INTRODUÇÃO
As comunidades indígenas utilizam-se de técnicas tradicionais na construção de seus ambientes de convívio, sejam suas residências ou locais coletivos, com poucas variabilidades. Construídas com matérias-primas disponíveis, geralmente em madeira e cobertas com palhas de buritis (Mauritia flexuosa L.) e da palmeira inajá (Attalea maripa), sendo esta última muito utilizada no revestimento ou vedação das habitações. Diante do exposto, abordar os conhecimentos tradicionais de arquitetura e a prática do ajurí, que é o trabalho em mutirão na construção das casas, é importante e se justifica por auxiliar os professores realizarem a interação entre teoria e prática nas disciplinas estudadas. De acordo com Libâneo e Pimenta (1999, p. 267) os professores desempenham uma atividade teórico-prática, consequentemente, “[... ] é difícil pensar na possibilidade de educar fora de uma situação concreta e de uma realidade definida”, desenvolvendo nas aulas atividades que buscam aproximar os conteúdos escolares à realidade e às necessidades dos alunos.
A pesquisa teve como objetivos identificar os conhecimentos sobre a construção das moradias da Comunidade Araçá, no estado de Roraima, no Brasil, e a utilização nos processos de ensino e aprendizagem na educação escolar indígena, assim como, conhecer as condições ambientais e sustentáveis da comunidade. Para alcançar estes objetivos foi feita uma análise sobre as construções indígenas, as espécies vegetais utilizadas, a tecnologia aplicada e os diferentes saberes matemáticos existentes nas tipologias de construção das moradias da Comunidade Araçá. Ressalta-se que, por serem conhecimentos tradicionais desenvolvidos em suas práticas cotidianas, não há conhecimentos matemáticos escolares explícitos nessas construções, mas que esses conhecimentos envolvem estratégias matemáticas próprias, ou seja, modos de matematizar no mundo. Para Mattos (2016) matematizar tem a ver com a matemática vivida cotidianamente, corroborando Skovsmose (2001) quando afirma que matematizar significa desenvolver maneiras de entender e suprir as necessidades da realidade.
Buscou-se a etnoarquitetura como o processo de adaptação territorial e coletiva para a utilização do espaço. Ainda, utiliza-se a etnoarquitetura como o conjunto das estruturas construtivas que cada grupo sociocultural usa para abrigar os familiares no desenvolvimento da vida cotidiana (Silva, 2001). É pertinente o emprego da etnoarquitetura para que haja compreensão dos aspectos construtivos utilizados pela etnia, estabelecendo maneiras de conforto, comodidade e relação sustentável com o ambiente.
Os estudantes aprenderam que é importante respeitar a sabedoria dos antepassados, os costumes que ainda são difundidos, e necessários para a durabilidade natural dos materiais retirados das matas, utilizados nas construções das moradias. É importante observar que a coleta das madeiras e palhas precisa ser executada em um período específico do mês, ou seja, na lua cheia, para evitar a decomposição precoce provocada pela ação predatória dos fungos e outros xilógrafos (cupins). Estes saberes da educação indígena, entendida como aquela que ocorre cotidianamente na difusão dos saberes e fazeres tradicionais aos mais jovens, quando integrados à educação escolar indígena, possibilitam uma aprendizagem significativa (Ausubel, 2003), além de permitir a preservação da cultura e do ambiente (Mattos e Ferreira Neto, 2016).
A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E A RELAÇÃO COM A CULTURA
As primeiras experiências com a educação escolar indígena no Brasil começam a ser traçadas no processo histórico de contato, da exploração, negação da cultura e dos direitos dos povos indígenas. Para Meliá (1979), a escola está ligada à história da igreja no Brasil, com intenção de preparar os indígenas de acordo com os interesses dos colonizadores. A educação escolar indígena no Brasil esteve elencada por mudanças definidas na própria legislação e, em cada um desses períodos, a cultura indígena foi considerada de diferentes maneiras. O plano Nacional da Educação (Lei nº 10.172), no que se refere à Educação afirma que:
No Brasil, desde o século XVI, a oferta de programas de educação escolar às comunidades esteve pautada pela catequização, civilização e integração forçada dos índios à sociedade nacional. Dos missionários jesuítas aos positivistas do Serviço de Proteção aos Índios, do ensino catequético ao ensino bilíngue, a tônica foi uma só: negar a diferença, assimilar os índios, fazer com que eles se transformassem em algo diferente do que eram. (Brasil, 2001, p. 59).
Com base na trajetória histórica da educação escolar indígena, Roraima não difere de outros contextos do espaço brasileiro, pois também foi uma prática imposta pela colonização. No entanto, com a promulgação da Constituição Federal (Brasil, 1988), o Estado passou a promover, através da Secretaria Estadual de Educação, mecanismos que têm como objetivo uma educação escolar diferenciada, isto porque surgiram pressões de movimentos indigenistas, principalmente das entidades contrárias à política de apenas integrar a Nação.
A educação indígena sempre existiu e pode acontecer nos espaços comunitários, em que a cultura local está relacionada às atividades tradicionais desenvolvidas na aldeia. Esta prática, de acordo com Brandão (1981) é diferente da educação escolar, pois ocorre em todos os espaços, para a valorização da cultura da etnia. De acordo com esse autor:
Uma das principais características dessa forma de educação é a maneira de como é adquirido o saber, que é dado pouco a pouco, pelo simples ato de conviver e observar diferentes situações entre as pessoas, tanto no meio familiar como também na comunidade ao todo. (Brandão, 1981, p. 20).
Nessa perspectiva, quando falamos de educação indígena é necessário diferenciá-la da educação escolar indígena vivenciada na aldeia. Como já foi abordado, esta última estava pautada na imposição da cultura ocidental, baseada em livros acadêmicos fora do contexto indígena. Porém a educação escolar indígena permite aos indígenas terem acesso ao conhecimento, provocando novos desafios para esses povos. Dessa forma, entendemos que:
[... ] a educação indígena refere-se aos processos próprios de transmissão e produção dos conhecimentos dos povos indígenas, enquanto a educação escolar indígena diz respeito aos processos de transmissão e produção dos conhecimentos não-indígenas e indígenas por meio da escola, que é uma instituição própria dos povos colonizadores. A educação escolar indígena refere-se à escola apropriada pelos povos indígenas para reforçar seus projetos socioculturais e abrir caminhos para o acesso a outros conhecimentos universais, necessários e desejáveis, a fim de contribuírem com a capacidade de responder às novas demandas geradas a partir do contato com a sociedade global. (Luciano, 2006, p. 130).
Nesse contexto são estabelecidos os princípios organizadores da prática pedagógica que têm foco na diversidade cultural, sendo eles: a especificidade, a diferença, a interculturalidade e o uso das línguas maternas, princípios norteadores que vem encabeçando o novo projeto de se pensar e discutir o tema de educação escolar indígena. Esses princípios corroboram Henriques, Gesteira, Grillo e Chamusca (2007) quando afirmam que:
As experiências alternativas que inovaram a discussão e prática da educação escolar em um contexto de diversidade indígena firmaram categorias que se tornaram definidoras das escolas indígenas como uma categoria específica de estabelecimento de ensino. São características da escola indígena: a interculturalidade, o bilingüismo ou multiligüismo, a especificidade, a diferenciação e a participação comunitária. (p. 20).
Diante do exposto, torna-se imprescindível aliar a educação indígena à educação escolar indígena, norteando o ensino e a aprendizagem por meio da contextualização de aspectos construtivos das moradias e de sustentabilidade, tão presentes na cultura desses indígenas. Isso auxilia o estabelecimento das características firmadas para a educação escolar indígena.
CONSTRUÇÕES DAS HABITAÇÕES INDÍGENAS E A IMPORTÂNCIA DO AJURÍ
Para compreender melhor a arquitetura das casas indígenas e como eles as constroem, é necessário compreender os processos de transformação ao longo do tempo, das moradias indígenas. Na análise de Ribeiro (1995) buscou-se entender o processo da trajetória dos abrigos ou casas indígenas. A relação de contato dos indígenas com os colonizadores contribuiu para os processos de mudanças no estilo de vida indígena. De acordo com Santos (2014), as casas mudaram sua concepção arquitetônica com a chegada dos colonizadores. Devido ao intenso processo de ocupação dos territórios indígenas, as habitações modificaram-se. Com base na análise de Ribeiro (1995) as casas que eram construídas essencialmente de vegetais, alteraram-se para os casebres de taipa, adobe, tijolo, pedra e cal.
Os espaços mais expressivos para compreender a lógica da construção indígena são as malocas construídas de adobe. O adobe vem dos modelos urbanizados e sua matéria prima, o barro, é abundante na região. Sua fabricação não impõe dificuldade de manuseio. As casas de madeira e argila, também são expressivas na comunidade. Estes processos de construção são considerados sustentáveis e acessíveis, tendo em vista a mão de obra local. Em relação à utilização de alguns tipos de materiais nas construções mais recentes de algumas comunidades indígenas há algumas inquietações, do ponto de vista sustentável, uma vez que podem provocar impactos ambientais, além do distanciamento ou reconhecimento da realidade cultural. De acordo com Franco (2001):
Uma vez que o desenvolvimento sustentável apresenta além da questão ambiental, tecnológica e econômica, uma dimensão cultural e política, ele exige a participação democrática de todos na tomada de decisão para as mudanças que se farão necessárias para a implementação do mesmo. (p. 26).
Assim como as decisões são tomadas por toda comunidade, os conhecimentos culturais são ensinados aos mais novos pelos mais antigos. Um desses conhecimentos é o ajurí, que é um trabalho coletivo realizado quando se inicia a construção de uma casa. Ele é fundamental para a caracterização e formação organizacional através de um mutirão entre os moradores. Segundo Santos (2014), a prática do ajurí, envolve toda a comunidade. Dessa maneira, “todas as etapas são expressamente contempladas pelo pertencimento coletivo, cujo sentimento ainda permanece vivo nas comunidades Macuxi e Wapixana” (Santos, 2014, p. 190) e demais povos originários de Roraima, apesar das mudanças ocorridas na forma de construção das casas.
De acordo com o senhor Cassimiro, indígena Wapixana, descrito em Santos (2014), o processo lunar é um conhecimento milenar que deve ser respeitado para que as coberturas das casas resistam por mais tempo. Ele se refere ao ajuri ou mutirão, que é uma mobilização coletiva de pessoas para realizar um trabalho. Podemos observar em sua fala:
Ajudei a fazer casa, primeiro enfia os esteios, depois coloca as travessas, os esteios são de paus roliços, depois coloca as varas para colocar as palhas de buriti, depois cobre com as palhas de buriti. As palhas de buriti têm que ser tiradas depois da lua cheia, senão ela cria bichos (lagartas). Eu ajudei a fazer, a colocar palhas, depois faz a divisão, depois coloca os enchimentos para depois rebocar. Todas as pessoas ajudam, a gente fazia a ajurí (Bauk) que é igual a mutirão. (Santos, 2014, p. 190).
A ajuda mútua pode ser feita não só nas construções das moradias, mas em toda forma de atividade que caracterize o trabalho coletivo. Esta ação coletiva é importante para os professores relacionarem o cotidiano dos alunos com os conteúdos escolares, como parte integrante no processo escolar comunitário. Nesta perspectiva, é necessário compreender sobre a percepção dos atores sociais na relação comunitária e no contexto escolar. Assim, a construção de um espaço para partilhar conhecimentos em diversas áreas do saber é fundamental, como a etno-história, etnomatemática, etnogeografia e etnolinguística, pois cada recorte dessa construção se constitui como uma teia de significado que propicia a aprendizagem.
Alguns povos com história mais intensa de contato assimilaram aspectos culturais da sociedade não indígena. Por esta razão, muitas vezes, os rituais e a cultura material tradicional são desvalorizados. A partir da situação de contato, alguns aspectos como a língua materna, culinária, a técnica de construção das moradias foram desaparecendo e a matéria-prima substituída ao longo do tempo.
O ajurí, como prática coletiva, viabiliza a tomada de decisão conjunta. É uma prática que alerta para o desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, promove a convivência harmônica com o ambiente. Dessa maneira, o ajurí compreende aspectos inerentes a Etnomatemática tais como a utilização de saberes e fazeres tradicionais para a contextualização de conceitos matemáticos escolares; processa-se no coletivo para o compartilhamento desses conhecimentos e possibilita a interdisciplinaridade.
ETNOMATEMÁTICA A SERVIÇO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: CAMINHOS POSSÍVEIS
A formação dos professores tem sido uma das grandes preocupações das comunidades indígenas, uma vez que reflete suas mais prementes necessidades internas. É necessário preparar um professor não para repassar conhecimento, mas que seja um profissional capacitado para recriar e transformar a sua realidade, em conformidade com os seus alunos e com a comunidade. Diante disso, o Programa Etnomatemática fornece uma ferramenta fundamental na construção de uma prática escolar diferenciada para o ensino e a aprendizagem na educação escolar indígena, que garanta formas específicas de socialização por meio das crenças e dos valores ambientais e culturais dos povos indígenas.
Nessa perspectiva, D’Ambrosio (2011, p. 23) afirma que “há inúmeros estudos sobre a Etnomatemática do cotidiano. É uma etnomatemática não aprendida nas escolas, mas no ambiente familiar, no ambiente dos brinquedos e de trabalho, recebida de amigos e colegas”. Assumimos a etnomatemática, corroborando D’Ambrosio quando afirma que:
etnomatemática é uma forma de se preparar jovens e adultos para um sentido de cidadania crítica, para viver em sociedade e ao mesmo tempo desenvolver sua criatividade. Ao praticar etnomatemática, o educador estará atingindo os grandes objetivos da Educação Matemática, com distintos olhares para distintos ambientes culturais e sistemas de produção. Justifica-se inserir o aluno no processo de produção de seu grupo comunitário e social e evidencia a diversidade cultural e histórica em diferentes contextos. (D’Ambrosio, 2008, p. 8).
Dessa forma, ensinar matemática escolar em comunidades indígenas é um desafio. Cabe ao professor indígena fazer adaptações em suas estratégias de ensino que favoreçam a aprendizagem significativa (Ausubel, 2003), que é importante para a aquisição do conhecimento. Dessa maneira, ligando-a a cultura, a contextualização e a interdisciplinaridade, que são aspectos possíveis para auxiliar a etnomatemática, influenciando na qualidade da aprendizagem desenvolvida pelo aluno. Os alunos são estimulados e despertam o querer aprender por meio dos organizadores prévios, dos conceitos relevantes e daquilo que o aluno já sabe. Estes são impulsos cognoscitivos que dão origem, de maneira geral, a curiosidade, a busca, a descoberta, a predisposição para explorar, manipular, entender, enfrentar o contexto e chegar à solução satisfatória.
A aprendizagem significativa ocorre quando um novo conhecimento fica ancorado em conceitos pré-existentes que estão na estrutura mental do aluno. Entende-se que não é suficiente somente novas informações para que o aluno aprenda. É relevante o sentido dado ao conhecimento a ser adquirido para que o aluno seja afetado e queira aprender. Como fazer etnomatemática é muito mais que resolver problemas, é necessário proporcionar ao aluno agir, falar argumentando e justificando as respostas utilizando a sua linguagem, escrever utilizando linguagem e símbolos matemáticos, desenhar, refletir e evoluir por si próprio. “A etnomatemática propõe uma pedagogia viva, dinâmica, de fazer o novo em resposta a necessidades ambientais, sociais, culturais, dando espaço para a imaginação e para a criatividade” (D’Ambrosio, 2008, p. 10).
Freitas Filho, Mattos e Ramos (2018) alertam para a possibilidade de se aliar teoria e prática, tendo em vistas o viés etnomatemático como eixo integrador de ensino e de aprendizagem. Os autores afirmam que “através do desenvolvimento de aulas práticas com a participação efetiva dos educandos, aproximando os conteúdos à realidade dos mesmos e às suas necessidades nas comunidades indígenas” há a geração e a difusão de conhecimentos tanto acadêmico como o saber próprio das etnias indígenas, fortalecendo a cultura de cada povo e promovendo a integração entre eles (Freitas Filho, Mattos e Ramos, 2018, p. 537).
Há, portanto, o fortalecimento da identidade da etnia por meio da preservação das atividades tradicionais, sejam elas de construção, agricultura, artesanato, pintura corporal ou quaisquer outras. Além disso, ocorre o empoderamento dos indígenas pois percebem que em suas atividades cotidianas existem conhecimentos tradicionais. E mais ainda, entendem que esses conhecimentos têm o mesmo grau de importância que os conhecimentos acadêmicos e escolares apresentados em sala de aula.
Portanto, o Programa Etnomatemática de D’Ambrosio (2008) é um caminho importante e possível para viabilizar a aprendizagem significativa dos alunos, propiciando ao professor indígena utilizar um ensino mais apropriado aos seus alunos nas escolas das aldeias.
METODOLOGIA
O contexto da pesquisa se deu na Comunidade Araçá, localizada no Município de Amajarí, Terra Indígena (TI) Araçá no estado de Roraima, Brasil. A Escola Estadual Indígena Raimundo Tenente serviu como ponto de referência, pois está inserida no âmbito da questão. As atividades de pesquisa foram desenvolvidas com dez alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, um professor indígena de Matemática, oito alunos do 1º ano do Ensino Médio e um professor indígena de Biologia.
A metodologia de pesquisa utilizada foi a pesquisa de campo, já que uma das ações buscadas era baseada no que concerne o currículo da escola, focando os valores e as práticas que oferecessem um olhar sobre a educação escolar indígena, no sentido de valorizar os conhecimentos tradicionais. Nesse contexto, procedeu-se o levantamento de subsídios que possibilitassem a análise dos dados sobre as construções indígenas, especificamente as espécies vegetais utilizadas, tecnologia aplicada e os diferentes saberes matemáticos existentes nas tipologias de construções das moradias da Comunidade Araçá.
Os instrumentos utilizados foram observação participante na execução de maquete da habitação original indígena, entrevistas com moradores da comunidade sobre as técnicas de construções edificadas por eles na aldeia, captação de imagens e vídeos visando a correlação dos saberes matemáticos locais que foram trabalhados em sala de aula por meio da etnomatemática e elementos naturais empregados na arquitetura das moradias da comunidade, como a palha de buriti e suas propriedades.
A dinâmica da ação pedagógica foi desenvolvida em quatro momentos: aplicabilidade do TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) aos professores, pais ou responsáveis dos alunos, aulas de campo e execução das atividades. Como resultado final das atividades, construíram-se as figuras geométricas através de desenhos, pinturas, recorte e colagem, bem como a execução de maquete da arquitetura original da Comunidade Araçá.
RESULTADOS SOBRE AS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS COM OS ALUNOS DO SEXTO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL E DO PRIMEIRO ANO DO ENSINO MÉDIO
Durante a aula de campo com os estudantes da turma do sexto ano do ensino fundamental buscou-se reconhecer os saberes indígenas, através das técnicas construtivas desenvolvidas na comunidade, já que foi percebido não haver diferença entre as tipologias das casas dos povos Taurepang, Wapixana e Makuxi, na Comunidade Araçá, pois aparentemente são bastante semelhantes. Na observação sobre a construção das casas, os estudantes puderam perceber a contextualização das práticas tradicionais dessa arquitetura no ensino da matemática, por meio da forma de contagem, do período de extração da matéria-prima, e os elementos que compõem a estrutura das habitações, que são figuras geométricas.
Reconheceram um sistema de ideias matemáticas e os modos de lidar com a realidade, que os povos indígenas desenvolveram, por exemplo, a forma que encontraram para medir, utilizando o palmo, a polegada e a vara. Na estrutura da cobertura, identificaram a formação dos ângulos internos dos triângulos isósceles e trapézios escalenos (Figura 1(a) e 1(b)). Volta-se a ressaltar que essas analogias com os conteúdos da matemática escolar só foram possíveis devido ao olhar já impregnado de uma matemática escolar hegemônica.
Salienta-se, ainda, que esses conhecimentos tradicionais próprio da etnia são aspectos importantes para dar sentido aos conhecimentos escolares para esses alunos. Não se está, em momento algum, vulgarizando o saber científico, muito pelo contrário, se está colocando em ênfase conhecimentos tradicionais de grupos socioculturais que foram invisibilizados por longos tempos e que são imperiosos para a aprendizagem significativa dos alunos.
Em Mattos e Ferreira Neto (2016), vê-se conhecimentos tradicionais indígenas envolvidos na construção das moradias originais dos Paiter Suruí de Rondônia, que estão relacionados a conceitos matemáticos acadêmicos da geometria euclidiana, como, por exemplo, segundo os autores, a rigidez de um triângulo que é consequência da congruência lado-lado-lado. Da mesma forma, vê-se unidades de medidas e determinação de áreas do interior das malocas.
No formato da moradia, na comunidade Araçá, quando apresentado a planta baixa, os alunos identificaram perímetro e área em figuras geométricas planas (Figuras 2(a) e 2(b)) como o quadrado, retângulo e outras formas apresentadas pelo professor. Salientamos que as figuras, apresentadas aos alunos, foram elaboradas pelos autores em Autocad, software que disponibiliza ferramentas para criação de projetos que são desenvolvidos por arquitetos e engenheiros. Na forma arredondada da madeira dos elementos estruturais, os estudantes identificaram o cilindro.
Nessa perspectiva, tomando o viés etnomatemático (D’Ambrosio, 2011), configura-se a possibilidade de aprender significativamente e despertar o desejo em aprender os conteúdos matemáticos escolares. É sempre possível matematizar uma dificuldade (Skovsmose, 2001), quando estamos diante de um problema que necessita solução. Eles, os alunos, estão sempre observando essa relação cotidianamente e conseguem transpor para os conteúdos escolares.
Dessa maneira, pode-se constatar que a introdução dos saberes tradicionais da etnia sobre as construções das moradias tradicionais, em sala de aula, contribui para a aprendizagem significativa dos alunos, aumentando a participação e propiciando maior compreensão dos conceitos matemáticos escolares. Constata-se, ainda, que a ocorrência desse engajamento, obtido pelos alunos na aprendizagem dos conceitos escolares, foi devido ao emprego da cultura, vivenciada no cotidiano deles.
APRENDENDO DE FORMA CONCRETA E BUSCANDO O ABSTRATO
Para as atividades desenvolvidas em sala de aula com os alunos do sexto ano do ensino fundamental buscou-se uma forma mais dinâmica, aliando tarefas com utilização de material concreto para que pudessem argumentar, trocar ideias e expor conceitos já adquiridos, necessários para que os estudantes pudessem expressar sua compreensão sobre os conceitos básicos da geometria plana e espacial, por meio dos desenhos, pinturas, recortes e colagens. Dessa forma, possibilitou-se a interação, a criatividade e a participação de todos os alunos, em uma ação conjunta (Figura 3). Por meio dessas atividades, os educandos conseguem compreender e interpretar o aprendizado de forma concreta, trazendo aquilo que já está em sua estrutura mental para dar significação aquilo que está aprendendo.
De acordo com Charlot (2000) saber é relação e esta é repleta de valor e sentido, aspectos essenciais para propiciar a aprendizagem. Segundo o autor, “o saber é construído em uma história coletiva que é a da mente humana e das atividades do homem e está submetido a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão” (CHARLOT, 2000, p. 63). Da mesma forma, corrobora Mattos e Mattos (2019, p. 105) quando afirmam que “o saber é produto das relações sociais e por sê-lo constitui a cultura de cada povo. Este saber fica ancorado nas estruturas mentais de cada pessoa, possibilitando ser repassado de geração a geração”. Pode-se afirmar que a estratégia utilizada facilita o ensino e a aprendizagem dos conteúdos matemáticos escolares, já que permite o diálogo e a troca constante entre professor e alunos.
Os alunos verificaram que mesmo sem conhecimento escolarizado, os povos indígenas conseguiam construir suas casas, usando materiais apropriados para a construção. Há uma matemática própria que está presente nesses processos de construção, como geometria e unidades de medidas. Para exemplificar o modo como realizam a medida, o professor apresentou o sistema de vara (Figura 4), que é uma medida tradicionalmente empregada pela etnia, utilizando uma vara de 5 palmos de quem a produziu.
Para introduzir o conceito de palmo, o professor pediu aos alunos que cada qual medisse seu palmo com a régua, medida que vai do dedo polegar ao dedo mínimo, e fizessem comparações entre as medidas alcançadas. Dessa maneira, ficou claro para os alunos que cada palmo pode apresentar medida diferente. O professor mostrou aos alunos que o seu palmo corresponde a, aproximadamente, 20 centímetros. Como a vara tem 5 palmos, chegaram à conclusão que a vara produzida por ele mede, aproximadamente, 100 centímetros, correspondente a um metro.
HABITAÇÕES TRADICIONAIS: ETNOARQUITETURA
As atividades desenvolvidas com os estudantes do primeiro ano do ensino médio tiveram enfoque sobre os conhecimentos da tecnologia empregada na arquitetura das habitações na Comunidade Araçá, a importância da ação coletiva no momento da construção, o período favorável para a extração das espécies vegetais mais utilizadas e os saberes matemáticos locais.
A professora de Biologia, durante a pesquisa de campo, destacou a relevância da preservação e a valorização dos bens naturais encontrados nas matas próximas à comunidade, materiais próprios para a construção e manutenção das moradias. Ressaltou a importância do uso dos materiais naturais nas edificações, que influenciam no conforto térmico, economia, sustentabilidade, segurança e respeito ao meio ambiente. Esses são elementos da etnoarquitetura. Segundo Zanin (2006 como citado em Freitas Filho, Mattos e Ramos, 2018, p. 540):
A etnoarquitetura é uma expressão cultural da relação dos indivíduos com o ambiente que os cerca, sendo que nas atividades que a expressem são utilizados recursos naturais disponíveis para tais indivíduos, de modo que as estruturas desenvolvidas sob a luz desse conceito apresentam relação direta com o contexto físico, social e com a manutenção da vida.
As habitações na Comunidade Araçá têm características de um barracão retangular, que em média ocupam uma área de 32 m². Entretanto, variam bastante o tamanho, dependendo do número de pessoas da família que irão ocupar o espaço. As paredes são elevadas com a técnica do pau-a-pique ou taipa de mão ou tijolos de adobe. Partindo desse princípio, os alunos foram agrupados para desenvolverem a confecção de uma maquete de uma construção tradicional, conforme a Figura 5.
O uso de maquetes de construções originais indígenas é uma metodologia utilizada por professores e alunos na educação escolar indígena. Em Mattos e Mattos (2018) temos o uso de maquetes de construções originais dos Paiter Suruí no ensino de conhecimentos tradicionais e de conteúdos escolares na educação escolar indígena. Também, em Freitas Filho, Mattos e Ramos (2018), o uso de confecção de maquetes representativas de construções de povos indígenas do Sudeste do estado do Pará foi utilizado como resgate cultural daqueles povos e para explorar e dar significado a conteúdos da matemática escolar, em uma turma indígena do Instituto Federal do Pará.
Da mesma forma, aqui os alunos também foram envolvidos desde a elaboração de como seria a maquete até a coleta dos materiais empregados. Em sala de aula os alunos utilizaram a palha do buriti como elemento principal para a idealização da ação. Do caranã (nome indígena do talo da folha do buriti), foram confeccionados as estacas, linhas, travessas, guieiras, caibros, cumeeira e pontalete. Do talo das palhas, foram confeccionadas as ripas e com as palhas a cobertura. Para o acabamento foram utilizados o pó e os grãos maiores (solo), também do caranã (Figura 6).
A confecção desta maquete de habitação possibilitou apresentar alguns termos de arquitetura e a função que cada elemento da construção representa no conhecimento dos indígenas, que pode se apresentar de forma distinta no conhecimento não indígena. Na análise do telhado foram apresentadas três partes: a estrutura, a cobertura e a captação de águas pluviais. Foi levado em consideração a forma, o sistema de captação de águas de escoamento, o tipo de cobertura empregado e caimentos por meio da planta baixa apresentada aos alunos (vide Figura 2, planta de cobertura).
A estrutura é o conjunto de elementos que irá suportar a cobertura e a parte do sistema de captação de águas pluviais. A estrutura do telhado é chamada de tesoura, comumente empregada nas edificações da comunidade e é considerada simples na sua constituição. As peças que compõem a tesoura são: travessa, guieiras ou tacaniças e pontalete, que podem ser identificadas nas Figuras 7 e 8. Foi apresentado aos alunos os termos comumente utilizados em arquitetura tais como: linha, tirante ou tensor; perna, empena ou asa e pendural.
Fonte: dos autores.
Para os indígenas a travessa tem a mesma função de tração que a linha (termo ocidental) na tesoura. A linha (indígena) são as vigas longitudinais que servem de apoio para a tesoura e caibros. Quanto à estrutura arquitetônica, as estacas exercem as mesmas funções que as colunas de sustentação de apoio nas edificações em alvenaria de tijolos cerâmicos. As estacas são os elementos dispostos verticalmente, que são alocadas nas extremidades do plano retangular e nas posições onde suportarão o madeiramento das linhas, travessas e tesoura.
De acordo com Mattos:
cabe ao professor propor tarefas que tenham situações contextualizadas na realidade do aluno; estabelecer o esforço que o aluno despenderá para realizar a tarefa de acordo com seu ritmo e suas características de desenvolvimento e prever os resultados esperados, bem como, que caminhos ele pode seguir, a fim de alcançar resultados satisfatórios, que argumentações pode construir, deixando que ele perceba sua capacidade para tal. (Mattos, 2018, p. 742).
Nessa perspectiva, apresentar como as construções tradicionais eram elaboradas, permitiu aos alunos, terem uma nova visão sobre os conhecimentos gerados e difundidos em sua etnia. Essa nova visão tornou possível contextualizar conteúdos matemáticos escolares de forma criativa e significativa.
A tesoura do telhado deu significado aos alunos de vários conceitos da geometria euclidiana. Por exemplo, a inclinação, que é o ângulo entre a guieira e a travessa; paralelismo de retas, contextualizado pelas ripas; perpendicularismo de retas, dado pelo ângulo reto entre o pontalete e a travessa; semelhança dos triângulos formados pelas guieiras e as travessas; e de teoremas importantes como Teorema de Tales e Teorema de Pitágoras.
Assim, constata-se com a pesquisa que nas construções, das moradias da comunidade Araçá, há uma etnomatemática que pode ser usada na escola local para valorizar a cultura e ancorar conceitos da matemática escolar. Essa forma própria de matematizar dessa comunidade, gerada e difundida pelos seus membros, vem sendo passada de geração em geração por meio do ajurí.
CONCLUSÕES
A casa representa um lugar sagrado para os povos indígenas. É o local onde vivem e criam seus filhos, dessa forma, deve ser bem construída. Para construir as moradias, os indígenas utilizam conhecimentos tradicionais que são passados de geração a geração, ao longo dos tempos. Na construção da casa, reconhece-se um sistema de ideias matemáticas, escolar e do cotidiano, e os modos de lidar com a realidade que os povos indígenas desenvolveram, como, por exemplo, a forma encontrada para medir.
Buscou-se, nas maneiras de matematizar (Skovsmose, 2000) da etnia, recursos para contextualizar e trabalhar interdisciplinarmente os conteúdos matemáticos escolares, entendendo que essa matematização da realidade implica construções de estratégias para solucionar os problemas existentes. Considera-se essa matematização repleta de relações vividas com o saber e construído no passar da história (Charlot, 2000). Portanto, essa forma de matematizar é produto das relações socioculturais dessa etnia.
Durante o desenvolvimento das atividades, os alunos puderam observar como há matemática nas práticas cotidianas desenvolvidas pela comunidade. A matemática vivida no cotidiano da aldeia é uma produção intelectual própria que abrange saberes e fazeres tradicionais. Quando essa matemática é levada à sala de aula, ressignifica os conhecimentos escolares, possibilitando aos alunos desenvolverem uma aprendizagem significativa, como apresentada por Ausubel (2003), já que os novos conhecimentos são ancorados em conhecimentos já adquiridos e que estão na estrutura cognitiva deles.
As atividades propostas, em sala de aula ou fora dela, possibilitaram ao professor contextualizar alguns conceitos da matemática escolar, fazendo com que os alunos relacionassem esses conceitos com as práticas tradicionais, de maneira interdisciplinar e significativa. A contextualização dos conceitos matemáticos escolares, por meio de atividades desenvolvidas fora da sala de aula, trouxe um caráter mais dinâmico e mais atrativo as mesmas. Além disso, reafirmou a coletividade, aspecto que eles valorizam e praticam na aldeia em ações e tarefas cotidianamente, como é o caso do ajuri na construção das moradias. Pode-se afirmar, ainda, que essas atividades trouxeram a preocupação com a escassez de alguns materiais que são utilizados para a construção das moradias e a necessidade de preservação da floresta para sobrevivência da aldeia.
Trazer os saberes e fazeres cotidianos da aldeia, tanto para o ensino como para facilitar a aprendizagem, pressupõe o fortalecimento da identidade bem como o empoderamento dos membros dela. É trabalhar a cultura a favor das relações desenvolvidas entre os indígenas, preservando-a. Nessa perspectiva, a cultura endossa os saberes e os fazeres de cada grupo social como sendo um produto cultural, produzido por meio dos seus artefatos, mentefatos e sociofatos (D’Ambrosio, 2011) e valorado pelas pessoas que compõem esse grupo.
Dessa forma, pelo viés etnomatemático (D’Ambrosio, 2011) foi possível relacionar a matemática própria das etnias, que está implícita no cotidiano dos alunos. Essa matemática própria está presente nas construções, mas não só nelas. Está em qualquer atividade indígena, que muitas vezes passam despercebidas e não são aproveitadas para estimular a aprendizagem significativa dos alunos.
Durante o desenvolvimento da pesquisa, alguns aspectos foram observados e, por não estarem no escopo da investigação, não foram explorados. Um desses aspectos que provocou inquietação foi a quase extinção dos buritizais e, portanto, a pouca utilização dessas árvores nas construções das moradias. Pensa-se ser necessário um trabalho com os indígenas de produção de mudas e reflorestamento dos buritis no local da comunidade.