Introdução
Desde a nacionalização massiva de estabelecimentos privados no âmbito da chamada ofensiva revolucionária da década de 1960 até a crise da década de 1990 provocada pelo desaparecimento do bloco socialista e, por extensão, do Conselho para Assistência Econômica Mútua (Comecon), a propriedade dos meios de produção em Cuba foi fundamentalmente estatal.1 A partir do período especial e como resultado tanto da crise pela qual o país passava como das medidas para combatê-la, a propriedade privada dos meios de produção foi ganhando espaço tanto no debate público quanto no ordenamento jurídico e na realidade social cubana.2 Estas mudanças na estrutura de propriedade, embora resultantes de condições críticas e extremas, foi assimilada e incorporada por vários intelectuais e gestores de política econômica e social em Cuba como herdeira de debates que tiveram origem na década de 1960, quando duas formas de planificação econômica, o sistema orçamentário de financiamento e o sistema de cálculo econômico ou orçamentário autônomo, foram propostas para contribuir no processo de transição socialista da ilha.
Com a implementação da nova Constituição da República de Cuba de 2019 e a correspondente atualização do modelo de desenvolvimento cubano, o debate sobre a propriedade dos meios de produção foi retomado. Sendo assim, a explicação teórica da propriedade dos meios de produção e do debate que gera como elemento fundamental no sistema de relações sociais de produção cubano é de grande utilidade para entender as dinâmicas da política econômica e as adversidades da ilha no seu processo de racionalização da transição socialista.
No presente trabalho, é analisado a evolução no debate sobre a propriedade dos meios de produção na Cuba socialista, aprofundando em dois períodos: o primeiro entre os anos 1961 e 1965 e o segundo, mais atual, entre 2007 e 2019. Por meio da análise de referências publicadas em documentos, artigos e outros textos, é realizado um esforço para auxiliar na compreensão das principais categorias trabalhadas em cada fase do debate cubano nos dois períodos trabalhados. As principais fontes trabalhadas são primárias: declarações, livros, artigos e entrevistas de participantes importantes do debate cubano sobre a propriedade dos meios de produção, assim como documentos jurídico-políticos e notas oficiais do governo cubano para ambos os períodos. A tese da pesquisa é que o debate cubano sobre a propriedade dos meios de produção passou de abordar categorias mais abstratas a menos abstratas ao longo dos anos, de forma que questionamentos sobre como viabilizar a transição socialista ocupariam os esforços dos intelectuais e dirigentes políticos em um primeiro momento e com o passo do tempo perderiam espaço ante as preocupações e reflexões de caráter mais instrumentalistas e funcionalistas de manutenção do aparato burocrático cubano, como resultado das próprias contradições geradas pelos esforços de racionalização do mercado em uma economia centralmente planificada.
Dessa forma, com o objetivo de analisar os debates sobre propriedade dos meios de produção em Cuba, suas consequências na estrutura de propriedade cubana, assim como as mudanças de interpretação dos desafios da ilha, este trabalho é dividido em quatro partes, incluindo a introdução. Na segunda parte, é apresentada uma revisão sobre as condições da propriedade dos meios de produção nos primeiros anos da revolução. Na terceira, são introduzidos os debates que acompanharam as mudanças na estrutura de propriedade cubana e explicados suas consequências e principais eixos de análise. Por último, na quarta parte, são apresentadas as conclusões e considerações finais sobre as tendências atuais do debate.
A propriedade nos primeiros anos da revolução
As condições políticas, econômicas e sociais específicas da sociedade cubana da primeira metade do século xx condicionaram as transformações realizadas nos primeiros anos que seguiram o triunfo revolucionário. A economia cubana, monoexportadora de açúcar, sofria constantes crises e padecia de um caso clássico de dependência externa em relação aos Estados Unidos (Díaz, 2000). Em 1958, a propriedade dos meios de produção cubanos apresentava alto grau de concentração, sendo que 73.3% da terra estava em posse do 9.4% do total de proprietários de terra (Rodríguez, 1987; Sovilla, 2019). Embora a estrutura de propriedade fosse altamente concentrada, as formas de propriedade eram heterogêneas, sendo composta principalmente por grandes propriedades capitalistas de monopólios estrangeiros, empresas públicas, latifúndios, médias e pequenas propriedades industriais e rurais e pela pequena produção mercantil.
Ainda em 1958, a Constituição de 1940 no seu artigo 24 não permitia as nacionalizações da propriedade privada, salvo em casos muito excepcionais nos que a lei exigia uma indenização.3 Em 1959, com o triunfo dos revolucionários, foi promulgada a lei fundamental que autorizava o confisco de bens do ex-ditador Fulgencio Batista e de seus colaboradores. Algumas modificações realizadas pelo novo governo no artigo 24 da constituição permitiram a nacionalização das propriedades de cubanos acusados de atividades contrarrevolucionarias ou de abandonar o país, além de permitir intervenções em algumas empresas dos setores de extração e refinaria de petróleo e telecomunicações (Miranda, 1996). Embora o artigo 24 modificado ainda proibisse a confiscação de bens, autorizava esta ação contra pessoas naturais ou jurídicas responsáveis por crimes cometidos contra a economia nacional ou contra as entidades da administração pública, contra quem se enriqueceu (ou tivesse enriquecido) ilicitamente ao amparo do poder político e contra quem fosse sancionado pela comissão de delitos que a lei qualificava como contrarrevolucionários.4
Em um processo paralelo, o Ministério para a Recuperação de Bens Malversados começou a intervir e nacionalizar as propriedades da "burguesia comprometida com a má administração dos governos anteriores" (Sovilla, 2019, p. 14). Com a primeira reforma agraria,5 dirigida pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária, foi estabelecido que os camponeses só poderiam ter um máximo de 30 caballerías6 de terra e o que exceder essa quantidade, passaria a ser propriedade do Estado. As reformas mencionadas sentaram as bases de um poderoso processo de redistribuição da riqueza e conformaram a etapa conhecida como liberação nacional,7 que resultou na criação de um amplo setor estatal.
As nacionalizações e a reforma agrária tiveram um papel importante no aumento das tensões com o governo dos Estados Unidos. Em junho de 1959, a administração estadunidense enviou a seguinte nota diplomática ao governo cubano:
Los Estados Unidos reconocen que, según el Derecho Internacional, un Estado tiene la facultad de expropiar dentro de su jurisdicción para propósitos públicos y en ausencia de disposiciones contractuales o cualquier otro acuerdo en sentido contrario; sin embargo, este derecho debe ir acompañado de la obligación correspondiente por parte de un Estado en el sentido de que esa expropiación llevará consigo el pago de una pronta, adecuada y efectiva compensación [@SociedadCubanaDeDerechoInternacional1989].
Dessa forma, o governo dos Estados Unidos pressionava para que as expropriações tivessem como contrapartida o pagamento de uma "adequada e efetiva compensação". Porém, frente ao fato de que alguns dos donos das propriedades nacionalizadas foram ativos participantes da ditadura batistiana que controlava o país desde março de 1952 e que o Estado enfrentava uma enorme dívida pública, o governo cubano respondeu negativamente as exigências estadunidenses.
Com a posterior aplicação da Lei 890 de 1960, autorizando a expropriação das empresas e terras nacionais, começa o período de transição socialista e tanto o comércio exterior como o sistema bancário passam a ser totalmente controlados pelo Estado. Esse mesmo ano foram expropriados empresas e bens de pessoas jurídicas e naturais dos Estados Unidos. Foram nacionalizadas as grandes empresas do serviço público, açucareiras, bancárias e petroleiras.8 Também foram nacionalizadas o restante das principais indústrias do Cuba. Foi declarada pública a função bancária, nacionalizadas todas as empresas bancárias e o governo tomou o monopólio do sistema financeiro cubano.9 O modo de compensação utilizado consistiu na oferta de bons do Banco Nacional de Cuba.
O 14 de outubro de 1960, foi criada a Lei de Reforma Urbana que determinou que os imóveis destinados a aluguel de moradia não ocupados no momento pelos seus proprietários passariam a ser propriedade dos seus ocupantes. procurava garantir o direito dos arrendatários de usufruírem das casas que possuíssem como usufrutuários ou compradores. A lei estabelecia que os arrendatários precisavam pagar uma compensação aos antigos proprietários e credores hipotecários nacionais ou estrangeiros, que incluía a cobrança do valor dos imóveis afetados e, posteriormente, o direito a uma anuidade ou pensão vitalícia.
As primeiras sanções do governo estadunidense não demoraram em chegar: em junho de 1960, as empresas de petróleo dos Estados Unidos proibiram as suas refinarias na ilha de processar o petróleo cubano e anunciaram que não enviariam mais petróleo ao país.10 Em 1961, foram confiscados todos os imóveis, móveis, bens, valores e direitos de qualquer tipo dos cidadãos cubanos que se ausentaram com caráter definitivo do Cuba.
À radicalização provocada pelas tensões com Estados Unidos se somam as atividades políticas dos opositores internos e externos ao novo processo político, principalmente da burguesia ainda existente em Cuba. Após a invasão por playa Girón em abril de 1962, o processo de radicalização se o governo passou a tomar atitudes ainda mais drásticas como a expropriação do comércio de varejo.
Em 1962, a profunda crise de desabastecimento e a escassez de produtos foi interpretada pelo governo como especulação, ocultação e açambarcamento de mercadorias por parte dos comerciantes. Diante disso e baixo o amparo da Lei 1.076, foi decidido nacionalizar todos as empresas e negócios que empregassem trabalhadores não familiares nos setores de roupa, calçados e ferragens.11 A lei de nacionalização de empresas comerciais de médio porte também previa indenização aos seus proprietários, que foi estabelecida inicialmente a 10% de seus valores.
Com as reformas e leis aplicadas, a estrutura de propriedade teve uma rápida e profunda transformação nos primeiros anos do governo revolucionário. Como explicam Valdés, Díaz, e Rivas (2018), a propriedade nos primeiros quatro anos do novo governo apresenta um caráter marcadamente heterogêneo, coexistindo três formas de propriedade sobre os meios de produção: a) a propriedade estatal socialista, abarcando a maior parte da produção industrial, a totalidade do comércio exterior, entre outros; b) a propriedade privada capitalista, compreendendo principalmente algumas parcelas do setor agropecuário e do comércio; e c) a propriedade privada individual do pequeno produtor mercantil, que se manteve no setor agropecuário, no transporte urbano de passageiros, na pequena produção industrial e outros.
Com a segunda reforma agrária em 1963, o limite das propriedades de extensão de terras permitido aos camponeses passou de 30 a cinco caballerías e a propriedade da terra passou a ser quase exclusivamente do Estado socialista, sendo que todas as decisões de produção e gestão de recursos agropecuários ficaram a cargo do Instituto Nacional de Reforma Agrária. Todavia, nos primeiros anos da Revolução foi iniciado um processo de proliferação de formas cooperativas de trabalho que teve seu auge nos anos 70 com as organizações de bases da Associação Nacional de Agricultores Pequenos, as brigadas de ajuda mútua e as cooperativas de produção agropecuária.12
Na indústria, as expropriações também se aceleraram, impactando negativamente a economia no primeiro momento. A partir de 1963, a propriedade estatal dominou todos os setores da economia e se consolidou, em 1968, com a chamada ofensiva revolucionária, em que foram nacionalizadas 58 000 pequenas e médias empresas sem compensação.13 Até 1990, a estrutura de propriedade cubana esteve formada principalmente pela propriedade estatal socialista em todos os setores, pela pequena propriedade privada do produtor mercantil na agropecuária e transporte e pelas cooperativas (Sovilla, 2019; Valdés, Díaz, e Rivas, 2018) (ver tabela 1).
Setor | 1960 | 1985 |
---|---|---|
Agricultura | 37 | 80 |
Indústria | 85 | 100 |
Construção | 80 | 100 |
Transporte | 92 | 100 |
Comércio varejista | 50 | 100 |
Comércio atacadista | 100 | 100 |
Comércio exterior | 100 | 100 |
Bancário | 100 | 100 |
Fonte: Vidal (2005, p. 277).
Como é possível observar, a etapa de liberação nacional de 1960, o generalizado processo de nacionalizações da ofensiva revolucionária de 1968 e os demais esforços que objetivaram o controle total do Estado dos meios de produção em Cuba, fizeram com que, já em 1985, a propriedade estatal ocupasse e dominasse praticamente todos os setores na economia. Os argumentos que guiaram o processo de estatização da economia são apresentados na próxima seção.
O debate sobre a propriedade
Grosso modo, entre os clássicos do marxismo é consenso que para realizar a transição entre o modo de produção capitalista e o comunista é necessária uma fase intermediária chamada de socialismo.14 Considerando as principais reivindicações dos autores e movimentos marxistas, é possível considerar que o socialismo é uma fase de transição ao comunismo que reclama medidas que permitam uma expropriação e propriedade cada vez mais social e menos privada sobre os meios de produção. Todavia, nas economias socialistas a propriedade social dos meios de produção pode assumir diferentes formas (cooperativas autónomas, propriedade estatal, pequena propriedade privada, etc.). Por outro lado, não há consenso sobre como deve ser o sistema de planificação e o sistema de propriedade dos países socialistas no processo de transição.
Nas Repúblicas Socialistas Soviéticas, o modelo de planificação central organizado através de grandes empresas estatais em determinados setores da economia possibilitou um acelerado processo de industrialização e um rápido desenvolvimento da indústria pesada na primeira metade do século xx, mas também apresentava uma série de limitações que passaram a ser amplamente conhecidas depois nos anos 80 e 90. Considerando tais limitações, o economista soviético Evsei Liberman, em 1962, publicou um artigo onde propôs que o sistema de incentivos e os objetivos das empresas socialistas fossem modificados.15 O texto de Liberman e as posteriores respostas que gerou inauguraram um debate no qual várias das ineficiências do modelo econômico aplicado até então foram reconhecidas e se discutiram novas propostas de equilíbrio entre centralização e descentralização das decisões econômicas, assim como a autonomia das empresas e o papel da propriedade privada nas economias de transição socialista (Kerblay, 1963).
Em Cuba, no mesmo ano da publicação de Liberman (1969), surgiu um debate paralelo influenciado não só pelas contradições e dificuldades pelas que atravessava o processo de transição soviético, mas também pelas próprias e específicas dinâmicas internas do desenvolvimento capitalista da ilha. Como país periférico, subdesenvolvido, de diminuto mercado interno e escassos recursos naturais, além de herdeiro de um agressivo período colonial e neocolonial, a sua transição ao socialismo requeria uma forte coesão social e uma direção preparada e comprometida com as contradições do próprio processo cubano de transição. Tais características a encaixaram facilmente na ideia de elo mais fraco da cadeia imperialista.16
Marx e Engels (2020) explica que no sistema capitalista a produção é necessariamente social, mas a sua apropriação é privada, o que origina uma contradição que só pode ser resolvida com o estabelecimento da propriedade social sobre os meios de produção. Nesse ponto emergem uma série de perguntas geradoras de debates entre os teóricos marxistas ao analisar as sociedades socialistas de transição. É necessário estatizar toda a propriedade dos meios de produção ou existe espaço para a propriedade não estatal? Qual é o tamanho relativo da propriedade privada que pode ser permitido para manter a sustentabilidade do processo de transição? Qual a relação da estrutura de propriedade e o sistema de incentivos e a produtividade? Todas essas perguntas foram semeadas no debate cubano sobre propriedade na transição socialista auxiliado pelas práticas dos outros países socialistas e as elaborações teóricas acumulada até 1960.
Quase dois anos após a vitória revolucionária e uma vez rompidas as relações com os Estados Unidos com a estatização das empresas estadunidenses, especialistas marxistas em planificação, entre eles o polonês Michael Kalecki e o francês Charles Bettelheim, chegaram a Cuba para aplicar o sistema de planificação checoslovaco na indústria e no comércio exterior. No entanto, a inadequação do sistema implantado e sua necessária substituição acarretou uma série de discussões entre 1961 e 1964 (véanse Bettelheim, 1964; Guevara, 1964; Mandel, 1967) sobre os elementos necessários para realizar a transição socialista, nas quais participaram os principais dirigentes do governo, intelectuais cubanos e estrangeiros.
Entre os diversos temas abordados, destacam-se o tipo de planificação, os estímulos materiais e morais, o grau de centralização das decisões econômicas, o papel do mercado e a estrutura de propriedade adequada para realizar a transição socialista considerando os dilemas do subdesenvolvimento cubano. As duas propostas foram os sistemas de planificação soviético e o sistema de financiamento centralizado, sendo conhecidos, respectivamente, como cálculo econômico e sistema de financiamento orçamentário, tendo como protagonistas duas figuras centrais nos primeiros anos da transição. Por um lado, Carlos Rafael Rodríguez, um dos principais dirigentes do Partido Socialista Popular17 e presidente do Instituto Nacional de Reforma Agrária; pelo outro, Ernesto Guevara Lynch de la Serna, ministro da Indústria e um dos principais intelectuais do novo Estado cubano.
Sistema de financiamento orçamentário e sistema de cálculo econômico
No sistema de financiamento orçamentário as empresas funcionam como unidades produtivas do Estado, de forma que deixam de existir contratos entre as empresas estatais e em seu lugar são realizadas designações administrativas.18 As empresas não apresentam individualidade jurídica nem autonomia, sendo rigidamente insertadas no plano nacional de desenvolvimento e produção como parte de um conglomerado ou trust do seu respectivo setor de produção. A propriedade privada dos meios de produção fica reduzida à pequena propriedade de terra para consumo próprio e o Estado passa a ser o único proprietário do restante dos meios de produção. Nesse modelo, o Ministério da Fazenda e o Banco Nacional de Cuba19 estavam encarregados dos controles do financiamento dos custos das unidades operativas e todos os excedentes produzidos formam parte do orçamento do Estado, de forma que o orçamento individual não dependia da rentabilidade da empresa e sim do estabelecido pelo plano (Guevara, 1964; Mandel, 1967).
No sistema orçamentário de financiamento, a passagem de produtos de uma empresa para outra não é considerado uma transação comercial, mas uma redução ou incremento de valores na forma de transferência material. Como os objetivos e metas de produção são estabelecidos pelo plano central, não existem incentivos materiais para a produtividade empresarial. Os incentivos monetários individuais, se bem existiam, eram de forma bastante reduzida e foram diminuindo à medida que o processo de transição foi avançando, enquanto os incentivos morais seriam cada vez mais utilizados (Guevara, 1964).
Por outro lado, o sistema do cálculo econômico é baseado no autofinanciamento e na maior independência segundo o qual as empresas não podem acessar o orçamento do Estado para financiar seus gastos, mas precisam se apoiar na própria renda gerada pela produção ou no financiamento através de créditos com incidência de juros e na eliminação das empresas não rentáveis que apresentem déficits permanentes.20 Segundo Mandel (1967) e Fernández (1980), a independência econômica no uso dos recursos, as liberdades contratuais, a utilização do crédito bancário e a permitida procura pelo lucro podem deixar espaço para um setor não estatal de maior tamanho e peso relativo na economia. Dessa forma, embora exista certa subordinação a planos econômicos centralizados, uma parte considerável das empresas operam em esquemas de concorrência e submetidas a outras categorias contábeis típicas do sistema capitalista.
No sistema de cálculo econômico, a gestão e a atividade econômica das empresas dependem dos créditos que os bancos concedem, impondo taxas de juros e avaliando a rentabilidade da unidade produtiva. Dessa forma, os bancos na função de estrutura financeira exercem algum grau de controle sobre a elaboração dos programas de produção e a gestão produtiva da empresa, enquanto as transações entre empresas são estabelecidas sobre critérios mercantis. Esses critérios de rentabilidade e gestão produtiva também foram aplicados dentro das unidades produtivas, dando lugar a prêmios por produtividade e métodos de incentivo material.21
Vasconcelos (2012), num trabalho que capta competentemente a fase inicial do debate sobre a propriedade em Cuba, explica um dos principais argumentos que sustentavam o financiamento orçamentário:
O raciocínio histórico estrutural que sustenta a defesa do sistema orçamentário de financiamento pretende provar que a forma centralizada de gestão é mais avançada para se atingir os objetivos do socialismo, porque o capital monopolista atingiu um nível técnico e administrativo superior ao capital concorrencial. O imperialismo seria, de fato, a fase superior do capitalismo. Superior em termos técnicos, produtivos e históricos. O nível de desenvolvimento do capital monopolista deveria, portanto, ser aproveitado para acumulação socialista (Vasconcelos, 2012, p. 28).
Com isso, entende-se que para os defensores do sistema de financiamento orçamentário, a centralização dos meios de produção permitiria uma escala maior de produção de forma similar ao esquema das empresas que alcançam alta concentração do capital nos países imperialistas, permitindo economias de escala.22 Assim, não seria desejável recriar as características do capitalismo concorrencial aplicando o cálculo econômico porque isto geraria uma menor escala de produção, de forma que não contribuiria adequadamente no desenvolvimento das forças produtivas.
Um dos principais argumentos semeados pelos defensores do cálculo econômico em oposição ao raciocínio anterior partia da inexistência dos progressos do capitalismo na ilha. Karl Marx e Friedrich Engels, no Manifesto comunista (2020) afirmam: "Propriedade adquirida a partir do próprio trabalho! Vocês se referem à propriedade pequeno burguesa ou do pequeno camponês, que antecedeu à propriedade burguesa? Essa não precisamos abolir; o desenvolvimento da indústria já a aboliu e continua abolindo diariamente" (Marx e Engels, 2020, p. 34).
Com essa citação é possível constatar como os autores acreditavam que o desenvolvimento da propriedade e a produção capitalista criariam as condições para o desaparecimento da pequena produção mercantil, portanto, a existência desse tipo de produção não seria um problema para a transição socialista porque ela já não existiria. No entanto, fenômenos como o imperialismo fizeram que esse não fosse precisamente o caso de Cuba, pois, como não era um dos países de capitalismo mais avançado, ainda apresentava categorias como a pequena produção mercantil. Dessa forma, os defensores do sistema de cálculo econômico afirmavam que Cuba ainda não estava pronta para um processo agressivo de centralização produtiva porque o desenvolvimento das forças produtivas ainda era precário. Assim, a propriedade privada dos meios de produção das cooperativas de produção com financiamento autônomo viabilizaria a transição, sendo sujeitos econômicos mais ajustados ao estado do desenvolvimento das forças produtivas cubanas (Bettelheim, 1964).
Já em 1962, por iniciativa do então ministro de Indústrias, Che Guevara, tentou-se aplicar o sistema de financiamento orçamentário no comércio exterior e na indústria. Segundo Sovilla e García (2013), embora a criação do primeiro fundo centralizado na agricultura para gerir a produção de açúcar fosse resultado da tentativa de compensar o problema de escassez de pessoal técnico e administrativo existente nos primeiros anos da revolução, mais tarde essa estrutura se incorporaria ao orçamento estatal e funcionaria como centro do financiamento das unidades produtivas no setor industrial. Tal medida, que também consistia numa tentativa de aproveitar o avançado sistema de contabilidade das empresas estadunidenses estatizadas, permitiu a posterior horizontalização das empresas estatais cubanas. Por sua vez, o sistema de cálculo econômico também foi implementado pontualmente. Em 1963, Carlos R. Rodríguez, então diretor do Instituto Nacional de Reforma Agrária, sendo um dos principais defensores do sistema de cálculo econômico, promove a aplicação deste modelo nas chácaras e granjas agropecuárias cubanas, porém, sua duração e com resultados limitados (Sovilla e García, 2013).
Se por um lado o sistema de financiamento orçamentário encontrou enormes desafios técnicos e grandes doses de idealismo, por outro, o cálculo econômico criava espaços para que a contrarrevolução atuasse e, portanto, criava riscos de rupturas no processo de transição. A partir de 1965, o sistema de financiamento orçamentário foi o predominante na economia cubana e o debate sobre a propriedade na transição socialista não apresentou mudanças tão relevantes, sendo retomado só no final da década de 1980 e tendo um novo auge na década de 1990, porém, com novas preocupações relacionadas à produtividade (Vasconcelos, 2012).
O processo de radical centralização da economia e forte presença do Estado em todas as atividades econômicas desacelerou em 1975, quando alguns problemas de eficiência e excessiva burocratização tentaram ser resolvidos no Primeiro Congresso do Partido Comunista Cubano (1975) a partir da criação das cooperativas de produção agropecuária. A partir desse momento, duas formas de propriedade principais prevalecem no sistema socioeconômico cubano: a cooperativa e a estatal socialista, mas ainda sob as diretrizes do sistema de financiamento orçamentário. Não é surpresa, assim, que no seu artigo 14 da Constituição cubana de 1976, a propriedade estatal socialista fosse considerada como principal forma de propriedade, porém, no seu artigo 19, permitia algumas formas de propriedade individual como a propriedade dos pequenos agricultores sobre as terras e outros bens agropecuários, assim como a cooperativa.23 No artigo 21, reconhecia a propriedade pessoal, que consiste no direito de propriedade sobre os ingressos e a poupança resultante do próprio trabalho, sobre a moradia própria com justo título de posse e os outros bens que permitam a satisfação das necessidades materiais e culturais da pessoa física, assim como a propriedade sobre os meios de trabalho pessoal que não sejam usados para explorar o trabalho alheio (Valdés, Díaz, e Rivas, 2018).
Os problemas de eficiência e a constante incidência dos déficits das empresas estatais continuaram e em 1986 foi anunciado que o sistema de financiamento orçamentário seria abandonado. Porém, os dois anos seguintes foram dedicados a um longo debate interno do governo sobre qual sistema seria o adequado para financiar as empresas socialistas.24 Em 1988, o Partido Comunista aprovou a retomada do cálculo econômico, que começou a ser implantado na indústria armamentista cubana. Embora inicialmente o plano do governo fosse estender o recém aprovado sistema ao restante da economia, as reformas cessaram pela crença dos principais quadros do governo de que a gestão centralizada seria necessária para superar a nova crise econômica (Mesa-Lago, 1991).
Crise e debate das décadas de 1990 e 2000
Com a desintegração da URSS e a consequente perda dos mercados e fontes de ingressos de Cuba, a economia da ilha entrou em colapso e sofreu uma paralização e degeneração do seu aparato produtivo. Assim, os problemas de produtividade e ineficiência causados pela estrutura de propriedade que quase não tinha sido modificada desde a Constituição de 1976, começaram a receber crescente atenção do governo e intelectuais cubanos. Com o debate retomado, o Partido Comunista Cubano começou a buscar novas formas de administrar a exploração da propriedade estatal. O objetivo era encontrar novas composições da estrutura de propriedade que permitisse atenuar os efeitos adversos da agressiva crise do setor externo.
No gráfico 1, são apresentadas algumas séries históricas de interesse que mostram a magnitude da crise econômica. A primeira série do gráfico 1 mostra uma queda da taxa de crescimento do pib de mais de 10% entre 1990 e 1992. Como é possível observar na segunda série, o impacto imediato dessa redução na taxa de crescimento fez com que o pib per capita caísse mais de 35% até 1995, tendo uma recuperação lenta que fez a economia cubana alcançar só em 2007 os níveis de renda per capita de 1985. A terceira e a quarta série mostram o forte impacto da crise na indústria cubana que, ainda em 2015, não tinha alcançado os níveis de investimento da década de 1980.
Gráfico 1
Nota: os dados estão calculados em dólares constantes de 2010.
Fonte: elaboração própria com dados do Banco Mundial (2020).
O crescimento negativo dos anos noventa e a correspondente redução drástica do pib per capita fizeram com que o governo realizasse uma série de reformas objetivando a recuperação da economia. As reformas objetivavam criar fontes de rendas que compensassem a perda do investimento e da capacidade produtiva da indústria. Uma das primeiras medidas foi transformar as grandes empresas estatais agropecuárias, especialmente as grandes empresas produtoras de açúcar, em unidades básicas de produção cooperativa.25 O principal motivo dessas medidas era que as empresas estatais produtoras de açúcar estavam apresentando resultados desfavoráveis e não conseguiam atingir as metas nem abastecer os centrais açucareiros nos períodos de safra. Assim, o objetivo era contribuir na eficiência da produção oferecendo maior autonomia para os estabelecimentos cooperativos (Álvarez e Águila, 2016; Nova, 2008).
Esta e outras políticas orientadas a enfrentar a crise e potencializar a sustentabilidade da economia agrícola tem sido constantemente debatida nas últimas décadas. No nível nacional, o principal destaque foi uma análise das políticas adotadas e das transformações do período, principalmente no relacionado às novas cooperativas. Por um lado, acadêmicos como Mesa-Lago e Espinosa Chepe, avaliaram criticamente os padrões adotados nas reformas econômicas e as compararam com as adotadas em outros países socialistas asiáticos. Segundo eles, o predomínio da centralização e regulação estatal e o caráter temporário do usufruto da terra distanciavam a ilha dos demais países socialistas que adotavam reformas radicais no meio rural e limitava os incentivos dos trabalhadores rurais. Por outro lado, académicos como Marín de León e Rivera (2015) e García (2013) tentaram responder se as funcionalidade e princípios do cooperativismo eram compatíveis com organizações com autonomia limitada, dirigidas por membros de Estado e nascidas por decreto do governo. Nesse cenário, surgiram diversas análises sobre a composição das novas cooperativas, a rentabilidade, a autogestão e o sentido da propriedade, a relação com a empresa estatal e a crise de identidade dos novos cooperativistas.
Ainda sobre as reformas do período especial, a partir do 12 de julho de 1992, com a nova reforma constitucional, foram incorporadas algumas mudanças, entre as que destacam a troca no artigo 14 de "posse exclusiva do Estado sobre todos os meios de produção" a "só aqueles meios fundamentais de produção". O artigo 15, também modificado, abriu a possibilidade de transmissão total ou parcial dos meios de produção a pessoas naturais ou jurídicas, criando espaço para o desenvolvimento da propriedade mista e inclusive, para a propriedade integralmente privada.
Além das mudanças na estrutura de propriedade interna, a reforma constitucional também introduziu uma flexibilização no controle do comércio exterior e se aplicou o Decreto-Lei N. 50 de 1982, permitindo a criação de empresas mistas e de contratos de associação econômica internacional como modalidade de investimento estrangeiro. Em 1998, já existiam em Cuba 260 empresas mistas e contratos de associações econômicas internacionais de mais de 50 países principalmente nos setores de turismo, mineiro, têxtil, artigos de higiene pessoal, telecomunicações e exploração de petróleo, dando lugar a uma forma de propriedade totalmente nova (García, 2013; Noguera, 2004).26
O número de turistas que chegaram a Cuba cresceu mais de 300% entre 1996 e 2018 (ver gráfico 2). A reforma constitucional de 1992 e as várias reformas econômicas da década de 1990 que incentivaram o setor turístico permitiram que a ilha obtivesse uma nova fonte de renda para atenuar os efeitos negativos do período especial (ver tabela 2).
Reforma | Ano | Descrição |
---|---|---|
Desmonopolização | 1992 | Reforma constitucional Descentralização do Estado e monopólio institucional do comércio exterior |
Desregulação | 1992 | Reconhecimento de propriedade mista e outras formas de propriedade |
1993 | Decreto-Lei relativo ao exercício do trabalho por conta própria | |
1994 | Decreto-Lei para a criação de mercados agrícolas Decreto-Lei para a criação de mercados industriais e artesanais | |
1995 | Lei do investimento estrangeiro | |
1996 | Decreto-Lei referente à abertura de zonas francas Modificação da lei tarifária | |
Descentralização | 1993 | Criação das unidades básicas de produção cooperativa Difusão de esquemas de autofinanciamento empresarial em moeda estrangeira em empresas estatais Criação de novas formas empresariais |
Fuente: elaboração própia com base do apresentado por Echevarría (1999).
Os novos pequenos capitalistas cubanos dos anos 2000 puderam fazer uma grande variedade de reformas e investimentos na terra com fins produtivos sem depender diretamente do governo, mas para isso precisaram pagar licenças ao Estado, que passa a atuar como terratenente.27 Outro caso singular é o do transporte, onde atuam cooperativas, porém o Estado é o único proprietário dos meios de transporte e estabelece tarifas fixas para as passagens. Na procura de formas de aumentar a eficiência microeconômica cubana, além das mencionadas anteriormente, outras cooperativas passaram a ser permitidas, principalmente no setor de serviços e do comercio.
O trabalho por conta própria, resultado tanto da decisão espontânea de muitos trabalhadores cubanos que ficaram sem emprego ou com níveis de ingresso muito precários como das medidas impulsadas pelo governo, abriu a possibilidade de criação de força de trabalho.28 Assim, o Estado, através dos lineamientos, informava à população os tipos de atividade que podiam ser realizadas.29
Foi com o início do mandato presidência de Raul Castro que o debate cubano sobre propriedade dos meios de produção teve seu novo apogeu. Em 2007, o sucessor de Fidel fez um chamado a reformas estruturais que permitissem um maior desempenho econômico do modelo socialista. Vários economistas, filósofos, sociólogos e cientistas políticos cubanos se mostraram a favor da redução da propriedade estatal em favor de outros tipos de propriedade socialista.
Em janeiro de 2007, a revista cubana Temas publicou um simpósio sobre a transição socialista em Cuba, onde onze importantes intelectuais e dirigentes cubanos respondiam uma série de perguntas sobre a transição cubana e os seus principais desafios. Entre eles, a filosofa Isabel Monal e o jurista Narciso Cobo mostraram preocupação com a falta de apropriação e sentimento de pertença dos trabalhadores cubanos em relação à propriedade estatal (Hernández e Pañellas, 2020). Em palavras da própria Monal:
Una de las tantas dificultades es que los trabajadores no se sienten dueños de sus medios de producción, sino que dicen: «son del Estado». Aunque trabajan para un Estado socialista, que a su vez representa al pueblo, los trabajadores no la sienten como su propiedad, ni tampoco el pueblo, en general. Las implicaciones de este problema van más allá, pues afectan la calidad de la producción, el cuidado de los medios, su durabilidad, así como que el producto llegue bien al pueblo, y que cuando este hace uso de las instalaciones, tenga noción de que nos pertenecen a todos (Monal en Hernández e Pañellas, 2020, p. 4).
O influente ensaísta Jorge Luis Acanda também mostrou preocupação com a natureza e as consequências da desapropriação dos trabalhadores cubanos da propriedade estatal e afirmou a necessidade de criar empresas que sejam propriedade direta dos trabalhadores ver (Hernández e Pañellas, 2020, p. 8). Tais problemas não afetam só a qualidade da produção, mas também o seu montante, gerando desabastecimento e escassez. No mesmo documento, o prestigiado economista Alexis Codina Jiménez explicou que se por um lado no socialismo o mercado não pode ser o regulador automático da distribuição e da produção de recursos, por outro, devido aos desabastecimentos e altos preços, é possível observar o mercado regulando e operando fortemente na economia cubana mesmo que seja nas suas formas de mercado ilegal ou informal (Hernández e Pañellas, 2020, p. 18).
Por sua vez, o sociólogo cubano Aurelio Alonso propõe importantes mudanças na atuação do Estado:
El Estado socialista tiene que mantener una función reguladora, ser un inversor, y también propietario de los recursos naturales, de los grandes servicios públicos ---la electricidad, el gas, el agua. Pero también debe legitimarse la economía mixta, incluyendo no solo la inversión extranjera, sino la nacional (Hernández e Pañellas, 2020, p. 2).
Além disso, incita um fomento do setor privado de economia familiar, por conta própria (não só no setor varejista como acontecia até então) e cooperativo (não só no setor agropecuário e de transporte), pois, segundo ele, conseguem ser mais eficientes para resolver vários dos problemas que afligem a população cubana.
O então diretor do Centro de Estudos da Economia Cubana da Universidade da Havana, Omar E. Pérez-Villanueva (2014), alertou sobre a importância de realizar reformas econômicas mais abrangentes e profundas. Entre suas propostas encontramos a utilização do enorme montante de remessas externas para fomentar a criação de Pymes, o incremento do investimento estrangeiro nos serviços e transporte e a expansão de cooperativas de serviços. Pérez-Villanueva (2014) propõe que o Estado deixe de realizar atividades econômicas ineficientes e permita um setor privado mais amplo. Porém, o Estado ainda estaria encarregado de várias áreas como a energia e a mineração, além de administrar um sistema bancário mais desenvolvido que ainda é necessário (Pérez, 2011; Pérez e Torres, 2013).
Outros cientistas cubanos, através de trabalhos acadêmicos e declarações abertas, afirmaram que existia um grave problema com a política econômica na ilha, originado numa confusão e não diferenciação entre os processos de estatização e socialização. A ausência de diferenciação provocou uma enorme concentração da planificação na empresa estatal que se mostrou incapaz de realizar atividades que requerem unidades produtivas pequenas e médias, de forma que também comprometeu a capacidade do Estado de realizar atividades estratégicas de grande porte. As principais propostas consistiam em reduzir a concentração da propriedade estatal, principalmente da terra e dar mais autonomia, incentivos e propriedades às cooperativas (Campos, 2011; Chaguaceda e Centeno, 2006; Guanche, 2009; Nova, 2008).
Espinosa (2006) explica que um dos grandes problemas da produção de alimentos cubana se encontra no pouco interesse dos moradores de áreas rurais no trabalho agropecuário. Segundo ele, além do processo de migração às capitais, o morador de áreas rurais cada vez interessa-se menos nas atividades relacionadas ao agro e procura emprego em outros setores. Isso, somado à falta de investimento na agropecuária cubana, faz Espinosa Chepe propor entregar as propriedades das terras aos setores cooperativo e privado.
Muitas propostas apresentadas pelos teóricos e políticos foram executadas pelo então presidente Raúl Castro em 2011, particularmente as relacionadas ao investimento externo e às moradias.30 A maioria das reformas econômicas aplicadas em 2011 só se consolidaram com a Constituição de 2019. A mais recente carta magna reconhece pela primeira vez desde a Constituição de 1940 o papel da propriedade privada, do mercado e do investimento estrangeiro. O artigo 23, por exemplo, abre a possibilidade de privatizar propriedades antes consideradas inalienáveis e imprescritíveis. Com as reformas, espera-se que os novos incentivos e direitos no espaço rural gerem um aumento da produtividade. Contudo, a lei estabelece que um motivo para a desapropriação da terra pode ser "apresentar conduta moral e social contrária aos princípios éticos de nossa sociedade", ambiguidade que abre espaço para a aplicação de sanções a condutas a ações não especificadas. Dessa forma, não é surpresa que o ex presidente Raúl Castro tenha reiterado várias vezes que essas medidas e novas leis não significam a privatização da propriedade social dos meios de produção, pelo contrário, fazem parte de uma nova estratégia de construção do socialismo, pois permite que o Estado concentre sua atuação em setores considerados estratégicos sem perder o direito legal sobre os meios de produção.
Outra lei amplamente debatida é a Lei de Investimento Estrangeiro, pois discrimina em razão da nacionalidade.31 Por um lado, permite ao investidor estrangeiro adquirir meios fundamentais de produção, gestão e exploração de bens e serviços públicos, facilidades de livre cessão do exterior e obtenção de dividendos e lucros do investimento, o direito à propriedade de prédios destinados à habitação, escritórios, imóveis desenvolvimento para fins turísticos, entre outros benefícios; mas pelo outro lado, nega ao cidadão cubano a obtenção dos meios fundamentais de produção e demais direitos.
Na Cuba socialista, o processo de substituição da propriedade privada dos meios de produção pela propriedade social apresentou dificuldades de planejamento e administração e gerou desafios de produtividade. No Manifesto comunista, Marx e Engels negaram que a abolição da propriedade privada geraria preguiça e reduziria a produtividade. Segundo os autores, se esse fosse o caso, "a sociedade burguesa já teria sucumbido à ociosidade; pois nela os que trabalham não lucram nada, e os que lucram não trabalham" (2020, p. 24). É possível que os dois autores acreditassem que o proletariado, uma vez proprietário dos meios de produção, tivesse um nível de consciência tal que se identificasse com a nova propriedade e que assumisse as responsabilidades que a nova posse acarreta. Porém, o socialismo não surgiu nos países mais industrializados e com alta produtividade do trabalho, mas pelo contrário, foi em países com um limitado acesso aos progressos do capitalismo que, como consequência, tiveram um o processo de transição negativamente condicionado a problemas de planificação e eficiência. Dessa forma, os atuais desafios cubanos mostram que os problemas de produtividade e apropriação são uns dos principais desafios dos países socialistas em transição.
É possível perceber como abundam nas reflexões citadas e no debate geral deste período as observações sobre problemas específicos da realidade cubana relacionados principalmente à produtividade. Em relação ao debate da década de 1960, em que duas grandes perspectivas gerais e sistemáticas se enfrentaram mediante a apresentação de dois modelos de planejamento e propriedade, o debate de começos do século xx parece apresentar uma composição mais difusa pela multiplicidade de situações que aborda e pela carência de diálogo direto entre adversários teóricos (e, portanto, de registros). Se nas primeiras décadas do governo socialista o debate aconteceu entre grupos com objetivos semelhantes mas com métodos diferentes, nos últimos anos há tanto diferenças nos métodos como nos objetivos. Entre os partidários do governo socialista, o debate gira em torno do grau de flexibilização, do alcance e dos perigos da propriedade privada dos meios de produção; entre os críticos do regime, o debate principal trata da livre propriedade privada e das garantias jurídicas como um impulsor do desenvolvimento econômico cubano e direito fundamental.
Considerações finais
Até este ponto do trabalho já foi discutido como as condições sociais, políticas e econômicas da sociedade cubana da primeira metade do século xx, particularmente, a estrutura de propriedade e sua alta concentração, condicionaram as primeiras transformações realizadas nos primeiros anos do governo revolucionário em relação à propriedade dos meios de produção. Foram apresentadas as características dos processos de libertação nacional e da ofensiva revolucionária, assim como seus fundamentos distributivos e suas consequências, sendo a principal delas o total domínio do Estado sobre os meios de produção em Cuba. O debate central que dirigiu os rumos da política nacional de gestão durante esse período, estabelecido pelos defensores do cálculo econômico e pelos partidários do sistema orçamentário de financiamento, consistiu no enfrentamento de dois argumentos principais; por um lado, a inferência de que por ser o imperialismo uma fase superior do capitalismo, então a maior concentração dos meios de produção permitiria a superioridade histórica e técnica; pelo outro, a afirmação de que Cuba ainda não estava pronta para um processo agressivo de centralização da propriedade pelo precário desenvolvimento das forças produtivas.
Foram apresentados os problemas de produtividade que apresentou o país, assim como as soluções pensadas e executadas ao longo das décadas de 1970 e 1980 até a crise provocada pelo desaparecimento do bloco de países socialistas com o fim da Guerra Fria. A partir desse ponto, foram apontadas evidências sobre as reações e as reformulações que o Estado cubano promoveu na estrutura de propriedade dos meios de produção para suavizar os efeitos adversos da crise e impulsar o incremento da produtividade. Nos anos que seguiram as reformas, o debate sobre os meios de produção foi retomado com considerável empenho por intelectuais e políticos que focaram suas atenções nos excessos e deficiências do Estado socialista e nos problemas de ineficiência e desestimulo à produtividade que podia gerar o modelo administrativo. A nova Constituição de 2019 capturou algumas das propostas e contradições sinalizadas neste período.
Ao longo do período analisado, foi possível observar que à medida que experiências foram acumuladas no interior do processo de construção do socialismo cubano, o debate sobre a propriedade dos meios de produção na transição foi ganhando elementos empíricos sobre os quais plantear o debate e formular políticas. Dessa forma, se em um primeiro momento, um rigoroso debate teórico orientou os rumos da política nacional em relação à propriedade nos caminhos da transição socialista, tendo seu ponto máximo de instrumentalização na Constituição de 1976; em um segundo momento, com a crise econômica provocada pela desintegração do campo socialista e o fim da URSS, os líderes do Estado cubano solicitaram a retomada do debate sobre a propriedade mas, dessa vez, formulado sobre uma ampla gama de fenômenos setoriais particulares relacionados a problemas de ineficiência e baixa produtividade. Assim, preocupações como a eficiência da estrutura produtiva passaram a ocupar mais as mentes dos teóricos e pensadores cubanos e questões como a seguranças e as garantias jurídicas dos investidores externos ganharam importância.
Atualmente, os procedimentos e meios para alcançar maior produtividade e eficiência na sociedade cubana estão recebendo considerável atenção como resposta à crise produtiva que perdura na ilha desde a década de 1990, porém, é importante que as preocupações e questionamentos mais funcionalistas não minimizem aquelas mais filosóficas, de forma que os compromissos com a verdade não percam todo seu espaço nas agendas dos pensadores cubanos em favor dos compromissos com os resultados imediatos. Todavia, espera-se que nos próximos anos possam abrolhar mudanças nos direitos à propriedade dos meios de produção para nacionais que estimulem o desenvolvimento econômico e social em Cuba.
O presente estudo enfrentou consideráveis limitações em relação à disponibilidade de dados primários sobre a estrutura de propriedade cubana devido à falta de transparência de informações e dados.32 À medida que as autoridades competentes disponibilizem as bases de dados ao público, futuras pesquisas empíricas sobre o comportamento da propriedade na ilha e sua relação com as reformas adotadas poderão ser realizadas.