse do governo brasileiro em estreitar relações com o país cliente" (Odebrecht, 1994, p. 19).
A atuação estratégica da empreiteira ao redor de países que circulassem na órbita geopolítica brasileira não significaria, portanto, uma conversão da Organização em uma espécie de ponta de lança da política externa brasileira? Essa não nos parece a melhor forma de visualizar essa relação, devendo tal composição ser explicada nos marcos teóricos da articulação entre as grandes empresas e o Estado brasileiro.
Portanto, convém salientar que essa inserção internacional não pode significar, de fato, uma amalgama que dissolve as singularidades entre esses dois espaços de análise –Estado e grande empresariado. Partindo dos postulados de Eli Diniz e Renato Boschi, devemos encarar os processos políticos e societais em sua interdependência, isto é: "admitindo o papel ativo e preponderante do Estado num dado momento histórico, tentar preservar a identidade dos processos sociais, pelo menos em sua capacidade real ou potencial de iniciação de conflitos que possam evoluir numa direção não contida nos parâmetros do modelo original" (Szwako, Moura, y D’Avila Filho, 2016, p. 38).
A questão que se coloca, assim, é da centralidade de não se perder de vista facetas específicas desses organismos, rechaçando uma visão que objetive a criação de um bloco unitário composto pelo Estado e o grande empresariado. Dessa maneira, conseguimos não perder de vista toda a riqueza de detalhes que compõe essa relação, como competições interburocráticas, superposição de esferas de competência, alianças entre setores e subsetores da burocracia, envolvendo ou não grupos privados, e conflitos entre as esferas de atuação empresarial e de competência administrativa do Estado (Szwako, Moura, y D’Avila Filho, 2016, p. 39).
É, assim, retomando também os postulados metodológicos de Jorge Graciarena, que compreendemos, através de uma dialética entre agência-estrutura, essa relação estabelecida entre um setor do grande empresariado nacional –a cno– com o Estado nacional (Graciarena, 2000, p. 705). Embora historicamente se conformem inúmeros exemplos de interesses que levam a uma atuação conjunta entre essas duas entidades –como, por exemplo, o contrato da primeira obra internacional da cno assinado na esteira de uma visita de chefe de Estado peruano ao então Presidente João Figueiredo; a atuação determinante da embaixada brasileira em Quito como ponte entre a cno e o governo equatoriano–, não podemos ignorar a autonomia de atuação de cada uma dessas entidades. A despeito de historicamente convergirem em diversos momentos, a cno e o Estado brasileiro enxergam essa aproximação à luz de objetivos particulares e interesses próprios.
Para a cno a aproximação junto ao Estado é vista como estratégica. Primeiro, ao garantir condições materiais e de articulações com agentes estatais para promover sua internacionalização. Isso, junto à diversificação e à aquisição de outras empresas da engenharia pesada, constituíram-se nas estratégias adotadas pela cno, no início dos anos 1980, para se consolidar enquanto uma das maiores empresas nacionais da construção e, ao mesmo tempo, superar a retração do mercado nacional de obras do período. Sob um prisma de análise mais político, essa aliança é visualizada enquanto parte integrante do modelo defendido pela empresa, de "desenvolvimento social financiado por empresas, orientado pelo Estado, em proveito de toda a sociedade" (Odebrecht, 2008, pp. 5-6).
Emílio Odebrecht, defendendo os interesses da organização, afirma que, em um cenário de incapacidade estatal para investimentos em projetos prioritários "que eliminem os gargalos que travam o crescimento econômico, particularmente nos setores de energia, transportes e saneamento básico" (Odebrecht, 2008, p. 6), caberia à iniciativa privada ocupar esse gargalo, atuando fortemente pela promoção do desenvolvimento. Segundo o próprio empresário, detendo-se sobre uma conjuntura de crise brasileira:
O desafio é grande e para superá-lo é imprescindível romper o círculo vicioso em que o baixo crescimento determina o baixo nível de investimentos, o qual, por sua vez, limita ainda mais o crescimento. Se o Estado não dispõe de recursos no volume necessário para empreender essa ruptura sem retornar a um outro círculo vicioso do qual escapamos há mais de uma década --o círculo inflacionário--, esta é a hora de orientar os recursos da iniciativa privada para investimentos em infraestrutura (Odebrecht, 2008, p. 6, grifo do autor).
Ora, o que a mensagem do líder da holding traz à tona, a despeito de não se tratar de um balanço do processo de internacionalização da sua empresa, é a própria forma como a cno visualiza o conceito de desenvolvimento em um espaço de economias subdesenvolvidas. As publicações da organização trazem consigo uma visão da empresa segundo a qual, diante de um quadro de economias "incapacitadas" de resolver os "gargalos que travam o crescimento econômico", isto é, as grandes obras de infraestrutura necessárias para promover a integração física nacional e regional entre os Estados sul-americanos, "urge" às empresas privadas ocupar esse hiato, estabelecendo condições para o desenvolvimento regional (Odebrecht, 2008, p. 7).
Já para o Estado brasileiro, por seu turno, essa aproximação junto à cno, ao longo das décadas finais do século passado, mostra-se interessante sob um duplo prisma. Primeiro, pensando em um contexto dos anos 1980 marcado por tentativas de articulações com países vizinhos em busca de ampliação de acordos comerciais, tarifários e integrativos em geral, a cno se apresenta enquanto um importante instrumento de aproximação junto a essas nações, a partir da construção de uma política externa "parceira" e atuante para solucionar os gargalos das nações próximas. Por outro lado, a atividade de exportação de serviços de engenharia, naturalmente, reverte-se em benefícios diversos para o próprio país (LCA Consultoria, 2014).
Sob o primeiro aspecto, é interessante retomarmos aqui o "caráter externo" da obra de irrigação da península de Santa Elena, no Equador. Estabelecida a ponte entre o governo equatoriano e a cno, mediante atuação do corpo diplomático brasileiro em Quito, Santa Elena significa uma ampliação na balança comercial brasileira com o Equador. Até então restrita a um pequeno comércio, a exportação de serviços manufaturados transforma o Brasil em um dos quatro principais parceiros do Equador. A contrapartida pela ampliação dessa importação de serviços é o acordo em que a Petrobras se responsabiliza pela compra de 10 000 barris/dia de petróleo provenientes daquela nacionalidade, buscando maior equilíbrio na balança comercial dos dois países (Odebrecht, 1988b, p. 11). Dessa forma, a cno é uma espécie de meio utilizado pelo governo brasileiro para aumentar sua rede de parceiros comerciais.
Já sob o segundo ponto, destaca-se a importância do setor da construção pesada para o Brasil no período. Em 1992, os serviços das empreiteiras movimentavam 20 bilhões de dólares anualmente, ou 5% do pib brasileiro; empregavam 600 000 trabalhadores; concentravam três das cinco maiores fortunas do país. Dentro desse setor, seis empresas das 12 000 concentravam 60% da totalidade das obras (Barros, 1992). Logo, não é exagero afirmar que a construção pesada se converte em um dos setores chave da economia brasileira.
Tendo em vista essa chave interpretativa para o processo de internacionalização da construtora, nos distanciamos aqui de análises que, de alguma forma, a visualizam a partir de uma amalgama nas relações estabelecidas entre entes privados e agentes públicos, não dando conta de colocar às claras a autonomia desses espaços de análise.11 Voltando-se ao nosso objeto, elas não são capazes de compreender a movimentação orientada por objetivos particulares desses atores. Por um lado, a internacionalização significa para a cno, essencialmente, seu próprio crescimento ao ponto de se converter em uma empresa transnacional, a partir dos anos 1990. Por outro lado, esse crescimento é utilizado para promover maiores oportunidades de aproximações diplomáticas e comerciais com países vizinhos por parte do Estado brasileiro.
Considerações finais
Ao longo desse artigo nos propusemos a analisar o processo de internacionalização da Construtora Norberto Odebrecht (cno) em diálogo com a estratégia da política externa levada a cabo pelo Estado brasileiro nos anos 1970 e 1980 que buscou projetar o país enquanto um paymaster regional. Nesse ínterim, nos debruçamos sobre a análise de duas obras consideradas estratégicas da internacionalização da cno –a hidrelétrica de Charcani V, no Peru, e a irrigação da planície de Santa Elena, no Equador. Buscamos nos distanciar de perspectivas da historiografia empresarial que visualizam o processo histórico da 2007 atuação de empresas como decorrente de boas ou más decisões tomadas em âmbito gerencial por seus líderes, visualizando esse processo sob uma perspectiva mais global.
Não pretendendo com isso encerrar um amplo debate, mas, pelo contrário, estimular novas produções a seu respeito, nos detivemos sobre três eixos centrais.
Em primeiro lugar, argumentamos em favor da ideia de que o Estado brasileiro, tendo em vista um certo "gargalo integrativo" na região latino-americana, busca se projetar, em especial a partir da política externa do governo Geisel, como um paymaster regional. Para tanto, entre outros meios, se utiliza de suas empreiteiras como expressão de seu soft power para, dessa maneira, construir e adensar relações com parceiros regionais considerados estratégicos.
Em segundo lugar, buscamos demonstrar como, consequentemente, o próprio processo de internacionalização da cno se explica mediante essa relação privilegiada que se conforma junto ao Estado brasileiro. Recusando interpretações que argumentam em favor de uma "anacionalidade" dessas firmas internacionalizadas, assim, tentamos contribuir com a construção de perspectivas que reforcem o papel dos Estados nacionais na internacionalização de grandes grupos.
Por fim, projetamos uma interpretação sobre essa relação entre o Estado brasileiro e a cno que não a considere enquanto uma espécie de anexo do Estado nacional. Acreditamos, por outro lado, que, embora o interesse do Estado e da construtora, em muitos casos, tenha convergido, ambos atuaram em busca de condições particulares. Se, para o Estado, a cno serviu aos interesses políticos –contribuir para aproximação com atores regionais– e econômicos –ampliação de divisas, geração de empregos internos–, para a cno, a estratégia de implicar sua internacionalização a países da órbita geopolítica brasileira, lhe garantiu um acesso privilegiado ao mercado sul-americano, convertendo-o em polo central dos lucros da empreiteira anos depois.
Assim, esperamos com esse texto estimular a produção de novas colaborações que busquem contribuir com a história empresarial contemporânea.