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Convergencia

versión On-line ISSN 2448-5799versión impresa ISSN 1405-1435

Convergencia vol.13 no.42 Toluca sep./dic. 2006

 

Pensamiento

 

Tecnologia, ideologia e periferia: um debate com a filosofia da técnica de Álvaro Vieira Pinto

 

John Bernhard Kleba

 

Instituto Tecnológico de Aeronáutica, Brasil. Correo electrónico: jbkleba@ita.br

 

Envío a dictamen: 25 de septiembre de 2006
Aprobación: 30 de octubre de 2006

 

Resumen

Álvaro Vieira Pinto elabora en "El concepto de tecnología" una filosofía de la tecnología pensada desde la perspectiva de la periferia. El filósofo carioca define la técnica de forma aristotélica, antropológica y evolutiva, como mediación esencial en la dialéctica entre el hombre y la naturaleza, a través de un proceso intencional de la propia existencia. Influenciado por Hegel y Marx, Pinto concibe una tipología dialéctica para situar a la tecnología en relación con el subdesarrollo. Reflejando su participación en el Instituto Superior de Estudios Brasileños (ISEB), destaca la cuestión de la ideologización de la tecnología, como esencia en el proceso de dominación del centro sobre los países periféricos. El círculo de dominación sería roto por una necesidad histórica y, al mismo tiempo, subjetiva y objetiva, exigiendo la constitución de un proyecto de desarrollo nacional. Se apunta hacia problemas desde estos enfoques: la escatología optimista, la técnica en sí como neutra, y la naturalización de la historia. Por otro lado, se enfatiza la contribución original mediante su concepto de conciencia para el otro, su tipología dialéctica, así como su crítica radical a lo que llama teología tecnológica.

Palabras clave: filosofía de la tecnología, ideología y tecnología, subdesarrollo y tecnología, estudios latinoamericanos de la tecnología, crítica tecnológica.

 

Abstract

In his work "The concept of technology", Álvaro Vieira Pinto elaborates a philosophy of the technology from the peripheral perspective. The philosopher from Rio de Janeiro, defines the technique in an Aristotelian, anthropological and evolutionary form, as the essential mediation in the dialectic between man and nature, through the intentional process of the self existence. Influenced by Hegel and Marx, Pinto conceives a dialectical typology to sitúate technology in relation to underdevelopment. Reflecting his participation in the High Institute of Brazilian Studies (ISEB), he points out the issue of the ideologization of technology, as essential in the domination process of the center over the peripheral countries. The domination circle would be broken by a historical necessity, simultaneously subjective and objective, demanding the constitution of a national development project. This approach's problems are pointed out: an optimistic eschalology, the technique in iti elf as neulral, and the naturalizalion of history. Separately, his original contributions by means of his concept of conscienceforthe other, his dialectical concept of technological change, as well as his radical criticism to what he calls technological theology are emphasized.

Key words: philosophy of the technology, ideology and technology, underdevelopment and technology, Latin American studies of technology, technological critic.

 

Raros são os trabalhos exaustivos na área da filosofia da técnica, produzidos a partir de um genuíno enfoque latino-americano. Neste contexto, merecem destaque os escritos inéditos, recentemente descobertos, do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (1909-1987). Estes foram trazidos à público, pela primeira vez, com a publição em 2005 na monumenlal obra —são mais de mil páginas— intitulada "O Conceito de Tecnologia". A relevância da obra é tão maior, pela sua ambição e originalidade teórica, por vincular aportes da filosofia, antropologia e história ao projeto de emancipar os países periféricos de sua condição de atraso e dependência tecnológica. Ao mesmo tempo, Vieira Pinto representa um momento crucial do pensamento de esquerda brasileiro e latino-americano, de articulações intelectuais no contexto da guerra fria e da iminência das ditaduras, entre os anos 1950 e 1970.

Este artigo objetiva recuperar a filosofia da técnica de Vieira Pinto, em suas contribuições teórico-metodológicas, conceituais e ontológicas. Concentra-mo-nos, em especial, em "O Conceito de Tecnologia" neste ensaio, por ser esta a compilação mais amadurecida, sistemática e detalhada, além de inédita, de suas contribuições para uma filosofia da técnica latino-americana.

Apresenta-se primeiramente uma breve biografia, no contexto da participação do filósofo carioca no Instituto Superior de Estudo Brasileiros (ISEB), para situar o autor em seu contexto histórico e institucional. A seguir expõe-se a obra, seu projeto intelectual, bem como os elementos centrais de sua filosofia da técnica. Os fundamentos teóricos serão seu conceito de tecnologia e de técnica, a dialética entre a natureza e a existência e a dialética da evolução da técnica. O centro deste ensaio debate o cerne de seu projeto intelectual voltado à filosofia da técnica: a crítica contundente da ideologização da tecnologia, e seu papel no que chama de anestesiamento das massas na periferia. Em sua análise do círculo vicioso de manutenção da dependência Vieira Pinto é inovador, introduzindo conceitos como a "consciência para o outro", como parte deste processo de apropriação mimética e emancipação. Ao final, tecemos algumas observações críticas ao seu corpo de idéias, em especial seu otimismo histórico hegeliano, que A. Giddens chama de prometeísmo marxista, e o fato de inocentar a técnica em si, enquanto embebida de relações de poder e político-valorativas. Fechamos o ensaio com uma apreciação das contribuições mais relevantes do autor para a atualidade, enlre seus conceitos inovadores e sua forma complexa de trabalhar lógicas dialéticas superpostas para pensar a tecnologia.

Qual o sentido de dialogar com uma obra escrita entre o final dos anos 60 e o início dos 70? A nosso ver, há extrema relevância em tal empreitada. Primeiramente, trata-se de iluminar a história das idéias latino-americanas, percorrendo as transformações do pensar no contraste diacrônico, nas raízes de problemas específicos à realidade de nossa região geográfica-cultural. Não de menor relevância, é perguntar de que forma as idéias de Vieira Pinto podem nos ajudar a compreender e problematizar a realidade contemporânea, com novos insights.

 

A pessoa - Um marxista heterodoxo no ISEB

Álvaro Vieira Pinto foi catedrático da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). Sua posição institucional de maior relevo foi na diretoria do Instituto Superior de Estudo Brasileiros (ISEB) a partir de 1960. Devido à importância deste Instituto na obra do autor, faremos um breve excurso para apresentá-lo.

O ISEB foi criado em 1955 como órgão do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, a partir de um grupo de intelectuais organizados anteriormente no Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP) (Abreu, 2001: 2.801-2.803). Fundado com apoio presidencial, Juscelino Kubitschek participou da inauguração da sede em 1957, o ISEB "transforma-se no principal centro do pensamento nacionalista e desenvolvimentista brasileiro", mesmo que não tivesse influência direta nas políticas governamentais (Bresser, 2004: 50). Quando Vieira Pinto assumindo a diretoria do Instituto em 1960, devido ao afastamento de Roland Corbisier, deu início à uma fase de mobilização e engajamento político (Toledo, 2005: 11).

A visão do ISEB é coerente com a visão econômica da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), com a qual mantinha estreito contato. Os principais intelectuais do ISEB foram, enlre outros, os filósofos Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Michel Debrun; o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos; o economista Ignácio Rangel; o historiador Nelson Werneck Sodré; e o cientista político Hélio Jaguaribe. Celso Furtado, embora não participou formalmente do ISEB, chegou a publicar duas conferências pelo Instituto (Bresser-Pereira, op. cit.: 52).

A tese central do ISEB foi a de que o subdesenvolvimento só poderia ser vencido pela industrialização, e de que isto seria uma aspiração de todas as classes sociais (Abreu, op. cit.). Por isto, propunham uma frente única de grupos de interesses sociais divergentes, integrada pela burguesia industrial, o proletariado, grupos técnicos da administração e os intelectuais, para uma política de desenvolvimento industrial autônomo, contra a burguesia latifundiária mercantil, o imperialismo, a classe média parasitária e os grupos ligados à economia de exportação (ibid.).

O principal dissenso no instituto, levando ao desligamento de Hélio Jaguaribe do mesmo, se deu com relação ao papel dos investimentos estrangeiros. Uma vertente, a de Vieira Pinto e do Partido Comunista (na ilegalidade), apregoava a tese, "[...], segundo a qual o 'capital estrangeiro', associado ao setor primário-exportador, seria o principal obstáculo político à industrialização brasileira" (Bresser-Pereira, op. cit.: 51). Os investimentos estrangeiros eram considerados por este viés como ameaça à autonomia, causando o agravamento da dependência econômica do Brasil em relação aos países centrais. A vertente oposta, encabeçada por Hélio Jaguaribe, reconhecia um papel positivo para os investimentos diretos estrangeiros na indústria brasileira, "antecipando uma tese da 'teoria da nova dependência', que seria formulada em São Paulo e no Chile nos anos 60, [...], e se tornaria dominante na América Latina nos anos 70" (ibid.).

No ISEB, Vieira Pinto ganhou renome, sobretudo com sua publicação "Consciência e Realidade Nacional" (1960), onde tematiza, de uma perspectiva filosófico-antropológica, a necessidade de um projeto nacional-desenvolvimentista, na tradição do estruturalismo latino-americano de Raúl Prebisch e Celso Furtado (Freitas, 2005: 04). Com o golpe militar de 1964, o ISEB foi fechado e foi instaurado um Inquérito Policial-Militar na Instituição. O filósofo carioca se tornou exilado político, trabalhando a seguir no Centro Latino-americano de Demografia, CELADE,1 Chile, a convite de Paulo Freire, o grande inovador na pedagogia e alfabetização no Brasil, que o intitulava respeitosamente de "meu mestre".2

 

A obra "O Conceito de Tecnologia"

"O Conceito de Tecnologia" é dividido em dois volumes. No primeiro o autor expõe o seu enfoque teórico-metodológico da filosofia da técnica, bem como sua fundamentação ontológica e epistemológica. No segundo volume, trata-se de inovações tecnológicas relacionadas aos anos 1960, como a cibernética, a informação e a inteligência maquínicas. Tendo como objetivo perguntar sobre a originalidade teórica de uma filosofia da técnica elaborada sob a perspectiva la tino-americana, interessa-nos sobretudo o primeiro volume.

Central em "O Conceito de Tecnologia" é a problematização do papel da tecnologia frente ao subdesenvolvimento, sobretudo em sua funcionalidade para manter relações de dominação do centro sobre a periferia. O projeto intelectual de Vieira Pinto é, entretanto, mais ambicioso, sendo que o autor desenvolve um arcabouço teórico de base filosófica, antropológica e histórico-dialética, para repensar a relação entre o homem e a técnica. Nesta obra, suas principais fontes são Aristóteles, Georg W. F. Hegel, Karl Marx e Friedrich Engels, ao mesmo tempo, se distanciando criticamente de Martin Heidegger e Jacques Ellul.

A técnica não é compreendida por Vieira Pinto como Realtechnik, em sua acepção restrita, senão como mediação generalizante enlre os fins humanos, a natureza e a produção: "[...] é a mediação na obtenção de uma finalidade humana consciente" (Pinto, 2005a: 175). Seu conceito de técnica é aristotélico, definindo-a como um processo de três momentos: 1.O logos, sendo que toda ação social tem sua gênese na intenção de produzir algo, cuja realização depende do conhecimento associado sobre sua operacionalização. 2. O trabalho ou o movimenlo gestual embutido na ação. O ato de produzir, etimologicamente no grego e no sânscrito, representaria o ato de trabalhar em madeira (Pinto, 2005a: 176). 3. E a natureza, compreendida enquanto as leis naturais, que determinam e delimitam as possibilidades de qualquer processo produtivo (op. cit.: 137-138).

Por sua vez, o conceito de tecnologia é apreendido através de diferentes vieses hermenêuticos, entre os quais Vieira Pinto sistematiza quatro: 1. Um genérico, como o estudo ou a teoria da técnica, "[...] dos modos de produzir alguma coisa [...]" (op. cit.: 219s). 2. Outro, simplesmente como sinônimo da técnica. 3. Um terceiro conceito particularizante, como "[...] o conjunto de técnicas de que dispõe uma determinada sociedade, em qualquer fase histórica de seu desenvolvimento" (ibid.). 4. E um último, como ideologização da técnica, para o qual atribuirá importância capital (ibid.) em "O Conceito de Tecnologia".

 

A dialética da existência e a natureza

Da tradição hegeliana e marxista o autor carioca toma seu eixo ontológico e epistemológico, a análise histórico-dialética. O princípio que propulciona a história, seria uma dialética fundamental entre o homem e a natureza, mediada pela técnica:

A dialética deline a máquina na perspectiva da gênese dela, no processo histórico da sociedade que estimula a criação do engenho porque suscita no pensamento do anlmal humano a concepção da possibilidade de utilizá-lo para resolver uma contradição com a natureza (Pinto, 2005a: 120).

Vieira Pinto busca explicitar esta dialética desde sua raiz, enquanto substrato biológico-evolutivo da hominização do Homo sapiens. Somente esta espécie seria forçada a produzir sua própria existência, estando sua sobrevivência ameaçada, não à maneira de Hobbes em seu "estado da natureza", pelo interesse-próprio de outros homens, mas pela própria natureza biológica da espécie humana. Mediante esta corporalidade biológica humana, frágil e dependente, não basta reproduzir-se os códigos hereditários tal como os animais, mas torna-se necessário produzir as próprias condições de existência (op. cit.: 154).

Ao mesmo tempo, a natureza confere ao homem, com o desenvolvimento neuronal, a faculdade de pensar, que lhe permite criar uma natureza de segunda ordem, a natureza propriamente humana, de ordem cultural e social, a natureza do artífice, tecnificada. O homem, hominizado biologicamente por suas capacidades neurológicas de pensar, seria forçado, assim, a se humanizar no desenvolvimento histórico, reatualizando constantemente a produção de sua existência pelas relações sociais e as invenções técnicas. Vieira Pinto se distingue, desta forma, daqueles existencialismos subjetivistas ou idealistas, pois seu existencialismo englobaria, além da consciência, "[...] os fundamentos materiais, objetivos, sociais das determinações particularizantes [...]" (op. cit.: 240). Seria um existencialismo não tanto materialista, que tornaria a agência humana secundária, mas sim dialético.

A técnica assume aqui um caráter central, pois ela é a mediadora, por excelência, entre as faculdades de pensar e o mundo concreto, é o vínculo ent re a abstração, que envolve conhecimento e intenção, e sua objetificação no mundo mat erial. Técnica é saber, saber produzir. De forma que técnica, produção e conhecimento são "[...] um ato único, indivisível interiormente, [...]" (op. cit.: 198). A técnica hominiza e humaniza, o Homo sapiens é um Homo technicus (op. cit.: 201).

O homem tecniciza a natureza em dois sentidos: Enquanto transforma sua própria percepção e conhecimento do mundo "[...] representado com significação técnica" e pelos objetos fabricados, que "[...] irão se interpor entre a natureza e ele" (op. cit.: 140-141). Assim, não somente a natureza é recriada, enquanto junção de leis naturais e do mundo construído, mas a própria subjetividade muda sua forma de observar o mundo, pelas técnicas, sejam as do raciocínio ou, digamos, do telescópio.

Vieira Pinto recusa, ao mesmo tempo, uma visão simplista da dialética da natureza. Pois se o homem triunfa sobre a natureza através da técnica, do aperfeiçoamento tecnológico, aumentando seus poderes e opções, simultaneamente e paralelamente, ele aumenta sua submissão à mesma natureza, às fontes de energia e às propriedades dos corpos (op. cit.: 160s). Imagine-se simplesmente um apagão, um corte na energia elétrica de uma região, e o que isto significa em termos de paralisação de atividades na indústria, nos serviços e na comunicação via internet. Desta forma, entre as forças físicas e as forças culturais, a técnica representa algo como a síntese dos contrários (ibid.).

 

A dialética da evolução técnica

Mas como explicar a evolução tecnológica? Vieira Pinto formula, para tanto, uma dialética particular: o homem se desenvolve no tempo, remodelando seus modos e relações de produção, num processo de aperfeiçoamento contínuo e necessário das técnicas. Se a dialética com a natureza define a necessidade do homem produzir sua existência, ligando o abstrato ao concreto, a dialética da técnica sugere a capacidade de recriar as formas de mediação ante o mundo existente, pois cada tecnologia realizada num momento histórico "[...] já representa a negação de si" (Pinto, 2005a: 106). Assim, as técnicas são inerentemente contraditórias. São conservadoras, pois atuam na repetição dos atos, se tornam padronizantes, são funcionais ao modo de produção dominante. E são revolucionárias, pois mostrando seus limites, possibilitam sua superação, acabando por aproximar um modo de produção de seu esgotamento histórico (op. cit.: 208-209). É nesta perspectiva que o filósofo isebiano percebe a automatização, que reverte o trabalho muscular no intelectual, e a cibernética, que transfere à máquina, funções intelectuais humanas (Pinto, 2005b).

Embora possa parecer que Vieira Pinto coloque a técnica numa posição pivotal da história, ele nega qualquer determinismo mecanicista da história (Pinto, 2005b: 691-692). A técnica nem é o motor da história (Pinto, 2005a: 157), nem se autonomiza em relação ao homem, em claro confronto com a posição de Jacques Ellul (op. cit.: 214). Seria sempre o homem, com suas intenções e finalidades, com sua produção, e movido pelas suas contradições existenciais, a causa eficiente maior de sua própria história (op. cit.: 159). Pois admitir uma autonomia da técnica sobre o homem, seria substantivar a primeira, adjetivando o homem (op. cit.: 180, 231). Da mesma forma, rejeita-se a concepção das máquinas criadoras de Von Neumann, pois o pensamento é essencialmente uma faculdade humana e um produto social (op. cit.: 90s).

Todavia, Vieira Pinto não deixa de se contradizer, quando reconhece autonomizações parciais da técnica. Por exemplo, a visão de Engels sobre a maquinaria enquanto a concorrente mais poderosa do trabalhador, reformulada por Marx como desvalorização da força de trabalho (Romero, 2005: 35), é debatida por Vieira Pinto enquanto desumanização do trabalho (Pinto, 2005a: 129s). Tanto a manufatura induslrial, quanto a automação, representam formas de autonomização e determinação pela lógica maquínica: "Na manufatura, a máquina trabalha nele, e agora [na automação3] é ele que trabalha na máquina" (op. cit.: 129). Na primeira, a máquina determina a gestualidade, na segunda ela dispensa a força muscular. Cabe lembrar que Marx enfatiza o papel da inlra-estrutura enquanto molor histórico, de leis histórico-econômicas que não se deixam arbitrariamente transformar volitivamente, intencionalmente, em clara contraposição ao sistema hegeliano. Em contraste, no sistema desenvolvido pelo filósofo carioca, parece predominar o papel do agente histórico, do homem, não somente enquanto consciência de si e do mundo, mas como produtor, seja de coisas, seja de idéias ou de técnicas. Desta forma, ele enfatiza a idéia de projeto e de destino do homem, como auto-produtor de si próprio (Pinto, 2005b: 696), se distanciando da ênfase marxista sobre as limitações e condicionamentos postos à vontade humana pela base material.

Para Marx, ao contrário de Vieira, o progresso da técnica é sobretudo dado por fatores econômicos:4 "Com a acumulação do capital se desenvolve o modo de produção capitalista específico e com o modo de produção capitalista específico a acumulação de capilal" (Marx, 1959: 653). Este processo de reacoplamento e reforço mútuo dinamizaria a intensidade do capital, explicando o constante processo de tecnificação da produção. Enquanto Marx enfatiza uma lógica sistêmica, Vieira Pinto, remontando à suas influências aristotélicas (intenção) e existencialistas (escolhas), sublinha a agência no processo de evolução tecnológica.

Outro aspecto de grande relevância na obra de Vieira Pinto é seu comparativismo cullural em relação aos estágios de desenvolvimento tecnológico. Trata-se de um tema difundido na época de sua redação, lembra-se aqui a contribuição clássica do antropólogo Darcy Ribeiro a respeito5, que infelizmente passa desapercebido na obra do filósofo do ISEB. O enfoque de Vieira Pinto combina elementos de relativização e de hierarquia. Assim, todos os povos e cada época particular disporiam das técnicas correspondentes aos seus conhecimentos, resolvendo em suas formas particulares a dialética da natureza: "Qualquer que seja o grau de desenvolvimento, todo grupo social tem uma tecnologia suficiente para enfrentar a natureza e dela obter a produção necessária para viver" (Pinto, 2005a: 297). Neste contexto, a forma de conservar a carne através da secagem sob a sela do cavalo, a produção de carne seca, como em geral populações desprovidas no Brasil o fazem, equivaleria, em sua finalidade e função, ao frigorífico (op. cit.: 303-304).

Da mesma forma, as técnicas dos xamãs não seriam pré-lógicas, senão equivaleriam àquelas dos médicos modernos, cada qual com sua racionalidade específica (op. cit.: 192-194). Ambas as técnicas aplicam os conhecimentos disponíveis, naquele momento, perseguindo a mesma finalidade, de curar o doente. Ambos os agentes agiriam objetivamente, canalizando forças exteriores a eles (ibid.).

Simultaneamente, o filósofo carioca também parte de uma hierarquização dos estágios tecnológicos. Desta forma, as sociedades modernas disporiam de conhecimentos mais poderosos no domínio das forças naturais, pois mais objetivos com relação às leis naturais, lhes permitindo um maior número de opções. Esta superioridade não é, porém, algo imanente, não é algo vinculado à fatores como raça ou outros caracteres inatos, o que Vieira Pinto deixa claro em sua crítica às posições teóricas de Oswald Spengler (Pinto, 2005a: 143s). Pois para Vieira Pinto, qualquer povo tem as condições intelectuais e criativas para incorporar a ciência moderna e criar sua própria tecnologia avançada (Pinto, 2005b: 687-688).

Não há uma contradição enlre os dois focos comparativos, pois afirmar a racionalidade embutida em modos culturais diferenciados, não importa quão tosco o estágio tecnológico nos pareça, é uma atitude antropológica de abertura e curiosidade investigativa, sem preconceitos, frente à diversidade cultural. Esta posição não contraria, por sua vez, a constatação de que há uma tendência à concentração de poder tecnológico, permitida pela evolução científica em regiões particulares, mas aberta, em princípio, à disseminação para outras regiões e culturas do planeta.

Na perspectiva histórico-filosófica de Vieira Pinto aponta-se algumas limitações. Primeiro, coloca-se o problema de explicar as descontinuidades das inovações. Na sua obra, a inovação tecnológica parece surgir automaticamente, sempre quando "necessidades" histórico-econômicas de sociedades particulares o requerem. Desta forma, descreve o sucesso da máquina a vapor na Inglaterra:

O transporte ferroviário só veio a se constituir em alvo da pesquisa inventiva quando se tornou patente a insuficiência da tração animal para movimentar volumosas e pesadas cargas, principalmente o carvão inglês destinado à navegação e à exportação (Pinto, 2005a: 244).

Da mesma forma, explica-se o insucesso de Samuel Morse por longos anos em encontrar interesse na invenção do telégrafo: "A sociedade [...], não havia chegado ao ponto de sentir a exigência dessa forma de transmissão de informações" (op. cit.: 306). É de certa forma redundante, dizer que as inovações bem sucedidas num momento histórico particular eram necessárias e aquelas fracassadas, ou que demoraram a se estabelescer, não o eram. Há que se considerar as condições, os limites e as contingências da inventividade e de sua difusão. As diferenças de espaço e de tempo nas mudanças sócio-técnicas, os saltos inovativos e os períodos de continuidade, necessitam serem problematizados, e não reduzidos ao que possuem em comum (comp. op. cit.: 48s). A força explicativa de uma teoria é discutível, quando esta se baseia numa suposta "necessidade histórica", sempre passível de ser readaptada e redefinida pelo historiador aposteriori, sem ponderar a possibilidade de mudanças inesperadas no curso da história. Neste sentido, há que recorrer-se à uma historicização efetiva, como o faz, por ex., Enrique Dussel,6 quando problematiza porque o capitalismo não emergiu na China, abordando uma ampla gama de fatores complexos e fazendo jus à pesquisa histórica atual.

Por outro lado, concorda-se com a crítica de Vieira Pinto à mistificação do self-made-man, que representa o inventor como um gênio isolado, omitindo todo o processo de interações sociais e o contexto favorável, que colaboraram na constituição do invento. Pertinente é lembrar aqui as descrições de Bruno Latour sobre as descobertas de Pasteur em seu contexto (Latour, 2001: 169s.).

Seria, entretanto, uma redução sociológica, inverter a díade a favor do social, apagando o papel do indivíduo na história. É uma contradição versar sobre a liberdade humana (Pinto, 2005a: 216, 154s), para a seguir suprimir o indivíduo no social: A "contradição tem sempre caráter social e não pessoal,privado" (op. cit.: 308). A "sociedade" é um construto sociológico abstrato —lembrando a crítica paralela que Raymond Aron tece à representação do Estado pelo realismo da ciência política norte-americana—,7 e seria um engano atribuir um caráter ontológico com características de indivíduos à sociedade. Assim, uma sociedade só pode tomar consciência de suas necessidades em sentido figurado, pois na observação empírica tratar-se-á de percepções e idéias sociais dominantes, freqüentemente heterogêneas, e não de um self autoconsciente.

 

A ideologização da técnica

Tema central em "O Conceito de Tecnologia", aprofundando em uma nova dimensão o debate isebiano, é a função ideológica da tecnologia em relação ao subdesenvolvimento. Vieira Pinto se move numa conceituação dupla da relação entre ideologia e tecnologia: Por um lado, condizente ao conceito de ideologia como história das idéias, toda a tecnologia, como logos da técnica, "[...] transporta inevitavelmente um conteúdo ideológico" (Pinto, 2005a: 320). Este conteúdo compreende o significado e o valor das ações humanas, sobretudo a relação entre o trabalhador ou técnico, como fabricante, e o destino de seu produto (Op. cit.: 320s).

Por outro lado, e este é o sentido que prepondera na obra de Vieira Pinto, ideologia é conceituada na tradição marxista como mascaramento, como falsa consciência, como arma ideológica para impor determinados interesses. A relação enlre esta dupla conceituação infelizmente não é problematizada pelo autor. A preponderância desta segunda acepção, poderia derivar do tratamento temático da técnica como forma de dominação, entretanto, a estrutura argumentativa de Vieira Pinto, que trabalha sistematicamente com as díades ingênuo/crítico, verdadeiro/falso, mostra ser esta segunda compreensão de ideologia, a que define sua epistemología da técnica. De modo extensivo, Vieira Pinto já havia, em sua obra anterior "Consciência e Realidade Nacional", exposto esta classificação binária de saberes (1960: pp.28s, 82s). O problema que deriva, longe de ser trivial, pois pode assumir uma dimensão totalitária, já que universalizante em sua reinvidicação, é o seguinte: um grupo de autores (ou líderes políticos) define o que é verdadeiro, e quem pensa diversamente é rotulado como "ingênuo". Mais pluralista é a posição da sociologia do conhecimento de K. Mannheim: Cada enfoque de conhecimento revela algumas verdades, e contém ao mesmo tempo, áreas para as quais é cego (Mannheim, 1952). A última posição é aberta ao diálogo e entendimento, enquanto a primeira é, no momento de sua classificação binária, excludente.

Deve-se compreender, entretanto, o pensamento de Vieira Pinto no contexto de extrema tensão política que vivia a América Latina nos anos 60. E aqui, merece destaque mais um ponto de heterodoxia deste autor: Mais do que o problema marxista das classes, a ênfase do filósofo isebiano recai sobre a relação entre centro e periferia (Freitas, 2005: 09). Segue-se as discussões no ISEB, sobre o projeto de um desenvolvimento industrial autônomo para o Brasil, e inclusivo para a população. Este projeto deve ter uma base, de certa forma sim il ar à vontade geral a là Rosseau, a ser instituída num processo de formação de consciência:

De fato, não há projeto social sem ideologia de massa8, ou seja, sem suficiente unificação do pensamento e da vontade popular mediante uma representação objetiva da realidade e a decisão de modificá-la (Pinto, 1960: 33).

Voltando ao "O Conceito de Tecnologia", Vieira Pinto se dedica a desnudar os ideólogos do status quo a partir de dois vieses. Por um lado, denuncia a cristalização da divisão internacional do trabalho e da transferência de tecnologia, como uma naturalização da dependência, como se à periferia fosse impossível avançar em sua posição frente ao centro, como se sua inferioridade na inovação tecnológica fosse à ela imanente, insuperável. Com isto, se passa a pensar que "[...] a tecnologia é produto exclusivo da nação dominante" (op. cit.: 266). Vieira Pinto alude à uma espécie de anestesiamento associado:

[...] Os ideólogos do mundo alto convencem as populações atrasadas da prática inviabilidade de saírem por si mesmas da miserável condição onde vegetam. Chamamos a isso o falso e interesseiro emprego do conceito de tecnologia, [...], destinado a adormecer a consciência da nação dependente exercendo uma influência entorpecente (Pinto, 2005b: 683).

Uma imagem de força expressiva do filósofo, para descrever a função de dominação exercida pelo discurso em torno da tecnologia, é a de colonização do futuro. A idéia de fuluro seria assim, elaborada pelos ideólogos dominantes, sendo que "[...] o truque consiste aqui em projetar no futuro o conceito atual de tecnologia por eles admitido" (Pinto, 2005b: 684). Através desta futurologia, se atestaria a perpetuação da superioridade do centro sobre a periferia, do centro enquanto o "futuro da periferia". Consequência desta colonização é a redução do problema da desigualdade social, da luta de classes e da dependência nacional, à uma questão a ser resolvida, superada, dissolvida pelo aperfeiçoamento da técnica: "Paradoxalmente, uma das maneiras de retardar o efeito libertador da tecnologia no país atrasado resume-se em exaltá-la, a ponto de fazer dela uma nova mitologia [...]" (Pinto, 2005a: 287). O primado da tecnologia suprimiria, assim, da esfera pública, "os problemas concretos, existenciais, sociais [...]" (op. cit.: 236). Através desta artimanha, as injustiças sociais deixariam de ser inquietantes, pois as carências do presente derivariam de imperfeições tecnológicas. A estratégia desta forma de dominação consiste em "[...] conservar a esperança das massas trabalhadoras suspensa à previsão da idade da fartura, a chamada „civilização afluente", [...]" (Pinto, 2005b: 689). Este processo alude à um congelamento de expectativas, o referido anestesiamento de forças potencialmente transformadoras.

A tecnocracia, propagada enquanto nova forma de organização social moderna, seria análoga à uma fabulação teológica da providência (Pinto, 2005a: 233). A crítica à esta mitificação da tecnologia seria, por sua vez, associada à uma recepção passiva de ensinamentos de conferencistas estrangeiros:

A teologia tecnológica exige então um culto e assume as características de religião messiânica. A técnica é implorada como graça que deve cair das alturas, [...], e só nela se deposita a esperança de salvação (Pinto, 2005a: 291-292).

Ora, não basta substituir-se as tecnologias atrasadas, é preciso "[...] transformar as relações fundamentais da sociedade" (op. cit.: 297). Numa sociedade, como a brasileira, marcada pela exclusão social, investimentos em educação e redistribuição de renda deveriam caminhar lado a lado com estímulos em setores de tecnologia de ponta, como afirma recentemente Anthony Giddens.9

Infelizmente, Vieira Pinto deixa de tecer paralelos de suas reflexões com a teoria da hegemonia de Antônio Gramsci. Claro estão, todavia, os paralelos enlre estes autores, pois a alienação para Vieira Pinto não é imposta pela força, senão incorporada na subjetividade. A ideologia da técnica teria, desta forma, a função de legitimar as relações de poder constituídas, no sentido weberiano: Para ser legítimo, não basta ao poder obter a obediência exterior, mas faz-se necessário um consentimento por convicção ou por expectativas (Weber, 1984: 54).

Ademais, a definição de técnicas superiores e inferiores teria conseqüências no comportamento político. A noção do avançado passa a valer como medida de comparação, causando "envergonhamento" nos grupos sociais excluídos de fruir a afluência da economia capitalista. São muitas as teorias que procuram explicar o "atraso" econômico e político brasileiro, sejam elas cull ural-raciais como em Oliveira Viana, cultural-políticas como em Raymundo Faoro ou na figura do Jeca-Tatu de Monteiro Lobato, e econômicas como em Celso Furtado e Caio Prado Júnior, entre tantos outros. Para Vieira Pinto o essencial é perceber como uma armadilha do pensamento, quando estas teorias são interpretadas erroneamente de modo a cristalizar relações vigentes de atraso/avanço, colonizando o futuro com as fórmulas do presente.

O desenvolvimento dependente é explicado pela idéia de círculo vicioso, que manteria as relações de dominação perante as elites do centro (e aquelas nacionais) em detrimento de um projeto de autonomia nacional e de inclusão social (op. cit.: 278s). Em obra anterior Vieira Pinto já havia sublinhado que a periferia enfrenta um adicional de dificuldades na busca de seu desenvolvimento autônomo, comparada ao centro, tendo como adversária a aliança das elites locais alienadas com o capi tal estrangeiro (Pinto, 1960). Além disto, este círculo vicioso conta com níveis mais baixos de formação educacional na periferia, com a concentração de capital e conhecimentos nas regiões avançadas, bem como, com o papel da transferência da tecnologia e do conhecimento. Não interessa à Vieira Pinto aqui formular uma sistematização teórica, senão apontar os principais caracteres deste círculo. Desta forma, o consumo alienado exprimiria uma forma de incorporar-se ao mundo estrangeiro, a projetá-lo como necessário e desejável para sua nação. As elites, por sua vez, consomem os produtos importados, por suas vantagens financeiras e de dignificação sotial, e estabelecem uma contradição com as massas, que não aceitam sua exclusão (op. cit.: 270).

A transferência de tecnologia desempenha aqui um papel primordial. Ela seria uma forma de amestramento dos técnicos nas regiões atrasadas, restringindo a abrangência das técnicas a serem conhecidas e resguardando ao centro o controle sobre a produção tecnológica na periferia (op. cit.: 275).

Na contenda do ISEB com relação ao papel dos investimentos estrangeiros, Vieira Pinto se posiciona claramente conlra o cientista político Hélio Jaguaribe, recusando a "ajuda" exterior e favorecendo o desenvolvimento autônomo. Pois o capital estrangeiro se usaria de uma estratégia de mascaramento, quando se apresenta como indústria nacional por compra, absorção ou aniquilamento, evitando, desta forma, um desenvolvimento autônomo (op. cit.: 274). Vieira Pinto chega ao ponto de radicalizar a demanda de autonomia num sentido de auto-suficiência, incluindo a produção científica e tecnológica (op. cit.: 277), para chegar à uma reivindicação de "pureza intelectual": "A consciência crítica terá de surgir exatamente daquele meio social não influenciado diretamente pelos ensinamentos importados [...]" (op. cit.: 283). Aqui o argumento do autor isebiano vai contra a sua própria prática, pois ele próprio, não deixa de dialogar com, e readaptar de forma crítica, autores estrangeiros, para pensar a realidade dos países periféricos.

Porém, como quebrar este círculo de vícios? O filósofo carioca aponta dois caminhos convergentes para esta quebra, um subjetivo, e outro objetivo, correspondente às insuficiências de formação e de instrumental técnicos (Pinto, 2005b: 680). Para explicitar o processo de subjetivação, formula um conceito original e de riqueza complexa, a "consciência para o outro". Este conceito, válido somente para as regiões subdesenvolvidas, intermediaria a passagem das categorias de Marx de consciência em si em direção à consciência para si, num processo de formação da consciência crítica, da autonomia e de um projeto político das massas trabalhadoras. A consciência para o outro representaria o momento de alienação dialética, como um "proletariado exterior", onde um povo mimetiza as idéias e os modos de produção de outros (Pinto, 2005a: 264). Esta alienação é, entretanto, parte intrínseca do processo de tomada de consciência: Incorporando do ext erior modos tecnológicos e de pensamento, uma sociedade se defrontaria com o desafio de definir um projeto político próprio (ibid.). Atualizando o debate, nota-se que processos de globalização e localização não contrariam, senão reforçam esta dialética de busca de identidades próprias.

Já o caminho objetivo é expresso em uma dialética da relação entre centro e periferia. O autor distingue aqui dois momentos históricos: a "passividade e o atraso total das áreas marginais" (op. cit.: 263), e o período da empresa colonial, com transferência de tecnologia, explorando melhor os potenciais de exploração e compra da colônia (ibid.). Assim, a transferência de tecnologia, antes como arma e "principal ingrediente" de dominação (op. cit.: 266), tornar-se-ia dialeticamente arma de libertação, desencadeando as condições objetivas e intelectuais para um desenvolvimento autônomo, e a decadência necessária do imperialismo (op. cit.: 259).

 

Crítica e apreciação

Para finalizar, aponta-se para dois aspectos problemáticos da filosofia da técnica de Vieira Pinto. O primeiro é sua herança hegeliana e marxista da visão escatológica, otimista da história, onde a técnica é interpretada como libertação do homem, como essencialmente provedora de benefícios e da satisfação de necessidades. O problema relide na absolutização desta libertação e de seu caráter benéfico, dando fim ao processo dialético. Vieira Pinto alude à este Ômega como "[...] a chegada dos tempos em que desaparecerá o fenômeno do desnível" (Pinto, 2005a: 258). Estaríamos chegando "ao fim de todos os imperialismos" (op. cit.: 262) em virtude do "[...] surgimento da consciência de si na massa total da humanidade explorada [...] (ibid.), sendo o principal fator de condicionamento "a exigência de aumento de rendimento das técnicas" (ibid.). Ora, desta forma, o filósofo carioca apregoa de forma visionária o fim da desigualdade na criação tecnológica entre os povos (Pinto, 2005b: 687-688).

Atualmente, não tem grande ressonância pública e intelectual apostar-se numa grande síntese final, à maneira de Hegel ou Marx, escatologia esta que tem sua origem teológica e messiânica, na "Cidade De Deus" de Sto Agostinho, como aponta Joachim Detjen.10

O problema desta posição, é que não dá conta da dialética expressada pelo famoso debate entre pessimistas e otimistas na filosofia da técnica. Embora Vieira Pinto coloque tão expressivamente, ao início de sua obra, esta tensão fundamenlal enlre o maravilhamento pela natureza no imaginário grego, e o caráter terrível da condição humana na representação das tragédias de Sófocles (Pinto, 2005a: 29-35), o autor não chega a problematizá-la. Apenas contrasta o antigo com o moderno, pela passagem do deslumbramento pela natureza àquele pela técnica. Supostamente acima do debate entre otimistas e pessimistas, Vieira Pinto se revela continuamente como partidário do otimismo de cunho hegeliano-marxista. Para ele, a evolução tecnológica é posta como processo geral e necessário de libertação da humanidade, "[...] sendo cada vez menor a possibilidade de emprego dela como arma de opressão das massas" (op. cit.: 170). Sua crítica se dirige, neste aspecto, sobretudo contra M. Heidegger e A. Toynbee, mas ele ignora os problemas colocados pela Escola de Frankfurt,11 nem mesmo a discussão de Habermas sobre as teses de Marcuse, na publicação da "Técnica como Ideologia" ao final da década de 60, quando Vieira Pinto ainda elaborava "O Conceito de Tecnologia", que finalizou em 1974.12

Ora, estes autores da Escola de Frankfurt problematizam questões fundamentais para uma filosofia da técnica condizentes ao final do séc. XX: Para eles, necessidades não são meramente dadas, mas construídas, incorporando interesses e visões de mundo. Marcuse fala aqui das "falsas necessidades"13, (Marcuse, 1979). A razão moderna não aumenta somente a paleta de escolhas, mas cria novas formas de dominação, entra elas o problema do consumo enquanto projeto de vida para as massas (Horkheimer y Adorno, 2003). A racionalização do mundo vivido não representa somente um ganho de objetividade científica, mas pode indicar a colonização da autonomia individual por interesses do Estado e do mercado (Habermas, 2001).

Outra corrente teórica mais recente, que recupera um caráter antagônico do papel da técnica na atualidade, é o debate de Ulrich Beck (1986: 392) e Anthony Giddens (1991: 256) sobre os riscos modernos e o papel de especialistas, apontando que os efeitos negativos da sociedade tecnificada não são apenas colaterais, senão estão no cerne das contradições estruturais das sociedades da modernidade tardia, sobrepondo a distribuição de riscos àquela de renda.

A segunda ponderação a fazer, é a objeção de que a técnica é tratada pelo filósofo isebiano como politicamente neutra. Ora, a relação entre técnica e política está obviamente problematizada em Vieira Pinto, é um tema cenlral do autor, como expusemos acima. Entretanto, o caráter de mascaramento e dominação não está, em momento algum, relacionado à técnica em si mesma, senão somente se refere à sua ideologização e às relações estabelecidas entre centro e periferia.

O conceito de tecnologia do filósofo carioca, num outro momento tão brilhantemente exposto em suas contradições e sua dialética histórica, perde este caráter dinâmico, tão logo se desnuda uma filiação ao otimismo tecnológico: "[...], o progresso técnico, denunciado como maligno pela consciência simplista, manifesta na verdade a mais gloriosa e benéfica criação do homem" (op. cit.: 190).

Ora, a tecnologia incorpora, está embebida de, e reproduz, elementos de classe, de poder, de interesse e de preferências culturais e valorativas. Por exemplo, o desenvolvimento da soja transgênica RoundupReady da Monsanto, persegue uma área da life-science industry que oferece o máximo de lucratividade, envolvendo tentativas de monopolizar mercados de biotecnologia, herbicidas e sementes, e é voltada para uma cultura de exportação e para a expansão da agricultura intensiva (Kleba, 2000). Este desenvolvimento tecnológico representa o inverso de um desenho de produto voltado para os interesses sociais e ambientais de comunidades carentes. Não são somente os aspectos em torno desta tecnologia, mas é simultaneamente a própria soja engenheirada, enquanto produto, construto genético e complexo tecnológico, que carrega uma significancia de poder, ideologia e contestação, que representa patentes e monopólios, e que é alvo de intensa polêmica no campo internacional (ibid.).

A técnica expressa, portanto, de forma imanente, a partir de sua criação, a materialidade de formas de poder sobre os homens e a natureza, e longe de ser dada, ou simplesmente necessária, é freqüentemente motivo de dissenso social.

Postas estas observações, cabe recuperar a contribuição extremamente relevante de Vieira Pinto para uma filosofia da técnica latino-americana da atualidade. As reflexões que se tecem sobre a dialética da natureza e a existência humana, sobre as contradições da transferência tecnológica enquanto dominação e potencial de libertação, sobre a racionalidade do conhecimento de sociedades tradicionais, enriquecem deveras uma perspectiva de "periferia" sobre o papel da técnica.

Seu conceito origi nal de "consciência para o outro", deveria ser atualmente combinado, na complexidade de um mundo cada vez mais interdependente, com o conceito habermasiano de "inclusão do outro".14 A atualidade inspiradora de Vieira Pinto permanece em insights que refletem e questionam sobre o feitiço das imagens e do papel da ciência e tecnologia modernas, como expresso a seguir:

O laboratório de pesquisas, anexo à gigantesca fábrica, tem o mesmo significado ético da capelinha outrora obrigatoriamente erigida ao lado de nossos engenhos rurais (Pinto, 2005a: 42).

Enfim, os estudos na área da filosofia e sociologia da ciência e da técnica, podem tomar proveito das contribuições de Vieira Pinto sobre a ideologização e o papel da dominação, relacionados à ciência e à técnica nos dias de hoje, enquanto formas possíveis de anestesiamento, feitiço, ou colonização do futuro, a serem refletidas criticamente e dialeticamente na produção de novos saberes.

 

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Notas

1 Veja: <http://www.eclac.cl/Celade/ingles/CE_CELOrigen00i.html, 21.09.2006>.

2 César Benjamim, nota do editor, in Pinto, Álvaro Vieira (2005a).

3 Anexo do autor.

4 Trad. do autor.

5 Em diversas obras traduzidas internacionalmente, como "O processo civilizatório", e mesmo na "Teoria do Brasil", onde discute as "revoluções tecnológicas e processos civilizatórios, aplicando suas idéias no caso brasileiro", in Ribeiro, Darcy (1975).

6 La China (1421-1800); Razones para cuestionar el eurocentrismo, México: UAM-Iztapalapa, 2004, pp. 01-29. <www.afyl.org/china-dussel.pdf, 03.03.2006>.

7 Aron critica a escola realista americana por esta projetar a individualidade de pessoas no comportamento dos Estados, como se estes fossem entidades de vontade autônoma perseguindo objetivos próprios: "Essa semelhança esconde o essencial, a saber que os membros de uma coletividade obedecem às leis [...], enquanto os Estados, que circunscrevem a liberdade de ação dos indivíduos pelas obrigações que lhes impõem, até hoje se reservam o direito de recorrer à força armada e definir (..as próprias leis)", Raymond Aron (2002: 721).

8 Grifo original.

9 Entrevista: Pai da Terceira Via defende Política de Lula, Folha de São Paulo, 05/03/2006.

10 Detjen, Joachim (2003), "Aurelius Augustinus", in Massing P. y G. Breit [ed.] (2003), Demokratie-Theorien. Bonn: Bundeszentrale für Politische Bildung.

11 Vieira Pinto cita Marcuse, mas não discute seu conceito de falsas necessidades.

12 César Benjamim, nota do editor, in Pinto, Álvaro (2005a).

13 As necessidades falsas são heterônomas, determinadas por forças externas ao indivíduo. Elas são produto de uma sociedade totalitária, repressora dos pensamentos e comportamentos humanos.

14 Enquanto problema que afeta a convivência entre culturas diversas, por exemplo, a inclusão de estrangeiros nos países ricos e a percepção de outras matrizes culturais em qualquer país. Habermas, J. (1999), Die Einbeziehung des Anderen, Frankfurt a.M.: Suhrkamp.

 

Información sobre el autor

John Bernhard Kleba. Doutor em Ciências Sociais (Univ. de Bielefeld), prof. adjunto do Depto. de Humanidades, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (Brasil), lidera um Grupo de Pesquisa em "Tecnologia e Sociedade", e trabalha com sociologia e meio ambiente, ética, teoria política e epistemologia. Última publicação: "Construtivismo e Natureza — Controvérsias Sobre a Transgenia Segundo as Cosmologias Políticas", in XXX Encontro Anual Da ANPOCS — Associação Nacional De Pós-Graduação E Pesquisa Em Ciências Sociais, Caxambu (publicação digital em CD), 2006.

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